logotipoTRIBUNAL CONSTITUCIONAL Portugal

  • PT
  • EN
Menu
O Tribunal Constitucional
  • Apresentação
  • Mensagem do Presidente
  • História
  • Constituição
  • Biblioteca
  • Relações Internacionais
  • Informação Institucional
Juízes
  • Plenário
  • Secções
  • Estatuto dos Juízes
  • Código de conduta
Competências
  • Fiscalização da Constitucionalidade
  • Outras Competências
  • Legislação
  • Titulares de Cargos Políticos
Jurisprudência
  • Base de Dados
  • Acórdãos
  • Decisões Sumárias
  • Partidos Políticos
  • Publicidade das decisões
  • Estatísticas
  • Coletânea
  • Jurisprudência traduzida
Comunicação
  • Comunicados
  • Arquivo
  • Intervenções
  • Eventos
  • Visitas guiadas
  • Visitas escolas
  • Ligações
> Colóquios > X Aniversário do Tribunal Constitucional > Legitimidade da justiça constitucional e princípio da maioria

Legitimidade da Justiça Constitucional e Princípio da maioria
J.C. Vieira de Andrade


Queria cumprimentar a mesa e começar por agradecer o convite, que é uma honra, para participar neste colóquio. Permitam-me que saúde o Tribunal Constitucional nas pessoas do seu presidente actual, Senhor Dr. José Manuel Cardoso da Costa e do seu primeiro presidente, Senhor Prof. Doutor Armando Marques Guedes, e que o felicite por este aniversário. Considero que estou devedor ao Tribunal Constitucional, como cidadão, pelo papel que tem desempenhado na consolidação do sistema constitucional e da cultura democrática, e, como jurista, pelo elevado nível dos seus Acórdãos, independentemente da concordância que me suscitem — embora deva dizer que, perante uma sentença do Tribunal Constitucional, em regra, se não estou de acordo com a decisão, concordo com alguma das declarações de voto.


1 — Introdução

No contexto do tema geral desta sessão — «Legitimidade da Justiça Constitucional e Princípio da Maioria» — tentarei concentrar, no tempo que me é concedido algumas breves reflexões, certamente banais, sobre a relação entre o Tribunal Constitucional e o legislador nacional, designadamente o legislador parlamentar. Tenho, assim, a consciência de estar a operar uma primeira simplificação ou uma delimitação do tema.
Depois, vou encarar essa relação entre o Tribunal Constitucional e o legislador sobretudo numa perspectiva funcional, confrontando a função que desempenha o Tribunal — especificamente, a de fiscalização da constitucionalidade das leis — com a função político-normativa que é desenvolvida pelo legislador.
Julgo legítimo partir de duas asserções básicas, que serão os pressupostos da minha intervenção.

Em primeiro lugar, parto do princípio de que existe a possibilidade de um verdadeiro conflito entre a função fiscalizadora do Tribunal Constitucional e a função do legislador: essa possibilidade existe, desde logo, porque o Tribunal Constitucional tem poderes para controlar efectivamente o respeito pelo princípio da constitucionalidade, mas existe sobretudo na medida em que se entenda que o legislador não é um mero executor da Constituição.

Queria sublinhar especialmente este último aspecto, pois julgo que corresponde a uma condição sine qua non da possibilidade de, em termos funcionais, haver um conflito real entre as duas funções. Isto é, parto do princípio de que tem de se reconhecer ao legislador uma liberdade constitutiva, uma capacidade própria e autónoma de concretização da Constituição, isto é, um poder de autodeterminação e de escolha, e de que são precisamente essas suas escolhas que, ao poderem ser fiscalizadas pelo Tribunal Constitucional, poderão dar origem a conflitos funcionais.

E ninguém hoje negará que essa autonomia do legislador, correspondendo ao modelo de uma democracia pluralista e representativa, está inequivocamente garantida na nossa ordem constitucional.

O segundo ponto de partida é o de que o conflito entre estas duas legitimidades funcionais há-de ser resolvido através do velho princípio da divisão dos poderes. Julgo que esta ideia pode ser tomada como um ponto de vista pacífico ou pelo menos aceitável.


2 — A diversidade dos contextos procedimentais do conflito

Partindo destas ideias, gostaria de começar por chamar a atenção de que a potencial conflitualidade entre o Tribunal Constitucional, enquanto juiz da constitucionalidade da legislação, e o legislador (sobretudo o legislador parlamentar) não se manifesta de modo uniforme nos diferentes processos de fiscalização da constitucionalidade previstos na Constituição Portuguesa.

2.1 — De facto, julgo que, desde logo, na generalidade dos processos de fiscalização concreta não existe verdadeiramente um conflito funcional entre o Tribunal e o legislador, sendo certo que, muitas vezes, o Tribunal Constitucional aparece até na veste de defensor da lei (do legislador ou das soluções legislativas), designadamente quando revê as decisões de desaplicação de leis pelo tribunal a quo.

Aliás, bem vistas as coisas, podemos mesmo afirmar que a Constituição se preocupa fundamentalmente em garantir a intervenção do Tribunal Constitucional nesses casos de desaplicação judicial das leis, em que o tribunal funciona como potencial aliado do legislador contra eventuais excessos fiscalizadores dos restantes tribunais. É nesses casos que, através da iniciativa obrigatória do Ministério Público, a Constituição assegura a intervenção do Tribunal Constitucional, pelo menos no que respeita às normas, podemos dizer, superiores do ordenamento jurídico: as convenções internacionais e os actos legislativos (e ainda os decretos regulamentares, que terão apanhado aqui a boleia da promulgação). Digo aqui fundamentalmente porque não esqueço que o Ministério Público também tem a obrigatoriedade de intervir quando haja aplicação duma norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, mas esta hipótese corresponde a uma situação de pura coerência do sistema, que me parece não envolver uma opção funcional como aquela que sublinho.

E esta ideia de relativa irrelevância do conflito na fiscalização concreta até se fortalece se tomarmos em consideração a possibilidade, que o Tribunal Constitucional tem, de defender a lei não a julgando inconstitucional apenas no sentido que interessa ao caso concreto, isto é, se tivermos em conta o poder do Tribunal Constitucional de proferir decisões interpretativas de não inconstitucionalidade ou de rejeição com base numa interpretação da norma em conformidade com a Constituição que seja válida para aquele caso.

Mas, mesmo quando a sentença do Tribunal Constitucional aparece a julgar ou a concluir pela inconstitucionalidade de uma norma legal, quer confirme quer infirme a decisão do juiz a quo, o Tribunal não está, no fundo, a pôr em causa a função legislativa, mas sim, afinal, a aplicação da norma ao caso concreto, sendo que algumas vezes aquilo que é «censurado» é apenas a interpretação que o juiz faz da norma, interpretação até que pode não corresponder de todo à intenção do legislador, à opção do próprio legislador democrático. De facto, deparamos aqui com situações em que o Tribunal Constitucional, em termos reais ou, substanciais, acaba por discordar mais da própria sentença do que da norma que foi aplicada pelos tribunais.

Seja como for, no sistema português, o juízo de inconstitucionalidade produzido nesta modalidade de processo acaba por não afectar, como se sabe, a vigência da norma, que se mantém no ordenamento jurídico como manifestação do poder legislativo.

2.2 — Depois, também no que toca à fiscalização da inconstitucionalidade por omissão não existirá talvez um verdadeiro conflito funcional entre as decisões do Tribunal Constitucional e a vontade legislativa ou, pelo menos, tal conflitualidade não assume uma expressão relevante.

Por um lado, o Tribunal Constitucional, na linguagem da Constituição, que adoptou, apenas verifica a inconstitucionalidade, não fazendo mais, no fundo, do que reconhecer a existência de normas constitucionais que ordenam directamente ou, pelo menos, impõem inequivocamente uma tarefa legislativa — de tal maneira que não será inaceitável que se interprete a verificação da inconstitucionalidade por omissão mais como um juízo objectivo de carência do que como uma censura ao órgão legislativo, mais como a constatação da existência de uma lacuna no ordenamento jurídico do que de uma falta do legislador. Este entendimento é, obviamente, discutível, mas, ainda que assim não seja, sempre é inegável que os poderes do Tribunal Constitucional não ofendem a função do legislador, pelo contrário, respeitam-na integralmente, já que o efeito da verificação da omissão é apenas o de reconhecimento da necessidade da legislação, não tendo sequer hoje o valor jurídico de uma recomendação concreta — o que revela a incapacidade do próprio Tribunal Constitucional para remediar a inconstitucionalidade (substituindo-se ao legislador na emissão da norma ou dirigindo-lhe injunções nesse sentido) e, desse modo, reconhece e fortalece até a autonomia do poder legislativo.

2.3 — Já as coisas não se passam bem assim quanto à fiscalização abstracta da constitucionalidade, mas, ainda aí, há que distinguir entre a fiscalização preventiva e a fiscalização sucessiva.

Na fiscalização preventiva, é nítida uma visão atenuada dos poderes do Tribunal Constitucional, existindo mesmo uma manifestação clara da supremacia do princípio da maioria sobre a legitimidade da justiça constitucional, embora a maioria em causa seja uma maioria especialmente exigente, somando uma maioria qualificada do Parlamento com a vontade do Presidente da República.

O carácter atenuado dos poderes do Tribunal Constitucional resultará de este não poder senão pronunciar-se pela existência (ou inexistência) de inconstitucionalidades nas normas apreciadas, não tendo designadamente — como tem na fiscalização abstracta sucessiva — espaço para decisões intermédias, que constituem o núcleo duro dos poderes da jurisprudência susceptíveis de afectarem o domínio da decisão legislativa.

Mas, principalmente, a inferiorização da justiça constitucional neste processo torna-se evidente perante a possibilidade de o Presidente, querendo, promulgar uma lei parlamentar que contenha normas consideradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional, inferiorização que se torna mesmo gritante se for comparada com os poderes de declaração de inconstitucionalidade de que o Tribunal Constitucional dispõe relativamente às mesmas normas em sede de fiscalização sucessiva abstracta.

É claro que poderia dizer-se que esta possibilidade de promulgação de uma lei com normas declaradas inconstitucionais encerra uma incoerência e, por isso, não seria significativa. Só que essa possibilidade existe e foi mantida apesar da alteração da norma em 1989, devendo concluir-se que a revisão constitucional em Portugal não se faz apenas através dos meios normais, também se pode fazer (ainda que precariamente) através deste meio, e que, porventura, até não será esta a forma menos transparente de rever a Constituição, pois que isso pode ser feito, sem maioria qualificada, através da aprovação de tratados internacionais (passe o desabafo antimaastrichtiano).

2.4 — Parece ser, pois, no campo da fiscalização sucessiva abstracta que se opõem frontalmente a legitimidade da justiça constitucional e a legitimidade da maioria legislativa, tendo em consideração, designadamente, os poderes do Tribunal Constitucional de declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade da norma ou mesmo só de um segmento ideal dessa mesma norma.

Note-se que, na realidade, os poderes do Tribunal são, neste domínio, poderes de destruição maciça, dado que os efeitos da sentença são, em regra, retroactivos (e repristinatórios), com ressalva apenas dos casos julgados.

Mesmo quando os efeitos da sentença do Tribunal Constitucional sejam menos devastadores, isso resulta de uma decisão do próprio Tribunal Constitucional. E a confirmação de que esse é, de facto, um poder do Tribunal concorrente do poder legislativo está em que a decisão de restringir os efeitos da sentença não se baseia necessariamente em considerações de equidade ou de segurança — razões ainda típicas de uma função judicial — mas também em considerações de interesse público, isto é, em razões de carácter político.

Isto para não falar sequer da possibilidade, também admitida entre nós, de, pelo menos com base no princípio da igualdade, o Tribunal Constitucional produzir sentenças que vêm integrar o ordenamento jurídico, funcionando como acrescentos normativos.


3 — O conflito como questão substancial a resolver pelo juiz constitucional

Parece, portanto, ser legítimo afirmar que são diversos os contextos do conflito entre a legitimidade da justiça constitucional e a da maioria legislativa no que respeita à fiscalização da constitucionalidade das normas e que isso deve ser tomado em conta na análise desta relação conflitual.

Mas, para além disso, são ainda diferentes as situações normativas em que surge ou pode surgir o conflito, designadamente porque são diferentes as relações entre a norma constitucional e o legislador. Esta relação também depende e varia conforme as matérias e, dentro das matérias, conforme os tipos de normas. No fundo, o que se passa é que a separação dos poderes não existe apenas entre os poderes constituídos: há também, de outro modo, uma divisão de poderes entre o poder constituinte e os poderes constituídos.

Operando mais uma simplificação, proponho-me concretizar um pouco esta reflexão em matéria de direitos fundamentais, uma área já de si bastante vasta, onde a Constituição Portuguesa prevê uma distinção básica — entre direitos liberdades e garantias, por um lado, e direitos económicos sociais e culturais, por outro — que nos conduz inevitavelmente, com maior ou menor acuidade, à distinção entre uma concretização jurídica-interpretativa e uma concretização jurídica-política da Constituição.

Assim, os preceitos relativos ao direitos, liberdades e garantias, são, tipicamente e em regra, preceitos directamente aplicáveis, que podem e devem ser objecto de uma concretização jurídico-interpretativa: o seu conteúdo é susceptível de concretização ao nível constitucional e, portanto, é acessível à jurisprudência do Tribunal Constitucional.

Diferentemente, a concretização jurídico-política é típica (embora só típica) dos preceitos relativos aos direitos sociais, remetendo a Constituição, em regra, a determinação do seu conteúdo para opções políticas, que, por natureza, são próprias do legislador: tratando-se de questões em que estão em causa uma sensibilidade e uma legitimidade políticas, a concretização dos preceitos há-de pertencer em primeira linha do legislador, devendo o Tribunal Constitucional, por princípio, respeitar o poder da maioria, desde que esta não ultrapasse os limites constitucionais.

Queria, no entanto, sublinhar que esta distinção não é a única possível nem é suficiente para o efeito: há outras distinções a fazer dentro daquelas categorias. Assim, os preceitos constitucionais relativos aos direitos, liberdades e garantias não têm, todos eles, o mesmo grau de determinação em face do legislador, como se vê precisamente na diversidade de poderes que a Constituição a este reconhece.

Em certas matérias, ou em certos aspectos da matéria de direitos, liberdades e garantias, a Constituição reserva ou confere ao legislador poderes de concretização do próprio conteúdo do direito fundamental: são casos nítidos os do direito à protecção dos dados pessoais, do direito de acesso à função pública, dos direitos dos jornalistas no âmbito da liberdade de imprensa, por exemplo.

Noutros casos, o poder que o legislador tem é um poder de limitação ou de compressão, com respeito pelo conteúdo típico ou conteúdo-regra do direito: é o caso nítido da liberdade de escolha da profissão ou do direito à não ingerência nas telecomunicações.

Outras vezes, o legislador goza do poder de restringir os direitos, liberdades e garantias, um poder que a Constituição prevê até em termos genéricos, embora com a garantia da necessidade, adequação e proporcionalidade das restrições, designadamente da sua necessidade para defesa de um valor constitucionalmente protegido e do respeito pelo conteúdo essencial do preceito.

E devem ainda configurar-se, em geral, as hipóteses em que as leis apenas condicionam o exercício do direito fundamental ou o acomodam com outros direitos, ou que se limitam apenas a regulá-los, facilitando ou até promovendo a sua realização prática.

Ora, essa diferença de situações normativas há-de obviamente ter consequências nos termos em que o Tribunal Constitucional vai fiscalizar o cumprimento pelo legislador das normas constitucionais. Só tendo em conta estas diferenças é possível encontrar o equilíbrio que é exigido pela ideia da divisão dos poderes, neste caso, entre a legitimidade da justiça constitucional e a legitimidade do legislador.

Gostaria de tomar como exemplo, consumando ainda mais uma simplificação, a relação entre os direitos, liberdades e garantias e a actuação da Administração pública.

Neste campo, o regime dos direitos, liberdades e garantias estabelece o princípio da reserva da lei parlamentar, reserva que, para além do seu significado puramente orgânico-competencial, é entendida pela generalidade da doutrina como um imperativo substancial de determinação ou de densidade legal e também como uma proibição de delegação normativa na Administração.

Partindo destes imperativos decorrentes da reserva de lei, temos de concluir, em face da variedade dos preceitos relativos aos direitos, liberdades e garantias e da consequente diversidade das relações entre a lei e a Constituição — designadamente, das diferenças entre o legislador que promove, o legislador que acomoda, o legislador que regula, o legislador que condiciona, o legislador que limita ou o legislador que restringe um direito fundamental — que não pode exigir-se o mesmo grau de densidade normativa a todas as leis, independentemente da sua função relativamente ao preceito constitucional. São diversas as exigências de garantia, porque é diferente o grau de perigo para o direito fundamental e, só por isso, já se vê que as possibilidades de o legislador graduar a intensidade da sua normação têm de ser distintas.

Podemos até sustentar que, se se trata de uma pura tarefa de promoção do exercício de direitos, liberdades e garantias, a Administração não precisará sequer de base legal específica para actuar, podendo executar directamente a norma constitucional: teremos aqui a abertura máxima do nível legislativo, que se traduz na própria desnecessidade da lei.

E, em qualquer caso, há-de concluir-se que a densidade perante a Administração exigida à lei pelo respeito dos direitos, liberdades e garantias não pode ser em qualquer caso a máxima possível ou, por outras palavras, que deste mesmo princípio da reserva de lei em matéria de direitos, liberdades e garantias não decorre um imperativo de vinculação total da Administração em termos de excluir, em qualquer caso, os poderes discricionários desta.

E isto não só em matérias onde tradicionalmente se reconhece a necessidade de uma certa abertura ou de uma certa porosidade legal que permita a respiração administrativa — como as expropriações, em face do direito de propriedade, ou a actividade de polícia, sobretudo na manutenção da ordem pública, em face da liberdade geral — mas em muitos outros casos.

De facto, não há razão para exigir ao legislador uma densidade máxima em todas as normas que respeitem aos direitos, liberdades e garantias, sendo legítimo que o legislador opte por uma densidade apenas média e que, por exemplo, compense esse défice de normação substantiva com regras mais exigentes em matéria de organização e de procedimento de actuação.

Parece-nos perfeitamente adequada a ponderação do princípio da reserva de lei com o princípio da realização eficiente do interesse público, tendo em conta que, por um lado, a Administração tem hoje — ainda que indirectamente, ou, no caso da Administração local autárquica, até directamente — uma legitimidade democrática e que, por outro lado, a Administração não é um poder exclusivamente sujeito à lei, mas também ao Direito, de tal modo que a abertura legal não significa necessariamente um espaço livre do Direito —designadamente num sistema, como o português, em que a própria Constituição sujeita toda a actividade administrativa, incluindo os momentos discricionários, aos princípios da imparcialidade, da igualdade, da justiça e da proporcionalidade (o que, noutros tempos, significaria até o fim da própria discricionaridade).

Acresce ainda que a Administração está obrigada a fundamentar os seus actos, sobretudo aqueles que afectem direitos dos particulares e, designadamente, os seus direitos, liberdades e garantias, e que, afinal, a actividade administrativa pode ser fiscalizada pelos tribunais administrativos — sendo certo que dos preceitos relativos aos direitos, liberdades e garantias também decorre para o juiz o dever de efectuar um controlo intrínseco (especialmente intenso) das decisões administrativas que lhes digam respeito.

Por tudo isto, não parece legítimo que o Tribunal Constitucional possa exigir ao legislador, em nome da Constituição, um padrão de densidade uniforme nesta matéria. Tem de aceitar, julgo, com alguma abertura as opções legislativas, desde que elas, na espécie, não sejam desrazoáveis e, obviamente, desde que em caso algum ponham em causa o conteúdo essencial dos direitos, liberdades e garantias.

Aliás, a doutrina foi elaborando um conceito de densidade suficiente, para verificar a constitucionalidade da lei relativamente ao imperativo de determinação em matéria de direitos, liberdades e garantias, um critério recentemente aceite pelo Tribunal Constitucional, numa decisão em matéria de função pública, que entendeu dever autolimitar-se, não impondo ao legislador uma densidade total das suas normas, isto é, uma vinculação total da Administração pública.

No entanto, o problema está em que densidade suficiente pode ser uma densidade mínima, mas também pode ser entendida como uma densidade no essencial e, mesmo, tendo em conta as virtualidades da língua portuguesa, uma densidade máxima.

Por isso, dizer que a lei é constitucional, ou não é inconstitucional, desde que tenha uma densidade suficiente, só nos fornece, afinal, de facto, um critério de princípio. É necessário, para além disso, ter em conta que esse critério implica uma ponderação complexa — uma ponderação que tem de ser vista no quadro da situação concreta e se apresenta, assim, como um problema prático, que consiste em determinar, em cada caso da vida, quando é que a densidade é normativamente suficiente.

Elucidativa é, de resto, a decisão do Tribunal Constitucional a que aludi, em que, partindo, pelo menos aparentemente, do mesmo critério, os juízes chegaram a conclusões distintas sobre a constitucionalidade da norma — o que, sendo perfeitamente compreensível, mostra que, para além da ideia da auto-contenção, o grande problema é o da prática dessa mesma auto-contenção pelo juiz (sobretudo do juiz constitucional).

O mesmo se poderia dizer noutras hipóteses, como, por exemplo, a da proibição de delegação no regulamento resultante da própria reserva de lei. Como já sustentei, também essa proibição de delegação encontra limites na admissibilidade de regulamentos autónomos em matéria de direitos, liberdades e garantias, quando se trate do exercício de atribuições autárquicas e não estejam em causa decisões políticas fundamentais.


4 — Conclusão

Julgo que é tempo de terminar e regresso ao ponto de partida, para concluir que o conflito entre a legitimidade da justiça constitucional e a legitimidade da maioria legiferante tem de resolver-se através de uma aplicação equilibrada do princípio da divisão dos poderes.

Embora se reconheça que esse conflito não é tão generalizado como podia parecer à primeira vista, só existindo verdadeiramente na área da fiscalização abstracta sucessiva, vimos que a questão se põe aí com alguma intensidade.

Mas vimos sobretudo que a questão se põe no momento da fiscalização e, portanto, na perspectiva do juiz constitucional, isto é, surge como uma questão de auto-limitação ou, como preferimos dizer, de auto-contenção do juiz.

Cabe, por isso, ao juiz constitucional a pesada responsabilidade de ponderar os vários valores em presença, de ser prudente, sem excessos de timidez nem excessos de arrogância, mas — foi isso que quis sublinhar — sobretudo sem formalismo, pois que muitas vezes o formalismo esconde ou a timidez ou a arrogância.

Julgo que nesta área de decisão, como em muitas outras ou porventura em todas, a diversidade das situações é fundamental e caracterizante, as diferenças substantivas são iniludíveis, daí resultando pesada a tarefa e grande a responsabilidade do Tribunal Constitucional, que, tenho a certeza, vai continuar a responder às necessidades de equilíbrio do nosso sistema constitucional. Muito obrigado!

 




 



Mapa do site | Contactos | Informação legal

Peças Processuais - Fax: [351] 213 472 105

Encarregado de proteção de dados do Tribunal Constitucional

© Tribunal Constitucional · Todos os direitos reservados.