José João Abrantes
Tomada de Posse
11 de maio de 2023
Tribunal Constitucional
Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Senhora Presidente do Supremo Tribunal Administrativo
Senhor Presidente do Tribunal de Contas
Senhora Ministra da Justiça
Senhores Deputados
Senhor Chefe da Casa Civil do Presidente da República
Senhora Bastonária da Ordem dos Advogados
Demais autoridades políticas, administrativas, judiciárias e académicas
Excelências
Senhores Conselheiros
Senhores Procuradores Gerais Adjuntos
Senhores Assessores e Funcionários
Senhores Convidados
Senhoras e Senhores
0 - Agradeço muito a todos a presença nesta cerimónia; e a todos cumprimento, com um agradecimento muito sincero pelo sentimento que aqui os trouxe, o afeto (próprio de amizades profundas e, em muitos casos, já muito antigas) e/ou o tributo de consideração pelo importante papel desempenhado pelo Tribunal Constitucional no quadro do Estado de direito democrático.
Não podendo, obviamente, como seria meu desejo, nomear individualmente todos os que quiseram associar-se a este ato, faço questão de aqui deixar expresso que o vosso gesto permanecerá gravado na minha mente e no meu coração.
1 – Extremamente significativa é para nós a representação nesta cerimónia dos diversos órgãos de soberania, enquanto reconhecimento do referido papel desempenhado pelo Tribunal Constitucional.
Na senda da linha de atuação comum a todos os anteriores Presidentes, o Tribunal continuará a ter como preocupação a preservação de um relacionamento imaculado com os demais poderes, assente no escrupuloso respeito mútuo das competências de cada um, sem contender com a autonomia e independência exigidas pelo seu estatuto, que, no seguimento da sua história, nos cabe agora continuar a defender.
O Tribunal Constitucional constitui um poder independente, cujo papel consiste em assegurar o respeito da Constituição. Cumpre-lhe em particular assegurar que a democracia funcione com base no primado da Constituição e na garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos. É isto que lhe compete.
O Tribunal Constitucional sabe que lhe não cabe imiscuir-se nas competências específicas dos outros órgãos, designadamente dos órgãos legislativos e dos órgãos jurisdicionais. Não pode, salvo com fundamento em imperativos de ordem constitucional, censurar opções políticas dos órgãos legislativos ou interpretações da lei ordinária efetuadas pelos restantes tribunais. Esses são domínios reservados a outros órgãos, que o Tribunal Constitucional não pode, nem quer, invadir.
Mas ao Tribunal Constitucional deve igualmente ser reconhecido o lugar específico que lhe cabe e ser devidamente respeitada a sua competência própria. O Tribunal Constitucional não pode, nem quer, abdicar de exercer, em toda a plenitude, os seus poderes próprios de apreciação da validade das normas, à luz, tão só, dos autónomos critérios valorativos da Constituição.
Daí que a preservação desse relacionamento com os demais poderes do Estado seja para nós essencial.
Desde logo, com os tribunais, cujas decisões o Tribunal Constitucional é chamado a apreciar na estrita medida em que apliquem regras cuja conformidade com a Constituição é questionada, sem contender quanto ao mais com a interpretação e aplicação do direito infraconstitucional. Sem abdicar da última palavra quanto à interpretação da Constituição e à conformidade com ela das restantes normas jurídicas, tal como interpretadas pelos outros tribunais, o Tribunal Constitucional tem especial preocupação em não interferir com as competências próprias desses outros tribunais, no que se refere à interpretação das normas de direito ordinário.
Tal como é também essencial o relacionamento com os outros poderes do Estado, em particular os que exercem funções normativas, uma vez que é por referência aos resultados dessa sua atividade que o Tribunal é chamado a julgar da respetiva conformidade com a Constituição.
2 - Ademais dos outros órgãos de soberania, o Tribunal Constitucional deseja igualmente continuar a manter estreitas relações de cooperação quer com o Ministério Público, cujos representantes no Tribunal lhe prestam uma colaboração preciosa, bem como com as instituições, como a Provedoria de Justiça, que colaboram para uma eficaz fiscalização da constitucionalidade, e, last but not the least, com os profissionais do foro, designadamente os Advogados, que, nos recursos de constitucionalidade, procuram que seja administrada a justiça constitucional com rigor e ponderação, merecendo ser sempre recebidos nesta casa com o respeito que merecem, em função do muito relevante papel que desempenham na defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que representam. Daí também a importância que atribuo à presença nesta cerimónia dos representantes da Senhora Procuradora-Geral da República e da Senhora Provedora de Justiça, assim como da Senhora Bastonária da Ordem dos Advogados.
3 - Seja-me agora consentida uma referência aos antigos membros deste Tribunal, e da sua antecessora, a Comissão Constitucional, a quem se deve o perfil concreto desta instituição e o contributo decisivo para que a Constituição firmasse raízes como esteio da ordem jurídico-política portuguesa.
A todos os antigos juízes do Tribunal e da Comissão Constitucional, em particular aos que nos deram o gosto e a honra de comparecer aqui hoje, dirijo uma saudação muito especial, evocando também a memória dos que já partiram. Em especial, evoco a memória dos antigos Presidentes Armando Marques Guedes, Luís Nunes de Almeida e Artur Maurício, saudando a presença hoje aqui dos Presidentes Cardoso da Costa, Sousa Ribeiro e João Pedro Caupers.
4 – Dirijo-me agora aos Senhores Conselheiros, que, no início deste novo ciclo, me confiaram a Presidência do nosso colégio. É um cargo que não procurei - e menos ainda pedi. Mas encaro-o como um dever de ofício e espírito de missão, procurando corresponder à confiança que os meus Colegas em mim depositaram e àquilo que, nas circunstâncias concretas em que vivemos, se espera de um Presidente deste Tribunal.
É um cargo que muito me honra, trazendo-me também uma pesada responsabilidade.
Estou, porém, seguro de que terei a minha tarefa muito facilitada pela colaboração leal do Senhor Vice-Presidente, Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro, cujas qualidades pessoais, i.a., de inteligência, competência, espírito de missão e sentido institucional, em muito facilitarão a caminhada que agora juntos iniciamos.
Mas espero igualmente – certo de que a terei - o empenhamento e a cooperação leal de todos, para a prossecução dos objetivos que a Constituição nos impõe. O desafio que hoje se nos coloca a todos é, nesse clima, dar o melhor de nós para cumprir as tarefas que constitucionalmente nos estão cometidas. É um desafio que terá de ser enfrentado com espírito de colegialidade, com todos, sem exceção, dispostos a dar continuidade à ação dos que, antes de nós, souberam, exemplarmente, construir e consolidar uma justiça constitucional à altura das exigências do Estado de direito democrático.
5 - Saúdo igualmente todos os funcionários deste Tribunal. Para que uma qualquer instituição possa desempenhar cabalmente as tarefas que lhe estão cometidas, é absolutamente essencial o fator humano. O Tribunal é – e tem sido sempre - servido por um corpo de funcionários competentes e empenhados, cuja dedicação ao serviço - ao serviço público - e à instituição que servem, é, digo-o sem dúvidas, exemplar.
Uma quota-parte muitíssimo relevante do êxito desta casa deve-se ao vosso zelo e competência no exercício das respetivas funções - seja no serviço judicial e administrativo, nos serviços de documentação e no serviço dos gabinetes. Quero, por isso, neste momento, agradecer a todos quantos aqui trabalham a decisiva colaboração que, sem reservas, têm prestado ao Tribunal.
6 - Referir-me-ei de seguida a um aspeto que, em qualquer domínio da justiça, mas ainda mais na justiça constitucional, assume a maior relevância: a comunicação pública do próprio desenvolvimento dessa atividade e, em particular, do conteúdo e fundamentos das correspondentes decisões.
É um aspeto que tem estado sempre nas preocupações do Tribunal.
Nesta matéria, porém, não pode esquecer-se o imprescindível papel que cabe aos diferentes meios de comunicação social, cujos representantes, aqui presentes, cumprimento. O Tribunal Constitucional - com os condicionalismos que a natureza jurisdicional da sua função impõe - continuará, como sempre esteve, empenhado em facilitar a sua missão informativa, para que a possam cumprir do modo mais rigoroso possível.
O relacionamento de um tribunal com a comunicação social deve pautar-se por critérios de rigor e discrição, com expressa recusa de um sempre fácil, mas indesejável, protagonismo judiciário. Isso não impede que uma correta e precisa informação relativamente às decisões e motivações do Tribunal deva ser eficaz e prontamente disponibilizada, porque a opinião pública tem o direito de as conhecer.
Porque o Tribunal Constitucional – como, aliás, qualquer outro tribunal – administra a justiça em nome do povo, há que dar continuidade, entre muitos outros, a um esforço de tornar cada vez mais claro e próximo dos cidadãos o que o Tribunal decide.
Esforço que, exige, desde logo, uma compreensão profunda do que ele pode dar aos cidadãos. Por exemplo, o Tribunal não representa, em fiscalização concreta, uma terceira instância de recurso, limitando-se à apreciação de questões relativas à constitucionalidade das normas aplicadas pelos tribunais – o que implica o respeito rigoroso pelo que estes decidem no que toca quer à matéria de facto quer ao direito (infraconstitucional) aplicado.
Isto não poderá passar para os cidadãos se, em determinados processos, os títulos de primeira página ou as notícias de abertura dos telejornais sacrificarem o rigor àquilo que seja apenas mais mediático.
Pelo contrário, se optar pelo rigor, a comunicação social contribuirá seguramente para o esclarecimento de todos, condição essencial para a compreensão do que se decide e do modo como funciona o Tribunal.
Desempenhando a comunicação social um papel insubstituível, o Tribunal, sem abandono da sua discrição e dos seus deveres de reserva, que lhe são, aliás, impostos por lei, está empenhado em disponibilizar todos os meios que lhes facilitem a opção pela via do rigor profissional e sentido de responsabilidade pública, no efetivar do direito à informação dos cidadãos.
7 - Permitam-me que, num registo mais pessoal, lembre aqui as minhas raízes, designadamente, o Alentejo que me viu nascer (no dizer de Miguel Torga, “foi a terra alentejana que fez o homem alentejano, e eu quero-lhe por isso. Porque o não degradou, proibindo-o de falar com alguém de chapéu na mão”), bem como o legado deixado pelos meus saudosos Pais, legado de bondade, generosidade e sentido de justiça, coragem, dignidade e honra. Com eles aprendi que a liberdade começa quando escolhemos a coerência e fidelidade às nossas crenças e convicções mais profundas. Encontrei esses mesmos valores na minha mulher e são esses os valores que também procurámos transmitir à nossa filha e às nossas netas.
Lembro também todos – e tantos foram, que não vou aqui poder individualizar! – os que foram meus Mestres na Escola e na Vida e todos os meus Amigos, com quem partilhei ideais e a crença numa sociedade melhor.
E relembro uma ideia que sempre tive presente, de que um jurista não pode nem deve esquecer a sua qualidade de cidadão nem o facto de que a tarefa de colocação da pessoa humana no centro da ordem jurídica corresponde a um seu dever, enquanto parte da luta pela construção de um mundo melhor e mais fraterno.
8 - Ora, o Tribunal Constitucional é o guardião da Constituição, não de uma qualquer Constituição, mas da Constituição de 1976, que é, desde logo, um corolário da revolução democrática e humanista, que nos libertou da mais velha ditadura da Europa. Uma Constituição que só será verdadeiramente cumprida quando se alcançar plenamente o Portugal mais justo, mais fraterno e mais livre de que fala o seu preâmbulo.
Se há alguma coisa que de mais relevante um professor de direito do trabalho pode trazer consigo é a ideia de liberdade concreta. O Tribunal Constitucional é guardião de uma Lei Fundamental centrada na dignidade da pessoa humana, o primeiro e o mais imprescritível dos valores do Estado de direito democrático. Mas essa pessoa humana não é uma pessoa abstrata. São seres humanos, mulheres e homens concretos, inseridos numa sociedade, onde há tensões e contradições, onde há muitos poderes, todos eles suscetíveis de ameaçar a liberdade dessas concretas pessoas.
Como disse perante a Assembleia da República, quando da audição prévia à minha investidura como Juiz Constitucional, toda a minha carreira académica e a minha intervenção cívica constante foram sempre marcadas por um fio condutor da luta pelos direitos humanos.
Essa luta tem de ser, em especial, uma luta pelos direitos dos mais fracos. Essa é, sem dúvida, uma das funções principais do Estado democrático. Porque a (verdadeira) liberdade só se completa com a igualdade, porque não há liberdade sem igualdade de oportunidades, esta é, necessariamente, uma tarefa do Estado democrático, como tal afirmada pelos ideários humanistas, que proclamam a necessidade de cada um de nós fazer suas “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias, dos homens deste tempo”, realizando a solidariedade que devemos aos nossos semelhantes, particularmente aos que não têm voz nem vez nessa sociedade ainda tão distante da plena realização dos imperativos constitucionais da igualdade e da justiça social.
9 - Percorrendo a história desta Instituição, vemos que a sua razão de ser – defender a Constituição e o Estado de direito democrático – foi sobejamente honrada por todos aqueles que por ela passaram. Essa história teve momentos difíceis, mas o Tribunal soube sempre manter-se autónomo em tudo o que nele se decidiu e se fez, independente de todos as outras instâncias de poder, sendo hoje “uma verdadeira pedra angular do Estado de direito democrático”.
Impõe-se a quem de momento dirija esta casa o dever de procurar assegurar a integridade e a continuidade do legado deixado pelos seus antecessores, no sentido de que este Tribunal Constitucional continue a garantir o respeito da Constituição e dos direitos fundamentais dos cidadãos por parte dos órgãos do Poder. Estou consciente de ser esse o ponto essencial da minha missão, da nossa missão, para isso contando com a leal colaboração de todos.
Disse. Muito obrigado pela vossa atenção. Está encerrada a sessão.