ACÓRDÃO Nº 192/2022
Processo n.º 955/2020
3ª Secção
Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários («CMVM») e recorrido A., foi interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei Orgânica n.º 28/82, de 15 de novembro, adiante designada «LTC»), de dois acórdãos daquele Tribunal. O primeiro, de 27 de fevereiro de 2020, julgou inadmissível o recurso de revista interposto para aquele Tribunal pela ora recorrente. O segundo, de 29 de setembro de 2020, indeferiu a reclamação apresentada pela CMVM, mantendo aquela decisão.
Estas decisões foram proferidas no âmbito de um incidente de quebra de segredo profissional, requerido pelo ora recorrido contra a CMVM, que correu por apenso a uma ação cível com a forma de processo comum. O Tribunal da Relação de Lisboa pronunciou-se em primeira instância sobre o incidente, julgando-o procedente, tendo a recorrente interposto recurso de apelação deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça.
O recurso de apelação não foi admitido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que considerou, por um lado, que o acórdão da Relação apenas poderia ser objeto de recurso de revista, ao abrigo dos artigos 671.º a 673.º do Código de Processo Civil (doravante CPC, aplicável aos autos por se tratar de ação cível), e, por outro, que a revista também não poderia ser admitida «por estar em causa uma decisão sobre um incidente e a Recorrente não ter invocado fundamento passível de ser reconduzido ao disposto no nº 2 do artigo 671.º do C.P.C.»
A CMVM reclamou desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos previstos no artigo 643.º, n.º 1, do CPC, tendo a reclamação sido julgada procedente e o recurso admitido como apelação, uma vez que «o incidente [sob apreciação] é da competência decisória em 1ª instância do tribunal da Relação: art. 135º, 3, CPPenal, por força da remissão do art. 417º, 4, do CPC» e que «o recurso de apelação interposto observa os requisitos de impugnação previstos nos arts. 644º, 1, a), e 629.º, 1, CPC (…) não tendo que ser aferida a sua admissibilidade como revista de acordo com os arts. 671º e ss do CPC.»
Requisitado o processo principal nos termos previstos no artigo 643.º, n.º 6, do CPC, o coletivo de juízes do Supremo Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar-se sobre o objeto do recurso e, tendo entendido que deveria começar por verificar, a título de questão prévia, se se encontravam reunidos respetivos pressupostos de admissibilidade, concluiu em sentido negativo, julgando findo o recurso. Foi, essencialmente, sobre esta questão que versaram os acórdãos de que vem interposto o presente recurso.
2. No acórdão de 27 de fevereiro de 2020, ficando vencido o relator originário, a maioria julgou inadmissível o recurso, essencialmente, pelas seguintes razões:
«Porque as questões postas na revista dependem, logicamente, da resolução do problema relativo à admissibilidade do recurso, há que sobre a mesma conhecer previamente(…).
Começamos esta apreciação fazendo apelo ao Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 5-7-2018, Proc. 842/11.1TBVNO-B.E1-A.S1, em www.dgsi.pt, do qual se retira o seguinte enxerto: “ A delimitação do recurso de revista é regulada pelo art. 671º do CPC, norma da qual não deriva a possibilidade de ser impugnada por essa via o acórdão da Relação proferido no âmbito de um qualquer incidente da instância, mas apenas de acórdão da Relação que conheça do mérito da causa ou ponha termo total ou parcial ao processo.
Não existe motivo algum para excecionar desse regime o incidente de quebra de sigilo, como, aliás, tem sido uniformemente decidido por este mesmo Supremo Tribunal de Justiça, sendo disso exemplos os Acs. de 17-6-10, CJ, t. II, p. 113 e de 12-7-05, 05B1901, www.dgsi.pt. O mesmo se decidiu também, num caso que foi suscitado no âmbito de processo penal, na decisão sumária de 16-10-14, 1233/13, www.dgsi.pt.
Efetivamente a quebra de sigilo requerida no âmbito de qualquer processo é requerida perante a Relação, nos termos do art. 417º, nº 4, do CPC, por via do regime previsto no art. 135º do CPP.
Mas não passa de um incidente inscrito no âmbito da instrução da causa, não havendo motivo algum passa assimilar a respetiva decisão a alguma das previstas no art. 671º, nº 1, do CPC.
Por outro lado, não existe qualquer base constitucional para a exigibilidade de um duplo grau de jurisdição nesta matéria, possibilidade que apenas está prescrita relativamente ao processo penal que nenhuma relação tem com o caso concreto.”
(…)
Alega o recorrente que O Tribunal da Relação funcionou como primeira instância de decisão quanto à quebra do segredo profissional da CMVM, pondo termo ao incidente. – cfr. conclusão 2. –
Dispõe o art. 644º, nº1, al. a) que 1 - Cabe recurso de apelação: a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente.
Fazendo apelo à referida norma, constata-se que a decisão recorrida não pode ser tida como uma decisão proferida em 1ª instância pela Relação, já que ela não possui as aludidas características por resultar de um incidente levantado no âmbito de um processo comum a correr termos na 1ª instancia e que, por disposição processual especial, corre termos na 2ª instancia para efeitos de decisão – cfr. art. 135º nº 3 do Código de Processo Penal e nº4, do art. 417º, do Código de Processo Civil.
Com efeito, o incidente em questão está regulado nos nºs 2 e 3 do referido artº135.º, distinguindo dois momentos de tramitação que respondem a duas questões distintas: i) a determinação da legitimidade da escusa; ii) entendendo-se que a escusa é legítima, o levantamento (oficioso ou a requerimento) do incidente com a intervenção do tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado.
Ou seja, a questão da legitimidade da invocação do segredo é da competência da autoridade judicial onde o incidente surgiu. A decisão sobre a quebra do segredo é da competência do tribunal que lhe for superior. A quebra do segredo surge, assim, na sequência de uma ponderação que começa na 1ª instancia e termina na 2ª instância.
As decisões que a Relação profere em primeira instância são as decisões em que a Relação funciona como tribunal de primeira instância, ou seja, quando exerce uma competência que por regra é cometida à primeira instância e excecionalmente, designadamente em atenção à qualidade do arguido ou de uma parte, se atribui à Relação.
Na realidade, no caso em apreço, estamos perante um incidente de estrutura especial, que não segue as regras normais de competência jurisdicional, por atribuir competência para a sua decisão ao tribunal que seria, segundo a regra geral, competente para a apreciação do recurso sobre ela.
“Num quadro de conflito de interesses que se suscita em sede de oferecimento e de produção de prova, cuja resolução de modo célere se impõe em termos instrumentais à decisão da causa, a lei, ao estruturar o incidente em análise, pretendeu que da respetiva decisão não houvesse recurso. Para tanto, em postura de salvaguarda do interesse das partes numa melhor apreciação do objeto do incidente, atribuiu a lei a competência para a respetiva decisão ao tribunal que seria competente para conhecer da matéria em via de recurso se o objeto do incidente tivesse sido decidido na instância em que foi suscitado ou implementado.
Assim, neste peculiar incidente, sob a necessidade da celeridade da decisão e da natureza meramente instrumental dos interesses em conflito, consignou-se pela referida via implícita, a proibição da instância de recurso, contrabalançada pela atribuição da competência decisória ao tribunal hierarquicamente superior àquele onde o incidente foi suscitado.
Assim, resulta da estrutura do incidente em causa que a Relação decide em definitivo o respetivo objeto, ou seja, da decisão por ela proferida não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”3 [3Neste sentido o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 12-[7]-2005, Proc. 05B1901, em www.dgsi.pt].»
Nesta conformidade, não sendo admissível revista, fica prejudicada a apreciação de mérito suscitada.»
3. Inconformada com esta decisão, a ora recorrente arguiu a respetiva nulidade, invocando inter alia a inconstitucionalidade da «interpretação das normas contidas no artigo 3.º, n.ºs 1 e 3, em conjugação com os artigos 643.º, n.º 4, e 652.º, nº 3, todos do CPC, no sentido de admitir que o Supremo Tribunal de Justiça altere a decisão anterior transitada em julgado dentro do processo sem dar à recorrente oportunidade de se pronunciar antes de proferir nova decisão sobre admissibilidade do recurso após decisão anterior de deferimento da Reclamação, por violação do direito a um processo equitativo (…) no qual se inclui o direito a ser ouvido ou direito ao contraditório.»
4. A arguição de nulidade foi indeferida pelo acórdão recorrido de 29 de setembro de 2020, tendo o Tribunal a quo concluído o seguinte:
«i) da ofensa de caso julgado.
No CPCivil de 1939 a impugnação do despacho de rejeição do recurso, era passível de um recurso de queixa a interpor para o Presidente do Tribunal hierarquicamente superior, o qual passou a ser extensível ao despacho que retivesse o recurso, cfr artigo 689º daquele diploma legal, cfr J.A.Reis, Código De Processo Civil Anotado, Volume V, reimpressão, 340/351.
Posteriormente, com a aprovação do CPCivil de 1961, eliminou-se aquela terminologia, passando a designar-se reclamação, e se o Presidente indeferisse a reclamação, a sua decisão era definitiva, artigo 689º, 11º2; se a deferisse, o processo baixava à instância recorrida para que fosse admitido o recurso ou mandasse subir o recurso retido, embora aquele despacho não fizesse caso julgado formal, podendo o Tribunal de recurso decidir em sentido contrário, artigo 689º, nº2.
Na reforma de 2007, manteve-se o nomen juris de reclamação, mas estruturalmente passou a ter uma configuração de recurso: a competência para o conhecimento da reclamação passou a impender sobre o Relator do Tribunal que seria competente para julgar o recurso, artigo 688º, nos 3 e 4; se o Relator admitisse o recurso, solicitava o processo ao Tribunal recorrido, podendo subsequentemente a conferência não o admitir, por sugestão dos Adjuntos, artigo 708º; se o Relator, por despacho singular, não admitisse o recurso, a parte prejudicada por esse despacho podia reclamar para a conferência, nos termos do artigo 700º, nº3, cfr Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, 109/113.
O CPCivil de 2013 manteve a reclamação com a mesma estrutura de recurso, cfr artigo 643º
Assim.
Efetivamente, à partida, a decisão final proferida em sede de intercorrência de reclamação de não recebimento de recurso, não é suscetível a se de impugnação recursiva, o que parece defluir do normativo inserto no artigo 643º, nos 3 e 4 do CPCivil: se o Relator, por despacho singular mantiver a decisão de não admissão do recurso, poderá haver reclamação para a Conferência, a qual terá a última palavra; no caso de o Relator deferir a reclamação, o processo principal é requisitado, podendo posteriormente a conferência não o admitir, por sugestão dos Adjuntos, nos termos do artigo 658º do mesmo diploma, cfr Amâncio Ferreira, Manual Dos Recursos Em Processo Civil, 8a edição, 94/98.
Esta estrutura de recurso que ora é atribuída à reclamação, porquanto a mesma é julgada pelo Coletivo que julgaria o recurso se o mesmo tivesse sido admitido, obsta à recorribilidade da decisão, sem prejuízo de poder haver recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 75º-A da LTC (…).
Daqui decorre, com mediana clareza, que o despacho singular do Relator produzido em sede de reclamação não faz caso julgado, porquanto a conferência terá sempre a última palavra; nem poderia ser de outro modo, já que estamos em sede colegial e não em sede singular, artigos 48º e 67º da LOSJ e 209º, nº3 da CRPortuguesa, situação esta que não pode, nem podia ser ignorada pelo Recorrente, já que faz parte das regras básicas do sistema processual aplicável.
Improcede, neste particular, a reclamação.
ii) Da nulidade
No que tange à apontada nulidade, por a Conferência não ter ouvido o Recorrente previamente ao Acórdão em que decidiu não conhecer do objeto do recurso, carece de razão o Reclamante.
Esta questão prende-se com a anterior, sendo certo que a mesma sempre constituiu a vexata quaestio dos autos, pois não nos podemos esquecer que os mesmos foram introduzidos pela reclamação deduzida nos termos do artigo 643º do CPCivil.
Se no bom rigor dos princípios, caso o recurso tivesse sido admitido pelo segundo grau, o não conhecimento do seu objeto deveria ser precedido pela audição das partes nos termos do artigo 655º, no 1 do CPCivil, a circunstância de a impugnação recursória ter sido alvo de um despacho de não admissão pelo Tribunal da Relação e em reclamação, neste Supremo Tribunal, ter havido uma decisão singular a admiti-lo, poder-se-á admitir que a parte deveria pressupor que tal decisão produzida a solo pelo Relator teria carácter provisório, pois poderia ser «sancionada» pela maioria como veio a acontecer.
Sendo, como é, colegial a decisão, não se poderá falar de se ter coatado ao Recorrente a possibilidade de se pronunciar sobre a possibilidade de se não conhecer do objeto do recurso, uma vez que a parte se pronunciou acerca dessa temática ao longo da reclamação e a decisão aí produzida era naturalmente precária, o que é do conhecimento das partes.
Não se vislumbra qualquer violação do artigo 20º da CRPortuguesa, uma vez que a pretensão do Recorrente foi objeto de apreciação por parte do Tribunal, sendo a questão da inadmissibilidade de recurso questão diversa, a qual tem a ver com o poder de conformação do legislador em sede de recorribilidade.
Indefere-se, pois, a reclamação.»
5. A recorrente interpôs recurso de ambos os referidos arestos para o Tribunal Constitucional, identificando as normas cuja constitucionalidade pretende ver apreciada nos seguintes termos:
«IV. Das normas aplicadas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada
80. As normas aplicadas pelo Supremo Tribunal de Justiça na Decisão recorrida que se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie são as seguintes:
b. Artigo 135.º, n.ºs 3 e 4 (aplicável ex vi n.º 4 do artigo 417.º do CPC) – na dimensão interpretativa segundo a qual a decisão do Tribunal da Relação que quebra o segredo profissional invocado nos termos do disposto no artigo 135.º é irrecorrível, por violação do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.
c. Artigo 135.º, n.º 4 (aplicável ex vi n.º 4 do artigo 417.º do CPC) – na dimensão interpretativa segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar o acesso a elementos e/ou documentos abrangidos pelo segredo profissional perante o Tribunal de 1.ª instância, o tribunal superior pode não permitir uma entidade não dotada de organismo representativo da profissão de exercer o princípio do contraditório e os direitos de defesa constitucionalmente garantidos no processo/incidente de quebra de segredo profissional em que é requerida, simultaneamente não se admitindo o recurso da decisão proferida, por violação do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.
d. Artigo 135.º, n.º 4 (aplicável ex vi n.º 4 do artigo 417.º do CPC) – na dimensão interpretativa segundo a qual ocorre proibição implícita de recurso da decisão proferida pelo tribunal superior, que decide o incidente de quebra do segredo profissional, por violação do princípio da reserva de lei restritiva, previsto no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, conjugado com o consignado no artigo 20.º (direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva), ambos da Constituição da República Portuguesa.
e. Artigo 135.º, n.º 4 (aplicável ex vi n.º 4 do artigo 417.º do CPC) – na dimensão interpretativa segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar o acesso a elementos e/ou documentos abrangidos pelo segredo profissional perante o Tribunal de 1.ª instância, o tribunal superior não permite que uma entidade não dotada de organismo representativo da profissão intervenha, para tutela dos direitos salvaguardados com a consagração do segredo profissional dessa entidade (designadamente, do direito à reserva da intimidade da vida privada), no processo/incidente de quebra de segredo profissional em que é requerida, simultaneamente não se admitindo o recurso da decisão proferida, por violação do princípio da reserva de lei restritiva, previsto no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
f. Artigo 643.º, n.º 4, do CPC, conjugada com as disposições normativas dos artigos 620.º e 652.º, n.º 3, do mesmo diploma – na dimensão interpretativa segundo a qual se permite ao Supremo Tribunal de Justiça, por sua iniciativa e em maioria de coletivo, contrariar decisão proferida por despacho singular do Relator sobre a admissibilidade da Reclamação apresentada pela CMVM, por violação do disposto no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, que consagra a garantia constitucional de segurança jurídica e de confiança no Estado de direito democrático, ínsitos no princípio de Estado de Direito Democrático.
g. Artigo 3.º, n.º 3, do CPC, conjugada com as disposições normativas dos artigos 620.º e 652.º, n.º 3, do mesmo diploma – na dimensão interpretativa segundo a qual não é concedido ao recorrente o direito de se pronunciar ou exercer o contraditório sobre decisão modificativa de admissibilidade do recurso proferida pelo mesmo Tribunal após decisão anterior de admissibilidade, por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa;
h. Artigo 643.º, n.º 4, do CPC, conjugada com as disposições normativas dos artigos 620.º e 652.º, n.º 3, do mesmo diploma – na dimensão interpretativa segundo a qual não é concedido ao recorrente o direito de se pronunciar ou exercer o contraditório sobre decisão modificativa de admissibilidade do recurso proferida pelo mesmo Tribunal após decisão anterior de admissibilidade, por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.»
6. Admitido o recurso de constitucionalidade, foi a recorrente notificada para produzir alegações através de despacho com o seguinte teor:
i) pelas interpretações enunciadas nas alíneas a. c. e e. do ponto 80. do requerimento de interposição na medida em que, dizendo respeito às condições em que o tribunal superior pode quebrar o dever de sigilo, não foram aplicadas em qualquer um dos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, como sua ratio decidendi.
ii) pelas interpretações enunciadas nas alíneas b. e d. do ponto 80. do requerimento de interposição, por não serem extraíveis nem terem sido extraídas pelo Tribunal recorrido do «artigo 135.º, n.ºs 3 e 4 [do Código de Processo Penal], (aplicável ex vi n.º 4 do artigo 417.º do CPC)], mas antes dos artigos 671.º, n.º 1, e 644.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Civil, o que, a par do fundamento indicado supra, torna ainda inidóneo, nesta parte, o objeto do recurso.»
7. A recorrente produziu alegações, apresentando, na parte que releva para a apreciação do presente recurso, as seguintes conclusões:
«III. Conclusões
Questão prévia
A. O objeto do recurso, talqualmente vertido no respetivo requerimento de interposição, deve ser conhecido na sua integralidade pelo Tribunal Constitucional, nada obstando ao conhecimento das conclusões constantes nos segmentos contidos nas alíneas a., b.. c.. d. e e. do ponto 80 do requerimento de interposição de recurso apresentado pela CMVM junto do Venerando Tribunal a quo. Senão vejamos:
B. As dimensões interpretativas enunciadas nas alíneas a. c. e e. do ponto 80 do requerimento de interposição de recurso encontram-se efetivamente vertidas no Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 27.02.2020, fazendo parte da sua ratio decidendi.
C. Tais dimensões interpretativas dizem respeito às condições de admissibilidade de recurso como instância processualmente adequada ao exercício do direito de defesa (ou de participação) em face do incidente de quebra do segredo profissional.
D. Na verdade, a oportunidade processual de defesa (ou de participação) da entidade titular do segredo profissional,, seja mediante o exercício do contraditório prévio à decisão sobre o incidente de quebra seja mediante a interposição de recurso de tal decisão, não pode deixar de ser analisada mediante a apreciação do regime jurídico do incidente de quebra de segredo profissional constante do artigo 135.°, n.os 2 e 3 do CPP, aplicável ex vi do artigo 417.°, n.° 4 do CPC.
E. Tal foi a análise precisamente encetada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão proferido em 27.02.2020, quando no mesmo se refere que "(...) o incidente em questão está regulado nos n°s 2 e 3 do referido art. 135, distinguindo dois momentos de tramitação que respondem a duas questões distintas: i) a determinação da legitimidade da escusa; ii) entendendo-se que a escusa é legítima, o levantamento (oficioso ou a requerimento) do incidente com a intervenção do tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado" (cfr. p. 26).
F. Assim, a decisão de inadmissibilidade do recurso da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa no sentido da quebra do segredo profissional da CMVM constante do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27.02.2020, tem como pressuposto (ratio decidendi) a específica natureza e a estrutura do incidente/processo de quebra do sigilo profissional, configurado no n.° 2, n.° 3 e n.° 4 do artigo 135.° do CPP (aplicável ex vi do 417.° CPC) e as interpretações que deles faz o Supremo Tribunal de Justiça: isto mesmo resulta de forma evidente das conclusões do próprio Acórdão em que se pode ler "[o] incidente de quebra do sigilo bancário [sic] é um incidente de estrutura especial" e "resulta da estrutura do incidente em causa que a Relação decide em definitivo o respetivo objeto
G. Atento o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.02.2020, é manifesto que as dimensões interpretativas contidas nas alíneas a., c. e e. do ponto 80 do requerimento de interposição de recurso não dizem respeito, salvo o devido respeito, exclusivamente às "condições em que o tribunal superior pode quebrar o dever de sigilo".
H. Ao invés, tendo em conta que o Supremo Tribunal de Justiça lança mão da estrutura do incidente de quebra de justiça para sustentar a irrecorribilidade da decisão de quebra proferida pelo Tribunal da Relação, é manifesto que as dimensões normativas constantes alíneas a., c. e e. do ponto 80 do requerimento de interposição de recurso ' foram aplicadas" no Acórdão de 27.02.2020.
I. Na verdade, a decisão que conclui pela inadmissibilidade da revista convoca como seu fundamento a norma constante do artigo 135 .°, n.os 3 e 4, do CPP - repare-se que para fundamentar a inadmissibilidade do recurso de revista o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça socorre-se da interpretação do incidente de quebra do segredo profissional como "um incidente de estrutura especial", concluindo que "da estrutura do incidente em causa que a Relação decide em definitivo o respetivo objeto, ou seja, da decisão por ela proferida não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça" (cfr. Acórdão proferido por este Tribunal em 27.02.2020, p. 27). Ora, tal interpretação só pode ter como fundamento as normas que desenham no ordenamento jurídico português a estrutura do incidente de quebra do segredo profissional - e estas constam do artigo 135.° do CPP.
J. Razão pela qual o Supremo Tribunal de Justiça, ao decidir nos termos em que decidiu, fundamentou a sua decisão (também) nas normas contidas no artigo 135.°, n.° 3 e 4 do CPP, interpretadas no sentido em que a entidade requerida não pode pronunciar-se no quadro do incidente nem pode a decisão recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça - o que, como bem se vê, viola elementares direitos constitucionais de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, já que na interpretação do Supremo Tribunal de Justiça a entidade requerida nada pode fazer.
K. Por conseguinte, deve o presente recurso ser conhecido pelo Tribunal Constitucional no segmento atinente à desconformidade constitucional das interpretações encetadas pelo Supremo Tribunal de Justiça no Douto Acórdão de 27.02.2020 relativamente ao artigo 135.°, n.° 2, n.° 3 e n.° 4 do CPP (aplicável ex vi do artigo 417.° do CPQ e enunciadas pela CMVM no seu requerimento de recurso, nas alíneas a., c. e e. do ponto 80.
L. Em segundo lugar, também as interpretações enunciadas nas alíneas b. e d. do ponto 80 do requerimento apresentado pela CMVM constituem fundamento da decisão tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça no sentido de negar a recorribilidade da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Senão vejamos:
M. O Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão proferido em 27.02.2020, decidiu pelo não reconhecimento do direito de recurso à CMVM precisamente com base na estrutura do incidente de quebra do sigilo profissional, perscrutando, para o efeito, a ratio subjacente ao artigo 135.°, n.° 3 e n.° 4 do CPP (aplicável ex vi n.° 4 do artigo 417.° do CPC).
N. O Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão proferido em 27.02.2020, fazendo suas as palavras constantes no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 12.05.2005, tomou a seguinte posição: "Num quadro de conflito de interesses que suscita em sede de oferecimento e de produção de prova, cuja resolução de modo célere se impõe em termos instrumentais à decisão da causa, a lei, ao estruturar o incidente em análise, pretendeu que da respetiva decisão não houvesse recurso. (...) resulta da estrutura do incidente em causa que a Relação decide em definitivo o respetivo objeto, ou seja, da decisão por ela proferida não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça" (cfr. p. 27).
O. Ao considerar inadmissível o recurso por parte da CMVM, por inseri-lo no regime do recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu pela inadmissibilidade de qualquer reapreciação judicial (em apelação ou em revista), arrimando a sua posição na estruturação do incidente/processo de. quebra do sigilo profissional, tal como ela surge delineada no artigo 135.°, n.° 3 e n.° 4 do CPP (aplicável ex vi n.° 4 do artigo 417.° do CPC).
P. A decisão do Supremo Tribunal de Justiça que negou a recorribilidade da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa assentou ou fundou-se nas dimensões interpretativas destacadas nas alíneas b. e d. do ponto 80 do requerimento de recurso artigo 135.°, n.° 3 e n.° 4 do CPP (aplicável ex vi n.° 4 do artigo 417.° do CPC), já que, ao fundamentar a irrecorribilidade da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa na estrutura especial do incidente de quebra do segredo, é manifesto que o Supremo Tribunal de Justiça mobilizou para a sua decisão as normas constantes do artigo 135.°, n.° 3 e 4, do CPP e que as interpretou exatamente no sentido que se suscitou.
Q. Aliás, as interpretações vertidas no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça jamais poderiam ser exclusivamente extraídas do artigo 671.°, n.° 1 e 644.°, n.° 1, alínea a) do CPC, na medida em que tais normas nada referem quanto ao incidente de quebra do segredo profissional: um juízo sobre a inadmissibilidade de recurso da decisão que quebra o segredo profissional assente - como é o caso do vertido no Acórdão recorrido - na estrutura especial do incidente em causa não prescinde (pelo contrário, exige) da mediação das normas que disciplinam tal "estrutura especial".
R. Termos em que, deve o presente recurso ser conhecido também pelo Tribunal Constitucional no segmento atinente à desconformidade constitucional das interpretações encetadas pelo Supremo Tribunal de Justiça no Douto Acórdão de 27.02.2020 relativamente ao artigo 135.°, n.° 3 e n.° 4 do CPP (aplicável ex vi do artigo 417.° do CPC) e enunciadas pela CMVM no seu requerimento de recurso, nas alíneas b. e d. do ponto 80.
[…]
Da interpretação do n.°4 do artigo 643.º do CPC constante dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça proferidos em 27.02.2020 e 29.09.2020
MMM. O presente recurso tem (também) por objeto obter decisão que conheça a desconformidade constitucional da interpretação levada a cabo pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão proferido em 29.09.2020 e no Acórdão proferido em 27.02.2020 quanto à norma contida no artigo 643.º, n.º 4, do CPC, conjugada com as disposições normativas dos artigos 620.º e 652.º, n.º 3, do mesmo diploma.
NNN. Segundo a interpretação da norma contida no artigo 643.º, n.º 4, do CPC, conjugada com as disposições normativas dos artigos 620.º e 652.º, n.º 3, feita na decisão ora recorrida, o Supremo Tribunal de Justiça pode, oficiosamente e em maioria de coletivo, contrariar decisão proferida por despacho singular do Relator sobre a admissibilidade da reclamação apresentada. Contudo, tal interpretação não se apresenta conforme à Constituição da República Portuguesa, colidindo com a garantia constitucional de segurança jurídica e de confiança no Estado de direito democrático, ínsitos no princípio de Estado de Direito Democrático. Com efeito:
OOO. Da interpretação conjugada dos artigos 643.°, n.° 4, e 652.°, n.° 3, ambos do CPC, decorre inequivocamente (i) que a modificabilidade da decisão singular proferida pelo Relator está limitada à iniciativa das partes que se considerem prejudicadas pelo despacho; (ii) que é definitiva a decisão singular proferida pelo Relator fora de tais casos.
PPP. Significa, portanto, que fora do regime previsto no artigo 652.°, n.° 3, do CPC, em conjugação com o disposto no artigo 643.° do mesmo diploma, a decisão singular do Relator assume a eficácia definitiva dentro do processo que lhe é conferida em obediência à regra processualmente imperativa da força de caso julgado formal (artigo 620.° do CPC).
QQQ. O despacho do Relator proferido nos termos do artigo 643.° do CPC tem força de caso julgado formal (620.° do CPC), assumindo definitividade dentro do processo salvo verificada a única hipótese legalmente prevista de modificabilidade do despacho singular do Relator (artigo 643.°, n.° 4, do CPC) prevista no artigo 652.°, n.° 3, do CPC.
RRR. A circunstância de o Supremo Tribunal de Justiça ter alterado (por maioria de Coletivo) a sua anterior decisão sobre a admissibilidade da Reclamação (proferida por despacho singular do Relator) acontece em manifesta violação da força de caso julgado formal, o que é manifestamente atentatória da confiança que a CMVM colocou na estabilidade da decisão proferida pelo Exm.° Senhor Juiz-Relator no sentido da admissibilidade da Reclamação por si apresentada, violando o princípio da confiança e da segurança jurídicas.
SSS. A atribuição de força de caso julgado à decisão de admissibilidade da Reclamação proferida por despacho do Relator - por aplicação conjugada dos artigos 620.° e 643.°, n.° 4, e pela ausência de verificação da iniciativa das partes prevista no artigo 652.°, n.° 3, todos do CPC - implica que, in casu, a questão não pudesse vir a ser apreciada diferentemente nelo mesmo Tribunal em desrespeito por uma decisão transitada e tornada definitiva no processo.
TTT. No quadro do artigo 2.° da CRP, não é constitucionalmente admissível a interpretação da norma contida no artigo 643.°, n.° 4, do CPC, em conjugação com os artigos 620.° e 652.°, n.° 3, do mesmo diploma, no sentido de permitir que o .Supremo Tribunal de Justiça, por sua iniciativa e em maioria de coletivo, venha contrariar decisão proferida por despacho singular do Relator e transitada em julgado no processo.
UUU, Em suma: a norma contida no artigo 643.°, n.° 4, do CPC, em conjugação com os artigos 620.° e 652.°, n.° 3, do mesmo diploma, no sentido em que foi interpretada e aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça, é inconstitucional por violação do disposto no artigo 2.° da Constituição da República Portuguesa, que consagra a garantia constitucional de segurança jurídica e de confiança no Estado de direito democrático. ínsitos no princípio de Estado de Direito Democrático.
Da interpretação dos artigos 3. n.° 3 e 643.º do CPC constante dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça proferidos em 27.02.2020 e 29.09.2020
VVV. A interpretação das normas contidas nos artigos 3.°, n.° 3 e 643.°, n.° 4, do CPC, conjugadas com as disposições normativas dos artigos 620.° e 652.°, n.° 3, do mesmo diploma, feita pelo Supremo Tribunal de Justiça nos Acórdãos proferidos em 27.02.2020 e 29.09.2020, no sentido em que não se tem de conceder ao recorrente o direito de se pronunciar ou exercer o contraditório sobre decisão modificativa de admissibilidade do recurso proferida pelo mesmo Tribunal após decisão anterior de admissibilidade da Reclamação, é inconstitucional por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva. previsto no artigo 20.°, n.os 1 e 4. da Constituição da República Portuguesa. Senão vejamos,
WWW. O princípio do contraditório encontra-se legalmente consagrado no artigo 3.°, n,° 3 do CPC, nos termos do qual as partes têm o direito de se pronunciar (i.e., exercer o contraditório) previamente a ser tomada qualquer decisão (sobretudo quando tal decisão seja suscetível de afetar a sua posição jurídica).
XXX. No caso sub judice, o Supremo Tribunal de Justiça, depois de o Juiz Conselheiro Relator ter dado provimento à reclamação apresentada pela CMVM e admitido o recurso interposto pela CMVM, proferiu, por maioria de coletivo, decisão modificativa do despacho de admissão do recurso proferido por Relator, sem que a CMVM tivesse sido chamada ao pronunciar-se antes de ser proferida nova decisão (ou sequer lhe ter sido notificada a intenção de aquele Venerando Tribunal alterar a decisão anteriormente tomada).
YYY. Mesmo que fosse de admitir a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça proferir nova decisão modificativa da decisão anterior transitada em julgado dentro do processo, atribuindo à primeira decisão por si proferida natureza provisória - o que, sem conceder, se admite por mera hipótese de raciocínio -, sempre teria de garantir à CMVM (i) o conhecimento da sua intenção de proferir decisão modificativa da primeira decisão; (ii) a oportunidade de se pronunciar sobre a questão perante a intenção de proferir nova decisão.
ZZZ. Uma decisão tomada fora destes termos traduz-se numa verdadeira decisão-surpresa. na medida em que o Supremo Tribunal de Justiça, para além de ter tomada uma decisão contrária à previamente tomada por este Venerando Tribunal no mesmo processo, sufragou uma solução jurídica (a da reapreciação de decisão sobre a qual se formou caso julgado) que não está prevista na lei, não podendo a CMVM, por essas razões, legitimamente contar com tal decisão.
AAAA. Ou seja, no quadro do artigo 20.°, n.° 1 e n.° 4 (onde se prevê, respetivamente, o direito de ação ou de defesa e o direito a um processo equitativo), da Constituição da República Portuguesa, não é constitucionalmente aceitável a interpretação dos artigos 3.°, n.° 3 e 643.°, n.° 4, em conjugação com o artigo 652.°, n.° 3, do CPC, no sentido em que não é concedido ao recorrente o direito de se pronunciar ou exercer o contraditório sobre decisão modificativa proferida pelo mesmo Tribunal após decisão anterior de admissibilidade,
BBBB. Termos em que a interpretação das normas contidas no artigo 3.°, n.° 3, e nos artigos 643.°, n.° 4, e 652.°, n.° 3, todos do CPC, no sentido em que não é concedido ao recorrente o direito de se pronunciar ou exercer o contraditório sobre decisão modificativa de admissibilidade do recurso proferida pelo mesmo Tribunal após decisão anterior de admissibilidade, é desconforme com a Constituição da República Portuguesa por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.°, n.° 1 e n.° 4. da CRP.
Nestes termos:
a) Deve ser, pelo Tribunal Constitucional, conhecido integralmente o objeto do presente Recurso, mormente no que respeita à conformidade constitucional das dimensões interpretativas extraídas pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão proferido em 27.02.2020, com base na previsão normativa do artigo 135.°, n.° 3 e 4 do CPP (aplicável ex vi n.° 4 do artigo 417.° do CPC);
b) Deve ser julgada inconstitucional a interpretação do artigo 135.°, n.os 3 e 4 (aplicável ex vi n.° 4 do artigo 417.° do CPC) efetuada pelo Supremo Tribunal de Justiça na dimensão segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar o acesso a elementos e/ou documentos abrangidos pelo segredo profissional perante
c) Tribunal de 1.ª instância, o tribunal superior pode quebrar o dever de segredo sem ouvir o titular desse dever quanto aos pressupostos de que depende a quebra do mesmo, por violação do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.°, nos 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa;
d) Deve ser julgada inconstitucional a interpretação do artigo 135.°, n.os 3 e 4 (aplicável ex vi n.° 4 do artigo 417.° do CPC) efetuada pelo Supremo Tribunal de Justiça na dimensão segundo a qual a decisão do Tribunal da Relação que quebra o segredo profissional invocado nos termos do disposto no artigo 135.° é irrecorrível, por violação do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.°, n.°s 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.
e) Deve ser julgada inconstitucional a interpretação do artigo 135.°, n.° 4 (aplicável ex vi n.° 4 do artigo 417.° do CPC) efetuada pelo Supremo Tribunal de Justiça na dimensão segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar acesso a elementos e/ou documentos abrangidos pelo segredo profissional perante o Tribunal de 1.ª instância, o tribunal superior pode não permitir uma entidade não dotada de organismo representativo da profissão de exercer o princípio do contraditório e os direitos de defesa constitucionalmente garantidos no processo/incidente de quebra de segredo profissional em que é requerida, simultaneamente não se admitindo o recurso da decisão proferida, por violação do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.°, nos 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa;
f) Deve ser julgada inconstitucional a interpretação do artigo 135.°, n.° 4 (aplicável ex vi n.° 4 do artigo 417.° do CPC) efetuada pelo Supremo Tribunal de Justiça na dimensão segundo a qual ocorre proibição implícita de recurso da decisão proferida pelo tribunal superior, que decide o incidente de quebra do segredo profissional, por violação do princípio da reserva de lei restritiva, previsto no artigo 18.°, n.os 2 e 3, conjugado com o consignado no artigo 20.° (direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva), ambos da Constituição da República Portuguesa;
g) Deve ser julgada inconstitucional a interpretação do artigo 135.°, n.° 4 (aplicável ex vi n.° 4 do artigo 417.° do CPC) efetuada pelo Supremo Tribunal de Justiça na dimensão segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar o acesso a elementos e/ou documentos abrangidos pelo segredo profissional perante o Tribunal de 1." instância, o tribunal superior não permite que uma entidade não dotada de organismo representativo da profissão intervenha, para tutela dos direitos salvaguardados com a consagração do segredo profissional dessa entidade (designadamente, do direito à reserva da intimidade da vida privada), no processo/incidente de quebra de segredo profissional em que é requerida, simultaneamente não se admitindo o recurso da decisão proferida, por violação do princípio da reserva de lei restritiva, previsto no artigo 18.°, n.os 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa;
h) Deve ser julgada inconstitucional a interpretação do artigo 643.°, n.° 4, do CPC, conjugada com as disposições normativas dos artigos 620.° e 652.°, n.° 3, do mesmo diploma efetuada pelo Supremo Tribunal de Justiça na dimensão segundo a qual se permite ao Supremo Tribunal de Justiça, por sua iniciativa e em maioria de coletivo, contrariar decisão proferida por despacho singular do Relator sobre a admissibilidade da Reclamação apresentada pela CMVM, por violação do disposto no artigo 2.° da Constituição da República Portuguesa, que consagra a garantia constitucional de segurança jurídica e de confiança no Estado de direito democrático, ínsitos no princípio de Estado de Direito Democrático;
i) Deve ser julgada inconstitucional a interpretação do artigo 3.°, n.° 3, do CPC, conjugada com as disposições normativas dos artigos 620.° e 652.°, n.° 3, do mesmo diploma efetuada pelo Supremo Tribunal de Justiça na dimensão segundo a qual não é concedido ao recorrente o direito de se pronunciar ou exercer o contraditório sobre decisão modificativa de admissibilidade do recurso proferida pelo mesmo Tribunal após decisão anterior de admissibilidade, por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.°, n.os 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa; i) Deve ser julgada inconstitucional a interpretação do artigo 643.°, n.° 4, do CPC, conjugada com as disposições normativas dos artigos 620.° e 652.°, n.° 3, do mesmo diploma, efetuada pelo Supremo Tribunal de Justiça na dimensão segundo a qual não é concedido ao recorrente o direito de se pronunciar ou exercer o contraditório sobre decisão modificativa de admissibilidade do recurso proferida pelo mesmo Tribunal após decisão anterior de admissibilidade, por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.°, n.os 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.»
8. O recorrido, notificado para apresentar contra-alegações, veio informar este Tribunal de que não pretendia exercer esse direito, «atendendo a que se revê inteiramente na decisão recorrida nada mais tendo a acrescentar.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A. Delimitação e conhecimento do objeto do recurso
9. No requerimento de interposição do presente recurso, a recorrente identificou oito critérios normativos que entende terem sido aplicados pelo tribunal a quo nas decisões recorridas (n.º 80, alíneas a) a h)) e cuja inconstitucionalidade pretende ver reconhecida por este Tribunal.
Nas alíneas a) a e), são enunciadas normas que a recorrente entende terem sido extraídas pelo Supremo Tribunal de Justiça dos n.os 3 e 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal, que dispõe o seguinte:
«Artigo 135.º
Segredo profissional
1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
(...)»
As dimensões interpretativas enunciadas pela recorrente nas mencionadas alíneas a), c) e e) do n.º 80 do requerimento de interposição de recurso (v. supra o n.º 5) dizem respeito, em síntese, à tramitação do incidente de levantamento do segredo profissional e, em especial, aos meios e à oportunidade processual que, segundo a recorrente, deveriam ser concedidos aos «titulares do dever de segredo» para se pronunciarem sobre a matéria perante o Tribunal da Relação, quando a este compita, como competiu no caso dos autos, decidir o incidente. Todavia, como resulta dos excertos das decisões supratranscritas (em 2. e 4.), o Supremo Tribunal de Justiça não se pronunciou sobre essa matéria, uma vez que não chegou a apreciar o mérito do recurso interposto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação. No acórdão de 27 de fevereiro de 2020, considerou tal recurso inadmissível e, no acórdão de 29 de setembro de 2020, indeferiu a reclamação de que foi objeto aquele primeiro aresto.
Chamada a pronunciar-se sobre a possibilidade de, nessa parte, o objeto do recurso de constitucionalidade não vir a ser conhecido por este motivo, a recorrente alegou que as dimensões interpretativas vertidas nas alíneas a), c) e e) do n.º 80 do requerimento de interposição do recurso «dizem respeito às condições de admissibilidade de recurso como instância processualmente adequada ao exercício do direito de defesa (ou de participação) em face do incidente de quebra do segredo profissional» (cf. ponto C. das conclusões transcritas supra no n.º 5).
Tal argumento não resiste, no entanto, à análise dos enunciados normativos em causa. Deles resulta que a recorrente questiona, no essencial, a interpretação segundo a qual «o tribunal superior pode quebrar o dever de segredo sem ouvir o titular desse dever quanto aos pressupostos de que depende a quebra do mesmo», servindo a referência à irrecorribilidade da decisão apenas para realçar que a invalidade dessa interpretação reveste especial gravidade quando «simultaneamente não se admit[e] o recurso da decisão proferida.» Como tal, a terem sido efetivamente aplicadas durante o processo, as normas ou interpretações normativas enunciadas nessas alíneas do requerimento de interposição de recurso apenas poderiam ter integrado a ratio decidendi das decisões proferidas pelo Tribunal da Relação e não de qualquer uma das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal de Justiça de que vem interposto o presente recurso.
Defende, também, a recorrente que a apreciação do regime aplicável à tramitação do incidente de quebra do segredo profissional — e, em especial, a atenção conferida à estrutura especial deste incidente — foi essencial para decidir da admissibilidade dos recursos interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões proferidas pela Relação. Mas, assim reformuladas, as dimensões normativas criticadas pela recorrente em nada se distinguem das enunciadas nas alíneas b) e d) do mesmo n.º 80 do requerimento de interposição de recurso, a cujo conhecimento obstam outras razões, como se verá de seguida.
10. No que respeita à questão da irrecorribilidade da decisão do Tribunal da Relação que se pronuncia sobre o incidente de quebra de segredo profissional (suscitada nas alíneas b) e d) do excerto do requerimento supratranscrito no ponto 5), a recorrente foi notificada da possibilidade de a questão não vir ser conhecida pelo facto de os critérios normativos impugnados, além de não integrarem a ratio decidendi da decisão recorrida, não serem extraíveis nem terem sido extraídos pelo Tribunal a quo do «artigo 135.º, n.ºs 3 e 4 [do Código de Processo Penal], (aplicável ex vi n.º 4 do artigo 417.º do CPC)]», mas antes dos artigos 671.º, n.º 1, e 644.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Civil.
A esse respeito, a recorrente defendeu nas alegações apresentadas, em síntese, que a decisão recorrida «assentou ou fundou-se nas dimensões interpretativas destacadas nas alíneas b. e d. do ponto 80 do requerimento de recurso artigo 135.°, n.° 3 e n.° 4 do CPP (aplicável ex vi n.° 4 do artigo 417.° do CPC), já que, ao fundamentar a irrecorribilidade da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa na estrutura especial do incidente de quebra do segredo, é manifesto que o Supremo Tribunal de Justiça mobilizou para a sua decisão as normas constantes do artigo 135.°, n.° 3 e 4, do CPP».
Ora, é certo que o tribunal recorrido, no acórdão de 27 de fevereiro de 2020, citou outra decisão do Supremo Tribunal de Justiça, onde se afirmava que «a lei, ao estruturar o incidente em análise, pretendeu que da respetiva decisão não houvesse recurso. (…) Assim, neste peculiar incidente (…) consignou-se pela referida via implícita, a proibição da instância de recurso, contrabalançada pela atribuição da competência decisória ao tribunal hierarquicamente superior àquele onde o incidente foi suscitado.» (v. supra o n.º 2). E certo é também que tal excerto, isoladamente considerado, poderia eventualmente sugerir que a irrecorribilidade da decisão que recai sobre o incidente foi afirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça em aplicação, direta e exclusiva, do artigo 135.º do Código de Processo Penal.
Mas não é assim.
Analisadas mais detidamente as decisões recorridas, verifica-se que a caracterização do incidente e a atenção prestada à sua «estrutura especial» serviram apenas o propósito de demonstrar que as decisões proferidas nesse âmbito não se encontram abrangidas, nem pela alínea a) do n.º 1 do artigo 644.º do CPC, que estabelece o elenco das decisões apeláveis, nem pelo n.º 1 do artigo 671.º do mesmo Código, que define os pressupostos da revista, não sendo consequentemente recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça. É o que decorre, por exemplo, dos excertos do acórdão de 27 de setembro de 2020 em que, citando outro acórdão, se refere que o incidente de quebra de segredo profissional «não passa de um incidente inscrito no âmbito da instrução da causa, não havendo motivo algum passa assimilar a respetiva decisão a alguma das previstas no art. 671º, nº 1, do CPC», que delimita o âmbito do recurso de revista; ou em que se afirma: «Fazendo apelo à referida norma [o artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC], constata-se que a decisão recorrida não pode ser tida como uma decisão proferida em 1ª instância pela Relação», não integrando, assim, o universo daquelas que, nos termos da mencionada norma, são passíveis de apelação.
Vale isto por dizer que o disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal não constituiu a base legal da não admissão de recurso, mas antes um elemento relevante para apreciar se o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação podia ter-se por subsumível em qualquer das hipóteses previstas nos artigos 644.º e 671.º do Código de Processo Civil, que definem os termos e as condições em que o mesmo seria recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça. Ora, não cabendo a este Tribunal pronunciar-se sobre um tal juízo subsuntivo, que é da exclusiva competência do tribunal a quo, resta reafirmar que entre as disposições do Código de Processo Penal identificadas no requerimento de interposição e os critérios normativos impugnados não é possível estabelecer o nexo invocado pela recorrente, apesar de indispensável ao conhecimento do objeto do recurso.
De resto, refira-se que este Tribunal já teve oportunidade de se pronunciar sobre questões afins, mas sempre em processos em que foi requerida a apreciação dos artigos 644.º, n.º 1, alínea a) e 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, não tendo sido julgada inconstitucional a «interpretação normativa segundo a qual a decisão do Tribunal da Relação que se pronuncia sobre a quebra do sigilo bancário por parte de pessoa coletiva ao mesmo obrigada, na sequência de uma decisão de primeira instância que afere da legitimidade da escusa ao abrigo do artigo 135.º, n.º 2, do CPP, não constitui uma decisão proferida em primeira instância, para efeitos do disposto no artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC, nem decisão proferida sobre decisão da primeira instância, para efeitos do disposto no artigo 671.º, n.º 1, do CPC» (v. os Acórdãos n.os 740/2020, 175/2021 e 508/2021).
11. Não podendo, por estas razões, conhecer-se das questões suscitadas pela recorrente nas alíneas a) a e) do n.º 80 do requerimento de interposição do recurso (v. supra o n.º 5), resta apreciar as normas identificadas nas respetivas alíneas f) a h), as quais podem ser, por sua vez, reconduzidas a duas questões de constitucionalidade (já que, nas alíneas g) e h), a recorrente identifica o mesmo critério normativo, embora extraído de distintos preceitos legais).
Pretende, em suma, a recorrente que este Tribunal se pronuncie sobre:
i) a interpretação do artigo 643.º, n.º 4, do CPC, em conjugação com os artigos 620.º e 652.º, n.º 3, do mesmo diploma, «na dimensão interpretativa segundo a qual se permite ao Supremo Tribunal de Justiça, por sua iniciativa e em maioria de coletivo, contrariar decisão proferida por despacho singular do Relator sobre a admissibilidade da Reclamação apresentada pela CMVM», que a recorrente entende contender com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, ínsitos ao princípio do Estado de direito democrático (consagrado no artigo 2.º da Constituição); e
ii) a interpretação dos artigos 3.º, n.º 3, e 643.º, n.º 4, do CPC, em conjugação com os artigos 620.º e 652.º, n.º 3, do mesmo diploma, «na dimensão interpretativa segundo a qual não é concedido ao recorrente o direito de se pronunciar ou exercer o contraditório sobre decisão modificativa de admissibilidade do recurso proferida pelo mesmo Tribunal após decisão anterior de admissibilidade» à luz das exigências que decorrem do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, n.os 1 e 4, da Constituição.
Vejamos.
B. Do Mérito
12. As normas a apreciar no âmbito do presente recurso dizem respeito às consequências do deferimento da reclamação do despacho de não admissão de recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo na sua base as seguintes disposições:
«Artigo 3.º
Necessidade do pedido e da contradição
(…)
3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
(…)
«Artigo 620.º
Caso julgado formal
1 - As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
2 - Excluem-se do disposto no número anterior os despachos previstos no artigo 630.º.
Artigo 643.º
Reclamação contra o indeferimento
1 - Do despacho que não admita o recurso pode o recorrente reclamar para o tribunal que seria competente para dele conhecer no prazo de 10 dias contados da notificação da decisão.
(…)
4 - A reclamação, logo que distribuída, é apresentada ao relator, que, em 10 dias, profere decisão que admita o recurso ou o mande subir ou mantenha o despacho reclamado, a qual é suscetível de impugnação, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 652.º.
(…)
Artigo 652.º
Função do relator
(…)
3 - Salvo o disposto no n.º 6 do artigo 641.º, quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão; o relator deve submeter o caso à conferência, depois de ouvida a parte contrária.
(…).»
Até à aprovação do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, o Código de Processo Civil anteriormente em vigor estabelecia que ao presidente do tribunal ad quem competiria apreciar e decidir a reclamação apresentada. Não podendo uma tal decisão ser impugnada, ressalvava a lei que o deferimento da reclamação, expresso na decisão de «manda[r] admitir ou subir imediatamente o recurso, não obsta a que o tribunal ao qual o recurso é dirigido decida em sentido contrário.» (cf. o artigo 689.º, n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/1995, de 12 de dezembro). Com a aprovação do Decreto-Lei n.º 303/2007, o artigo 688.º, n.o 4, passou a atribuir ao relator, no tribunal ad quem, a competência para decidir a reclamação apresentada, numa disposição que não fazia menção expressa à possibilidade de impugnar essa decisão (no que se distingue do n.º 4 do artigo 643.º do CPC hoje em vigor), nem à possibilidade de o tribunal ao qual o recurso é dirigido «decidir em sentido contrário» ao da decisão proferida pelo relator, conforme anteriormente se previa.
Formaram-se, então, posições divergentes sobre a questão de saber se a decisão do relator, que deferisse a reclamação apresentada e admitisse o recurso, faria caso julgado, desde que não fosse apresentada reclamação para a conferência, ou se, mesmo nessa hipótese, se manteria a possibilidade de o tribunal ad quem, em coletivo, se pronunciar sobre qualquer questão que obstasse ao conhecimento do recurso, decidindo em sentido contrário ao despacho do relator.
A favor da interpretação segundo a qual a decisão de admissão do recurso pelo relator no tribunal ad quem faz caso julgado formal, desde que não seja objeto de reclamação para a conferência, posicionaram-se Autores como Armindo Ribeiro Mendes (v. Recursos em Processo Civil – Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 112-113) e António Abrantes Geraldes (in Recursos no novo CPC, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 143-145). Na ausência de uma ressalva idêntica à que constava do n.º 2 do artigo 689.º do CPC, antes da revisão de 2007, que expressamente conferisse caráter provisório à decisão de admissão do recurso proferida pelo relator no tribunal ad quem, entedia-se ser aplicar-se a regra que constava do artigo 672.º do mesmo Código (atualmente consagrada no artigo 620.º do novo CPC), dando-se por estabilizada a decisão que não fosse impugnada pelas partes, quanto à verificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso.
Para sustentar a posição contrária, argumentaram, inter alia, Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes que «(…) Cabendo a competência decisória (…) ao conjunto dos juízes, qualquer decisão de um só deles não deve vincular os demais, sobretudo, relativamente a uma questão de tamanha relevância como é, decerto, a da admissibilidade do recurso.» Referindo-se ainda aos artigos 688.º e 708.º do CPC anteriormente vigente (que hoje correspondem, no essencial, aos artigos 643.º e 658.º do Código em vigor), concluíram os mesmos Autores que «Não há assim motivo relevante que justifique a vinculação da conferência à decisão de deferimento da reclamação do juiz relator, e, portanto, a subtracção da questão correspondente ao conjunto de poderes de julgamento de que só aquela dispõe. Nestas condições, qualquer dos adjuntos pode dissentir do conteúdo do julgamento do relator, competindo à conferência a resolução final do conflito (art.º 708.º, n.º 1, in fine).» (in Dos Recursos (Regime do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto), Quid Juris, Lisboa, 2009, p. 223; no mesmo sentido, v. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 104, e Luís Lameiras, “A marcha dos recursos ordinários” in AA. VV., As Recentes Reformas na Acção Executiva e nos Recursos, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 62; admitindo que a questão é «discutível», mas inclinando-se para esta posição, José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil – Anotado, Vol. 3.º, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p.76.)
13. Contra esta última tese, a que aderiu o tribunal recorrido (v. supra, em especial, o n.º 4), sustenta a recorrente que «[d]a interpretação conjugada dos artigos 643.°, n.° 4, e 652.°, n.° 3, ambos do CPC, decorre inequivocamente (i) que a modificabilidade da decisão singular proferida pelo Relator está limitada à iniciativa das partes que se considerem prejudicadas pelo despacho; (ii) que é definitiva a decisão singular proferida pelo Relator fora de tais casos», concluindo «que fora do regime previsto no artigo 652.°, n.° 3, do CPC, em conjugação com o disposto no artigo 643.° do mesmo diploma, a decisão singular do Relator assume a eficácia definitiva dentro do processo que lhe é conferida em obediência à regra processualmente imperativa da força de caso julgado formal (artigo 620.° do CPC).» (cf. as conclusões PPP. e QQQ., supra, no n.º 7).
Como é sabido, não compete ao Tribunal Constitucional adotar posição sobre a divergência doutrinal a que se aludiu supra, nem imiscuir-se no exercício da competência para a interpretação e aplicação do direito infraconstitucional, que cabe exclusivamente ao tribunal a quo. A este Tribunal apenas compete verificar se a interpretação do artigo 643.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, em conjugação com os artigos 620.º e 652.º, n.º 3, do mesmo diploma, no sentido de se admitir que o Supremo Tribunal de Justiça, por sua iniciativa e em maioria de coletivo, reverta a decisão singular de admissão do recurso contende, como defende a recorrente, com os princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança, ínsitos no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Questão análoga foi apreciada por este Tribunal no Acórdão n.º 151/2015, em que se concluiu o seguinte:
«O princípio da segurança e certeza jurídica, inerente ao modelo do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, no âmbito dos atos jurisdicionais, justifica o instituto do caso julgado, o qual se baseia na necessidade da estabilidade definitiva das decisões judiciais transitadas em julgado. Daí que seja reconhecida, enquanto subprincípio, a intangibilidade do caso julgado, revelado em preceitos constitucionais como o artigo 29.º, n.º 4, e 282.º, n.º 3, o qual também abrange o denominado caso julgado formal, relativo às decisões que têm por objeto a relação processual (neste sentido, J.J. Gomes Canotilho, em “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, pág. 264-265, da 7.ª ed., Almedina, Rui Medeiros, em “A decisão de inconstitucionalidade”, pág. 557, ed. de 1999, da Universidade Católica Editora, Isabel Alexandre, em “O caso julgado na jurisprudência constitucional portuguesa”, em Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, pág. 12-14, ed. de 2003, da Almedina, e os Acórdãos n.º 255/98, 61/2003 e 370/08, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Se a intangibilidade do caso julgado formal, que torna as decisões judiciais transitadas em julgado, proferidas ao longo do processo, insuscetíveis de serem modificadas, tem como finalidade imediata assegurar a disciplina da tramitação processual, uma vez que seria caótico e dificilmente atingiria os seus objetivos o processo cujas decisões interlocutórias não se fixassem com o seu trânsito, permitindo um interminável refazer do percurso processual, não deixa esse subprincípio de ter como fundamento último os valores imanentes ao Estado de direito democrático da segurança e da certeza jurídica.
Como escreve Rui Medeiros (ob. cit., pág. 557) “…dentro do processo, uma decisão transitada em julgado sobre uma questão processual não deixa de constituir uma resolução judicial de uma questão de incerteza, mediante a colocação de uma das afirmações nela envolvidas numa situação especial de indiscutibilidade. São, na verdade, ainda exigências de ordem e de segurança que impõem que sobre questões processuais já decididas se forme a preclusão da possibilidade de renovar a mesma questão no mesmo processo. É preciso, também nestes casos evitar que a mesma questão processual seja novamente colocada, obstar a que sobre ela recaiam soluções contraditórias e garantir a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir. O chamado caso julgado formal não deixa, pois, de ser expressão dos valores de segurança e certeza que são imanentes a qualquer ordem jurídica”.
Contudo, a jurisprudência constitucional também não tem deixado de realçar que, apesar de ser inerente à função jurisdicional a definitividade das suas decisões, mesmo que interlocutórias, o caso julgado não pode ser encarado como um valor absoluto, existindo uma folgada margem de liberdade do legislador na escolha das decisões que, dentro do processo, são ou não aptas a constituírem caso julgado (Acórdãos acima referidos n.º 61/03 e 370/08). Necessário é que as exceções ao caso julgado tenham um fundamento material inequívoco, capaz de justificar a provisoriedade das respetivas decisões (J.J. Gomes Canotilho, ob. cit., pág. 265, e Isabel Alexandre, ob. cit., pág. 61).
(…)
No regime de recursos, desde há muito que vigora a ideia de que se é ao tribunal ad quem que compete conhecer da matéria do recurso, é também a ele que compete, em última análise, decidir as questões prévias que o recurso suscita, designadamente se o recurso é admissível e qual a espécie de recurso aplicável, pelo que as decisões que o tribunal a quo tome sobre estas matérias nunca poderão ser definitivas, não se formando caso julgado sobre elas. Como escreveu Alberto dos Reis: “Não pode deixar de atribuir-se ao tribunal que há de pronunciar-se sobre o mérito do recurso, o poder jurisdicional de decidir, em plena liberdade e com absoluta soberania, se o recurso é admissível, se a espécie adequada é agravo ou apelação, revista ou agravo, se o verdadeiro efeito do recurso é suspensivo ou meramente devolutivo. Privar o tribunal superior da possibilidade de conhecer livremente destes pontos, a título de que o tribunal inferior já os resolveu em determinado sentido, equivaleria a mutilar a competência do tribunal de recurso, a retirar a este tribunal, em benefício do tribunal recorrido, um poder jurisdicional que essencialmente lhe pertence, dada a atribuição, que a lei lhe comete, de conhecer da matéria do recurso” (na R.L.J., Ano 83, pág. 58).
Era essa a solução que se retirava do disposto nos artigos 666.º, 702.º e 704.º do Código de Processo Civil de 1939 (Alberto dos Reis no Código de Processo Civil, vol. V, pág. 338-339, ed. de 1952, Coimbra Editora), a qual foi expressamente consagrada no Código de Processo Civil de 1961, no artigo 687.º, n.º 4, passando a constar do artigo 685.º-C, n.º 5, com a reforma do regime dos recursos efetuada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007 de 24 de agosto. No Novo Código de Processo Civil de 2013 essa norma está prevista no artigo 641.º, n.º 5.
E mesmo quando a decisão de admissão do recurso seja tomada pelo Presidente do tribunal ad quem, em deferimento de queixa ou reclamação deduzida contra o despacho de não admissão do recurso proferido pelo tribunal a quo, manteve-se o entendimento de que deve continuar a caber à formação do tribunal ad quem competente para conhecer do mérito do recurso a última palavra sobre a sua admissibilidade, pelo que também não foi atribuída a força de caso julgado àquela decisão do Presidente do tribunal.
Era essa a solução que já constava do artigo 689.º, f), do Código de Processo Civil de 1939, a qual se manteve no artigo 689.º, n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961, tendo a competência do Presidente do tribunal superior para apreciar a reclamação do despacho de não admissão do recurso transitado para o relator a quem o recurso seja distribuído com a reforma do regime dos recursos efetuada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007 de 24 de agosto (artigo 688.º), solução que se mantém no Novo Código de Processo Civil de 2013 no artigo 643.º.
E o mesmo sucede ainda, atualmente, segundo a opinião de alguma doutrina, relativamente às decisões do juiz relator do tribunal ad quem que defira reclamação deduzida contra o despacho de não admissão do recurso proferido pelo tribunal a quo e que não sejam impugnadas para a conferência. Esta poderá sempre no julgamento do recurso decidir pela sua inadmissibilidade por vencimento das opiniões dos juízes adjuntos, não tendo formado caso julgado a anterior decisão do juiz relator (vide, neste sentido, Amâncio Ferreira, em “Manual dos recursos em processo civil”, pág. 98, 8.ª ed., Almedina, Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, ob. cit., pág. 76, Luís Correia de Mendonça/Henrique Antunes, “Dos recursos”, pág. 223, ed. de 2009, Quid iuris; em sentido contrário, Abrantes Geraldes, em “Recursos em processo civil. Novo regime”, pág. 165-166).
Em todas estas situações o desígnio de que deve competir, em última análise, ao tribunal competente para conhecer do mérito do recurso, a decisão final sobre a sua admissibilidade, devendo ter caráter provisório as decisões que entretanto tenham que ser tomadas, relativamente a essa matéria, por outros tribunais ou outras formações do mesmo tribunal intervenientes na tramitação do recurso, parece-nos ser fundamento racional e suficiente para que sobre tais decisões não se forme caso julgado, inserindo-se tal opção fundamentada na margem de liberdade do legislador.»
A argumentação seguida no Acórdão n.º 151/2015 é, para além de convincente, inteiramente transponível para o caso presente.
Como ali se explicou, a proteção que a Constituição dispensa ao caso julgado não significa que o legislador está sempre impedido de o excecionar; significa apenas que o legislador, ao determinar que certa decisão pode ser livremente modificada ou revertida por outra formação do mesmo Tribunal, o faça numa base que não ponha em causa a preservação da confiança e a exigência de segurança jurídica que são inerentes à ideia de Estado de Direito.
Pelas razões igualmente apontadas no referido aresto, é justamente o que sucede com a decisão do juiz relator do tribunal ad quem que defira reclamação deduzida contra o despacho de não admissão do recurso proferido pelo tribunal a quo e que não seja impugnada para a conferência. Independentemente de corresponder ou não à melhor solução de direito infraconstitucional, a possibilidade de aquela decisão singular ser revista, mesmo na ausência de impugnação, pela formação competente para o julgamento do recurso, inscreve-se plenamente no âmbito da liberdade de conformação de que dispõe o legislador na modelação do processo civil, estando longe de contender, desde logo pela base racional em que assenta, com os princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança que fundamentam a proteção constitucional do caso julgado.
14. Resta apreciar a inconstitucionalidade da interpretação conjugada dos artigos 3.º, n.º 3, 620.º, 643.º, n.º 4, e 652.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, no sentido de o Supremo Tribunal de Justiça, em coletivo, poder modificar a decisão singular de admissão do recurso proferida pelo mesmo Tribunal, sem que seja concedida ao recorrente a possibilidade de se pronunciar sobre essa questão.
Este Tribunal tem reiteradamente entendido que o direito de defesa e o direito ao contraditório, enquanto dimensões indissociáveis do direito ao processo equitativo consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, impõem ao tribunal não apenas o dever de conceder à parte a possibilidade de se pronunciar sobre as razões de facto e de direito oferecidas pela parte contrária, mas também o dever de permitir que as partes sejam chamadas a influenciar a formação de quaisquer decisões que lhes digam respeito, ainda que recaiam sobre questões de conhecimento oficioso.
Tal como houve oportunidade de reafirmar no Acórdão n.º 510/2015 (n.º 4):
«É assente, na jurisprudência constitucional, que do conteúdo do direito de defesa e do princípio do contraditório resulta prima facie que cada uma das partes deve poder exercer uma influência efetiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes de o tribunal decidir questões que lhes digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de umas e outras (cfr. designadamente, os Acórdãos n.ºs 1185/96 e 1193/96).
A jurisprudência adota, assim, um entendimento amplo do contraditório, entendido “como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” (Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 96.). Adianta ainda este autor que “o escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento do processo.”»
Assim compreendido o princípio do contraditório consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, a questão importa agora decidir é a de saber se o mesmo é ou não violado nos casos em que, tendo sido deferida pelo relator a reclamação deduzida pelo recorrente e admitido o recurso, esta decisão é revertida pela formação competente para o julgamento sem que ao recorrente/reclamante seja previamente concedida a possibilidade de se pronunciar.
O Tribunal a quo, no seu acórdão de 29 de setembro de 2020 (v. supra o n.º 4), não deixou de reconhecer que, «no bom rigor dos princípios, caso o recurso tivesse sido admitido pelo segundo grau, o não conhecimento do seu objeto deveria ser precedido pela audição das partes nos termos do artigo 655º, no 1 do CPCivil»; mas concluiu que, in casu «[s]endo, como é, colegial a decisão, não se poderá falar de se ter coa[r]tado ao Recorrente a possibilidade de se pronunciar sobre a possibilidade de se não conhecer do objeto do recurso, uma vez que a parte se pronunciou acerca dessa temática ao longo da reclamação e a decisão aí produzida era naturalmente precária, o que é do conhecimento das partes.»
Da perspetiva do Tribunal recorrido, se bem a entendemos, a circunstância de recorrente e recorrido terem sido ouvidos sobre a admissão do recurso nos termos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 643.º — isto é, enquanto reclamante e reclamado, respetivamente —, permite dar por plenamente satisfeita a exigência de audiência prévia das partes, porquanto estas tiveram oportunidade de influenciar uma decisão que, até ser objeto de apreciação colegial, é «naturalmente precária».
Não é, no entanto, possível acompanhar esta linha de argumentação. Se é certo que a tramitação da reclamação a que se refere o n.º 1 do artigo 643.º do Código de Processo Civil assegura às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a verificação dos pressupostos de admissibilidade de recurso, não pode ignorar-se a relevância da prolação, já pelo tribunal ad quem, de uma decisão que admite o recurso, ou seja, que toma uma posição divergente da previamente adotada pelo tribunal a quo sobre a mesma questão de direito.
Tal como no caso apreciado no Acórdão n.º 346/2009, também «[a] questão que agora se aprecia respeita à proibição das chamadas decisões-surpresa, ou seja, à imposição ao tribunal do dever de ouvir as partes antes de tomar decisões com fundamento de conhecimento oficioso que não tenha sido por elas previamente considerado. O que está em causa não é a garantia de defesa, no sentido negativo de oposição perante pretensão da outra parte, mas o direito de influenciar a formação da decisão do órgão judicial que lhe diz directamente respeito e que também tem de considerar-se incluído na exigência constitucional do processo equitativo.» Conforme este Tribunal vem reconhecendo em jurisprudência reiterada, ao consagrar com esta amplitude o princípio do contraditório e ao impor por essa via a proibição de decisões-surpresa para as partes (neste sentido, cf. José Lebre de Freitas/ João Redinha/ Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2008, pp. 8 e 9; Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra: Almedina, 1999, pp. 19 ss.), o n.º 3 do artigo 3.º do CPC responde a uma imposição constitucional (v. os Acórdãos n.ºs 255/2003 e 24/2004), não podendo, em regra, ser interpretado em sentido contrário àquela proibição — isto é, dispensando-se a audição prévia das partes — sem que com isso ocorra a violação do princípio do processo equitativo consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição.
É esta, em suma, a razão pela qual, nos casos em que é proferida decisão singular de admissão de recurso pelo tribunal ad quem, ainda que no deferimento de reclamação deduzida pelo recorrente, se impõe que seja facultada às partes a possibilidade de influenciarem a decisão definitiva a adotar colegialmente sobre a matéria, sempre que esta se perspetive de sentido inverso ao daquela que começou por ser tomada. Veja-se que, na hipótese de a reclamação ter sido objeto de indeferimento por decisão singular do relator, o recorrente sempre teria tido possibilidade de a impugnar e o recorrido de se pronunciar novamente sobre a questão, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 652.º do CPC, aplicável ex vi do n.º 4 do artigo 643.º do mesmo Código.
Por conseguinte, e nesta parte, o recurso deve ser julgado procedente.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não conhecer do objeto do presente recurso na parte que se refere às interpretações extraídas do artigo 135.º, n.os 3 e 4, do Código de Processo Penal;
b) Não julgar inconstitucional a interpretação do artigo 643.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, em conjugação com os artigos 620.º e 652.º, n.º 3, do mesmo diploma, no sentido de se admitir que o Supremo Tribunal de Justiça, por sua iniciativa e em maioria de coletivo, revogue a decisão singular de admissão do recurso;
c) Julgar inconstitucional, por violação do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, a interpretação conjugada dos artigos 3.º, n.º 3, 620.º, 643.º, n.º 4, e 652.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, segundo a qual não é concedido ao recorrente o direito de se pronunciar ou exercer o contraditório sobre decisão modificativa de admissibilidade do recurso proferida, após decisão singular de admissão do relator, pelo mesmo Tribunal; e, em consequência,
d) Conceder provimento ao recurso nessa parte, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo positivo de inconstitucionalidade.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro, ponderados os fatores referidos no n.º 1 do respetivo artigo 9.º.
Lisboa, 17 de março de 2022 - Joana Fernandes Costa - Lino Rodrigues Ribeiro - Gonçalo Almeida Ribeiro - Afonso Patrão - João Pedro Caupers