logotipoTRIBUNAL CONSTITUCIONAL Portugal

  • PT
  • EN
Menu
O Tribunal Constitucional
  • Apresentação
  • Mensagem do Presidente
  • História
  • Constituição
  • Biblioteca
  • Relações Internacionais
  • Informação Institucional
Juízes
  • Plenário
  • Secções
  • Estatuto dos Juízes
  • Código de conduta
Competências
  • Fiscalização da Constitucionalidade
  • Outras Competências
  • Legislação
  • Titulares de Cargos Políticos
Jurisprudência
  • Base de Dados
  • Acórdãos
  • Decisões Sumárias
  • Partidos Políticos
  • Publicidade das decisões
  • Estatísticas
  • Coletânea
  • Jurisprudência traduzida
Comunicação
  • Comunicados
  • Arquivo
  • Intervenções
  • Eventos
  • Visitas guiadas
  • Visitas escolas
  • Ligações
> Relatórios > Relatórios Portugueses das Conferências dos Tribunais Constitucionais Europeus > XIVª Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus

Relatórios Portugueses das Conferências dos Tribunais Constitucionais Europeus

XIVª Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus
“A Omissão Legislativa na Jurisprudência Constitucional”
Assessoras do Gabinete do Presidente, Joana Costa, Benedita Urbano, Assessor do Gabinete do Vice-Presidente João Raposo e Assessores do Gabinete dos Juízes, Estrela Chaby, João Rodrigues e Francisco Xavier - todos do Tribunal Constitucional, sob a orientação do Presidente do Tribunal, Conselheiro Rui Moura Ramos
[Vilnius-Lituania, junho de 2008]

 

A Omissão Legislativa na Jurisprudência Constitucional [1]

 

 

1. Problemática dos vazios jurídicos na doutrina jurídica (legal gaps)

 

 

1.1. Conceito de vazio jurídico (legal gap)

Em termos genéricos, poder-se-á sustentar que existe um vazio jurídico naqueles casos em que se constata que o “tecido normativo não contém a previsão de um caso” [2] . Uma dita ausência de previsão de um caso (caso omisso), materializada num silêncio legislativo (na ausência da interpositio legislatoris), pode resultar de variados factores, como sejam, a incompletude do sistema jurídico, a abertura ou falta de densidade de certas normas ou, pura e simplesmente, a desnecessidade de regulamentação. Como afirma Baptista Machado, “nenhum legislador é capaz de prever todas as relações da vida social merecedoras de tutela jurídica, por mais diligente e precavido que seja. Há mesmo situações que são imprevisíveis no momento da elaboração da lei, ao lado das que, embora previsíveis, escapam à previsão do legislador. Além de que este, em relação a certas questões previstas, pode não querer decidir-se a regulá-las directamente, por não se sentir habilitado a estabelecer para elas uma disciplina geral e abstracta suficientemente definida” [3] .

Concretizando um pouco, é possível descortinar diversos tipos de vazios jurídicos. Assim, fazendo um apanhado das várias figuras mencionadas na doutrina nacional, regista-se a referência a lacunas jurídicas, a omissões legislativas, a situações extra-jurídicas ou espaços jurídicos livres e à abertura das normas. No âmbito da teoria geral do direito, os vazios jurídicos que mais se destacam são as lacunas jurídicas. No plano específico do Direito Constitucional, o relevo é dado por igual às lacunas jurídicas e às omissões legislativas.

 

          

1.1.1. A lacuna jurídica

A maior parte da doutrina portuguesa tem utilizado um conceito de lacuna jurídica tributário da doutrina alemã, definindo-a como uma “incompleição do sistema normativo que contraria o plano deste” ou, mais simplesmente, uma “incompletude contrária a um plano” (planwidrige Unvollständigkeit) [4] - [5] .

Existem distintos tipos de lacunas. De seguida, eles irão ser referidos, advertindo-se desde já para a possibilidade de se verificar alguma sobreposição conceptual.

No plano mais genérico da teoria geral do direito, são vários os autores que procuram classificar os diversos tipos de lacunas.

Baptista Machado começa por distinguir dois tipos de lacunas: as “lacunas da lei” e as “lacunas do direito”.

As primeiras, também designadas de “lacunas de regulamentação”, ocorrem naquelas situações em que se observa uma ausência de regulamentação legal. Elas podem ser lacunas “próprias”, “de colisão” ou “teleológicas”. As lacunas “próprias” (ou “ao nível das normas” ou ainda “de primeiro nível”) surgem quando uma norma não pode ser aplicada se não for acompanhada de uma outra determinação legal não contida na lei (por exemplo, uma norma que fixa um prazo para a prática de um facto não pode ser aplicada porque a lei não contém a forma de contagem desse prazo). As “lacunas de colisão” verificam-se em consequência da contradição entre duas normas legais que, não podendo aplicar-se simultaneamente, como que se anulam uma à outra – daí, justamente, resultando uma lacuna. Por fim, quanto às “lacunas teleológicas” (ou “de segundo nível”), não é já a aplicação de uma norma que exige uma outra determinação legal não contida na lei, como no primeiro caso, mas a aplicação da teleologia de uma norma ou de um complexo normativo que leva à determinação da lacuna e à necessidade do seu preenchimento (sendo pois este o campo de aplicação da analogia). As “lacunas teleológicas” podem ser “patentes” (em que não há qualquer regra aplicável ao caso) ou “latentes” ou “ocultas” (em que há uma regra geral aparentemente aplicável ao caso, caso que todavia reclama um tratamento especial ou mesmo excepcional).

No que se refere às “lacunas do Direito”, elas resultam da ausência de enquadramento por parte do direito no seu todo – incluídos aqui, pois, todos os princípios e valores extra-legais. Estas lacunas só poderão preencher-se recorrendo a princípios e valorações supra-legais (um “desenvolvimento do direito ultrapassando o quadro da lei, ou ultra legem”) [6] .

Oliveira Ascensão, por seu turno, refere as lacunas de “previsão” e as de “estatuição”. Relativamente às primeiras, “falha a previsão de um caso que deve ser juridicamente regulado”. Já no que se refere às segundas, “há previsão mas não se estatuíram os efeitos jurídicos correspondentes” [7] .

O mesmo autor menciona também as lacunas “ocultas” e as lacunas “técnicas”. As primeiras verificam-se quando “há regras aparentemente genéricas, que parecem cobrir todo um sector. Porém, através da interpretação restritiva, conclui-se que não foi explicitada uma excepção ou restrição que deveria existir de harmonia com o próprio sentido da lei”. São ainda consideradas lacunas ocultas aquelas situações em que “a matéria é prevista, mas por interpretação ab-rogante se conclui pela liquidação dos preceitos em contraste, ou do preceito para o qual se não encontra um sentido”. Quanto às lacunas técnicas, elas ocorrem “quando a lei impõe um fim, e falta o processo ou o órgão indispensáveis para a obtenção desse fim” [8] .

Já Pinto Bronze distingue vários tipos de lacunas a partir da utilização de diferentes critérios. Temos, antes de mais, a dicotomia traduzida na existência de, por um lado, as lacunas “normativas”, “de previsão”, ou “autênticas”, e, por outro lado, as lacunas de “regulação”, “de estatuição”, ou “inautênticas”. As primeiras registam-se “quando a mediação judicativa não é só por si bastante para viabilizar a aplicação a um certo caso de uma dada norma jurídica, exigindo-se para o efeito «uma nova disposição que se encontra a menos na lei» e tornando-se assim necessária, pelo menos às vezes, «para colmatar essa falha de política legislativa”, “uma nova decisão do legislador». As segundas, “que não inviabilizam a estrita aplicação da lei” vão, contudo, afectá-la “(pois, atento o respectivo plano, podem originar verdadeiras denegações de justiça), e que se mostram possíveis de ser colmatadas pela instância de decisão, se esta revelar, como deve, «a intenção […] e […] a teleologia da lei»”.

Temos depois a distinção entre as “lacunas da lei” e as “lacunas do direito”. Quanto às primeiras, o autor começa por advertir que se trata de um conceito genérico, que engloba os tipos já discriminados. No que respeita ao seu conceito, são lacunas que “ocorrem sempre que o “plano de regulação” ou a “teleologia própria” de uma certa lei, discretamente considerada, no-la revelem incompleta ou inadequada, impendendo especialmente sobre a jurisprudência judicial o dever de as integrar”. Quanto às segundas, elas “traduzem as omissões censuráveis ao legislador – que ele próprio será chamado, “em primeiro lugar”, a colmatar”.

Centrando-nos agora nas “lacunas de direito”, o mesmo autor declara que, de um ponto de vista normativo, elas “podem ser “patentes” (quando do plano ou da teleologia da lei decorre que ela deveria oferecer regulação “para um determinado número de casos” e, todavia, isso não acontece) e “ocultas” (quando a lei disponibiliza a mencionada regulação, só que esta se revela prático-normativamente inadequada, pelo que deverá ser objecto de uma restrição, v. gr. sob forma de uma “redução teleológica”)”. Já numa “perspectiva cronológica”, elas podem classificar-se em “iniciais” e “subsequentes” “(consoante, e respectivamente, o legislador a quem a omissão deve ser atribuída ou censurada, dela haja tido, ou não, conhecimento), - na global pressuposição do deveniente sentido do direito vigente, nomeadamente atentas as interpelantes exigências sintetizadas nos princípios normativos e as questões juridicamente significativas inovadoramente decorrentes do dinamismo da realidade histórico-social” [9] .

Passando para o plano específico do Direito Constitucional, Gomes Canotilho fala em lacunas constitucionais “autónomas” e “heterónomas”. As primeiras surgem “quando se constata a ausência, no complexo jurídico-constitucional, de uma disciplina jurídica, mas esta pode deduzir-se a partir do plano regulativo da constituição e da teleologia da regulamentação constitucional”. As lacunas constitucionais “heterónomas” “resultam do não cumprimento das ordens de legislar e das imposições constitucionais concretamente estabelecidas na constituição”. Como se verá, este último tipo de lacunas corresponde ao conceito de omissões legislativas constitucionalmente relevantes (ver infra, ponto 1.2.2.). Retornando às lacunas “autónomas”, elas consubstanciam autênticas lacunas “de regulamentação”, subdividindo-se em dois distintos grupos. Pode haver lacunas ao nível das próprias normas, “quando um determinado preceito constitucional é incompleto, tornando-se necessária a sua complementação a fim de poder ser aplicado; pode, igualmente, haver lacunas de regulamentação “quando não se trata da incompletude da norma mas de uma determinada regulamentação em conjunto” [10] .

Ainda no plano constitucional, Jorge Miranda define as lacunas por confronto com a figura das omissões legislativas (com as quais não deverão ser confundidas), como “situações constitucionalmente relevantes não previstas” [na própria Constituição]. O autor dá conta da existência de lacunas “intencionais” e “não intencionais”, “técnicas” e “teleológicas”, “originárias” e “supervenientes”, sem contudo densificar estes conceitos [11] .

Bacelar Gouveia define as lacunas jurídico-constitucionais como “a ausência de uma solução que o Direito Constitucional requeira, dentro do seu específico âmbito regulativo”. De forma genérica, o autor assinala o carácter compósito da noção de lacuna jurídica, a qual é formada por dois elementos: o elemento objectivo, que consiste numa “incompleição ou ausência de norma aplicável a uma dada situação concreta e individual, que não tem uma solução normativa directa”, e o elemento finalístico que consiste numa “incompleição que contraria o plano do ramo do Direito em causa, pois que, se tivesse previsto essa situação, não teria nela consentido, estipulando a orientação em falta, evitando assim que isso pudesse suceder [12] .

 

1.1.2. A situação extrajurídica [13] ou os espaços livres de direito

Para Oliveira Ascensão, a situação extrajurídica reporta-se àqueles casos que não estão regulados pelo direito pelo simples facto de que não possuem relevância jurídica específica; mais especificamente, porque não precisam de ser juridicamente regulados [14] . Na esteira de Oliveira Ascensão, Bacelar Gouveia define como situação extrajurídica aquela “em que não se estabelece qualquer norma ou princípio, nem tal se afigurando necessário, pois que se enfrenta um caso que não pertence ao âmbito regulativo do Direito”. Aproximando-a do plano constitucional, e extraindo o seu conceito do confronto com a figura da lacuna, este autor defende que não existirá nenhuma lacuna jurídico-constitucional “se certa hipótese não encontrar norma por não a merecer (…) seja porque não é, de todo, juridicamente relevante, seja porque só deve ter uma solução ao nível de outro ramo do Direito” [15] .

Parece poder ser assimilada a esta figura aquela a que Castanheira Neves e Gomes Canotilho apelidam, na senda da doutrina alemã, de “«espaços jurídicos livres»” ou “«espaços livres de direito» (rechtsfreie Räume)” [16] . A propósito desta última, Castanheira Neves ensina que, “se deve perguntar-se até onde a realidade humana, particularmente a realidade da convivência humano-social (…) é objecto do direito ou se haverá de considerar intencionalmente atingida por ele, não deve perguntar-se menos que dimensões, domínios ou espaços dessa realidade se deverão subtrair ou se hão-de ter por subtraídos à normatividade jurídica”. Como ajuíza, “o que está essencialmente em causa é saber até onde e em que termos deverá o direito atingir a vida humana, ou enquanto será exigível e justificado que ele a atinja como sua dimensão prático-constitutiva”. Sendo consensualmente aceite entre a doutrina que existem situações da vida para as quais o ordenamento jurídico vigente não dispõe de soluções normativas aplicáveis – “e a exigirem assim um juízo decisório de autonomia normativamente constitutiva” –, isso leva a que, inevitavelmente, se coloque a questão seguinte: “qual o critério que nos permitirá saber quando estamos perante um caso desses e não antes já no domínio do espaço livre de direito?” [17] . Poderá dizer-se que estamos aqui no “domínio do ajurídico”, ou, se se preferir, perante domínios da realidade em relação aos quais se verificou uma “deliberada renúncia a uma directa regulamentação” [18] .

Jorge Miranda transpõe para o plano constitucional a figura das situações extrajurídicas ou extraconstitucionais (por vezes referenciada, como assinala, de situação de “lacunas absolutas”), fazendo-a corresponder “a situações deixadas à decisão política ou à discricionaridade do legislador ordinário” [19] . Como se verá em seguida, assim entendida, a situação extrajurídica de Jorge Miranda assimila-se à ideia de abertura das normas constitucionais de Gomes Canotilho.

 

1.1.3. A abertura das normas

Gomes Canotilho chama a atenção para a circunstância de que no domínio do direito constitucional se verifica, “com mais intensidade do que noutros domínios jurídicos, a ideia da abertura e incompletude normativa intencional”. Esta incompletude, diferentemente do que sucede no caso das lacunas, não é contrária ao plano regulativo constitucional. Antes foi o legislador constituinte que, deliberadamente, optou por não disciplinar certos domínios da realidade social, remetendo a respectiva regulação para as fontes infraconstitucionais (“pode dar-se o caso de ser a própria constituição a deixar intencionalmente por regular certos domínios da realidade social” [20] ). Quis, deste modo, deixar um espaço livre de actuação normativa ao legislador, permitir a luta política e adaptação das normas constitucionais à evolução da realidade constitucional [21] . No direito constitucional a abertura de um grande número das suas normas materializa-se, deste modo, num silêncio do texto constitucional.

A este propósito da abertura das normas constitucionais, poder-se-á inferir, sem grande margem de erro, que a existência de normas abertas se verifica com mais frequência naquelas constituições que atribuem ao legislador ordinário uma importante tarefa de inclusão e integração social e económica e que, concomitantemente, possuem um grande número de normas que fixam, de forma mais ou menos concreta, fins e objectivos ao Estado, nomeadamente ao legislador ordinário.

Convém, por último, realçar que a falta de densidade das normas constitucionais que resulta da sua abertura não deve confundir-se com aquela que resultará da presença de conceitos indeterminados no texto constitucional. Porventura, poderá afirmar-se que a utilização de conceitos indeterminados e cláusulas gerais é mais comum no direito privado do que no direito constitucional. Seja como for, a verdade é que eles também estão presentes no texto da nossa Constituição (vejam-se, a título exemplificativo, os de “igualdade real”, “eficiência do sector público”, “repartição justa dos rendimentos e da riqueza”, “efectiva ligação à comunidade nacional” [22] ), devendo o seu preenchimento ter em consideração os princípios, os valores e os interesses constitucionalmente relevantes. Isso mesmo é assinalado por Jorge Miranda, que alerta ainda para o facto de que o legislador, não obstante nestes casos ter uma margem bastante razoável de conformação normativa, não poderá “«transfigurar o conceito, de modo a que cubra dimensões essenciais e qualitativamente distintas daquelas que caracterizam a sua intenção jurídico-normativa»; e o que se diz do legislador deve dizer-se, até por maioria de razão, do intérprete” [23] . A propósito ainda dos conceitos indeterminados, Cardoso da Costa chama a atenção para o papel preponderante que cabe ao Tribunal Constitucional no seu preenchimento [24] .

 

1.2. A omissão legislativa inconstitucional

1.2.1. A problemática das omissões legislativas inconstitucionais tem preocupado moderadamente a doutrina portuguesa pois se, por um lado, a Constituição de 1976 prevê, no seu artigo 283.º, a existência de um controlo de inconstitucionalidade por omissão, concentrado e em via principal [25] , por outro lado, não têm sido muitas as ocasiões em que o Tribunal Constitucional tem tido a oportunidade de efectuar este tipo de controlo [26] .

Subjacente a este tipo de controlo de inconstitucionalidade por omissão está a delicada questão da conciliação entre a autonomia política do legislador ordinário (e a correspectiva liberdade de conformação normativa) e a necessidade de assegurar a subordinação do mesmo legislador à Constituição, alicerçada no reconhecimento da sua supremacia no seio do ordenamento jurídico (reconheça-se-lhe ou não um carácter dirigente ou mesmo tão só programático [27] ). De forma mais específica, está em causa a conciliação entre a liberdade de conformação normativa do legislador e o dever de legislar imposto em certos casos pela Constituição. A questão fundamental a ter em consideração é, deste modo, a da determinação das fontes do dever de legislar [28] . Como pano de fundo desta problemática, temos o princípio da separação dos poderes.

A solução para esta questão – no fundo, a da graduação da subordinação (ou, no caso específico que interessa, da vinculação) do legislador ao texto da Lei Fundamental – deve ser encontrada no próprio texto constitucional, mais especificamente, na densidade das suas normas. Dito de outro modo, esta questão deve ser encarada como um problema técnico-jurídico e, deste modo, enfrentada numa óptica normativa – e não vista enquanto questão política ou, pelo menos, exclusivamente política.

 

1.2.2. A omissão legislativa configura uma não-execução constitucional, uma desobediência a uma obrigação constante das normas do texto constitucional. O legislador constituinte português não individualizou um conceito de omissão legislativa inconstitucional. Contudo, ao limitar a actuação do Tribunal Constitucional aos casos em que não foram adoptadas medidas legislativas necessárias para dar operatividade a normas não exequíveis por si mesmas, insinuou que não é qualquer silêncio do legislador que deverá ser atendível para efeitos de uma decisão de inconstitucionalidade por omissão.

Com base nisto, a doutrina nacional distingue entre a omissão legislativa e a omissão (legislativa) inconstitucional ou constitucionalmente relevante [29] . A distinção prende-se com o tipo de normas constitucionais em relação às quais se verificou a desobediência, a inércia ou a passividade do legislador. Isto faz com que a maior parte dos autores associe esta temática à da tipologia das normas constitucionais, procurando estabelecer a sua própria classificação, para em seguida estabelecer quais aquelas que, ao não serem cumpridas pelo legislador ordinário, vão originar uma omissão constitucionalmente relevante [30] . Este modo de perspectivar o problema das omissões legislativas é criticado, na doutrina nacional, por Pereira da Silva, que considera esta abordagem exclusivamente processualista e, nesse sentido, redutora porque inadequada para abarcar todo o alcance jurídico da figura das omissões legislativas. Em seu entender, esta perspectiva processualista inverte em larga medida “a ordem natural dos factores, porquanto constrói a figura da omissão legislativa – que se situa no campo substantivo – à luz de um dos termos de uma classificação de normas constitucionais, apenas porque este se encontra presente numa norma de natureza processual. Ora, o artigo 283.º, como norma processual que é, não tem por missão definir a figura material da omissão legislativa, nada permitindo a conclusão segundo a qual só há omissão do legislador quando este não emane as normas necessárias à concretização de normas constitucionais não exequíveis por si mesmas. (…) o artigo limita-se (…) a estabelecer um meio de controlo, a cargo do Tribunal Constitucional, de uma modalidade particular de omissão do legislador. Nada no seu enunciado permite retirar a ilação de que não existem outros meios de controlar jurisdicionalmente as omissões do legislador, nem tão-pouco que não existem outras modalidades de omissão legislativa” [31] .

 

1.2.3. Quanto à questão das normas constitucionais cujo incumprimento pode gerar uma omissão constitucionalmente relevante, há que fazer algumas observações.

Antes de mais, é importante reiterar a ideia de que a verificação de uma inconstitucionalidade por omissão não pode ser aferida em face do sistema constitucional em bloco, antes sê-lo-á em face de uma específica norma cuja não exequibilidade põe em causa o cumprimento da Constituição [32] .

Para além disso, importa chamar a atenção para a circunstância de que o legislador constituinte não estabeleceu nem forneceu qualquer critério para a determinação das normas não exequíveis por si mesmas, pelo que, como foi oportunamente mencionado, a generalidade dos autores procura estabelecer uma classificação das normas constitucionais que impõem um dever de actuar ao legislador de acordo com o grau de vinculação nelas detectado.

Há uma divergência doutrinal quanto às habitualmente denominadas “normas programáticas”. Enquanto a generalidade da doutrina (Gomes Canotilho, Vital Moreira, Vieira de Andrade e Manuel Afonso Vaz) expressamente afasta a possibilidade de o incumprimento de uma norma programática poder originar uma inconstitucionalidade por omissão, Jorge Miranda assume uma posição em alguma medida divergente, admitindo que as normas não exequíveis, sejam elas preceptivas ou programáticas, quando não tornadas operativas pelo legislador originário podem gerar uma inconstitucionalidade por omissão. Reconhece, porém, que não nos mesmos termos. Assim, na norma preceptiva inexequível, “a inconstitucionalidade produz-se (…) logo que a norma constitucional entra em vigor ou transcorrido o prazo dado ao legislador para a complementar. Na norma programática, ocorre quando o legislador se queda passivo perante os condicionalismos económicos e sociais de que depende a sua efectivação, não os procurando conformar ou promover, ou, no limite, estando eles já verificados, não emitindo a correspondente orientação prospectiva ao serviço dos fins constitucionais” [33] .

Por último, está em causa ainda saber se as normas cujo incumprimento gera uma inconstitucionalidade por omissão são apenas as regras ou também os princípios constitucionais. Quanto a esta questão, parece haver hoje um razoável consenso no seio da doutrina nacional – na verdade, mais no que toca à aceitação dessa possibilidade e não tanto quanto aos termos em que ela deve ser aceite. Para Gomes Canotilho e Vital Moreira afigura-se evidente que a inconstitucionalidade por omissão “deverá abranger, pelo menos, o caso de não cumprimento dos princípios-normas”. Mais problemático se apresenta, na sua perspectiva, o “caso dos princípios não escritos, ou seja, (…) os princípios que se deduzem implicitamente das normas constitucionais mas que não constituem princípios-normas. Em relação a estes já se poderá aceitar que a sua violação só por via da inconstitucionalidade por acção possa ser aferida” [34] . Para Jorge Miranda, quase sempre a norma constitucional inexequível por si mesma será uma “norma-preceito”; o autor defende “que não é de excluir, no entanto, que também em relação a certos princípios possa ocorrer um problema de exequibilidade por via legislativa” [35] . Para Pereira da Silva, na grande maioria dos casos a densificação legislativa dos princípios constitucionais remete para o dever geral de legislar. Admite, porém, “que apenas perante uma situação determinada se poderá verificar se certo princípio constitucional exige ou não do legislador que actue no sentido de o «consolidar normativamente» em determinado sentido” [36] .

                             

1.2.4. De tudo o que já foi exposto, pode, desde já, concluir-se com segurança que no ordenamento jurídico português se opera com um conceito jurídico, e não naturalístico, de omissão legislativa [37] . Com efeito, não basta um simples não fazer (ou, por outras palavras, não cumprir um dever geral de legislar), torna-se necessário não fazer algo a que se estava jurídico-constitucionalmente obrigado (ou também, não cumprir um dever específico de legislar), pelo que as omissões legislativas inconstitucionais geram um vazio de regulação que não é colmatável com recurso ao instrumentarium próprio da integração. Gomes Canotilho e Vital Moreira sustentam que para a omissão legislativa assumir relevância do ponto de vista do seu controlo constitucional, ela deverá “conexionar-se com uma exigência constitucional de acção” [38] . Ainda assim, ao dever jurídico-constitucional do legislador ordinário “não corresponde automaticamente um direito fundamental à legislação”, posição que é partilhada pela generalidade da doutrina [39] .

 

Para além disso, apesar de algumas divergências doutrinárias em relação aos aspectos assinalados, poder-se-á ensaiar uma tipologia de situações de omissão constitucionalmente relevante [40] . São elas as seguintes: situações de ausência, de desadequação e de deficiência ou insuficiência.

 

a) As situações de ausência podem consistir na omissão pura e simples de adopção das medidas legislativas necessárias para dar exequibilidade às normas constitucionais impositivas (por outras palavras, na falta ou inexistência total de normas a regular uma determinada matéria). Podem, de igual modo, existir situações de ausência quando determinadas normas constitucionais não possuem suficiente densidade para se tornarem exequíveis por si mesmas, reenviando implicitamente para o legislador ordinário a tarefa de lhes dar exequibilidade prática [41] . Como exemplo deste tipo particular de situação, os mesmos autores mencionam a necessidade de definição legal dos crimes de responsabilidade política e a definição do regime geral do direito de oposição que decorrem, respectivamente do artigo 117.º, n.º 3, e do artigo 40.º da CRP [42] .

 

b) As situações de inadequação – que alguma doutrina mais recente invoca – surgem na sequência do não cumprimento, por parte do legislador ordinário, da obrigação de melhorar, actualizar, aperfeiçoar ou corrigir as normas existentes.

Reportando-se às situações em análise, Gomes Canotilho defende que em relação a elas a omissão não consiste “na ausência total ou parcial da lei, mas na falta de adaptação ou aperfeiçoamento das leis existentes”. Segundo o autor, “esta carência ou défice de aperfeiçoamento das leis assumirá particular relevo jurídico-constitucional quando, da falta de «melhorias» ou «correcções», resultem consequências gravosas para a efectivação de direitos fundamentais” [43] .

Também Pereira da Silva alude a esta figura. Em seu entender, são dois os casos em que se poderá falar numa obrigação de correcção ou adequação de normas existentes.

Antes de mais, refere as denominadas “inconstitucionalidades deslizantes” ou “situações constitucionais imperfeitas ou em trânsito para a inconstitucionalidade”. A sua ocorrência fica a dever-se ao facto de “a lei vigente ter ficado estagnada no tempo, não acompanhando o processo evolutivo da realidade constitucional”. Existe, nestes casos, “um processo contínuo de inconstitucionalização de determinada norma, sendo que o prolongamento da inactividade do legislador para além de determinado limite, mais ou menos preciso, convolará definitivamente a situação normativa vigente em inconstitucional”. Inconstitucionalidade essa que não reside propriamente na lei vigente, “que era originariamente conforme com a Constituição (e, porventura, ainda o será), mas sim na falta de intervenção legislativa destinada a adaptar às novas realidades a norma jurídica em causa”. Estará deste modo estabelecida a conexão com a figura da inconstitucionalidade por omissão [44] .

Os outros casos em que se verifica um dever de correcção ocorrem quando “as prognoses do legislador se revelam erradas”. Em relação a estes últimos, o autor parece em larga medida acompanhar a atitude prudente do Tribunal Constitucional (que assinala), no sentido de que será mais difícil nestes casos de erro de prognóstico do legislador ordinário impor a figura da inconstitucionalidade por omissão [45] .

 

c) As situações de insuficiência ou deficiência. Também em relação a este tipo de situações se podem individualizar duas hipóteses. Temos, então, os casos de omissão legislativa parcial não intencional, já anteriormente analisados.

Para além destes, temos ainda aqueles casos em que a concretização de uma determinada norma constitucional impositiva está ela mesma dependente do ulterior desenvolvimento legislativo de uma lei já existente (por exemplo, foi emanada uma lei de bases, a qual, porém, carece de posterior desenvolvimento através dos respectivos decretos-leis) [46] .

 

1.2.5. Até agora o discurso centrou-se mais na questão das normas constitucionais cujo incumprimento determina a verificação de uma omissão legislativa constitucionalmente relevante. Do mesmo modo, o decurso do tempo é importante nesta verificação. Será, contudo, ao que parece, abusivo considerar que a inconstitucionalidade por omissão se consubstancia numa inconstitucionalidade ratione temporis. Por outras palavras, exceptuando os casos em que as normas constitucionais impositivas estabelecem um prazo que o legislador terá que cumprir (apenas o fez a título excepcional para aquelas normas a que alguma doutrina designa de ordens de legislar), o mero decurso do tempo não pode ser visto per se como um critério aceitável para determinar a verificação ou não verificação de uma omissão legislativa relevante para efeitos de controlo da constitucionalidade. De certa forma, está aqui presente a ideia de que o que se deve ter verdadeiramente em consideração são as consequências jurídicas da inércia do legislador, sendo certo que a partir do momento em que a constituição entra em vigor, o legislador deverá cumprir as normas constitucionais impositivas. Ou seja, a omissão legislativa só se tornará relevante quando a inércia ou passividade do legislador ordinário assumir em concreto – ou perante as circunstâncias concretas que se vivem num determinado momento histórico – o significado de uma alteração ao projecto constitucional.

Na doutrina portuguesa, há quem acentue mais os resultados da inércia do legislador e há quem acentue mais a questão do decurso do tempo.

Gomes Canotilho constitui um exemplo do primeiro caso. Para este autor a figura da inconstitucionalidade por omissão “não se conexiona necessariamente com os prazos ou tempos dentro dos quais deveria ter havido a interpositio legiferante necessária para tornar exequíveis os preceitos constitucionais”. A relevância constitucional da omissão deverá antes ser aferida fundamentalmente pela “importância e a indispensabilidade da medida legislativa para dar operatividade prática às normas constitucionais do que a fixação de eventuais limites ad quem” [47] . Posição próxima é a de Vieira de Andrade, para quem a omissão legislativa (total) é “facilmente detectável, bastando confirmar a necessidade real da intervenção legislativa para a exequibilidade das normas constitucionais” [48] .

Jorge Miranda, por sua vez, parece atribuir um peso mais relevante ao decurso do tempo, sustentando que a “ausência ou insuficiência da norma legal não pode ser separada de determinado tempo histórico”; exceptuando os casos em que no texto constitucional seja pré-fixado um prazo de cumprimento de certo tipo de normas, a verificação da inconstitucionalidade por omissão “dependerá da natureza das coisas, ou seja, da natureza da norma constitucional não exequível por si mesma confrontada com a situação da vida que esteja a verificar-se à sua margem (inclusive a situação que, à sua margem, esteja por acção o legislador ordinário a criar). Em seu entender, o órgão de fiscalização “tem de medir e interpretar o tempo decorrido – esse tempo que fora dado ao órgão legislativo (competente) para emanar a lei”, devendo concluir-se pela existência de uma omissão legislativa relevante “sempre que, tudo ponderado, se reconhecer que o legislador não só podia como devia ter emitido a norma legal, diante de determinadas circunstâncias ou situações em que se colocou ou foi colocado” [49] .

 

1.2.6. Fala-se ainda, a propósito das omissões legislativas relevantes, de situações em que elas geram, não uma inconstitucionalidade por omissão, mas sim uma inconstitucionalidade por acção [50] .

É o caso das denominadas omissões parciais, distintas das omissões totais [51] , havendo unanimidade na doutrina nacional no sentido de considerar que apenas as segundas originam sempre uma inconstitucionalidade por omissão, ao invés das primeiras, que podem gerar, consoante os casos, uma inconstitucionalidade por omissão ou uma inconstitucionalidade por acção, por violação do princípio da igualdade.

A omissão parcial verifica-se naqueles casos em que a lei concretizadora da norma constitucional impositiva regula uma matéria mas não todos os seus aspectos; a intervenção do legislador é incompleta porque excluiu ex silentio do seu âmbito de aplicação um grupo de pessoas ou situações, sem que haja uma razão objectiva e um fundamento razoável que justifiquem a disparidade de tratamento [52] .

O que vai determinar o tipo de inconstitucionalidade – por omissão ou por acção – é o saber se a actuação insuficiente ou deficiente do legislador ordinário foi intencional ou não. Se se confirmar que houve a intenção deliberada de contemplar certas pessoas ou certas situações, então há uma violação do princípio da igualdade expressamente consagrado no artigo 13.º da CRP e presente em muitas outras disposições constitucionais. Se, pelo contrário, a actuação do legislador ordinário resultar, sem mais, da incompleta ou incorrecta apreciação das situações de facto, mas sem que tenha havido a intenção de beneficiar apenas certas pessoas ou situações, então teremos uma inconstitucionalidade por omissão [53] . Neste último caso, o silêncio é o objecto de controlo, no primeiro é motivo de impugnação.

Esta figura da omissão parcial não concita consenso entre a doutrina. Assim, se Gomes Canotilho afirma que “o conceito jurídico-constitucional de omissão é compatível com omissões legislativas parciais ou omissões relativas” [54] , a mesma figura é criticada por Rui Medeiros – que a denomina de “inconstitucionalidade por acção omissiva –, por entender que ela implica um nítido enfraquecimento do princípio da igualdade [55] . Ainda assim, o autor considera que, “mesmo existindo uma omissão constitucional de legislar e uma discriminação inconstitucional, o mais que se pode admitir é que, nestes casos, ocorre, cumulativamente, um fenómeno de inconstitucionalidade por acção e de inconstitucionalidade por omissão” e, a ter que se optar por algum deles, deve evitar-se o regime, “praticamente inócuo, da fiscalização da inconstitucionalidade por omissão” [56] .

Pense-se, outrossim, naquela situação em que se verifica a abrogação pura e simples das normas legais que davam exequibilidade às normas constitucionais dela carecidas, originando com isso o incumprimento da Constituição. Como assinalam a generalidade dos autores, com base, aliás, no que tem sido a jurisprudência do Tribunal Constitucional, nestes casos o que há verdadeiramente é uma situação de inconstitucionalidade por acção, em que o objecto de controlo é a norma abrogatória e não a situação de omissão legislativa que ela gera [57] .

 

1.2.7. Finalmente, cumpre ainda referir um último problema relacionado com as omissões legislativas, que é o de saber se elas ainda deverão ser consideradas constitucionalmente relevantes naqueles casos em que o pedido de fiscalização foi feito num momento em que o processo de criação do acto legislativo já está em marcha.

Esta questão já se colocou na prática quando, por exemplo, foi pedida a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão por falta de regulação legal do referendo local constitucionalmente previsto [58] . Quanto a ela, parece haver consenso entre a doutrina no sentido de que não basta a apresentação de um mero projecto ou proposta de lei e, muito menos, a manifestação de meras declarações de intenção, para que se possa aceitar que a omissão legislativa não merece já um juízo negativo por parte do Tribunal Constitucional. Isso mesmo decorre, com mais ou menos variações, das palavras de eminentes constitucionalistas.

Para Jorge Miranda, se o projecto ou proposta de lei ainda não estão aprovados, haverá omissão legislativa relevante, uma vez que “só conferem exequibilidade a normas constitucionais medidas legislativas actuais e não futuras ou potenciais”. Já não se justificará qualquer juízo de inconstitucionalidade por omissão “se o processo já está concluído no órgão legislativo competente e se dele já não depende a edição da norma” [59] .

Gomes Canotilho e Vital Moreira entendem que “para cessar a situação de omissão inconstitucional do legislador é preciso que haja lei, não podendo bastar a existência de intenções ou processos legislativos. Admite-se que o Tribunal aguarde algum tempo razoável para se pronunciar no caso de estar pendente uma iniciativa legislativa. Mas quando se pronuncia o Tribunal Constitucional não pode dar por cessada a omissão pelo facto de haver tal iniciativa legislativa. A omissão só cessa com a existência da lei que dê exequibilidade à norma constitucional” [60] .

Bacelar Gouveia, aceitando também ele que “a aprovação na generalidade de projectos de lei, tal como a iniciativa legislativa, nenhumas garantias oferece de que a lei seja efectivamente emitida”, vai, no entanto, mais longe, lembrando que o problema não se confina à Assembleia da República. Com efeito, após a aprovação parlamentar das leis “há ainda que contar com a intervenção do Presidente da República e do governo, que podem obstar, respectivamente através do veto e da recusa de referenda ministerial, à conclusão do procedimento legislativo”. Conclui o autor que não seria totalmente descabido “formular outro entendimento da locução «órgão legislativo competente» constante do artigo 283.º, n.º 2, da Constituição, (…) no sentido de abranger igualmente estes dois órgãos, por serem intervenientes no processo legislativo” [61] .

 

1.3. A caracterização das instâncias de justiça constitucional enquanto “legislador negativo” ou enquanto “legislador positivo”

1.3.1. Antes de se abordar esta específica questão, é conveniente prestar um esclarecimento prévio.

Não pode deixar de se aludir ao facto de que a figura da inconstitucionalidade por omissão consagrada na nossa Constituição sofreu já algumas alterações por força da revisão constitucional de 1982. Com efeito, em virtude da primeira revisão constitucional, o órgão controlador deixou de ser o Conselho da Revolução e passou a ser o Tribunal Constitucional (cuja criação imediata resultava de uma ordem de legislar inserida nesta mesma revisão), e a “sanção” prevista para os casos em que se verifica uma omissão legislativa constitucionalmente relevante passou a materializar-se num simples aviso ou advertência ao legislador, doravante deixando de existir a possibilidade de o órgão encarregado do controlo poder sugerir as correcções necessárias (ou fornecer instruções) para a ulterior intervenção do legislador ordinário. O Conselho da Revolução podia formular recomendações nos termos dos artigos 146.º e 279.º da CRP [62] . A consagração constitucional destas sentenças de recomendação leva consigo a ideia de que a sanação da omissão legislativa inconstitucional implica uma actividade do legislador ordinário [63] . Não se deve entender, porém, que, como assinala Jorge Miranda, o Conselho da Revolução pudesse “fazer leis sob a forma de recomendações – que o mesmo seria indicar as normas legislativas adequadas à finalidade de tornar exequíveis as normas constitucionais”. Do mesmo modo, as recomendações não podem consubstanciar “qualquer espécie de iniciativa legislativa” e nem equivaler “a qualquer espécie de solicitação de prioridade na fixação da ordem do dia”. Como conclui, “velar pela emissão das medidas legislativas necessárias aos cumprimento das normas constitucionais (…) é tarefa completamente distinta da de sugerir quais devam ser essas medidas” [64] .

 

1.3.2. Prestado este esclarecimento prévio, pode dizer-se que, independentemente de se discutir se o controlo da inconstitucionalidade por omissão visa a conduta omissiva do legislador (visão mais política) ou as consequências jurídicas a que o silêncio do legislador conduziu (visão normativa) – questão que não resulta muito debatida na doutrina nacional [65] –, a concepção dominante em Portugal acerca da missão do Tribunal Constitucional é a de que ele exerce uma função de controlo de carácter essencialmente negativo, não se podendo substituir ao legislador ordinário ou vinculá-lo na sua actuação [66] .

 

1.3.3. A ideia de que, no controlo concentrado abstracto, o órgão de justiça constitucional funciona como um legislador negativo ou tem uma função legislativa negativa – ideia de origem kelseniana – significa que ele tem uma função de cassação, limitando-se a expulsar ou eliminar da ordem jurídica as normas que estão em desconformidade com a Constituição [67] .

Transpondo esta ideia para o instituto da inconstitucionalidade por omissão, dir-se-á que o Tribunal Constitucional não pode substituir-se ao legislador, criando a norma ou normas em falta, ou mesmo, tão só, instando o legislador a actuar, indicando o timing e o conteúdo da criação da(s) mesma(s) [68] . Ele é um contralegislador e não outro legislador [69] . Do texto da nossa Constituição resulta bem claro que existe uma preferência do legislador como órgão concretizador ou executor da Constituição, do seu projecto [70] .

O controlo da inércia ou inactividade do legislador ordinário não pode implicar uma efectiva coacção sobre o mesmo. E isto porque, como se viu, o que está em causa neste tipo de controlo não é impor a vontade do órgão que controla sobre a do órgão controlado, antes o que se pretende é reafirmar a supremacia da Constituição.

A ideia, sufragada pela doutrina nacional, de que o Tribunal Constitucional actua como um legislador negativo corresponde a uma concepção tradicional acerca das funções deste órgão de justiça constitucional.

Mais recentemente, alguns sectores da doutrina estrangeira, apoiando-se, aliás, numa jurisprudência cada vez mais criativa, têm defendido que a jurisdição constitucional deve possuir também uma função integradora ou concretizadora, actuando como um verdadeiro legislador (legislador positivo ou activo). A doutrina nacional não parece rever-se neste filão doutrinal.

 

1.3.4. Em termos de efeitos, a doutrina tem qualificado as decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional em sede de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão como sentenças de mera verificação ou de reconhecimento [71] [72] , possuidoras de uma eficácia meramente declarativa [73] . Este tipo de sentenças não se confunde com as sentenças apelativas ou de delegação [74] , uma vez que o seu objectivo é o de dar conhecimento ao órgão legislativo competente do incumprimento do seu dever específico de legislar, constitucionalmente fixado. Sem pôr em causa esta asserção, Gomes Canotilho considera que a função do tipo de controlo da constitucionalidade em análise é a de assegurar uma forma de publicidade crítica e formalizada contra os incumprimentos da Constituição.

Ainda no que respeita aos efeitos da decisão de inconstitucionalidade por omissão, alguns autores sustentam que ela não possui nenhuma eficácia jurídica directa ou que está desprovida de qualquer efeito vinculante [75] . Como compreender estas afirmações? Fundamentalmente, no sentido de que a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional nesta sede não só não elimina (ou anula) a inconstitucionalidade (esta só deixará de existir quando se verificar a interpositio do legislador) como, igualmente, tem efeitos negativos e não de conformação normativa [76] e, por fim, não obriga o legislador a adoptar as medidas legislativas em falta.

 

1.3.5. Apesar do que acabou de ser dito sobre a eficácia das sentenças de mera verificação ou reconhecimento, é oportuno fazer algumas aclarações.

Antes de mais, elas não são de modo algum inócuas, existindo sempre um juízo mínimo sobre a oportunidade política da aprovação do acto devido [77] .

Para além disso, não se pode sustentar que, tendo o Tribunal Constitucional verificado a existência de uma omissão legislativa relevante, o legislador ordinário não fique vinculado a legislar. Sucede que, como conclui Nunes de Almeida, essa vinculação deriva do próprio texto constitucional e não da decisão do Tribunal, a qual não desencadeia, por si própria, um processo legislativo [78] . Uma posição em tudo idêntica é adoptada por Jorge Miranda, que afirma que a verificação de uma omissão constitucionalmente relevante “tão-pouco cria qualquer obrigação jurídica para o órgão legislativo, apenas declara uma obrigação preexistente”.

Finalmente, ao dar conhecimento ao órgão competente da verificação de uma omissão constitucionalmente relevante, o Tribunal Constitucional não estará a praticar um acto de mera cortesia ou simplesmente a transmitir a sua decisão. Com efeito, a sua actuação deverá ser vista como uma “forma intencionada de sublinhar perante o órgão competente a ilicitude da omissão inconstitucional em que está incurso e o seu dever constitucional de lhe pôr cobro” [79] .

 

1.3.6. Em suma, se houvesse que caracterizar a actividade do Tribunal Constitucional português como activismo, moderação ou minimalismo, a doutrina nacional optaria pela ideia de actuação minimalista, associada a uma concepção negativa das respectivas funções no que toca a esta sua competência fiscalizadora em sede de controlo da inconstitucionalidade. Parafraseando Gomes Canotilho e Vital Moreira, “a função de controlo do TC é essencialmente negativa, sendo a sua vocação não a de definir aquilo que é (ou seria) conforme à Constituição mas sim o que não é conforme com ela” [80] . Indo um pouco mais longe, Vital Moreira defende a rejeição, em via de princípio, das concepções de activismo ou de criatividade do juiz constitucional, as quais têm fundamentado em larga medida a prática das chamadas «sentenças manipulativas» ou «construtivas». Porque, como adverte, “aí o juiz constitucional assume inequivocamente a veste do legislador e, em vez de se limitar a declarar a inconstitucionalidade das normas que o legislador emitiu, permite-se criar ele mesmo normas em substituição do legislador, ou imputar deliberadamente ao legislador normas diferentes das que este efectivamente emitiu” [81] .

 

 

2. Os termos do controlo da inconstitucionalidade por omissão na Constituição, na jurisprudência constitucional e na lei

 

2.1. O lugar da Constituição na ordem jurídica portuguesa

Dispõe o n.º 3 do artigo 3.º da CRP que “a validade das leis e dos demais actos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição”. Trata-se, em suma, da consagração do princípio da constitucionalidade, de que decorre a atribuição à Constituição do carácter de Lei Fundamental do país e a consequente afirmação da sua supremacia sobre todos os demais actos do Estado. Assim, no sistema legal português, a Constituição ocupa o lugar cimeiro na hierarquia das fontes [82] , com a qual todos os demais actos do Estado se hão-de conformar [83] sob pena de invalidade. A doutrina portuguesa [84] tem ainda evidenciado, para o que agora importa especialmente considerar, que não obstante aquele artigo 3.º se referir apenas a actos do Estado, o princípio da constitucionalidade que dele decorre vale igualmente para as omissões inconstitucionais; quer dizer, para os casos em que é omitido um acto legislativo que é exigido pela Constituição.

 

Sobre o conceito de Constituição adoptado e desenvolvido pelo Tribunal Constitucional deve sublinhar-se, neste contexto, que para além da Constituição formal, entendida como complexo de normas formalmente qualificadas como constitucionais, tem a jurisprudência constitucional feito referência à chamada Constituição material, entendida como um direito constitucional não escrito que, embora tenha na Constituição formal os seus fundamentos e limites, a completa e desenvolve [85] .

 

O Tribunal tem também frequentemente reconhecido a existência de princípios constitucionais implícitos, como, por exemplo, o “princípio da culpa” ou o “princípio da protecção da confiança”, ínsitos no princípio do Estado de direito democrático expressamente consagrado no artigo 2.º da Constituição.

 

O Tribunal Constitucional já tem admitido, na sequência do que também vem sendo o entendimento da doutrina portuguesa mais representativa, que a Constituição não regula tudo quanto dela deveria ser objecto e, nesse sentido, que não se trata de uma lei sem lacunas. A concretização mais desenvolvida do conceito de lacuna constitucional tem sido, porém, mais desenvolvido pela doutrina do que pela jurisprudência constitucional. Segundo Gomes Canotilho [86] “uma lacuna normativo-constitucional só existe quando se verifica uma incompletude contrária ao «plano» de ordenação constitucional. Dito por outras palavras: a lacuna constitucional autónoma surge quando se constata a ausência, no texto normativo-constitucional, de uma disciplina jurídica, mas esta pode deduzir-se a partir do plano regulativo da constituição e da teleologia da regulamentação constitucional”. Também Jorge Miranda [87] admite sem reservas e aponta vários exemplos de lacunas na Constituição [88] , que define como “situações constitucionalmente relevantes não previstas”.

 

2.2. A expressa consagração constitucional da competência do Tribunal Constitucional para investigar e apreciar a inconstitucionalidade por omissão

Referem os artigos 277.º a 281.º da CRP que o objecto do pedido de apreciação da constitucionalidade ou legalidade (no caso de fiscalização abstracta) ou o objecto do recurso de constitucionalidade ou legalidade (no caso de fiscalização concreta) é constituído, necessariamente, por normas jurídicas. Inconstitucionais são, nos termos do disposto no artigo 277.º da Constituição, “as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”. Dessa forma, os preceitos supra referidos delimitam a competência do Tribunal Constitucional, em matéria de fiscalização da constitucionalidade, em função do conceito de norma, entendida na jurisprudência constitucional como “quaisquer actos do poder público que contenham uma «regra de conduta» para os particulares ou para a administração, um «critério de decisão» para esta última ou para o juiz ou, em geral «um padrão de valoração de comportamento»” [89] .

 

A Constituição estabelece efectivamente, no seu artigo 283.º, n.º 1, que “a requerimento do Presidente da República, do Provedor de Justiça ou, com fundamento em violação de direitos das regiões autónomas, dos presidentes das Assembleias Legislativas das regiões autónomas, o Tribunal Constitucional aprecia e verifica o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais”.

 

A Constituição não estabelece nenhum processo especial para a investigação e averiguação da inconstitucionalidade por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais, cabendo essa tarefa, em termos que veremos melhor mais à frente, à Lei sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.

 

2.3. A jurisprudência constitucional relativa à competência do Tribunal Constitucional para investigar e apreciar a inconstitucionalidade por omissão

Da Constituição, designadamente do seu artigo 221.º [90] , decorre efectivamente que é ao Tribunal Constitucional que cabe a última palavra em matérias de natureza jurídico-constitucional, sendo, nesse sentido, adequada a referência ao Tribunal Constitucional como o “intérprete oficial da Constituição” [91] .

 

O Tribunal Constitucional tem efectivamente procurado concretizar com algum detalhe os poderes que, de acordo com a Constituição, lhe estão cometidos em matéria de investigação e apreciação da inconstitucionalidade por omissão de legislar. Assim, em vários acórdãos [92] , tem o Tribunal afirmado que uma inconstitucionalidade por omissão só é verificável quando “existir em concreto uma específica incumbência dirigida pela Constituição ao legislador e que este se abstenha de a satisfazer”.

 

Nesse sentido tem o Tribunal sempre repetido que: “(…) a intervenção do legislador não se reconduz aqui ao «dever» que impende sobre o órgão ou órgãos de soberania para tanto competentes de acudir às necessidades «gerais» de legislação que se façam sentir na comunidade jurídica (isto é, não se reconduz ao «dever geral» de legislar), mas é antes algo que deriva de uma específica e concreta incumbência ou encargo constitucional (Verfassungsauftrag). Por outro lado, trata-se de uma incumbência ou «imposição» não só claramente definida quanto ao seu sentido e alcance, sem deixar ao legislador qualquer margem de liberdade quanto à sua própria decisão de intervir (isto é, quanto ao an da legislação) – em tais termos que bem se pode falar, na hipótese, de uma verdadeira «ordem de legislar» -, como o seu cumprimento fica satisfeito logo que por uma vez emitidas (assim pode dizer-se) as correspondentes normas (…)” [93] .

 

No mesmo sentido pode ler-se no Acórdão n.º 424/2001 [94] : “(…) à data do pedido, estavam reunidas as circunstâncias típicas de uma ‘omissão legislativa’ (mesmo acolhendo uma visão restritiva do conceito),  pois se configurava uma muito concreta e específica incumbência cometida pela Constituição ao legislador, perfeitamente definida no seu sentido e alcance, sem deixar qualquer margem de liberdade quanto à sua decisão de intervir ou não, mostrando-se cumprido o desiderato constitucional logo que emitidas as correspondentes normas”.

           

Também na doutrina portuguesa mais frequentemente referenciada pelo Tribunal é praticamente unânime o entendimento de que o objectivo do artigo 283.º da Constituição, ao consagrar o instituto da fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, não consiste em pretender que se proceda a uma apreciação dos resultados globais da aplicação da Constituição, mas apenas a uma apreciação de uma concreta e específica situação de violação dela, necessariamente demarcada a partir de uma norma suficientemente densificada, a que o legislador ordinário não confere exequibilidade.

 

Assim, Gomes Canotilho [95] assinala que “o conceito jurídico-constitucional de omissão não se identifica com o conceito naturalístico”, pelo que “não se trata apenas de um simples negativo ‘não fazer’ do legislador; trata-se de este não fazer aquilo a que de forma concreta e explícita estava constitucionalmente obrigado”. Ou seja, “omissão legislativa, jurídico-constitucionalmente relevante, existe quando o legislador não cumpre ou cumpre incompletamente o dever constitucional de emanar normas destinadas a actuar as imposições constitucionais permanentes e concretas”.

 

Também Jorge Miranda [96] se escuda, quanto a este preciso ponto, na jurisprudência do Tribunal Constitucional, fixada no Acórdão n.º 276/89 já referido, acrescentando que a “inconstitucionalidade por omissão – tal como a inconstitucionalidade por acção – não se afere em face do sistema constitucional em bloco. É aferida em face de uma norma cuja não exequibilidade frustra o cumprimento da Constituição. A violação especifica-se olhando a uma norma violada, e não ao conjunto de disposições e princípios. Se assim não fosse, o juízo de inconstitucionalidade seria indefinido, fluido e dominado por considerações extrajurídicas e o órgão de garantia poderia ficar remetido ao arbítrio ou à paralisia”.

 

Finalmente, Vieira de Andrade [97] refere, a propósito da inconstitucionalidade por omissão: “[…] Dos diversos requisitos de verificação deste tipo de inconstitucionalidade, interessa-nos acentuar agora que tem de tratar-se do incumprimento de uma certa e determinada norma e não do conjunto de determinações e de princípios constitucionais. Adoptando uma formulação mais elaborada, dominante na jurisprudência e doutrina alemãs, há omissão legislativa sempre que o legislador não cumpre, ou cumpre insuficientemente, o dever constitucional de concretizar imposições constitucionais concretas. Julgamos que só há inconstitucionalidade por omissão e, portanto, censura jurídico-constitucional ao legislador na medida exacta em que o dever de legislar seja materialmente determinado ou determinável. A possibilidade de verificação da inconstitucionalidade depende, pois, do grau de densidade da norma impositiva e, consequentemente, do grau de vinculação do legislador em face da Constituição […]”

 

Como se concluiu no Acórdão n.º 474/2002, do que se acaba de dizer decorre, em suma, que “a disposição constitucional em que se funda a invocação da inconstitucionalidade por omissão tem que ser suficientemente precisa e concreta para que o Tribunal possa determinar, com segurança, quais as medidas jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade, sem ter de se pronunciar sobre opções políticas eventualmente diversas. Assim, quando as possibilidades deixadas pela Constituição ao legislador ordinário são praticamente ilimitadas, o Tribunal não pode determinar, por critérios estritamente jurídicos, o incumprimento do dever de legislar. E, consequentemente, como a verificação jurisdicional da inconstitucionalidade por omissão não pode assentar num juízo político, ela torna-se inviável. Resumir-se-á, pois, este ponto dizendo que a verificação da inconstitucionalidade por omissão supõe a existência de uma concreta e específica situação de violação da Constituição, demarcada a partir de uma norma suficientemente densificada, a que o legislador ordinário não conferiu atempadamente exequibilidade”.

 

O Tribunal Constitucional não elaborou doutrina acerca das consequências da verificação da existência de uma situação de não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais, limitando-se, nos contados casos em que considerou verificada uma situação de inconstitucionalidade por omissão, a, em cumprimento do artigo 283.º, n.º 2, da Constituição, “dar disso conhecimento ao órgão legislativo competente”.

 

2.4. A concretização, na Lei do Tribunal Constitucional, da competência do Tribunal Constitucional para investigar e apreciar a inconstitucionalidade por omissão

Os poderes do Tribunal Constitucional para investigar e apreciar a inconstitucionalidade das omissões legislativas são essencialmente definidos pelo artigo 283.º, n.º 1, da Constituição, preceito a que já nos referimos e, nos termos do qual, a requerimento de alguma das entidades aí indicadas, compete ao Tribunal Constitucional apreciar e verificar o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais.

 

Na sequência desta previsão constitucional estabelece-se depois na LTC um processo destinado à apreciação e verificação daquela forma de inconstitucionalidade. No artigo 67.º da referida Lei estipula-se que ao processo de apreciação do não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais é aplicável, salvo quanto aos efeitos, o regime previsto nos artigos 62.º a 65.º para os processos de fiscalização abstracta sucessiva. Em síntese, aí se refere que o pedido de apreciação da inconstitucionalidade pode ser apresentado a todo o tempo (artigo 62.º, n.º 1), é autuado pela secretaria em 5 dias e apresentado de seguida ao presidente do Tribunal Constitucional que tem 10 dias para decidir da sua admissibilidade (artigo 62.º, n.º 1). Admitido o pedido e junta a resposta do órgão a quem caberia emitir a norma, ou decorrido o prazo fixado para o efeito sem que tenha havido resposta, é entregue uma cópia dos autos a cada um dos juízes, acompanhada de um memorando onde são formuladas pelo presidente do Tribunal as questões prévias e de fundo a que o Tribunal deverá responder bem como de quaisquer elementos documentais reputados de interesse (artigo 63.º, n.º 1). Decorridos 15 dias, pelo menos, sobre a entrega do memorando, é o mesmo submetido a debate e, fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, é o processo distribuído a um relator designado por sorteio ou, se o Tribunal assim o entender, pelo presidente (artigo 63.º, n.º 2). Concluso o processo ao relator é por este elaborado, no prazo de 40 dias, um projecto de acórdão de harmonia com a orientação do Tribunal (artigo 65.º, n.º 1). Esse projecto é posteriormente distribuído a todos os juízes e o processo concluso ao presidente para inscrição em tabela na sessão do Tribunal que se realize decorridos 15 dias, pelo menos, sobre a distribuição das cópias (artigo 65.º, n.º 1).

 

Sobre as consequências da decisão que vier a ser proferida pelo Tribunal Constitucional, limita-se o artigo 68.º a dispor que a decisão em que o Tribunal Constitucional verifique a existência de inconstitucionalidade por omissão tem o efeito previsto no n.º 2 do artigo 283.º da Constituição, que se limita a estabelecer que quando o Tribunal Constitucional verificar a existência de inconstitucionalidade por omissão dará disso conhecimento ao órgão legislativo competente. Nem a LTC nem qualquer outro diploma, designadamente o Regimento da Assembleia da República, se referem expressamente a quem ou ao modo como deve ser removida a omissão legislativa, como infra se verá mais desenvolvidamente no ponto 5.

 

3. A omissão legislativa inconstitucional enquanto objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional

 

3.1. Formulação do pedido ao Tribunal Constitucional

No sistema português, existe para a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão um processo especial, que compreende uma regra quanto à legitimidade activa. Podem requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação e verificação do não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais apenas o Presidente da República, o Provedor de Justiça ou, com fundamento em violação de direitos das regiões autónomas, os presidentes das Assembleias Legislativas das regiões autónomas dos Açores e da Madeira (artigo 283.º, n.º 1, da CRP).

 

A legitimidade para apresentar requerimentos ou recursos ao Tribunal Constitucional português depende do tipo de processo em causa. Ora, importa antes de mais assinalar que a competência deste Tribunal não se limita à apreciação da inconstitucionalidade e da ilegalidade. Estão-lhe também atribuídas, entre outras, competências relativas a processos eleitorais, a referendos nacionais, regionais e locais, a declarações de património e rendimentos bem como de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos.

 

Restringindo a análise à fiscalização da inconstitucionalidade de normas, importa distinguir, para demonstrar a especialidade da legitimidade activa para requerer ao Tribunal Constitucional a verificação da inconstitucionalidade por omissão, entre, de um lado, os processos de fiscalização concreta e, de outro, os processos de fiscalização abstracta da constitucionalidade – artigos 277.º a 283.º da Constituição; artigos 51.º a 85.º da LTC.

 

Os primeiros iniciam-se pela interposição para o Tribunal Constitucional de recursos de decisões proferidas em processos que correm termos nos tribunais da jurisdição comum (cível, criminal, administrativa), podendo interpor recurso para o Tribunal Constitucional aqueles que, latu sensu, são sujeitos processuais nestes processos (assim, v.g., o autor e o réu, o arguido, o Ministério Público).

 

Face à sistematização da LTC, os processos de fiscalização abstracta da constitucionalidade subdividem-se nas seguintes categorias: processos de fiscalização preventiva, processos de fiscalização sucessiva e processos de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão.

 

Têm legitimidade para requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de normas o Presidente da República, o Primeiro-Ministro, um quinto dos Deputados à Assembleia da República e os Representantes da República nas regiões autónomas dos Açores e Madeira (artigo 278.º da Constituição). A legitimidade de cada uma destas entidades depende do tipo de acto normativo em causa (por exemplo, a dos Representantes da República está limitada às normas constantes de decreto legislativo regional).

 

Podem dar início a processos de fiscalização sucessiva da inconstitucionalidade o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, o Provedor de Justiça, o Procurador-Geral da República e um décimo dos Deputados à Assembleia da República. Quando o pedido de declaração de inconstitucionalidade se fundar em violação dos direitos das regiões autónomas, têm legitimidade activa os Representantes da República, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas, os presidentes das Assembleias Legislativas das regiões autónomas, os presidentes dos Governos Regionais ou um décimo dos deputados à respectiva Assembleia Legislativa.

 

No processo de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão a legitimidade activa assume, pois, carácter francamente restritivo.

 

3.2. A omissão legislativa inconstitucional nos recursos de constitucionalidade

Como ficou exposto no ponto anterior, apenas as entidades referidas no n.º 1 do artigo 283.º da CRP podem colocar ao Tribunal Constitucional questões de inconstitucionalidade por omissão, objecto de um processo próprio.

Sucede, porém, que, por vezes, em sede de recursos de fiscalização concreta da inconstitucionalidade de normas aplicadas pelas decisões dos tribunais comuns, os recorrentes invocam inconstitucionalidades por omissão. O Tribunal Constitucional não toma, nestes casos, conhecimento da questão de inconstitucionalidade por omissão, por falta de legitimidade dos recorrentes e por não ter sido utilizado o mecanismo processualmente adequado (exemplos: Acórdãos n.ºs 32/90; 79/94; 190/97; 238/97; 499/97; 125/98; 232/98; 330/98; 326/01).

 

O número de processos de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão é muito pouco significativo, contando-se, até à presente data, apenas sete decisões do Tribunal Constitucional proferidas em processos deste tipo (a primeira em 1 de fevereiro de 1989 e a última em 19 de novembro de 2002) [98] . Importando referir que o Tribunal Constitucional proferiu até ao presente cerca de 14.300 decisões, não se contando neste número as decisões singulares.

 

Todos os processos de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão foram intentados pelo Provedor de Justiça.

 

A LTC estabelece que o requerimento que incorpora o pedido de apreciação do não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais é dirigido ao presidente do Tribunal Constitucional. Deve ali ser especificada qual a norma constitucional (ou quais as normas constitucionais) a que falta exequibilidade por omissão das medidas legislativas necessárias (artigo 51.º, n.º 1, da LTC, que inicia as disposições comuns, aplicáveis aos processos de fiscalização abstracta, conforme definidos na LTC).

 

Já sucedeu na prática do Tribunal vir o pedido acompanhado de pareceres ou informações jurídicas (assim, Acórdãos n.ºs 182/89, 276/89).

No processo n.º 36/90, o Tribunal admitiu que, num mesmo requerimento, o Provedor de Justiça apresentasse um pedido de fiscalização sucessiva da inconstitucionalidade e um pedido de apreciação da inconstitucionalidade por omissão. Os pedidos – ambos relativos à questão da possibilidade de transmissão do direito ao arrendamento para habitação nos casos de cessação de união de facto em que haja filhos menores – foram apreciados no mesmo processo, e decididos num único Acórdão (n.º 359/91).

 

3.3. Apreciação da omissão legislativa inconstitucional por iniciativa do Tribunal Constitucional

O Tribunal Constitucional português não tem poderes para, ex officio, apreciar uma inconstitucionalidade por omissão.

 

Há referências, em algumas decisões do Tribunal tiradas em processos de outro tipo (cfr. supra, ponto 3.1.), à eventualidade de determinada situação poder configurar uma inconstitucionalidade por omissão, mas como mero obiter dictum, ou seja, sem qualquer carácter decisório e sem que dessa afirmação se retirem consequências.

Assim sucedeu, por exemplo, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 55/85, proferido num processo de fiscalização concreta, em que o Tribunal analisava uma norma do Código de Processo Penal. Era recorrente um arguido, condenado pelos tribunais comuns pela prática de um crime de homicídio.

Ali se afirmou que, em determinada forma de processo criminal (o processo de “querela”), por não estarem contemplados meios de conservação dos elementos probatórios de origem verbal, apenas em casos excepcionais o tribunal de recurso poderia alterar a decisão de facto. Conclusão face à qual depois se escreveu:

 

“Esta objecção, no plano em que se situa a análise do TC [Tribunal Constitucional] não procede. É que verdadeiramente ela não põe em causa a constitucionalidade do art. 469.º do CPP [Código de Processo Penal]. Porá, sim, em questão, e neste ponto, a constitucionalidade do sistema processual-penal, atacado por não conter normas que salvaguardem a posição do arguido que pretenda do tribunal de recurso a reavaliação da decisão de facto da 1ª instância. Mas, neste enfoque, o que tal raciocínio consequenciará é a existência de uma inconstitucionalidade por omissão: o legislador não estaria a passar a acto certa imposição legiferante porventura ínsita no art. 32-º, n.º 1, da CR [Constituição da República].

De uma inconstitucionalidade deste tipo, prevista no art. 283.º da CR, não tem, todavia, que se conhecer num processo desta natureza”.

 

Idêntica referência à eventualidade de uma inconstitucionalidade por omissão, mas sem carácter decisório, encontra-se no Acórdão n.º 174/93, proferido no âmbito de um processo de fiscalização sucessiva da constitucionalidade.                   

 

3.4. Alcance da omissão constitucionalmente relevante

A Constituição e, em conformidade, a LTC, referem-se expressamente à “omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais” (artigo 283.º, nº 1, da CRP e 67.º da LTC).

Tendo em consideração a tipologia dos actos legislativos previstos no artigo 112.º, n.º 1, da CRP, as medidas legislativas em falta poderão ser leis, decretos-leis ou decretos legislativos regionais. Daqui decorre que se a Constituição não estiver a ser cumprida por falta de outro tipo de actos normativos ou por falta de actos de outra natureza (v.g., políticos, administrativos), não se verificará uma omissão constitucionalmente relevante.

Não é pois possível apontar uma inconstitucionalidade por omissão por falta de um acto que não tenha carácter legislativo nem apontar uma omissão por não se tornar exequível norma não-constitucional (por exemplo, uma lei de valor reforçado).

O que está em causa, no sistema português, é apreciar e verificar, por esta forma, o não cumprimento da Constituição.

 

3.5. Decisões do Tribunal Constitucional de não verificação da inconstitucionalidade por omissão

Conforme ficou exposto no ponto 3.2., o Tribunal Constitucional recusa a apreciação de questões de inconstitucionalidade por omissão inseridas em recursos de fiscalização concreta da inconstitucionalidade, com base na falta de legitimidade dos requerentes e no erro na forma de processo. Não estão, aqui, em causa casos de verdadeira recusa de apreciação de pedidos de inconstitucionalidade por omissão, pois que não estava em causa o uso do meio processual próprio.

 

No que concerne à possibilidade de recusa por razões formais, é de assinalar que cabe ao presidente do Tribunal Constitucional admitir o pedido de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, sendo porém certo que esta decisão preliminar de aceitação não faz precludir a possibilidade de o Tribunal vir, em definitivo, a rejeitar o pedido (artigo 51.º, n.ºs 2 e 4, da LTC).

Se o presidente do Tribunal Constitucional considerar que o requerimento inicial apresenta falta, insuficiência ou manifesta obscuridade quanto aos elementos que deve conter (supra, ponto 3.2.), notifica o autor do pedido para suprir as deficiências (artigo 51.º, n.º 3, da LTC).

O pedido não é admitido quando formulado por pessoa ou entidade sem legitimidade ou quando as deficiências que o requerimento apresente não sejam supridas (artigos 52.º, n.º 1, 62.º, n.º 1, parte final, e 67.º da LTC). A competência para a decisão de não admissão do pedido não é, no entanto, do presidente, mas sim colegial (artigo 52.º, n.ºs 2 e 3, da LTC).

 

Importa aqui considerar ainda a situação particular que decorre do facto de, na pendência do processo de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, vir a ser publicado acto legislativo que colmate a omissão.

Na jurisprudência do Tribunal Constitucional português contam-se três casos (os processos que deram origem aos Acórdãos n.ºs 276/89, 638/95 e 424/01) em que, durante a pendência do processo, veio a ser publicado no jornal oficial acto legislativo relativo à matéria objecto dos respectivos pedidos. O Tribunal proferiu nestes casos, por unanimidade, uma decisão de mérito (afastando a possibilidade de se estar perante um caso de não conhecimento do pedido, por inutilidade superveniente com a consequente extinção da lide), tendo por não verificada, face ao facto da publicação dos actos normativos, a inconstitucionalidade por omissão. Teve-se, assim, como data relevante para apreciar a omissão a data da prolação da decisão.

Estas situações não constituem, pois, na jurisprudência constitucional portuguesa, casos de recusa de conhecimento da inconstitucionalidade por omissão, mas antes casos em que, conhecendo de fundo, o Tribunal se pronunciou pela inexistência de inconstitucionalidade por omissão.

 

O mesmo sucedeu no Acórdão n.º 36/90, embora, neste caso, não houvesse ainda, à data da decisão, acto normativo publicado no jornal oficial. Tinha, porém, sido já aprovado na generalidade, na Assembleia da República, um projecto de lei quanto à matéria objecto do pedido, o que foi pelo Tribunal Constitucional considerado suficiente para não ter por verificada a inconstitucionalidade por omissão. Na doutrina, esta questão não é consensual, como já se viu supra, no ponto 1.2.7..

 

No Acórdão n.º 359/91, o Tribunal Constitucional português não teve por verificada a inconstitucionalidade por omissão. Foram vários os fundamentos invocados, entre os quais a inexistência de um específico e concreto dever de legislar sobre a matéria em causa (a transmissão da posição de arrendatário em caso de cessação de união de facto em que existam filhos menores) imposto pela Constituição. A inexistência deste específico dever não foi, pois, vista como causa de recusa de apreciação da inconstitucionalidade por omissão, mas, mais uma vez, como fundamento de uma decisão de mérito.

O Acórdão foi proferido em processo, já referido supra (ponto 3.2.), em que pelo mesmo requerimento foi formulado um pedido de fiscalização sucessiva (quanto a um assento do Supremo Tribunal de Justiça, que veio a ser declarado violador do princípio da não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento) e um pedido de apreciação da inconstitucionalidade por omissão.

Pode ler-se na referida decisão:

 

«Em conformidade com o juízo de avaliação formulado no pedido, verificar-se-ia no ordenamento jurídico inconstitucionalidade por omissão de uma medida legislativa que expressamente determine que as normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil, são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as uniões de facto nos casos em que há filhos menores.

Isto porque, segundo tal entendimento, na eventualidade de o assento vir a ser declarado inconstitucional, e apesar de os tribunais passarem então a dispôr da possibilidade de aplicar, por analogia, aquelas normas às uniões de facto em que haja filhos menores, nada garante que, para os mesmos, a aludida aplicação analógica seja um imperativo constitucional.

Nos termos do artigo 283.º, n.º 1, do texto constitucional, assiste ao Provedor de Justiça legitimidade para requerer a apreciação e verificação do não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais.

(…) uma inconstitucionalidade por omissão só é verificável, quando existir em concreto uma específica incumbência dirigida pela Constituição ao legislador que este se abstenha de satisfazer (cfr., sobre este tema, Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pp. 325 e segs., Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., 2.º vol., p. 549, e Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo II, 2.ª ed., Coimbra, 1983, pp. 393 e segs.).

Ora, à luz das considerações anteriores, não pode dizer-se que a medida legislativa reclamada pelo Provedor de Justiça decorra de um específico e concreto dever de legislar imposto pela Constituição, em termos de o seu incumprimento gerar uma inconstitucionalidade por omissão.

A admitir-se a necessidade dessa medida, decorreria ela do dever geral que impende sobre os órgão de soberania com competência legislativa de satisfazer as necessidades «gerais» de legislação sentidas pela comunidade.

Com efeito, o artigo 36.º, n.º 4, da Constituição, prescreve que os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação, proibindo, simultaneamente, a edição de normas contrárias a esse princípio.

Não pode porém sustentar-se que, naquele preceito, se contenha uma imposição concreta dirigida ao legislador em termos de este se encontrar constitucionalmente obrigado, sob pena de omissão legislativa, a emitir uma norma do tipo daquela que vem defendida pelo requerente.

A tudo isto acresce que, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do assento de 23 de abril de 1987, nos termos que atrás se definiram, imporá que o princípio constitucional da não discriminação dos filhos haja de ser obrigatoriamente aplicado, em termos de o «interesse dos filhos» na atribuição do direito ao arrendamento a que se reportam as normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil, quando erigido em critério relevante de atribuição daquele direito, haver de ser respeitado tanto no caso dos filhos nascidos do casamento como no caso dos filhos nascidos de uniões de facto.

E assim sendo, não se verifica aqui, a necessidade de qualquer intervenção do legislador ordinário dirigida ao preenchimento de uma omissão legislativa que, em bom rigor, não existe».

 

3.6. “Lugares paralelos”

No âmbito do processo de fiscalização de inconstitucionalidade por omissão, referido supra no ponto 3.1., o Tribunal Constitucional, se não conhecer do pedido ou não julgar verificado o incumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais, mas verificar que a questão colocada se reconduz a outras situações de inconstitucionalidade que se revelem de “natureza análoga” às de inconstitucionalidade por omissão [99] , não pode, nem oficiosamente nem a requerimento, utilizar o processo para apreciar e decidir essas questões, ainda que estejam em causa direitos ou liberdades fundamentais.

 

Porém, em processos de fiscalização de inconstitucionalidade por acção [100] , nos quais adquirem maior relevância os processos de fiscalização concreta de inconstitucionalidade, em que estão em causa recursos de decisões jurisdicionais, seja com fundamento em recusa de aplicação de normas por inconstitucionalidade (artigo 280.º n.º 1, alínea a), da Constituição), seja por terem sido aplicadas normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada pela parte recorrente durante o processo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b)), ou, ainda, por terem aplicado norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional (artigo 280.º, n.º 5 da Constituição) [101] , este aprecia e decide questões colocadas pelas partes [102] , que podem revelar casos de inconstitucionalidade “análogos” a situações de inconstitucionalidade por omissão, em que está em causa a violação de direitos ou liberdades fundamentais.

 

Constituem exemplos destas situações, os casos em que uma nova lei vem revogar a lei até aí vigente que tornava exequíveis as normas constitucionais, os casos em que a inconstitucionalidade das normas deriva da falta ou insuficiente concretização do sistema legal vigente e os casos em que a inconstitucionalidade resulta de a norma legal não prever na sua regulação determinadas situações ou prever determinados casos e não outros que se consideram “análogos”, como se especificará no ponto 4.7. [103] .

 

Nos processos de fiscalização concreta de constitucionalidade, verificados que estejam os pressupostos processuais do tipo de recurso em causa, o facto de as partes invocarem, erradamente, que as normas, segmentos normativos ou interpretações normativas em apreciação enfermam de inconstitucionalidade por omissão não impede que o Tribunal Constitucional direccione a sua apreciação para os concretos vícios de inconstitucionalidade por acção e os declare, de que é exemplo o Acórdão n.º 47/2007, que se referirá no ponto 4.7., e o Tribunal não está vinculado a apreciar a questão unicamente face ao parâmetro constitucional invocado pelo recorrente como tendo sido violado.

 

4. Apreciação e verificação das omissões legislativas inconstitucionais

 

4.1. Especificidades da apreciação da inconstitucionalidade por omissão

Como decorre das considerações anteriores, sempre que existir uma imposição constitucional de legiferação, suportada por uma norma suficientemente densificada quanto ao seu sentido e alcance, no âmbito da qual a omissão da necessária medida legislativa origina uma situação de concreta e específica violação, por inexequibilidade da norma constitucional, poderá o Tribunal, a requerimento das instâncias com legitimidade para tal, apreciar e verificar o não cumprimento da Lei Fundamental por omissão dessa medida legislativa.

A “investigação e análise” da omissão legislativa é feita com base nesse pressuposto, podendo os respectivos processos de fiscalização dizer respeito a qualquer “matéria” em relação à qual a Constituição imponha, nos termos referidos, a prolação de medidas legislativas “necessárias” à exequibilidade das suas normas e, nesse âmbito, a actividade desenvolvida pelo Tribunal não apresenta qualquer aspecto diferenciador determinado pela natureza da matéria jurídica envolvida no pedido de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão.

Daqui resultam alguns traços caracterizadores do controlo da “inconstitucionalidade por omissão”.

Por um lado, esse controlo fica excluído do âmbito material da maioria dos recursos onde o Tribunal intervém na sequência de uma decisão judicial – os processos de fiscalização concreta –, não cabendo ao Tribunal apreciar os problemas de omissão legislativa que surjam ao nível da resolução judicial dos problemas jurídicos concretos – cf. pontos 3.6. e 4.7..

Por outro lado, trata-se de um recurso cujo objecto se esgota na apreciação e verificação do incumprimento da norma normarum resultante de um concreto dever que o texto fundamental faz recair sobre as instâncias legiferantes competentes.

No entanto, apesar destes dados, subsistem alguns traços característicos da intervenção do Tribunal nesta sede, os quais podem ser facilmente apreendidos a partir da consideração dos casos onde foi sindicada a omissão de medidas legislativas e que dizem respeito ao critério seguido no controlo de omissões legislativas impostas por “direitos, liberdades e garantias” e por “direitos económicos, sociais e culturais” e à admissibilidade e relevância de omissões legislativas parciais.

Assim, a partir da consideração das hipóteses em que o pedido de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão contendia com a exequibilidade de direitos fundamentais, importa notar que a maioria dos casos colocados à apreciação do Tribunal incidiu sobre “direitos, liberdades e garantias” (cf. Acórdãos n.ºs 182/89, 359/91, 638/95), cuja aplicabilidade imediata (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição) estava prejudicada pela inexistência de norma legal ordenadora, concretizadora ou conformadora do direito em causa, por o seu exercício “pressupo[r] necessariamente uma estrutura organizatório-institucional mais ou menos complexa, que o legislador ainda não edificou” (Acórdão n.º 90/84).

Assim sucedeu no caso subjacente ao Acórdão n.º 182/89 – no qual estava em causa a omissão da medida legislativa prevista no artigo 35.º, n.º 4, da Constituição (“A lei define o conceito de dados pessoais para efeitos de registo informático”), necessária para tornar plenamente exequível a garantia constante do n.º 2 do mesmo artigo (“São proibidos o acesso de terceiros a ficheiros com dados pessoais e a respectiva interconexão, bem como os fluxos de dados transfronteiras, salvo em casos excepcionais previstos na lei”). Como se sublinhou nesse aresto, a omissão legislativa censurada resultava da inexistência de norma legal que definisse o conceito de dados pessoais de modo a conferir eficácia à proibição imposta no n.º 2 do referido artigo, tendo o Tribunal considerado necessária uma “mediação legislativa ou interpositio legislatoris” que garantisse esse efeito.

Já no Acórdão n.º 351/91, o Tribunal apreciou e decidiu um pedido do Provedor de Justiça onde se requeria, a mais da fiscalização abstracta sucessiva do Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de abril de 1987 (“as normas dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil [transmissão da posição de arrendatário em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens] não são aplicáveis às uniões de facto, mesmo que destas haja filhos menores”), a fiscalização da “inconstitucionalidade por omissão de uma medida legislativa que expressamente determine que as normas dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil são aplicáveis, com as necessárias adaptações, às uniões de facto nos casos em que há filhos menores”.

Nesse aresto, o Tribunal declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do Assento do Supremo Tribunal de Justiça, por violação do princípio da não discriminação dos filhos, vertido no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição (“os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação”), mas deu por não verificada a inconstitucionalidade por omissão entendendo que o referido preceito constitucional não continha “uma imposição concreta dirigida ao legislador em termos de este se encontrar constitucionalmente obrigado, sob pena de omissão legislativa, a emitir uma norma do tipo daquela que vem definida pelo requerente”.

Por fim, no Acórdão n.º 638/95 foi analisado o pedido do Provedor de Justiça que requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação e verificação do não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequível a norma do artigo 52.º, n.º 3, na qual se consagra o direito de acção popular (“é conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, nomeadamente o direito de promover a prevenção, a cessação ou a perseguição de infracções contra a saúde pública, a degradação do ambiente e da qualidade de vida ou a degradação do património cultural, bem como de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização”). O Tribunal deu por não verificada a inconstitucionalidade por omissão em virtude de, posteriormente ao pedido, ter sido promulgada uma lei (Lei n.º 83/95, de 31 de agosto) que continha, no juízo do Tribunal, “uma disciplina global, integrada e tanto quanto possível completa do ‘direito de acção popular’ consagrado no artigo 52.º, n.º 3, da Constituição”.

 

Apenas numa ocasião foi o Tribunal confrontado com um pedido de inconstitucionalidade por omissão envolvendo um direito constante do catálogo dos “direitos económicos, sociais e culturais” (Acórdão n.º 474/02), não tendo feito qualquer distinção em termos de os excluir da análise dos casos de omissão legislativa.

 

Nesse Acórdão, o Tribunal decidiu um pedido do Provedor de Justiça para que fosse apreciada e verificada a “inconstitucionalidade resultante da falta das medidas legislativas necessárias para conferir plena exequibilidade, no que aos trabalhadores da função pública diz respeito, à norma contida na alínea e) do n.º 1 do artigo 59.º da Lei Fundamental” (no qual se dispõe: “[1.] todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito: [e)] à assistência material, quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego”). Neste caso, o Tribunal, concluindo pela existência de uma omissão parcial, decidiu dar por verificado o não cumprimento das medidas legislativas necessárias para tornar exequível o direito previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição.

 

O critério seguido pelo Tribunal foi o de considerar, independentemente da natureza do direito fundamental – e da respectiva força jurídica –, se a norma constitucional “possui as características pressupostas pela verificação da existência de uma inconstitucionalidade por omissão, ainda que tal direito seja um direito social e não deva ser tido como análogo aos direitos, liberdades e garantias” (Acórdão n.º 474/02).

Quanto ao segundo aspecto atrás referido, importa começar por notar que, na maioria dos casos decididos, o Tribunal foi confrontado com uma situação de total silêncio legislativo perante as concretas imposições constitucionais que estiveram na origem do pedido de fiscalização.

Cf., além dos citados Acórdãos n.ºs 182/89 e 638/95, o Acórdão n.º 276/89 – onde o Tribunal ponderou um pedido de fiscalização do Provedor de Justiça relativo à omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequível o artigo 120.º, n.º 3, da Constituição (“a lei determina os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respectivos efeitos”); o Acórdão n.º 36/90 – onde foi pedido ao Tribunal, também pelo Provedor de Justiça, que fosse apreciado e verificado o não cumprimento do artigo 241.º, n.º 3, da Constituição (“os órgãos das autarquias locais podem efectuar consultas directas aos cidadãos eleitores recenseados na respectiva área, por voto secreto, sobre matérias incluídas na sua competência exclusiva, nos casos, nos termos e com a eficácia que a lei estabelecer”); e o Acórdão n.º 424/01 – que decidiu um pedido do Provedor de Justiça para que fosse apreciada e verificada a omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequível a norma do artigo 239.º, n.º 4, da Constituição (“as candidaturas para as eleições dos órgãos das autarquias locais podem ser apresentadas por partidos políticos, isoladamente ou em coligação, ou por grupos de cidadãos eleitores, nos termos da lei”).

 

Por seu turno, a omissão de medidas legislativas a partir da “incompletude” de determinado regime legal ou normativo foi questionada em dois casos.

O primeiro deles foi decidido pelo referido Acórdão n.º 351/91, no qual o Tribunal afastou a existência de uma inconstitucionalidade por omissão.

No segundo caso, resolvido pelo Acórdão n.º 474/02, o Tribunal, apesar de considerar o facto de não existir consenso doutrinal e jurisprudencial “sobre a questão de saber se quando ocorre uma violação do princípio da igualdade, em virtude de uma imperfeita ou incompleta concretização de uma norma constitucional impositiva de legiferação, de tal modo que se cria uma situação discriminatória entre os seus destinatários, existe uma inconstitucionalidade por acção, uma inconstitucionalidade por omissão ou eventualmente ambas” (Acórdão n.º 474/02), concluiu pela existência de uma omissão parcial, decidiu dar por verificado o não cumprimento das medidas legislativas necessárias para tornar exequível o direito previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição.

          

Impõe-se também uma observação quanto aos casos relativos à “organização do poder político”, dirimidos pelos Acórdãos n.ºs 276/89, 36/90 e 424/01, para dar conta de que em todos eles o legislador acabou por satisfazer, ainda antes da decisão do Tribunal, a necessidade de regulamentação susceptível de conferir exequibilidade às normas constitucionais.

Por fim, explicitados os casos em que o Tribunal Constitucional se pronunciou em sede de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, resta apenas salientar que o Tribunal tem tomado conhecimento, no âmbito de recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade, de questões próximas ou análogas aos problemas levantados por omissões legislativas. Desse assunto tratar-se-á infra no ponto 4.7..

 

4.2. Critério da determinação da existência da inconstitucionalidade por omissão

No que diz respeito aos critérios que presidem à determinação da existência de uma omissão legislativa susceptível de censura constitucional, importa começar por notar que as omissões relevantes em sede do processo de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão são aquelas que se traduzem no “não cumprimento de imposições constitucionais em sentido estrito, ou seja, no não cumprimento de normas que, de forma permanente e concreta, vinculam o legislador à adopção de medidas legislativas concretizadoras da constituição” (cf. Acórdão n.º 474/02).

Em conformidade com esse entendimento, a verificação de uma omissão legislativa exige a existência, no plano constitucional, de “uma concreta e específica imposição legiferante, constante de uma norma com um grau de precisão suficientemente densificado” (Acórdão n.º 474/02), ou seja, que exista “em concreto uma específica incumbência dirigida ao legislador que este se abstenha de satisfazer” (Acórdão n.º 359/91), imposição constitucional essa definida claramente no seu sentido e alcance.

De facto, de acordo com o critério seguido pelo Tribunal Constitucional, não está aqui em causa uma fiscalização do cumprimento do “dever geral de legislar” que impende sobre os órgãos de soberania com atribuições legiferantes destinado a “acudir às necessidades ‘gerais’ da legislação que se façam sentir na comunidade jurídica” e, bem assim, dos resultados decorrentes do exercício desse dever, mas sim uma sindicância que visa apurar o cumprimento das injunções constitucionais que estabelecem “uma específica e concreta incumbência ou encargo constitucional”, “claramente definida quanto ao seu sentido e alcance, sem deixar ao legislador qualquer margem de liberdade quanto à sua própria decisão de intervir” (cf. Acórdão n.º 276/89).

Em síntese, pode dizer-se, como se afirmou no Acórdão n.º 509/02, que a inconstitucionalidade por omissão surge quando a “Constituição contenha uma ordem de legislar, suficientemente precisa e concreta, de tal sorte que seja possível determinar, com segurança, quais as medidas jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade”.

Em todo o caso, o Tribunal afastou a existência do não cumprimento da Constituição por omissão legislativa quando, apesar de não existir um regime legal em vigor, exista uma iniciativa do órgão legislativo no sentido de cumprir a imposição constitucional. Nestas circunstâncias, retratadas no âmbito do Acórdão n.º 36/90, entendeu o Tribunal que “se pode duvidar-se de que a apresentação de projecto ou proposta de lei tenha, só por si, a virtualidade de afastar a existência de omissão para efeito de declaração de inconstitucionalidade, a aprovação, embora só na generalidade, de [...] projecto ou proposta [de lei] já deverá considerar-se, em regra, suficiente para tal efeito”.

Como se mencionou, o objecto destes recursos consiste na fiscalização do não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias à exequibilidade das normas constitucionais. A menção a medidas legislativas deve ser interpretada no sentido de abranger os actos legislativos das instâncias competentes (Assembleia da República, Governo e Assembleias Legislativas das regiões autónomas), tal como os mesmos vêm configurados constitucionalmente.

Porém, ainda que o problema não tenha sido tratado em qualquer dos arestos mencionados, afigura-se não ser de excluir, em absoluto, que o Tribunal, para aferir da existência de um problema de omissão legislativa, possa ter em conta ou relevar actos de conteúdo normativo que versem sobre a matéria em apreciação.

O Tribunal Constitucional pode avaliar a omissão legislativa decorrente da revogação de leis que davam exequibilidade a normas constitucionais, sem que essa revogação fosse acompanhada da emissão de uma outra lei susceptível de dar resposta à imposição constitucional.

Porém, nestes casos, o Tribunal Constitucional tem entendido que esse facto consubstancia uma verdadeira inconstitucionalidade por acção, susceptível de ser conhecida nos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade. Bem ilustrativo desse entendimento é a argumentação constante do Acórdão n.º 39/84, onde se clarifica que “[quando] o Estado não dê a devida realização às tarefas constitucionais, concretas e determinadas, que lhe estão cometidas, isso poderá ser objecto de censura constitucional, em sede de inconstitucionalidade por omissão. Mas quando desfaz o que havia sido realizado para cumprir essa tarefa, e com isso atinge a garantia de um direito fundamental, então a censura constitucional já se coloca no plano da inconstitucionalidade por acção”, imputada à lei revogatória.

Por fim, importa ainda notar que, no âmbito da determinação de uma omissão legislativa, o Tribunal Constitucional debruça-se essencialmente sobre a verificação dos conteúdos normativos constitucionalmente exigidos não tendo competência para pronunciar-se, nesta sede, sobre a aplicação prática que é feita de um dado regime legal.

 

4.3. A metodologia da determinação da inconstitucionalidade por omissão

Quanto à metodologia subjacente à ponderação de uma omissão legislativa, o cerne da questão, atenta a configuração do recurso de constitucionalidade em causa, passa pela determinação do sentido jurídico-normativo do parâmetro constitucional em causa, maxime no que diz respeito a saber se a norma constitucional estabelece, ou não, uma imposição legiferante no sentido de justificar a verificação do não cumprimento da Constituição, sendo esse esforço metodológico realizado, bem se vê, tendo em conta – recte, a partir –  das medidas legislativas consideradas omitidas.

A esse nível, pode dizer-se que o Tribunal tem conferido um peso diferenciado aos “tradicionais” elementos da interpretação.

Desde logo, quanto ao elemento gramatical, importa salientar que o Tribunal Constitucional não tem conferido a esse elemento interpretativo um peso determinante na avaliação das imposições legiferantes cuja omissão seja censurável (cf. Acórdão n.º 182/89). Assim, de acordo com as considerações tecidas do citado aresto, pode dizer-se que não basta a existência uma mera remissão literal para “os termos da lei”, para que se dê por verificada a existência de uma omissão legislativa inconstitucional.

Mais relevante, para poder concluir-se que a norma constitucional traça uma imposição legiferante com o sentido atrás exposto será a teleologia da norma, seja, num primeiro momento, quanto à intencionalidade prática nela manifestada, seja, posteriormente, na aferição da necessidade de medidas que a ponham em prática, sendo essa teleologia compreendida tendo em atenção a ratio iuris determinante da norma (elemento sistemático).

Também o elemento histórico tem sido chamado à colação nas decisões do Tribunal, quer ao nível da definição do critério subjacente à determinação do sentido da norma constitucional (cf. Acórdão n.º 276/89), quer no que concerne à ponderação de um dado regime legal (cf. Acórdão n.º 474/02).

Para além do exposto, importa ainda referir que, naqueles casos em que o silêncio legislativo é quebrado posteriormente ao pedido de fiscalização, mas antes da decisão do recurso, o Tribunal tem-se preocupado em verificar se as medidas legislativas adoptadas satisfazem, ou não, o desiderato constitucional (cf. Acórdãos n.ºs 276/89, 638/95 e 424/01).

Outro aspecto metodológico relevante tem a ver com o facto de, perante uma omissão parcial, o Tribunal perscrutar na delimitação legal existente o cumprimento ou o incumprimento da imposição constitucional.

Por fim, ao contrário do que sucede no âmbito dos demais recursos decididos pelo Tribunal Constitucional, não é comum encontrar nas decisões proferidas nesta sede referências de direito comparado e a casos dirimidos em instâncias internacionais.

 

4.4. Medidas adicionais

Nos processos de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, o Tribunal Constitucional, quando conclua pela inexistência de medidas legislativas necessárias à exequibilidade de uma norma constitucional, limita-se a dar por verificado o não cumprimento da Constituição, por omissão dessas medidas, sem adoptar quaisquer medidas adicionais, mesmo no caso da omissão estar relacionada com a tutela de direitos fundamentais.

 

4.5. A omissão legislativa como elemento do exame de uma questão de constitucionalidade

            Como transparece das considerações supra tecidas, a arquitectura jurídico-funcional da fiscalização de uma “inconstitucionalidade por omissão” resulta na criação de um instituto processual de contornos bem delimitados que não esgota, num plano extensivo-horizontal, a esfera de valoração judicativa de problemas de constitucionalidade conexos com uma alegada incompletude de uma determinada norma ou regime legal, a ponderar nos processos de fiscalização da constitucionalidade por acção – como infra se verá, mais detalhadamente, no ponto 4.7..

            Atenta a configuração dos poderes de intervenção e das competências cognitivas reservadas ao Tribunal Constitucional, cumpre assinalar, no entanto, que o julgamento da questão de constitucionalidade passa apenas pela formulação de um juízo de mérito relativamente à(s) norma(s) que constituem o objecto do recurso, não lhe competindo definir o direito aplicável a um problema jurídico concreto e, bem assim, proceder à integração de eventuais omissões legislativas (relativas), ainda que a sua existência possa implicar um juízo de desconformidade constitucional, podendo, no entanto, ser chamado, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, a sindicar os critérios normativo-jurídicos jurisprudencialmente criados no seio de um processo metodológico de integração de lacunas legais (ex vi o disposto no artigo 10.º, n.º 3, do Código Civil) – como sucedeu no Acórdão n.º 264/98.

            Em todo o caso, não são raros os casos em que o Tribunal Constitucional, a propósito de uma questão de constitucionalidade normativa em sede de fiscalização da constitucionalidade por acção, é chamado a ponderar uma situação de omissão de um determinado conteúdo legislativo susceptível de inquinar a validade constitucional de uma norma.

            Tal realidade, apesar de assumir maior expressão no âmbito dos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade, pode ser prudencialmente ponderada, em sede de fiscalização abstracta (preventiva ou sucessiva), sendo que a projecção da decisão do Tribunal e da motivação que a suporta assume, em face dessa diferenciada composição processual, uma geometria claramente variável.

            De facto, não pode olvidar-se que nos processos de fiscalização concreta os efeitos da decisão do Tribunal – e o alcance da respectiva motivação – são directa e imediatamente dirigidos a um operador judicial incumbido da concreta realização judicativo-decisória do direito, valendo, com força de caso julgado, apenas no âmbito do concreto processo no qual se suscitou a intervenção do Tribunal Constitucional.

            Assim, nessa sede, os fundamentos de um eventual juízo de inconstitucionalidade apenas podem considerar-se mediatamente endereçados ao legislador, sendo incontornável, no entanto, que a produção legiferante pátria não se mostra indiferente ao teor dessas decisões e à motivação que as sustenta.

            De qualquer modo, estando em causa um juízo apenas vinculativo no domínio intra processual, é sobretudo ao nível dos critérios normativos de decisão que se projecta o julgamento do Tribunal Constitucional, sendo que, um juízo de antítese com a norma normarum, fundado na ponderação de uma omissão legislativa relativa, acaba por envolver no excurso motivatório, como contra-pólo negativo, o desenho de um critério jurídico passível de ser mobilizado no caso concreto sem ruptura perante as injunções constitucionais.

Por outro lado, mas no seio da mesma realidade processual, cumpre assinalar que, em face do regime previsto no artigo 80.º, n.º 3, da LTC, o Tribunal pode mesmo impor uma determinada interpretação da norma circunstancialmente em causa e “ordenar que ela seja aplicada no processo com a interpretação que é conforme às exigências constitucionais”, definindo, por esse meio, uma solução de constitucionalidade totalmente “modeladora” do sentido da regulamentação controvertida em juízo, comunicando, por essa via, aos operadores jurídicos o modo como deve ser compreendido um determinado regime em conformidade com a Constituição.

Já no que concerne aos processos de fiscalização abstracta da constitucionalidade, pode entender-se que um juízo de inconstitucionalidade fundado na incompletude de um dado regime constitui um indirizzo ao autor da norma, traduzido na necessidade de corrigir a insuficiência assim sancionada.

           

4.6. Verificação da inconstitucionalidade por omissão

Nos termos do artigo 283.º, n.º 2, da Constituição, “quando o Tribunal Constitucional verificar a existência de uma inconstitucionalidade por omissão, dará disso conhecimento ao órgão legislativo competente”.

Esta formulação, menos incisiva do que a constante do texto original da Constituição – onde se consagrava a possibilidade do órgão de fiscalização da constitucionalidade fazer recomendações aos órgãos legislativos – traduz a ideia de que o Tribunal, ao dar conhecimento da existência de uma omissão legislativa, está a realizar uma chamada de atenção para a necessidade da omissão legislativa ser colmatada. Trata-se, no fundo, de “um apelo do Tribunal Constitucional, com significado político e jurídico, aos órgãos competentes no sentido de estes actuarem e emanarem actos legislativos necessários à exequibilidade das leis constitucionais” (cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 7ª edição, p. 1039).

Como tal, da decisão do Tribunal Constitucional não transparece qualquer critério modelador-concretizador da regulamentação legal em falta, nem, tão-pouco, a adopção de prazos recomendados para a adopção de alterações.

Por outro lado, não havendo dúvida de que o Tribunal Constitucional na fundamentação da sua decisão, ao explicitar os motivos que justificam a decisão de não cumprimento da Constituição, acaba por determinar o sentido e a extensão da omissão legislativa, daí não resulta a definição de qualquer critério normativo que tenha a virtualidade de alterar ou suplantar, com efeitos práticos, a omissão legislativa no que toca ao “desenvolvimento” do regime legal, maxime, quanto à sua aplicação pelas instâncias jurisdicionais.

Deste modo, no que tange especificamente com a decisão do Tribunal Constitucional neste âmbito, designadamente quanto aos seus efeitos, temos que esta se esgota na verificação do não cumprimento da Constituição de que se dá conhecimento ao órgão legislativo competente, não se encontrando previstos quaisquer outros efeitos.

 

4.7. Apreciação de “lugares paralelos” e decisões a esse propósito proferidas

Como se disse no ponto 3.6., é nos processos de fiscalização de inconstitucionalidade por acção, em particular nos processos de fiscalização concreta, que incidem sobre recursos de decisões proferidas por outros tribunais, que o Tribunal Constitucional aprecia as “questões análogas”. Estas questões de constitucionalidade dizem respeito a normas, segmentos ou dimensões normativas, desaplicadas pelas decisões sob recurso com fundamento em inconstitucionalidade, ou que, não obstante a acusação do vício de inconstitucionalidade pela parte recorrente, foram aplicadas pela decisão judicial como ratio decidendi, e constituem o objecto do recurso de constitucionalidade.

 

No Acórdão n.º 47/2006 [104] [105] o Tribunal Constitucional teve que apreciar se ocorria ou não uma situação típica de inconstitucionalidade por omissão. Estava em causa o recurso de uma decisão de desaplicação normativa efectuada pelo Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento em inconstitucionalidade, em que o Tribunal apreciou a inconstitucionalidade de normas revogatórias de normas que consagravam o direito de participação de representantes dos trabalhadores nos órgãos sociais das empresas pertencentes ao sector público, normas estas que tornavam exequíveis as normas constitucionais que previam esse direito.

 

Entendeu o Tribunal que tal situação não consubstanciava um caso de inconstitucionalidade por omissão (como os recorrentes invocavam), mas sim de inconstitucionalidade por acção, em virtude de não existir a omissão de medidas legislativas para tornar exequível a participação de representantes dos trabalhadores nos órgãos sociais da empresa em causa, mas antes a publicação de legislação revogatória de leis que já consagravam essa participação.

 

A este respeito escreveu-se, citando Jorge Pereira da Silva:

 

«“De facto, não há grandes dúvidas de que a revogação integral de uma lei constitucionalmente devida acarreta a inconstitucionalidade por acção da própria lei revogatória. É certo que esta lei só enferma de tal desvalor na medida em que, fazendo renascer uma situação de incumprimento de um dever específico de actuação legislativa, está na origem de uma inconstitucionalidade por omissão. Por outras palavras, embora tenha sido a lei revogatória a desencadear uma situação de vazio normativo constitucionalmente inadmissível, do ponto de vista dos valores jurídicos negativos tudo se passa em sentido inverso, assumindo a inconstitucionalidade da lei revogatória (inconstitucionalidade por acção) natureza consequente em relação à referida situação de vazio normativo (inconstitucionalidade por omissão). No entanto, é igualmente verdade que, na situação em análise, o legislador não está apenas a ‘não fazer algo’ imposto pela Constituição, como é próprio das omissões legislativas. O legislador está antes a ‘desfazer’ e, mais precisamente, está a ‘desfazer algo’ que era e é prescrito pela Constituição. Por isso, a lei revogatória, que consubstancia o acto de desfazer, não é fiscalizável (enquanto geradora de uma inconstitucionalidade) por omissão, mas sim por via de acção” (Dever de legislar e protecção jurisdicional contra omissões legislativas, Lisboa, Universidade Católica, 2003, p. 245 e ss., especialmente pp. 282 e ss. e 286).»

 

Assim, decidiu-se neste aresto julgar inconstitucionais tais normas revogatórias, por ofensa dos direitos de participação dos trabalhadores nos órgãos sociais das empresas públicas, consagrados nos artigos 54.º, n.º 5, alínea f), e 89.º da Constituição da República Portuguesa.

 

O Tribunal Constitucional também já apreciou casos em que se discutia a inconstitucionalidade de normas em que era invocada falta de habilitação legal suficiente ou falta de densidade normativa suficiente do quadro habilitante, em matéria de restrição de direitos fundamentais.

Assim, no recente Acórdão n.º 155/2007 [106] , o Tribunal Constitucional teve que apreciar, além do mais, da conformidade com a Constituição da norma do artigo 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de possibilitar, sem autorização do juiz, a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita.

Colocou-se a questão de saber se a Constituição autoriza a restrição dos direitos fundamentais que estão em causa – à integridade física, à liberdade geral de actuação, à reserva da vida privada e à autodeterminação informacional –, designadamente para a prossecução das finalidades específicas do processo penal, tendo em conta que o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição refere, na parte que ora importa considerar, que “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias, nos casos expressamente previstos na Constituição…”. Concluiu-se, porém, que a Constituição autoriza, tendo em vista a prossecução das finalidades próprias do processo penal e respeitadas as demais e já referidas exigências constitucionais, a restrição dos direitos fundamentais à integridade pessoal, à liberdade geral de actuação, à reserva da vida privada ou à autodeterminação informacional, citando-se o que se disse a este respeito no Acórdão n.º 254/99 [107] .

De seguida, o Tribunal teve de averiguar se as normas contidas nos artigos 61.º, n.º 3, alínea d) e 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e na Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto (que estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses) constituem habilitação legal suficiente para as restrições que aqui estão em causa ou se, pelo contrário, seria necessária uma outra lei específica que explicitamente autorizasse a recolha coactiva de substâncias biológicas e a sua análise genética não consentida, ao mesmo tempo prescrevendo o respectivo regime (i.e., estabelecendo os seus pressupostos materiais, formais, orgânicos e procedimentais), tendo, no entanto, concluído que o problema não estava tanto na falta de habilitação legal (i.e., na falta de norma que autorize a realização coactiva do exame - essa existe e decorre da conjugação dos preceitos constantes do artigo 6.º da Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto, e do artigo 172.º do Código de Processo Penal), mas, eventualmente, na falta de densidade normativa suficiente desse quadro legal habilitante, que considerou não ocorrer na situação em análise.

O fundamento da inconstitucionalidade da norma em apreciação radicou no facto de o acto em causa contender, de forma relevante, com direitos liberdades e garantias fundamentais e, por isso, a sua admissibilidade no decurso da fase de inquérito depender da prévia autorização do juiz de instrução, que, no caso em apreço, não ocorreu.

 

Porém, a maioria dos casos típicos de apreciação de “questões análogas” ocorrem em situações de discriminação, em que, além de outros princípios, estão em causa situações de desigualdade material, de que se cita, a título de exemplo, os Acórdãos n.ºs 690/98, 1221/96 e 359/91.

 

Assim, no âmbito criminal, no Acórdão n.º 690/98, julgou-se inconstitucional, por violação do disposto no artigo 20.º, n.º 1, conjugado com o artigo 67.º, n.º 1, da Constituição, a norma constante do artigo 68.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de não admitir a constituição como assistentes, em processo penal, aos ascendentes do ofendido falecido, quando lhe haja sobrevivido cônjuge separado de facto, embora não separado judicialmente de pessoas e bens, e não tenha descendentes.

 

No Acórdão n.º 1221/96, o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional, por violação do dis­posto no n.º 4 do artigo 36.º da Constituição da República, a norma do n.º 1 do artigo 1793.º do Código Civil, na interpretação segundo a qual o regime nela previsto não é aplicável às situa­ções de cessação de união de facto, se constituída esta more uxorio, havendo filhos menores nascidos dessa união.

Esta norma do Código Civil previa a possibilidade de o tribunal, em caso de divórcio, dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, consideran­do, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.

 

Estava, pois, em análise a determinação do universo de destinatários da norma, que no caso, consistia em saber se era igualmente aplicável às situações de cessação de união de facto, se constituída esta more uxorio, havendo filhos menores nascidos dessa união.

Considerou-se que não estava em causa determinar se o texto constitu­cional pode, ou não, ser interpretado de forma a tornar exten­sível à união de facto o regime jurídico do direito de família, ou se às situações de facto podem ser aplicadas por via analó­gica as regras estabelecidas para o casamento, mas, sim, face ao artigo 36.º, n.º 4, da Constituição [108] , cuidar de assegurar que o interesse dos filhos menores nas­cidos fora do casamento não deixa de integrar um dos vectores do critério a utilizar pelo julgador na determinação da casa de morada da família [109] .

 

Neste aresto, manteve-se a linha jurisprudencial anteriormente seguida no Acórdão n.º 359/91 [110] , por se entender haver uma correlação entre as situações contempladas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 1110.º, do Código Civil – na interpretação que lhes foi dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de abril de 1987, no sentido de não serem aplicáveis às uniões de facto, mesmo que destas haja filhos menores – e no n.º 1 do artigo 1793.º do Código Civil, já que visam, aquelas, além do mais, a destinação da casa de morada de família quando os cônjuges vivam em casa arrendada, e, esta última, a destinação da casa de morada de família pertença em comum ou própria de um dos cônjuges.

 

4.8. Instrumentos técnico-jurídicos utilizados pelo Tribunal Constitucional para evitar lacunas resultantes de decisões que consideram que uma norma viola a Constituição

Quanto aos “meios técnico-legais utilizados pelo Tribunal Constitucional quando procura evitar lacunas legais que possam advir da decisão por meio da qual se declarou que a lei ou outro acto [normativo] violam a Constituição”, importa salientar que a configuração constitucional e processual relativa aos recursos de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão não faz menção a qualquer instrumento normativo específico mobilizável com esse objectivo.

No entanto, em lugar paralelo – relativamente aos processos de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade –, a Lei Fundamental confere ao Tribunal alguns poderes ao nível da conformação dos efeitos da inconstitucionalidade.

De facto, enquanto que no n.º 1 do artigo 282.º da CRP se dispõe que “a declaração de inconstitucionalidade (...) produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado”, no artigo 282.º, n.º 4, prevê-se a possibilidade do Tribunal fixar os efeitos da inconstitucionalidade com alcance mais restrito do que o assinalado, quando “a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo (...) o exigirem”.

Ou seja, o Tribunal pode restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade relativamente ao efeito repristinatório daí decorrente e pode protelar o início da produção dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, eliminando a eficácia ex tunc decorrente do referido regime-regra (cf., entre outros, os Acórdãos n.os 140/02, 616/03 e 323/05, nos quais o Tribunal determinou que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade se produzissem apenas com a publicação dos respectivos arestos).

Por fim, o Tribunal pode também, nos termos do artigo 282.º, n.º 3, da CRP, excluir a ressalva de caso julgado aí prevista quando a norma declarada inconstitucional respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito do mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido, circunstância essa que confere ao Tribunal poderes de ampliar os efeitos normais da declaração de inconstitucionalidade (v. Acórdão n.º 232/04, que constitui, até à data, o único aresto em que o Tribunal lançou mão do assinalado expediente, aí decidindo “fixar os efeitos da inconstitucionalidade das normas [declaradas inconstitucionais] de modo que não fiquem ressalvados os casos julgados relativamente a penas acessórias de expulsão ainda não executadas aquando da publicação desta decisão”).

 

5. Efeitos da verificação de uma inconstitucionalidade por omissão

 

5.1. Deveres resultantes para o legislador parlamentar

Nos termos do artigo 283.º, n.º 2, da CRP, a verificação da existência de uma inconstitucionalidade por omissão obriga o Tribunal Constitucional a dar disso conhecimento ao órgão legislativo competente.

 

No âmbito do sistema de controlo da constitucionalidade consagrado nacionalmente, os efeitos da verificação de uma inconstitucionalidade por omissão não diferem em função do órgão legiferante com competência para editar as medidas legislativas consideradas necessárias para tornar exequível determinada norma constitucional. 

 

Quer a competência para emanar a medida legislativa cuja falta conduziu à verificação de uma inconstitucionalidade por omissão se encontre constitucionalmente cometida à Assembleia da República, ao Governo ou às Assembleias Legislativas das regiões autónomas, os efeitos de tal verificação esgotam-se no dever que sobre o Tribunal Constitucional impende de dar conhecimento dessa omissão ao órgão com competência legiferante para editar a norma necessária à superação da lacuna.

 

Quer isto significar que, ao invés do que sucede no âmbito da fiscalização da inconstitucionalidade por acção, a decisão que verifique uma inconstitucionalidade por omissão não dispõe de eficácia jurídica concreta, sendo insusceptível de, por si mesma e enquanto tal, produzir qualquer tipo de alteração na ordem jurídica.

 

Trata-se aqui de uma decorrência do tipo de controlo cometido ao Tribunal Constitucional que, sendo estruturalmente negativo, não contempla a faculdade de imposição positiva das iniciativas normativas consideradas necessárias para suprir a omissão inconstitucional verificada no âmbito do processo típico, nem, a jusante, o poder de sindicar ou reverter uma eventual inércia do órgão legislativo destinatário da comunicação, designadamente o de o substituir na edição da norma em falta se este não suprir a omissão.

 

Tal solução, justificada com fundamento nos princípios democrático e da separação de poderes entre os órgãos de soberania, conduz a que a competência a exercer pelo Tribunal Constitucional no âmbito da fiscalização do não cumprimento de imposições constitucionais legiferantes se situe, quanto ao seu alcance possível, num nível puramente declarativo, sem possibilidade de interferência autónoma, directa ou imediata sobre o sistema do direito constituído.

 

Embora sem carácter vinculativo, os pronunciamentos do Tribunal Constitucional que concluam pela existência de uma inconstitucionalidade por omissão, na exacta medida em que são objecto, quer de imperativa comunicação ao legislador destinatário da imposição constitucional legiferante considerada incumprida, quer de obrigatória publicitação através da respectiva publicação na I Série-A do Diário da República (artigo 119.º, n.º 1, alínea g), da Constituição, e artigo 3.º, n.º 1, alínea b), da LTC), não deixam de constituir apelos à iniciativa do órgão com competência para editar a norma tida por necessária à exequibilidade da Constituição, apelos esses aos quais tende a reconhecer-se na doutrina um certo «significado político e jurídico» (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, pág. 1039).

 

Vejamos mais de perto.

 

O Regimento da Assembleia da República é omisso no que toca às consequências da comunicação da decisão que verifica a existência de uma inconstitucionalidade por omissão legislativa, não prevendo ou impondo que a tal comunicação se siga algum tipo de iniciativa parlamentar, designadamente o agendamento para discussão na câmara da questão sobre que versou o pronunciamento do Tribunal Constitucional.

 

Daqui se segue que a susceptibilidade da decisão que declara a existência de uma inconstitucionalidade por omissão vir a influenciar, de forma positiva e consequente, o processo legislativo se encontra na directa dependência da iniciativa dos próprios grupos parlamentares, surgindo a superação da lacuna tanto mais facilitada quanto maior se revelar a viabilidade de formação de consensos no âmbito da área temática carecida de intervenção legislativa mediadora por reconhecida imposição constitucional.

 

Tal efectivo condicionalismo constituirá, de resto, um princípio de explicação para o diferente modo como o legislador ordinário reagiu nas duas únicas situações em que o Tribunal Constitucional verificou a existência de uma inconstitucionalidade por omissão.

 

A primeira delas diz respeito ao Acórdão n.º 189/92, de 01 de fevereiro, através do qual o Tribunal Constitucional deu por verificado o não cumprimento da Constituição por omissão da medida legislativa prevista no n.º 4 do seu artigo 35.º, necessária para tornar exequível a garantia constitucional do n.º 2 do mesmo artigo.

 

Proibindo o n.º 2 do artigo 35.º da Constituição, na versão de 1982 (utilização da informática), o acesso de terceiros a ficheiros com dados pessoais, salvo em casos excepcionais previstos na lei, e remetendo o n.º 4 desse mesmo artigo para a lei ordinária a definição do conceito de dados pessoais, o Tribunal Constituição considerou essencial à plena exequibilidade daquela garantia uma mediação legislativa definidora do conceito de dados pessoais. 

 

Este Acórdão foi publicado no Diário da República de 03 de março de 1989, tendo-se-lhe seguido no Parlamento diversas iniciativas tendentes a propiciar uma intervenção legislativa no âmbito da defesa dos cidadãos contra o tratamento informático de dados pessoais.

 

Exemplificativo da pronta reacção do legislador registada neste caso foi a apresentação e admissão, logo na sessão parlamentar de 05 de abril de 1989, de um projecto de resolução (projecto de resolução n.º 24/V) com vista à realização de um debate sobre a protecção dos direitos dos cidadãos face à utilização da informática e ao tratamento automatizado de dados de carácter pessoal.

 

Dada sequência ao processo legislativo na Assembleia da República, a lei da protecção de dados pessoais face à informática (Lei n.º 10/91) viria a ser finalmente aprovada em 19 de fevereiro de 1991, tendo sido promulgada pelo Presidente da República em 09 de abril de 1991 e publicada no Diário da República de 29 de abril de 1991.

 

Diferentes foram, porém, as consequências que se associaram ao segundo dos pronunciamentos do Tribunal Constitucional no âmbito da verificação da existência de uma inconstitucionalidade por omissão.

 

Através do seu Acórdão n.º 474/2002, de 19 de novembro de 2002, o Tribunal Constitucional deu por verificado o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequível o direito previsto na alínea e) do n.º 1 do seu artigo 59.º, relativamente a trabalhadores da Administração Pública.

 

Considerou-se, então, que o direito à assistência material previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea e), da Constituição, tendo que assumir necessariamente a forma de uma prestação específica, impunha ao legislador a previsão, também no que concerne aos trabalhadores da Administração Pública, de uma prestação social para aqueles que se encontrassem em situação de desemprego involuntário.

 

Este Acórdão foi publicado no Diário da República de 18 de dezembro de 2002.

 

Todavia, justamente por se tratar de uma área de intervenção em que, em razão provável dos efeitos associados em matéria de crescimento da despesa pública, o consenso parlamentar se encontra dificultado, designadamente quanto aos aspectos relacionados com os termos e o contexto do regime a aprovar, ainda hoje subsiste a lacuna legislativa denunciada pelo Tribunal Constitucional.

 

Pese embora a persistência da omissão legislativa considerada inconstitucional, a repercussão que no Parlamento não deixou de conferir-se ao pronunciamento contido no Acórdão n.º 474/2002 é, ainda assim, expressiva da influência política e jurídica que, não obstante os seus efeitos meramente declarativos, as decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional tendem a exercer sobre o processo legislativo e, em especial, sobre a concreta prestação dos seus agentes concretizadores.

 

Com efeito, por iniciativa do grupo parlamentar do Partido Comunista Português, aos 20 de fevereiro de 2003 deu entrada na Assembleia um projecto de lei para atribuição do direito a subsídio de desemprego ao pessoal docente e investigador contratado por instituições do ensino superior e de investigação públicas (projecto de lei n.º 234/IX).

 

Discutido e votado em reunião plenária de 02 de outubro de 2003, tal projecto viria, porém, a ser rejeitado com os votos contra dos Deputados dos grupos parlamentares que integravam a coligação de apoio ao Governo então em funções.

 

Esta iniciativa legislativa viria a ser repetida na legislatura seguinte (X Legislatura), tendo-lhe correspondido a apresentação do projecto de lei n.º 159/X, uma vez mais da autoria do grupo parlamentar do Partido Comunista Português.

 

Dando expressão ao renovado objectivo de atribuição do direito a subsídio de desemprego ao pessoal docente e investigador contratado por instituições do ensino superior e de investigação públicas, este projecto de lei, discutido e votado em reunião plenária de 08 de fevereiro de 2007, viria a ser aí rejeitado por se lhe terem oposto os Deputados do grupo parlamentar que apoia o Governo presentemente em funções.

 

Nessa mesma sessão plenária foram igualmente rejeitados, uma vez mais com os votos contra dos Deputados que integram o grupo parlamentar que apoia o Governo, os projectos lei n.º 346/X/2 e n.º 348/X, ambos entrados na Assembleia em 31 de janeiro de 2007, o primeiro por iniciativa do Bloco de Esquerda e o segundo pela mão do Partido Popular (CDS/PP).

 

Ambos os projectos se destinavam a permitir a atribuição, embora em termos não inteiramente coincidentes, do direito ao subsídio de desemprego ao pessoal docente e investigador contratado por instituições de ensino superior e de investigação públicas.

 

Apesar de as iniciativas legislativas tendentes à superação da lacuna legislativa identificada no Acórdão n.º 474/2002 se não haverem revelado até ao momento consequentes, a verdade, porém, é que o órgão legislativo competente nunca dissentiu do pronunciamento contido naquele aresto, nem por qualquer forma rejeitou a necessidade de lhe dar seguimento.

 

Demonstrativa disso mesmo é a circunstância de, no âmbito da X Legislatura, mas desta feita por ocasião da discussão e votação, na especialidade, do Orçamento do Estado para 2006 (proposta de lei n.º 40/X), ocorrida na reunião plenária de 29 de novembro de 2005, o pronunciamento do Tribunal Constitucional contido naquele aresto haver influenciado o debate parlamentar no sentido em que, para além de aí expressamente relembrado, conduziu a que pelo Ministro dos Assuntos Parlamentares então presente fosse justificado o atraso na mediação legislativa considerada necessária à execução da Constituição, o que passou pelo anúncio da existência de documentos preparatórios em discussão com os sindicatos tendo em vista a criação de um quadro de protecção, estendido também à função pública, nas eventualidades de doença e desemprego.

 

Pese embora a influência que nestes termos se pode considerar exercida pelo pronunciamento do órgão fiscalizador, o certo é que a persistente ausência de mediação legislativa conduziu já a que este caso fosse designado por “caso de inconstitucionalidade por omissão agravada” (Jorge Miranda ao Jornal Público, edição on-line de 07 de fevereiro de 2007).

 

Em suma: ainda que sem eficácia constitutiva possível e mesmo que prontamente se lhes não siga a aprovação da medida legislativa em falta, as decisões de verificação de uma inconstitucionalidade por omissão produzem sempre um efeito à distância – o de sinalizar institucionalmente a existência de uma imposição constitucional legiferante por cumprir, não deixando de conferir assim, no contexto do debate público, um certo tipo de legitimidade às reivindicações que porventura vierem sendo realizadas pelo sector ou sectores da sociedade mais prejudicados pela omissão legislativa, nem, em última instância, de criar condições para uma eventual responsabilização, no âmbito da discussão parlamentar, dos agentes a cuja inércia puder ser imputada a persistência da omissão legislativa denunciada em acórdão.

 

5.2. Deveres resultantes para outros órgãos com competência de produção normativa

Uma vez que, conforme começou por ser referido, a previsão normativa dos efeitos produzíveis pela verificação de uma inconstitucionalidade por omissão é una e indiferenciada, não há qualquer particularidade de regime a assinalar em razão do órgão legiferante a quem caiba a competência para editar a medida legislativa em falta, valendo tudo quanto acima ficou dito quer essa competência se encontre cometida à Assembleia da República, ao Governo ou às Assembleias Legislativas das regiões autónomas.

 

 

Conclusões

 

A Constituição da República Portuguesa prevê, no seu artigo 283.º, um processo específico destinado ao controlo do não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais. Considerando, porém, o modo bastante restritivo como a lei e a jurisprudência constitucional concretizam os termos da sua admissibilidade, deve concluir-se que a sua importância é relativamente marginal. Para o demonstrar bastará evidenciar que, em cerca de 25 anos de existência do Tribunal Constitucional, apenas foram apresentados sete pedidos de fiscalização da constitucionalidade por omissão de legislar e, destes, apenas em duas situações o Tribunal Constitucional considerou efectivamente verificada uma situação de inconstitucionalidade.

 

No que se refere às consequências de uma tal decisão a Constituição apenas determina que o Tribunal Constitucional deve “dar disso conhecimento ao órgão legislativo competente”. Nem a Lei do Tribunal Constitucional nem qualquer outro diploma, designadamente o Regimento da Assembleia da República, se referem ao modo como deve ser ultrapassada a identificada omissão de legislar, não prevendo ou impondo que a tal comunicação se siga qualquer tipo de iniciativa legislativa. Porém, como mais desenvolvidamente já se evidenciou, quer a imperativa comunicação ao órgão legislativo competente, quer a obrigatória publicitação da decisão através da respectiva publicação em Diário da República, constituem relevantes apelos à iniciativa do órgão com competência para editar a norma tida por necessária è exequibilidade da Constituição, aos quais tende a reconhecer-se um certo significado político e jurídico.

 

Pode, por outro lado, concluir-se que os mecanismos legais de que o Tribunal Constitucional dispõe para apreciar a inconstitucionalidade por omissão são suficientes. Para esta conclusão muito contribui o facto de, no sistema jurídico-constitucional português, o processo específico de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, a que nos temos vindo a referir, não esgotar o leque de possibilidades de que o Tribunal Constitucional dispõe para controlar situações de inconstitucionalidade por omissão. Como mais desenvolvidamente se demonstrou no ponto 4.7. do presente relatório, também no âmbito dos processos de fiscalização da inconstitucionalidade por acção o Tribunal frequentemente aprecia e controla situações muito próximas das tipicamente consideradas como de inconstitucionalidade por omissão, com efectiva influência das suas decisões no processo de criação do Direito.

 


ANEXO

 

ACÓRDÃO N.º 474/02

 

 

 



[1] No presente relatório, a menção à Constituição da República Portuguesa (ou, abreviadamente, CRP), de 2 de abril de 1976, refere-se, salvo indicação em contrário, à redacção resultante das alterações introduzidas pelas Leis Constitucionais n.ºs 1/82, de 30 de setembro, 1/89, de 8 de julho, 1/92, de 25 de novembro, 1/97, de 20 de setembro, 1/2001, de 12 de dezembro, 1/2004, de 24 de julho e 1/2005, de 12 de agosto.

É ainda utilizada, no que respeita à Lei sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, a abreviatura LTC (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redacção resultante das alterações introduzidas pelas Leis n.ºs 143/85, de 26 de novembro, 85/89, de 7 de setembro, 88/95, de 1 de setembro e 13-A/98, de 26 de fevereiro). Em Anexo a este Relatório, apresenta-se o Acórdão nº 474/2002, do Tribunal Constitucional.

Os Acórdãos do Tribunal Constitucional português citados estão disponíveis no endereço electrónico www.tribunalconstitucional.pt.

[2] Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral. Uma perspectiva luso-brasileira, Coimbra, 1995, p. 425.

[3] J. Baptista Machado, Introdução ao direito e ao discurso legitimador, Coimbra, 1990, pp. 192-3.

[4] No plano da teoria geral vejam-se Oliveira Ascensão, ob. cit., p. 427, J. Baptista Machado, ob. cit., p. 194 e F. J. Pinto Bronze, Lições de Introdução ao Direito, Coimbra, 2002, pp. 881-2.

 No plano jurídico-constitucional, vejam-se J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, Almedina, p. 1235, e Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Constitucional, vol. I, Coimbra, 2005, p. 668.

[5] Considera demasiado redutora esta concepção de lacuna jurídica, Castanheira Neves. A propósito do conceito adoptado pela generalidade da doutrina, o autor critica a “insistente fidelidade aos postulados ideológicos do positivismo jurídico e ao seu legalismo – pois não só se continua a imputar ao legislador legal a plena titularidade e disponibilidade (ainda que potencial) sobre o mundo jurídico, como também apenas pela extensão (se não já explícita, pelo menos implícita) do ordenamento positivo-legal se traçam os limites do próprio direito. (…) subsistem contra este entendimento das lacunas as exigências da vida jurídica concreto-real, com a historicidade que lhe é essencial e os imperativos do próprio cumprimento da função da validade normativa específica do direito, ao serviço da qual não pode deixar de estar também a lei e o seu prescrito sistema positivo”. Cfr. A. Castanheira Neves, Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais, Coimbra, 1993, pp. 216-7.

[6] Cfr. J. Baptista Machado, ob. cit., pp. 194-9.

[7] Oliveira Ascensão, ob. cit., p. 428.

[8] Oliveira Ascensão, ob. cit., pp. 429-30.

[9] Cfr. F.J. Pinto Bronze, ob. cit., p. 883.

[10] Ver J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1236.

[11] Jorge Miranda, Manual, II, Coimbra, 2003, pp. 270 e 274.

[12] Jorge Bacelar Gouveia, Manual, cit., pp. 668-9.

[13] Oliveira Ascensão, ob. cit., pp. 426-7.

[14] Ibidem.

[15] Jorge Bacelar Gouveia, Manual, cit., pp. 668-9.

[16] A. Castanheira Neves, ob. cit., pp. 207-8, e J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1236.

[17] Ver A. Castanheira Neves, ob. cit., pp. 207-8 e 213.

[18] A. Castanheira Neves, ob. cit., pp. 216 e 224.

[19] Jorge Miranda, Manual, II, cit., p. 270.

[20] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1236.

[21] Neste preciso sentido, J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1236.

[22] Conceitos indeterminados extraídos, respectivamente, dos artigos 9º, 81º, 103º e 121º CRP.

[23] Cfr. Jorge Miranda, Manual, II, cit., p. 262.

[24] José Manuel Cardoso da Costa, “A jurisdição constitucional em Portugal”, Coimbra, 1992,  p. 67.

[25] Em Portugal existe, à luz da Constituição de 1976, um controlo “misto-complexo” (Gomes Canotilho). Assim, prosseguindo com uma tradição que vem da Constituição de 1911 (primeira constituição republicana), está consagrado o controlo concreto e difuso (de matriz norte-americana), cabendo a todos os tribunais controlar a conformidade constitucional das normas, não devendo aplicar aquelas que julgue inconstitucionais (art. 204º CRP). Das decisões dos tribunais ordinários em matéria de inconstitucionalidade poderá haver recurso para o Tribunal Constitucional, nos casos e nos termos previstos na Constituição e na Lei Orgânica do Tribunal Constitucional. Para além deste controlo concreto e difuso, existe ainda um controlo abstracto das normas, preventivo e sucessivo, e o controlo da inconstitucionalidade por omissão, a cargo do Tribunal Constitucional.

[26] Jorge Miranda propõe, como meio de revitalização deste tipo de controlo, a possibilidade de vir a admitir-se uma segunda via de subida ao Tribunal Constitucional, difusa e concreta. Pereira da Silva, por seu turno, manifesta a sua perplexidade pelo facto de o problema das omissões legislativas se encontrar excluído do controlo concreto e difuso. Como se verá mais adiante (vide infra ponto 4.7.), esta possibilidade, ainda que não consagrada constitucionalmente, de certa forma já é uma realidade na nossa prática jurisprudencial.

Ver Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo VI, Coimbra, 2001, p. 294, e Jorge Pereira da Silva, Dever de legislar e protecção jurisdicional contra omissões legislativas. Contributo para uma Teoria da Inconstitucionalidade por Omissão, Lisboa, 2003, p. 17.

[27] José Manuel Cardoso da Costa, “A jurisdição”, cit., p. 32.

[28] Neste exacto sentido, J. Pereira da Silva, ob. cit., p. 15.

[29] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., pp. 1033-35; Jorge Miranda, “Inconstitucionalidade por omissão”, in Estudos sobre a Constituição, 1º vol., Lisboa, 1977, pp. 341-2 e, do mesmo autor, Manual de Direito Constitucional, tomo VI, Coimbra, 2001, p. 283; Jorge Bacelar Gouveia, Manual, cit., p. 671; Luís Nunes de Almeida, “El Tribunal Constitucional y el contenido, vinculatoriedad y efectos de sus decisiones”, in Revista de Estudios Politicos, nº 60-61, abril-setembro, 1988, p. 867.

[30] L. Nunes de Almeida, “El Tribunal Constitucional”, cit., p. 865; Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., pp. 1034-5 e 1172-3; Jorge Miranda, “Inconstitucionalidade”, cit., pp. 333 e 335 e, do mesmo autor, Manual, VI, cit., p. 287 e Manual, II, cit., pp. 244 e ss, em especial a partir da p. 251; Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 381-2; Pereira da Silva, ob. cit., p. 23.

[31] Ver J. Pereira da Silva, ob. cit., p. 14.

[32] Neste preciso sentido, Jorge Miranda, “Inconstitucionalidade”, cit., pp. 341-2 e, do mesmo autor, Manual, VI, cit., p. 284, e J. C. Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 2001, p. 380.

[33] Jorge Miranda, Manual, VI, cit., p. 287. Ver ainda, Manual, II, cit., pp. 255-6. Uma posição próxima da de Jorge Miranda é a adoptada por J. Pereira da Silva, ob. cit., pp. 31 e 33.

 Cfr. J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 383; J. Pereira da Silva, ob. cit., pp. 21-3.

[34] J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1993, p. 1048.

[35] Jorge Miranda, Manual, VI, cit., p. 285.

[36] J. Pereira da Silva, ob. cit., pp. 27.

[37] J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 1047. Ver ainda J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1033, e J. Pereira da Silva, ob. cit., pp. 11 e 58.

[38] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1033. Num sentido idêntico, Jorge Miranda, Manual, VI, cit., p. 286; J. Pereira da Silva, ob. cit., pp. 11-2.

[39] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., pp. 1036-7, e J. Pereira da Silva, ob. cit., p. 11.

[40] Ver J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 1047.

[41] Como alertam Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., p. 1047), esta hipótese “só adquire autonomia quando as normas constitucionais não se configurem, juridicamente, como ordens concretas de legislar ou como imposições permanentes e concretas”.

[42] J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 1047 e J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1035.

[43] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1035.

[44] J. Pereira da Silva, ob. cit., p. 59.

[45] J. Pereira da Silva, ob. cit., pp. 59 e 66.

[46] Ver J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pp. 1047-48.

[47] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1037.

[48] Cfr. J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 382.

[49] Jorge Miranda, “Inconstitucionalidade”, cit., pp. 345-6 e, do mesmo autor, Manual, VI, cit., pp. 287-8.

[50] Vide infra ponto 3.6..

[51] Havendo quem utilize ou refira a existência de uma diferente terminologia para identificar a mesma dicotomia. Mais concretamente, fala-se em omissões absolutas e relativas. Na doutrina nacional, veja-se José Manuel Cardoso da Costa, “La justice constitutionnelle dans le cadre des pouvoirs de l’État (Rapport Général)”, in Annuaire International de Justice Constitutionnelle, III, 1987, p. 22, e J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1035.

[52] Sobre a omissão parcial ver, entre outros, J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., pp. 1035-6; Jorge Miranda, Manual, VI, cit., pp. 286 e ss..

[53] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1036. Ver ainda, Jorge Miranda, Manual, VI, cit., p. 288.

[54] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1035.

[55] Cfr. Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade. Os autores, os conteúdos e os efeitos da decisão da inconstitucionalidade da lei, Lisboa, 1999, p. 513.

[56] Rui Medeiros, ob. cit., p. 520.

[57] Ver L. Nunes de Almeida, “El Tribunal”, cit., p. 867, e, do mesmo autor, “Le Tribunal”, cit., pp. 202-3; J. M. Cardoso da Costa, “La justice”, cit., p. 23; J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 1050; Jorge Miranda, Manual, VI, cit., p. 289, e, do mesmo autor, Manual, II, cit., pp. 254-5; J.C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 382, nota 30; J. Pereira da Silva, ob. cit., pp. 17-8.

[58] Vejam-se, a este propósito, os pontos 3.5. e 4.2..

[59] Jorge Miranda, Manual, VI, cit., p. 290.

[60] Cfr. J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pp. 1048-9;

[61] Ver Jorge Bacelar Gouveia, Anotação ao Acórdão nº 36/90 do Tribunal Constitucional, in O Direito, Ano 122º, II (abril-junho), 1990, p. 423.

[62] O artigo 146º (Competência como garante do cumprimento da Constituição), entretanto revogado, dispunha o seguinte: “Na qualidade de garante do cumprimento da Constituição, compete ao Conselho da Revolução:

a) (…)

b) Velar pela emissão das medidas necessárias ao cumprimento das normas constitucionais, podendo para o efeito formular recomendações;

c) (…)”.

            Por sua vez, o artigo 279º (Inconstitucionalidade por omissão) dispunha nos seguintes termos: “Quando a Constituição não estiver a ser cumprida por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais, o Conselho da Revolução poderá recomendar aos órgãos legislativos competentes que as emitam em tempo razoável”.

[63] Sobre o papel do Conselho da Revolução enquanto órgão de controlo da constitucionalidade por omissão, ver Armindo Ribeiro Mendes, “El Consejo de la Revolución y la Comisión Constitucional. El control de la constitucionalidad de las leyes (1976-1983)”, in Revista de Estudios Politicos, nº 60-61, abril-setembro, 1988, pp. 844 e 848 (este autor informa que o Conselho da Revolução usou parcimoniosamente a sua faculdade de formular recomendações,  apenas o tendo feito duas vezes durante a vigência do texto constitucional originário: uma para recomendar à Assembleia da República que emitisse as medidas legislativas necessárias para tornar exequível a norma constitucional que proibia as organizações de ideologia fascista, e a outra para recomendar ao governo que adoptasse as medidas legislativas necessárias relativas ao trabalho doméstico. Mais informa o autor que houve mais três iniciativas de fiscalização que, todavia, não deram lugar a recomendações. Ver ainda J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 1049, e José Manuel Cardoso da Costa, “El Tribunal Constitucional português: origen histórico”, in Revista de Estudios Politicos, nº 60-61, abril-setembro, 1988, p. 837.

[64] Jorge Miranda, “Inconstitucionalidade”, cit., pp. 351-2. Ver ainda, do mesmo autor, Manual, VI, cit., p. 280.

[65] Mas não totalmente esquecida. Assim, Pereira da Silva (ob. cit., p. 13) sustenta que o objectivo do apuramento da desconformidade constitucional pressuposta na omissão legislativa “não é a conduta omissiva em si mesma, mas a situação objectivamente registada na ordem jurídica em consequência dessa conduta – o sentido normativo implícito que se deduz do silêncio e que atenta contra a Constituição”.

[66] Ver L. Nunes de Almeida, “El Tribunal”, cit., p. 876; Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade. Os autores, os conteúdos e os efeitos da decisão da inconstitucionalidade da lei, Lisboa, 1999, pp. 494-5 e 514; J.J. Gomes Canotilho, “A concretização da constituição pelo legislador e pelo Tribunal Constitucional”, in Nos dez anos da Constituição, Lisboa, 1986, p. 353; J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pp. 1048-9; Jorge Miranda, “Inconstitucionalidade”, cit., pp. 346 e 351 e, do mesmo autor, Manual, VI, cit., p. 283; Vital Moreira, “Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: legitimidade e limites da justiça constitucional”, in Legitimidade e legitimação da Justiça Constitucional (Colóquio no 10º Aniversário do Tribunal Constitucional – Lisboa, 28 e 29 de maio de 1993), Coimbra, 1995, pp. 195 e 197; José Manuel Cardoso da Costa, “Algumas reflexões em torno da justiça constitucional”, in Perspectivas do Direito no início do século XXI (Studia Iuridica – Colloquia, nº 3), Coimbra, p. 121; J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 384.

[67] Cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 891.

[68] Neste preciso sentido, Nunes de Almeida, “El Tribunal”, cit, p. 875.

[69] Vital Moreira, ob. cit., p. 196.

[70] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., pp. 1310-11, e Jorge Miranda, “Inconstitucionalidade”, cit., p. 336. Perfilha ainda esta ideia Rui Medeiros, ob. cit., p. 497.

[71] Nunes de Almeida fala em decisões de mero reconhecimento ou meramente verificativas (“El Tribunal”, cit, pp. 875 e 882); Vital Moreira, ob. cit., p. 197 (refere que as decisões de inconstitucionalidade por omissão são de «mero reconhecimento» da inconstitucionalidade).

[72] J. M. Cardoso da Costa, “Algumas reflexões”, cit., p. 123 e, do mesmo autor, “A jurisdição constitucional em Portugal”, cit., p. 62.

[73] Salientam a eficácia meramente declarativa das decisões proferidas em sede de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, entre outros, Nunes de Almeida, “El Tribunal”, cit, p. 875.

[74] Assim o entende Nunes de Almeida, “El Tribunal”, cit, p. 876.

[75] J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pp. 1049, Vital Moreira, ob. cit., p. 197, e Nunes de Almeida, “El Tribunal”, cit, p. 882 e, do mesmo autor, “Le Tribunal”, cit., p. 213.

[76] Vital Moreira, ob. cit., p. 198.

[77] J. M. Cardoso da Costa, “A jurisdição constitucional em Portugal”, cit., p. 62.

[78] Cfr. Nunes de Almeida, “El Tribunal”, cit., p. 882 e, do mesmo autor, “Le Tribunal”, cit., p. 209.

[79] J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pp. 1049.

[80] Cfr. J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 1049.

[81] Vital Moreira, ob. cit., pp. 197-8.

[82] Controvertida na doutrina portuguesa tem sido apenas a questão da sua relação com o direito da União Europeia. Sobre o tema dispõe hoje expressamente o artigo 8º, nº 4, introduzido pela Lei Constitucional nº 1/2004 (6ª revisão constitucional), nos termos do qual: “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”. Trata-se, porém, de questão sobre a qual o Tribunal Constitucional nunca foi (antes ou depois da introdução na Constituição do preceito supra referido) expressamente chamado a pronunciar-se.

[83] Não apenas no sentido de que não podem, pelo seu conteúdo, contrariar princípios ou preceitos constitucionais, mas também no sentido de que hão-de ser praticados por quem, nos termos da Constituição, possui competência para o efeito e hão-de observar a forma e seguir o processo constitucionalmente previstos.

[84] Assim, nomeadamente, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 217

[85] Nas palavras de Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1013-1014 entende-se por Constituição material “o conjunto de fins e valores constitutivos do princípio efectivo da unidade e permanência de um ordenamento jurídico (dimensão objectiva), e o conjunto de forças políticas e sociais (dimensão subjectiva) que exprimem esses fins ou valores, assegurando a estes a respectiva prossecução e concretização, algumas vezes para além da própria constituição escrita. Por sua vez Jorge Miranda (Manual, cit., p. 29) define-a como “o acervo de princípios fundamentais estruturantes e caracterizantes de cada Constituição em sentido material positivo; a manifestação directa e imediata de uma ideia de Direito que se impõe numa dada colectividade (seja pelo consentimento, seja pela adesão passiva); a resultante primária do exercício do poder constituinte material; e, em democracia, a expressão máxima da vontade popular livremente formada”.

[86] Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., pp. 1107-8.

[87] Jorge Miranda, Manual, cit.,  pp. 299-303.

[88] Ob. cit., pp. 302-303.

[89] Assim, e independentemente do seu carácter geral e abstracto, cabem dentro do conceito de norma, tal como este vem sendo concretizado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, não apenas os actos legislativos (leis, decretos-lei e decretos legislativos regionais), mas quaisquer outros actos normativos do poder público, tais como regulamentos, provindos do Estado, de institutos públicos, de associações públicas ou de entes públicos territoriais distintos do Estado, como sejam as regiões autónomas ou as autarquias locais, desde que, como se refere no texto, contenham uma regra de conduta para os particulares ou para a administração, um critério de decisão para esta última ou para o juiz ou, em geral, um padrão de valoração de comportamento. Fora do conceito de norma ficam, para este efeito, os actos políticos, os actos administrativos, as decisões judiciais e os actos jurídico-privados, tais como os negócios jurídicos.

[90] Nos termos do qual compete especificamente ao Tribunal Constitucional a função de “administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional”.

[91] Convirá aqui recordar que o sistema português de fiscalização concreta da constitucionalidade tem sido frequentemente designado como um “sistema misto”, que assenta num esquema de repartição de competências entre as diferentes instâncias e o Tribunal Constitucional. Não é, por um lado, um sistema, como o austríaco ou o alemão, onde, existindo também um Tribunal Constitucional, as instâncias não têm competência para se pronunciar sobre questões de constitucionalidade. Mas também não é, por outro lado, um sistema de judicial review, na medida em que as decisões dos tribunais da causa são recorríveis para um tribunal constitucional específico, exterior à jurisdição ordinária.

[92] Cf. mais recentemente, o Acórdão nº 474/2002, já disponível por via electrónica em www.tribunalconstitucional.pt, que refere a anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional - e, já antes, da própria Comissão Constitucional - nesta matéria.

[93] Assim, designadamente, para além do já citado Acórdão nº 474/2002, também o Acórdão nº 276/89.

[94] Igualmente disponível no endereço electrónico supra citado.

[95] Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra Editora, 1982, 332 e segs. e 481 e segs.

[96] Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, Coimbra Editora, 2001, 284 e segs.

[97] Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pp 380 e segs.).

[98] Houve ainda um processo, iniciado no sistema anterior à criação do Tribunal Constitucional, e que para este veio a transitar, em que foi proferido o Acórdão n.º 9/83. Nesta decisão, o Tribunal decidiu não tomar conhecimento do pedido, formulado pelo Conselho da Revolução, e mandar arquivar um processo transitado da Comissão Constitucional em que era solicitado parecer sobre a eventual existência de inconstitucionalidade por omissão.

[99] Situações que não constituindo típicos casos de inconstitucionalidade por omissão originam inconstitucionalidades de normas ou interpretações normativas que são susceptíveis de revelar casos de natureza análoga.

[100] Abrange os processos de fiscalização preventiva (artigos 278º e 279º da Constituição e 57º a 61º da Lei nº 28/82, de 15 de novembro (LTC)), de fiscalização abstracta sucessiva (artigos 281º e 282º da Constituição e 62º a 66º da LTC) e de fiscalização concreta da constitucionalidade (artigos 280º da Constituição e 69º a 85º da LTC).

[101] Cf. ainda artigo 70º, nº 1, alíneas a), b), g) e h), da LTC.

[102] O Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, tenham legitimidade para dela recorrerem (artigo 72º, nº1, alíneas a) e b), da LTC), em regra, as partes vencidas e os terceiros directamente prejudicados pela decisão.

[103] Quanto ao reflexo destes casos na doutrina ver supra ponto 1.2.6..

[104]   Neste aresto o Tribunal Constitucional decidiu:

a)      Julgar inconstitucional o artigo 40º, nº 1, do Decreto-Lei nº 558/99, de 17 de dezembro, enquanto revoga os artigos do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de abril, que prevêem a participação dos trabalhadores nos órgãos sociais de empresas públicas, por violação do disposto nos artigos 54º, nº 5, alínea f), e 89º da Constituição da República Portuguesa;

b)    Julgar inconstitucional o artigo 5º, nº 1, do Decreto-Lei nº 276/2000, de 10 de novembro, enquanto aprova os novos estatutos da SATA, S. A. e revoga os anteriores, na parte em que prevêem a participação dos trabalhadores nos órgãos sociais desta empresa pública, por violação do disposto nos artigos 54º, nº 5, alínea f), e 89º da Constituição da República Portuguesa.

 

[105]   Este acórdão foi tirado por maioria, com 2 votos de vencido.

[106] Neste acórdão o Tribunal decidiu:

«i) Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos n.ºs 25.º, 26.º e 32.º, nº 4, da Constituição, a norma constante do artigo 172.º, nº 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de possibilitar, sem autorização do juiz, a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita;

ii) consequencialmente, julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, nº 4, da Constituição, a norma constante do artigo 126º, nºs 1, 2 alíneas a) e c) e 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada em termos de considerar válida e, por conseguinte, susceptível de ulterior utilização e valoração a prova obtida através da colheita realizada nos moldes descritos na alínea anterior.»

 

[107] “[…] Também o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar é consagrado à partida no nº 1 do artigo 25º da Constituição sem qualquer limite e, no entanto, o Tribunal Constitucional admitiu que em hipóteses de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova (e, portanto, de conflito com o interesse na prossecução penal e com o princípio da verdade material) pode haver intercepção e gravação de comunicações telefónicas (Acórdão nº 7/87, Acórdãos cit., 9, pp. 7 ss., 35; cf., de modo semelhante, quanto ao uso, não consentido pelo visado, de fotografia como prova em processo de divórcio, o Acórdão nº 263/97, Diário da República, II Série, de 1-7-1997, pp. 7567, 7569). […] Também o direito de acesso a cargos públicos electivos (artigo 50º, nº 1 da Constituição) era, antes da revisão de 1989, consagrado sem limites à partida além dos que resultavam de outros preceitos constitucionais directamente para os magistrados judiciais (artigo 221º, nº 3, hoje 216º, nº 3) ou através de reservas de lei para os militares e agentes militarizados (artigo 270º) e para as eleições para a Assembleia da República (artigo 153º, hoje 150º). Mas nos acórdãos nºs 225/85 e 244/85 (Acórdãos cit., 6, pp.793 ss., 798-801 e pp. 211 ss., 217-228) o Tribunal admitiu restrições legais para os funcionários judiciais (em vista do interesse na separação e independência das funções autárquica e judicial) e para os funcionários e agentes da administração autárquica directa da mesma autarquia (em vista do interesse na independência e imparcialidade do poder local). Em ambos os casos as restrições expressas na Constituição ou resultantes das reservas de lei em certas matérias fundaram argumentos no sentido da admissibilidade de outras restrições, em hipóteses de conflito de direitos ou interesses constitucionalmente reconhecidos.[…]”

[108] O artigo 36º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Família, casamento e filiação”, determina no seu n.º 4 que: “Os filhos nascidos fora do casamento, não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação”.

[109]   Entendeu-se ainda neste aresto que não se podia objectar que o artigo 1793º do Código Civil implica, na medida em que reportado aos efeitos do divórcio, o status institucional adquirido pelo casamento, porque a valorização meramente formal desse argumento operaria uma discriminação reflexa quanto aos filhos nascidos fora do matrimónio, pois o seu interesse na manutenção da residência familiar não poderia ser atendido sempre que o poder paternal fosse atribuído ao proge­nitor não proprietário da casa de morada da família.

 

[110] O acórdão n.º 359/91, de 9 de julho de 1991 (publicado no Diário da República, I Série, de 15 de outubro de 1991), tirado em plenário, por maioria, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de abril de 1987 (publicado no Diário da República, I Série, de 28 de maio de 1987), por força da violação do princípio da não discriminação dos filhos contido no artigo 36º, n.º 4, da Constituição.




 



Mapa do site | Contactos | Informação legal

Peças Processuais - Fax: [351] 213 472 105

Encarregado de proteção de dados do Tribunal Constitucional

© Tribunal Constitucional · Todos os direitos reservados.