José João Abrantes
Conferência “A Justiça antes e depois do 25 de abril”
21 de março de 2024
Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian
Como aconteceu em todos os setores da vida política, económica e social, também a Justiça sofreu grandes transformações após o 25 de Abril, cujo 50.º aniversário iremos celebrar daqui a, sensivelmente, um mês.
Nesta curta intervenção, correspondendo ao que penso ser o propósito desta sessão de abertura, não me cabe, obviamente, cobrir aquilo que é suposto o Senhor Juiz Conselheiro Jubilado Armindo Ribeiro Mendes e o Senhor Vice-Presidente do Tribunal Constitucional, Juiz Conselheiro Gonçalo Almeida Ribeiro, tratarem no painel dedicado à Justiça Constitucional.
Limitar-me-ei a lembrar que esta é hoje, não apenas base do Estado de Direito, mas também garante dos direitos fundamentais dos cidadãos.
O nosso atual sistema de justiça constitucional assenta num modelo misto, que combina vertentes do sistema de fiscalização difuso, de inspiração norte-americana, e do sistema de fiscalização concentrado, de inspiração austríaca.
Com a Constituição republicana de 1911, por influência da Constituição norteamericana e da Constituição brasileira de 1891, passou a vigorar entre nós – com caráter pioneiro, aliás, no contexto europeu – um sistema difuso de fiscalização de constitucionalidade das leis, confiado à generalidade dos tribunais ordinários no quadro dos casos concretos que tivessem de decidir, “desde que, nos feitos submetidos a julgamento, qualquer das partes impugnar a validade da lei ou dos diplomas emanados do poder executivo ou das corporações com autoridade pública, que tiverem sido invocados” (artigo 63.º da referida Constituição).
Com a Constituição de 1933, se, por um lado, os tribunais (todos os tribunais, e não apenas os tribunais ordinários) passaram a poder, oficiosamente (isto é, sem necessidade de arguição de qualquer das partes), conhecer a constitucionalidade das normas que tinham de aplicar aos casos concretos, por outro lado, foi-lhes vedada a possibilidade de se pronunciarem sobre questões de inconstitucionalidade orgânica e formal dos diplomas promulgados.
Para além deste retrocesso em relação ao texto de 1911, há que assinalar, no que respeita à prática constitucional, que, em toda a vigência da Constituição de 1933, foram muito raros os casos de recusa de aplicação de normas pelos tribunais com fundamento em inconstitucionalidade – o que, obviamente, não surpreende, na medida em que, como é sabido, o Estado Novo, além de não garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, não proporcionava um sistema de justiça independente, encontrando-se este, ao invés, subordinado ao poder político, com as decisões judiciais a frequentemente refletirem outras razões políticas que não o Direito e a Justiça.
Só após o 25 de Abril, o sistema português passou a ter finalmente uma fiscalização concentrada de constitucionalidade num órgão jurisdicional, o que veio a acontecer com a Revisão Constitucional de 1982, tendo o Tribunal Constitucional entrado em funções no ano seguinte (sem esquecer os passos anteriores, nomeadamente a Comissão Constitucional – órgão com uma “dupla natureza”, de órgão de consulta e de órgão jurisdicional –, criada como prefiguração de um Tribunal Constitucional).
A nossa ordem constitucional evoluiu, assim, de um modelo de fiscalização difuso de constitucionalidade – que sempre vigorou entre nós, desde a Constituição republicana de 1911 (embora com as limitações assinaladas durante o Estado Novo) – até um modelo de fiscalização misto, com o Tribunal Constitucional e consequente adoção de uma vertente de fiscalização concentrada.
A este Tribunal cabe a garantia da Constituição, dos direitos fundamentais dos cidadãos e do Estado de direito democrático. É ele, assim, uma trave mestra do regime democrático nascido no dia 25 de Abril de 1974, nas palavras de Sophia de Mello Breyner, “O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo”
O Tribunal Constitucional é o guardião da Constituição, não de uma qualquer Constituição, mas da Constituição de 1976, um corolário da revolução democrática e humanista, que nos libertou da mais velha ditadura da Europa. Tem por missão e razão de ser defender uma Lei Fundamental centrada na dignidade da pessoa humana, o primeiro e o mais imprescritível dos valores do Estado de direito democrático. Essa pessoa humana não é uma abstração, são seres humanos, mulheres e homens concretos, inseridos numa sociedade, onde há tensões e contradições, onde existem muitas potenciais ameaças à liberdade e à dignidade dessas concretas pessoas.
Em suma, compete-lhe garantir o cumprimento de uma Constituição que só será verdadeiramente cumprida quando se alcançar plenamente o Portugal “mais livre, mais justo e mais fraterno” de que fala o seu preâmbulo.