ACÓRDÃO N.º 797/2022
Processo n.º 477/2022
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Mariana Canotilho
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, em que é recorrente o Ministério Público e recorridos A. e Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. (IGFSS), foi interposto recurso obrigatório, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, 75.º, n.º 1 e 75.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada «LTC»), do despacho daquele Tribunal, de 16 de fevereiro de 2022.
2. O aqui recorrido pessoa singular, na qualidade de executado em processo executivo instaurado pelo recorrido IGFSS e que corre termos na secção de processo executivo de Vila Real, deduziu oposição à execução. Os autos foram remetidos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, para apreciação de tal incidente.
Por decisão datada de 17 de janeiro de 2022, esse Tribunal declarou-se territorialmente incompetente para a causa, tendo julgado competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela foi proferido o despacho ora recorrido, pelo qual, após recusar a aplicação da norma dos artigos 3.º-A, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09 de fevereiro, na redação dada pelo artigo 415.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, em conjugação com o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09 de fevereiro, interpretados como uma alteração da competência territorial de um tribunal administrativo e fiscal, com fundamento na sua inconstitucionalidade, esse Tribunal se declarou territorialmente incompetente para a causa, tendo julgado competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, ou seja, precisamente o mesmo que, por seu turno, primitivamente se tinha julgado territorialmente incompetente.
3. Perante esta decisão, o Ministério Público junto do Tribunal a quo veio apresentar requerimento de interposição de recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional (fls. 56), que foi admitido por despacho de 29 de março de 2022. Nesta sequência, subidos os autos e verificando-se que se encontravam preenchidos os pressupostos processuais, as partes foram notificadas para apresentar as suas alegações.
4. O Ministério Público junto do Tribunal Constitucional apresentou então alegações, postulando pelo não conhecimento do objeto do recurso ou, em alternativa, pela procedência do recurso interposto, concluindo, em suma, nos seguintes termos:
“1. O M.mo Juiz a quo fundamenta o seu despacho recorrido (de 16-02-2022), na perspetiva de considerar haver “conflito” de competência territorial entre tribunais tributários de 1.ª instância – concretamente em relação ao TAF de Sintra, que, por despacho de 17-01-2022, se havia considerado territorialmente incompetente para conhecer da oposição à execução apresentada pelo contribuinte –, delimitando o thema decidendum por remissão para a interpretação normativa supra apontada.
2. Tal interpretação é conclusivamente formulada no despacho recorrido, no sentido em que «(…) o n.º 3 do artigo 3.º-A, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02, na redacção dada pelo art.º 415.º da Lei n.º 2/2020, de 31/03, em conjugação com o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02, interpretados como uma alteração da competência territorial de um tribunal administrativo e fiscal, designadamente do TAF de Mirandela, são inconstitucionais porque violam o disposto nos art.º 32.º, n.º 9 e art.º 112.º da CRP».
3. Assim colocado o problema, o mesmo suscita, a nosso ver, uma questão prévia, aliás já abordada pela douta Decisão Sumária n.º 404/22 deste Tribunal Constitucional.
4. Conforme se escreve nesta Decisão Sumária n.º 404/22 deste Tribunal, «Como resulta dos autos, a declaração de incompetência decidida pelo Tribunal Tributário de Lisboa residiu na aplicabilidade ao caso da norma do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, de onde resulta que a competência para decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, a graduação e a verificação de créditos e as reclamações dos atos materialmente administrativos praticados pelos órgãos de execução, compete ao tribunal tributário de 1.ª instância da área onde corre a execução. Ora, dado que, nos termos do artigo 3.º-A, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, na redação dada pelo artigo 415.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, em conjugação com a Deliberação n.º 793/2020, do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P., publicada no Diário da República n.º 152/2020, Série II de 2020-08-06, páginas 92 a 94, a execução em causa corria os seus termos na secção de processo executivo de Bragança, o Tribunal Tributário de Lisboa concluiu que a competência territorial para a causa não era sua, mas sim do tribunal tributário de 1.ª instância da área onde corre a execução, ou seja, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela.
Tendo tal decisão transitado em julgado, foram os autos remetidos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela. Este tribunal decidiu então apreciar a sua competência territorial. Foi na decisão em que o fez – a decisão ora recorrida – que veio a recusar a aplicação das normas aplicadas pelo Tribunal Tributário de Lisboa para excecionar a sua competência, com fundamento na violação dos artigos 32.º, n.º 9 e 112.º, ambos da Constituição. E embora a decisão recorrida não seja inteiramente explícita sobre a questão, afigura-se que o raciocínio implicado pela recusa de aplicação seja o de que, por força do disposto no n.º 1 do artigo 3.º-A do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, a secção de processo executivo territorialmente competente para tramitar a execução seria a da residência da executada – in casu, Lisboa – e assim, por via do disposto no artigo 5.º, n.º 1, do mesmo Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, o tribunal territorialmente competente para julgar a oposição seria o da área onde corre a execução que, no caso, passaria a ser Lisboa. Ou seja, a norma cuja aplicação o Tribunal a quo recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, não foi propriamente a norma que estabelece o critério de determinação da sua competência territorial – a norma do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, que o estabelece por conexão e de forma invariante: competente será o tribunal da área onde corre a execução –, mas sim uma das normas que definem a competência territorial da entidade administrativa para a tramitação da execução e da qual resulta a definição do concreto tribunal territorialmente competente para os incidentes declarativos, por via da subsequente aplicação da norma do artigo 5.º, n.º 1.
5. Ora, independentemente das questões que este último aspeto pode convocar, afigura-se que, quando recebeu o processo provindo do Tribunal Tributário de Lisboa, não estava já na disponibilidade do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela recusar a sua competência territorial, designadamente devolvendo-a ao primeiro, pois essa primeira decisão havia resolvido definitivamente a questão da competência territorial.
Nos termos do artigo 17.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, a infração das regras de competência territorial determina a incompetência relativa do tribunal ou serviço periférico local ou regional onde correr o processo, sendo que, nos termos do n.º 1 do artigo 18.º do mesmo diploma, a decisão judicial de incompetência implica a remessa oficiosa do processo, por via eletrónica, ao tribunal tributário ou administrativo competente, no prazo de 48 horas.
A incompetência em função do território é uma incompetência relativa, agora de conhecimento oficioso. Nos termos do artigo 105.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do artigo 2.º, alínea e), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, a decisão transitada em julgado sobre a competência do tribunal em razão do território resolve definitivamente esta questão, ainda que ela tenha sido suscitada oficiosamente. Não há, pois, lugar a conflito negativo de competência em razão do território, valendo, a este respeito, a norma do artigo 625.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, da qual decorre que, havendo duas decisões inconciliáveis sobre a mesma concreta questão atinente à relação processual, aplica-se a que primeiro tiver transitado em julgado.
Nestas circunstâncias, revela-se inútil a apreciação da questão de constitucionalidade colocada nos autos. De facto, qualquer decisão que viesse a ser tomada por este Tribunal, no âmbito do presente recurso, seria insuscetível de se repercutir no processo. Se este Tribunal viesse a conceder provimento ao recurso, ou seja, a julgar não inconstitucionais as normas que constituem o seu objeto, o Tribunal a quo teria de reformar a sua decisão e aceitar a sua competência territorial, pois só a excecionou em virtude da desaplicação. Caso este Tribunal viesse a negar provimento ao recurso, ou seja, a julgar inconstitucionais as normas que constituem o seu objeto, a decisão ora recorrida manter-se-ia, mas sempre seria preterida pela decisão de 20 de dezembro de 2021 do Tribunal Tributário de Lisboa, por força do disposto nos artigos 105.º, n.º 2 e 625.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil.»
5. Assim, e como vem decidindo o Tribunal Constitucional, dado que um eventual juízo de não inconstitucionalidade das normas em causa não se repercutiria sobre o desfecho do litígio, é de concluir pela inutilidade do recurso de constitucionalidade, o que implica o não conhecimento do respetivo objeto, entendimento este que é válido mesmo nos casos de recurso fundado na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (v. o Ac. TC n.º 152/2009).
6. Afigura-se-nos, assim, que não deve conhecer-se do objeto do recurso.
7. Para a eventualidade hipotética de assim não se entender, diremos que o recurso merece ser julgado procedente, pelos seguintes fundamentos.
8. Apesar de o art. 32.º, n.º 9, da Constituição conter uma formulação aparentemente imperativa, segundo a qual «[n]enhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior», é duvidoso que se possa retirar daí «uma absoluta proibição da “retroatividade” da determinação do tribunal penal competente» (cfr. J. FIGUEIREDO DIAS, «Sobre o Sentido do Princípio Jurídico-Constitucional do “Juiz Natural”», Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 111.º, n.º 3615, p. 85») e, porventura, por maioria de razão, de qualquer outro tribunal. Segundo o mesmo Autor, «(…) o princípio do juiz natural não obsta a que uma causa penal venha a ser apreciada por tribunal diferente do que para ela era competente ao tempo da prática do facto que constitui o objeto do processo; só obsta a tal quando, mas também sempre que, a atribuição de competência seja feita através da criação de um juízo ad hoc (isto é, de exceção), da definição individual (e portanto arbitrária) da competência, ou do desaforamento concreto (e portanto discricionário) de uma certa causa penal, ou por qualquer outra forma discriminatória que lese ou ponha em perigo o direito dos cidadãos a uma justiça penal independente e imparcial» (loc. cit., p. 86).
9. Retirando o qualificativo “penal” que surge no excerto, aproximar-nos-emos do alcance do princípio relativamente a todos os tribunais. Deste modo, o conteúdo do dever de conformação do legislador no que toca ao princípio do juiz natural abrange a determinação o mais possível inequívoca e precisa do tribunal competente para conhecer de uma determinada causa. Essa exigência de determinação deve entender-se, enquanto mandato de otimização, como uma exclusão de margens de livre decisão permitindo a fixação da competência do juiz caso a caso.
10. Assim, o dever de conformação do legislador (ou dos órgãos de administração judiciária a quem caiba concretizar as orientações fixadas pelo legislador) no quadro do princípio da garantia do juiz natural exclui a justiça de exceção ou ad hoc, mas não necessariamente a fixação simultaneamente prospetiva e retroativa da competência do juiz.
11. Só uma determinação ambígua, imprecisa ou potenciando a individualização e a discricionariedade na fixação da competência do tribunal em casos concretos deve ser entendida como uma medida restritiva da garantia do juiz natural e, como tal, carecida de justificação no plano jurídico-constitucional.
12. O princípio do juiz natural tem recebido tratamento na jurisprudência do Tribunal Constitucional. Assim, no Ac. TC n.º 393/89 afirmou-se ter este princípio a ver «com a independência dos tribunais perante o poder político. O que ele proíbe é a criação (ou a determinação) de uma competência “ad hoc” (de exceção) de um certo tribunal para uma certa causa. O princípio proíbe, em suma, os tribunais ad hoc». Numa formulação muito idêntica, e retomada posteriormente em diversas decisões, afirmou-se no Ac. TC n.º 212/91 que «[a]o nível processual representa este princípio uma emanação do princípio da legalidade em matéria penal, tendo a ver com a independência dos tribunais perante o poder político e proibindo “a criação (ou a determinação) de uma competência ad hoc (de exceção) de um certo tribunal para uma certa causa — em suma, os tribunais ad hoc)”».
13. Por seu turno, no Ac. TC n.º 614/2003 – decisão que representa um marco da nossa jurisprudência constitucional sobre o tema, a propósito da determinação do juiz singular em processo penal, ao abrigo do art. 16.º, n.º 3 do CPP –, foi entendido que «o princípio do juiz natural, ao proibir a criação de tribunais ad hoc, não se opõe ao método da determinação concreta da competência do tribunal, que atende à pena que, num juízo prévio de prognose, se espera que venha a ser aplicada ao crime, não abrindo também tal preceito a porta a uma arbitrária manipulação da competência para julgar», fazendo-se nele importante recensão sobre jurisprudência constitucional nacional, alemã e italiana.
14. Para além disso, o mesmo aresto fixa também orientações precisas quanto ao fundamento do princípio e às dimensões do seu conteúdo ou âmbito de proteção, quer na vertente positiva, quer na vertente negativa, independentemente da sua consideração como um direito fundamental subjetivo.
15. No tocante ao fundamento, afirma-se no Acórdão n.º 614/03 que o princípio do juiz natural, ou juiz legal, «para além da sua ligação ao princípio da legalidade em matéria penal, encontra ainda o seu fundamento na garantia dos direitos das pessoas perante a justiça penal e no princípio do Estado de direito no domínio da administração da justiça. É, assim, uma garantia da independência e da imparcialidade dos tribunais (artigo 203.º da Constituição)». O princípio contém «a exigência de determinabilidade do tribunal a partir de regras legais (juiz legal, juiz predeterminado por lei, gesetzlicher Richter) visa evitar a intervenção de terceiros, não legitimados para tal, na administração da justiça, através da escolha individual, ou para um certo caso, do tribunal ou do(s) juízes chamados a dizer o Direito. Isto, quer tais influências provenham do poder executivo — em nome da raison d’État — quer provenham de outras pessoas (incluindo de dentro da organização judiciária). Tal exigência é vista como condição para a criação e manutenção da confiança da comunidade na administração dessa justiça, “em nome do povo” (artigo 202.º, n.º 1, da Constituição), sendo certo que esta confiança não poderia deixar de ser abalada se o cidadão que recorre à justiça não pudesse ter a certeza de não ser confrontado com um tribunal designado em função das partes ou do caso concreto». Na sua dimensão positiva, o princípio abrange quer «a determinação do órgão judiciário competente», quer a «definição, seja da formação judiciária interveniente (secção, juízo, etc.), seja dos concretos juízes que a compõem» através do «dever de criação de regras, suficientemente determinadas, que permitam a definição do tribunal competente segundo características gerais e abstratas». As regras que permitem tal determinação, e logo relevantes para aferir o cumprimento das exigências do princípio, não são «apenas regras constantes de diplomas legais, mas também outras regras que servem para determinar essa definição da concreta formação judiciária que julgará um processo — por exemplo, as relativas ao preenchimento de turnos de férias —, mesmo quando não constam da lei e antes de determinações internas aos tribunais (por exemplo, regulamentos ou outro tipo de normas internas)».
16. Na sua dimensão negativa, entendeu o Acórdão n.º 614/03 que o princípio do juiz natural significa uma proibição do afastamento, num caso individual, das regras gerais e abstratas que «permitem a identificação da concreta formação judiciária que vai apreciar o processo». Incluem-se aí quer «“proibição do desaforamento” depois da atribuição do processo a um tribunal, quer a proibição de tribunais ad hoc ou ex post facto, especiais ou excecionais – a qual deve, aliás, ser relacionada também com a proibição, constante do artigo 209.º, n.º 4, da Constituição, de “existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes”, salvo os tribunais militares durante a vigência do estado de guerra (artigo 213.º da Constituição)».
17. No referido Ac. TC n.º 614/03 entendeu-se que não violava o princípio do juiz natural a alteração de regras relativas ao tempo ou momento da distribuição de um incidente processual, das quais indiretamente resultaria uma alteração da composição do tribunal e, consequentemente, a violação do princípio em causa. Com efeito, a alteração em causa imporia mudanças de turnos e a limitação do número de juízes que os integram, que por sua vez teriam incidência na definição do tribunal que julgaria o processo. Todavia, considerou-se que estava ainda em causa uma alteração com aplicação imediata e não apenas o afastamento, derrogação ou não aplicação da regra no caso concreto, alteração essa que teria justificação em razões de celeridade constitucionalmente atendíveis.
18. Este quadro esboçado grosseiramente, permite iluminar as observações que em seguida se formulam, relativamente ao recurso em apreço nos autos.
19. Conforme já se disse atrás, a interpretação normativa feita pelo M.mo juiz a quo se nos afigura insubsistente no sentido de fundamentar a inconstitucionalidade de qualquer norma extraída do art. 3.º-A, n.º 3 do Dec.-Lei n.º 42/2011, conjugado com o n.º 1 do art. 5.º do mesmo diploma, designadamente por suposta por afronta aos artigos 32.º, n.º 9 e 112.º da CRP.
20. Nessa formulação, o M.mo juiz a quo instrumentaliza o conteúdo do ponto 19 da Deliberação do Conselho Diretivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., de 2 de Julho de 2020, enquanto fundamento para implicar a alteração dos critérios (legais) de fixação de competência territorial dos tribunais com competência em matéria tributária.
21. De forma alguma uma Deliberação de uma entidade administrativa pode determinar decisivamente o complexo normativo que fixa e atribui competência (designadamente territorial) a tribunais tributários.
22. Tal matéria é subordinada à reserva relativa de lei formal e material – art. 165.º, alínea p) da CRP.
23. Se bem vemos as coisas, a desaplicação da norma que o M.mo juiz a quo considera ser violadora da Constituição assenta na construção mistificatória de que é a Deliberação do Conselho Diretivo do IGFSS que implica a alteração da competência dos tribunais tributários para decidir os incidentes jurisdicionais suscitados a propósito de execuções que sejam instruídas em secções de processo executivo da Segurança Social.
24. Não é assim. A dita Deliberação apenas vem densificar – e, nessa medida, conferir precisão – à previsão do n.º 3 do art. 3.º-A do Dec.-Lei n.º 42/2001 (alterado pelo artigo 415.º da Lei n.º 2/2020), a qual expressamente remete para os «termos de deliberação do conselho diretivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P., publicada no Diário da República», preceito que tem de ser conjugado com o do art. 5.º, n.º 1 desse diploma.
25. É, portanto, ao abrigo dessas disposições legais e da referida Deliberação, que efetivamente o legislador pretendeu alterar a regra atributiva de competência territorial.
26. É, assim, uma regra especial atributiva de competência territorial aos tribunais com competência em matéria tributária para apreciarem as questões jurisdicionais das execuções por dívidas à Segurança Social.
27. E é uma regra que não pode classificar-se de arbitrária nem individualizadora, porquanto se encontra prévia e especificadamente determinada a regra especial de atribuição da competência territorial dos tribunais tributários plasmada no art. 5.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 42/2001.
28. A qual deve primar, face à regra geral de atribuição da competência territorial dos tribunais tributários, do art. 12.º do CPPT (art. 6.º do Dec.-Lei n.º 42/2001).
29. Não existe, como se sabe, qualquer proibição constitucional no sentido de o legislador (não) poder reformular o critério de atribuição de competência dos tribunais, apenas se podendo, eventualmente, falar em “desaforamento” ou em violação do princípio do juiz natural se tal regra se aplicasse no decurso do processo – relativamente a alteração da competência de tribunal cuja competência estivesse fixada em lei anterior (art. 32.º, n.º 9 da CRP) –, o que, manifestamente, não é o caso dos autos.
30. O legislador está legitimado para autorizar a disciplina interna da redistribuição do serviço das secções de execução da Segurança Social, através de soluções gestionárias exaradas em Deliberação do Conselho Diretivo do IGFSS, de acordo com previsão legal – prevista no art. 3.º-A, n.º 3 do Dec.-Lei n.º 42/2001 –, pelo que um tal poder não foi originária e autonomamente “usurpado” por aquele órgão.
31. Só se poderia falar em desvio da regra de competência (territorial no caso) dos tribunais tributários para o exercício das funções, do art. 5.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 42/2001, caso o Conselho Diretivo do IGFSS tivesse aprovado um instrumento normativo não especialmente previsto na lei, e cujo efeito fosse o de alterar a regra da competência daquele preceito de forma discricionária, a qual, note-se, não coincide com a do art. 12.º do CPPT.
32. Mas não foi isso que sucedeu. Essa redistribuição de competências conjuga-se estreitamente com a previsão de um critério especial de atribuição de competência territorial para decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, a graduação e a verificação de créditos e as reclamações dos actos materialmente administrativos praticados pelos órgãos de execução – do art. 5.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 42/2001 – divergente da regra geral enunciada no art. 12.º do CPPT.
33. Nem se diga que existe qualquer desrespeito no tocante à hierarquia de disposições legais em confronto – as do art. 12.º do CPPT e as dos artigos 3.º-A, n.º 3 e 5.º do Dec.-Lei n.º 42/2001, de 09-02 – pois a primeira e a terceira foram aprovadas por (dois) Decretos-Leis (o CPPT foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26-10, no uso da autorização legislativa concedida pelos n.os 1 e 6 do artigo 51.º da Lei n.º 87-B/98, de 31 de dezembro, e nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição), sendo certo que a do art. 3.º-A do Dec.-Lei n.º 42/2001 foi alterada pelo art. 415.º da Lei n.º 2/2020, de 31-03.
34. Por fim, invocar a violação do art. 112.º [n.º 5] da CRP, como faz o M.mo juiz a quo no seu despacho sob escrutínio, parece-nos um exercício deslocado ou artificioso, porquanto não aplicável à situação material vertente nos autos, em que, como se procurou demonstrar, não é uma “deliberação” que tem como efeito a alteração das regras de atribuição de competência territorial os tribunais tributários de 1.ª instância para julgar os incidentes previstos no art. 5.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 42/2001, em sede de execuções instruídas pelas secções executivas da Segurança Social.
35. Essa alteração das regras de competência decorre de opção legislativa, totalmente legítima, emergente do disposto nos artigos 3.º-A, n.º 3 e 5.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 42/2001, na versão atual.
36. Não nos parece, s.m.o., que a (suposta) interpretação normativa aplicada pelo M.mo juiz a quo no despacho recorrido, implique qualquer afronta ao princípio da proibição do desaforamento e do juiz natural – art. 32.º, n.º 9 da CRP –, ao art. 112.º[, n.º 5] da CRP, ou a qualquer outra disposição, princípio ou parâmetro constitucional.
37. Deve, por isso, no caso de se decidir conhecer do seu objeto, o recurso interposto ser julgado procedente.
38. Mais se consigna que se acham, simultaneamente, pendentes neste Tribunal, pelo menos, os processos de recurso de constitucionalidade n.ºs 264/22-2.ª Secção, 426/22-3.ª Secção, 510/22-2.ª Secção, 511/22-1.ª Secção, 512/22-1.ª Secção e 569/22-2.ª Secção, versando a mesma questão.”
5. Regularmente notificadas, as contrapartes não se manifestaram.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso e pressupostos de cognoscibilidade
6. Tal como enunciado no requerimento de interposição de recurso, a norma questionada, na delimitação feita pelo recorrente, resulta da interpretação combinada do n.º 3 do artigo 3.º-A e n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09 de fevereiro, na redação dada pelo artigo 415.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, no sentido de permitir uma alteração da competência territorial de um tribunal administrativo e fiscal, através de deliberação do conselho diretivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P. (designadamente do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela), com fundamento na sua inconstitucionalidade por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 9, e 112.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Os preceitos em causa têm o seguinte teor:
Artigo 3.º-A
Competência para a instauração e instrução do processo
(...)
3 - A instauração e instrução do processo de execução por dívidas à segurança social pode ser praticada em secção de processo executivo diferente do distrito da sede ou da área de residência do devedor, nos termos de deliberação do conselho diretivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P., publicada no Diário da República.
Artigo 5.º
Competência dos tribunais administrativos e tributários
1 - Compete ao tribunal tributário de 1.ª instância da área onde corre a execução decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, a graduação e a verificação de créditos e as reclamações dos actos materialmente administrativos praticados pelos órgãos de execução.
7. Entende o Ministério Público que se imporia a este Tribunal uma decisão de não conhecimento do recurso, com fundamento na respetiva inutilidade, porquanto “quando recebeu o processo provindo do Tribunal Tributário de Lisboa, não estava já na disponibilidade do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela recusar a sua competência territorial, designadamente devolvendo-a ao primeiro, pois essa primeira decisão havia resolvido definitivamente a questão da competência territorial”, nos termos do artigo 105.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do artigo 2.º, alínea e), do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Todavia, não se crê que assim seja. Nos termos do artigo 80.º, n.ºs 1 e 2, da LTC, a decisão do recurso faz caso julgado no processo quanto à questão da inconstitucionalidade, devendo o tribunal a quo reformar a decisão em conformidade com o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade. À luz destas normas, e tendo em conta que a sua competência se configura como meramente cassatória, na avaliação prévia sobre a utilidade das suas decisões, apenas cabe ao Tribunal Constitucional equacionar se o seu acórdão será passível de alterar o teor da decisão recorrida, não lhe cabendo antecipar o concreto juízo de ponderação do tribunal recorrido e a seleção de normas de direito infraconstitucional a aplicar, em caso de um juízo de inconstitucionalidade.
No presente caso, se este Tribunal concluísse, com o Ministério Público, que a dimensão normativa questionada não viola a Constituição, não caberiam dúvidas de que a decisão recorrida não se manteria intocada. A ausência de impedimento constitucional à aplicação do disposto nos artigos 3.º-A, n.º 3, 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 42/2001, imporia ao Tribunal a quo o reconhecimento da sua competência para conhecer da causa, nos termos da deliberação do conselho diretivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P.. Por outro lado, porém, um julgamento de inconstitucionalidade nesta sede não conduz à aplicação automática da regra de conflitos constante do artigo 105.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Essa operação caberá ao tribunal competente – maxime, ao tribunal de conflitos -, mediante um juízo de ponderação próprio, ao qual não deve este Tribunal Constitucional substituir-se, por não ter competência para tal. Não podendo, pois, afirmar-se com segurança a irrelevância da presente decisão, nada obsta ao conhecimento do recurso.
Do mérito do recurso
8. A questão de constitucionalidade colocada nos presentes autos – a da conformidade com a Constituição da República Portuguesa (CRP) da interpretação conjugada do n.º 3 do artigo 3.º-A e do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, no sentido de operarem uma alteração da competência territorial de um tribunal administrativo e fiscal - foi já apreciada e decidida pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 755/2022.
Nesse aresto, desta 2.ª Secção, o Tribunal decidiu julgar inconstitucional o disposto nos artigos 3.º-A, n.º 3, e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, quando interpretados no sentido de a deliberação do conselho diretivo de Instituto da Segurança Social, IP prevista no primeiro dos preceitos, definir a competência territorial de um Tribunal Administrativo e Fiscal, por violação dos artigos 112.º, n.º 5, e 20.º, n.º 4 º, ambos da Constituição da República Portuguesa, tendo a decisão por fundamento, em suma, o seguinte:
“(...)
8. Comecemos por fazer ver que, na interpretação normativa sindicada, o artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, tem por efeito, peculiar e primário, a assimilação da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais para o julgamento de incidentes jurisdicionais em sede de processo executivo promovido por ISS, IP, ao que seja a competência da secção de processo executivo desta entidade administrativa para a instauração e instrução da execução.
Por outras palavras, a norma estabelece que será competente para julgar a causa em sede jurisdicional (embargos de terceiro, oposição à execução, reclamação de atos do órgão executivo e todos os demais incidentes que sejam suscitados, incluindo a graduação e verificação de créditos concorrentes) o Tribunal que exerça autoridade jurisdicional em matéria tributária sobre a parcela de território em que esteja sediado o órgão de ISS, IP com competência para tramitar a ação executiva. Isto é assim pela razão essencial que será nesse órgão executivo que «correrá a execução a que respeita o incidente (cfr. artigo 5.º, n.º 1, 1.ª parte, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro).
De sua parte, o n.º 1, do artigo 3.º-A do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro estabelece como órgão executivo de ISS, IP as secções executivas distritais integradas na orgânica desta entidade administrativa, elegendo como fator atributivo de competência, de entre elas, a secção instalada no local de sede social ou de residência do executado, consoante se trate de pessoa coletiva ou singular, respetivamente. A solução legal é, pois, atributiva da competência jurisdicional, em contencioso executivo entre ISS, IP e particulares, ao Tribunal da área de residência do demandado.
Esta é uma opção de política legislativa com grande tradição entre nós em matéria de aforamento de processos executivos (cfr. artigos 71.º, n.º 1 e 85.º, n.º 1, 86.º e 89.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil [CPC]) e equipara o controlo jurisdicional da atividade de cobrança coerciva de ISS, IP ao estabelecido para as execuções fiscais (cfr. artigos 12.º, n.º 1 e 151.º, n.º 1, ambos do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT).
O exposto significa também que as competências dos Tribunais Administrativos e fiscais são extremamente sensíveis às alterações do âmbito de competências dos órgãos executivos de ISS, IP. Qualquer alteração neste domínio terá por efeito modificar a forma de repartição do exercício da autoridade jurisdicional no território nacional entre Tribunais tributários, impactando diretamente na forma como os órgãos de soberania exercem a sua missão constitucional (cfr. artigo 202.º, n.º 1 e, em especial, artigo 212.º, n.º 3, ambos da Constituição da República Portuguesa).
Ora, a Lei n.º 2/2020, de 31 de março veio alterar a redação do artigo 3.º-A do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro e estabeleceu (n.º 3) que o âmbito de competência das secções executivas de ISS, IP pode ser modificado por deliberação do conselho diretivo de ISS, IP. A decisão por este órgão sobre essa matéria não está subordinada a quaisquer requisitos e compreende-se no seu espaço de discricionariedade administrativa: é-lhe admitido, livremente, atribuir e eliminar competências entre secções executivas e, bem assim, transferi-las de acordo com os critérios que entender mais adequados, sem limitações; a norma permite mesmo que sejam esvaziadas por completo as competências de certa secção ou secções, ou, no limite, que o conselho diretivo determine que uma só secção acumule o contencioso executivo de ISS, IP de todo o país.
Por necessária deriva, do cotejo entre os artigos 3.º-A, n.º 3 e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, na interpretação ora sujeita a fiscalização, resulta também que ao conselho diretivo de ISS, IP está conferida autoridade para, através de deliberação do órgão e em matéria de execuções instauradas por ISS, IP, determinar a repartição de competências em função do território dos Tribunais Administrativos e Fiscais em matéria de execuções tributárias promovidas por ISS, IP. A equiparação da competência territorial entre os órgãos da execução (artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro) e os Tribunais da execução (artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro) significa que a deliberação do conselho diretivo de ISS, IP que altere o critério de fixação para a primeira possui impacto direto na forma como cada órgão judicial de administração de justiça adquire competência para o julgamento das matérias incidentais-executivas, com exclusão de todos os demais.
Ora, nos termos conjugados dos artigos 161.º, alínea c), e 165.º, n.º 1, alínea p), 1.ª parte, ambos da Constituição da República Portuguesa, a definição das competências dos Tribunais está sujeita a reserva (relativa) da Assembleia da República. Deixando de parte os casos de autorização ao Governo, apenas o Parlamento pode legislar sobre essa matéria que, necessariamente, terá de revestir a forma de Lei (cfr. artigo 166.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa).
A norma extraída dos artigos 3.º-A, n.º 3, e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, na interpretação ora sob fiscalização de constitucionalidade, pois que assim é, viola frontalmente este grupo de normas-regras da Lei Fundamental, já que, como acabámos de ver, por aí se confere competência ao conselho diretivo de ISS, IP para definir a repartição de competências, em razão do território, dos Tribunais Administrativos e Fiscais em matéria de execuções instauradas pela entidade administrativa. Não apenas isso, o mesmo quadro normativo estabelece também que as alterações adotarão a forma de deliberação do órgão diretivo de ISS, IP, bastando essa fórmula para que adquiram eficácia geral após publicação em Diário da República.
Não procede o argumento de que este programa normativo se pode entender admissível por a autoridade do conselho diretivo de ISS, IP se dirigir às secções de execução, resultando a atribuição de competências aos Tribunais Administrativos e Fiscais da norma do artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, aprovada em Lei pela Assembleia da República, ou, nas palavras do recorrente: a “deliberação apenas vem densificar – e, nessa medida, conferir precisão – à previsão do n.º 3, do art. 3.º-A do Dec.-Lei n.º 42/2001 (…) a qual expressamente remete para os «termos da deliberação do conselho diretivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, publicada no Diário da República», preceito que tem de ser conjugado com o do art. 5.º, n.º 1 desse diploma”.
Desde logo e em primeiro lugar, é evidente que o artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, não estabelece o quadro legal de repartição de competências dos Tribunais tributários (esta norma possui conteúdo meramente remissivo), nem sequer o artigo 3.º-A, n.º 3 do diploma que acabámos de citar: essa competência é definida, a título supletivo, pelo n.º 1 do artigo 3.º-A do diploma (foro do executado), que é solução passível de ser abrogada mediante deliberação do conselho executivo de ISS, IP (in casu, deliberação n.º 793/2020) que fixe competência diferente para as secções de execução de ISS, IP, tal como resulta textualmente dos preceitos legais.
Dito de outra forma, a Lei continua a fixar apenas como critério de competência do órgão executivo e, por inerência, dos Tribunais (artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro), o local de sediação ou de residência do executado (artigo 3.º-A, n.º 1, do diploma), mas permite ainda (n.º 3) que o conselho diretivo abrogue esta regra legal, escolhendo outro critério que repute conveniente, e, por inerência, que assim introduza uma alteração no ordenamento jurídico-processual consubstanciada na modificação (extensão, compressão ou transferência) do âmbito de competência de ambos os órgãos, executivo e jurisdicional, abrangidos pela deliberação.
A reserva estabelecida no artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição da República Portuguesa significa que terá de ser uma Lei parlamentar a definir a competência dos órgãos jurisdicionais e respetivos critérios de conexão, sem recurso a elementos externos ao ato legislativo. Como é evidente, não é compatível com esta norma constitucional a delegação desse poder legislativo a entidades administrativas, a quem está vedada a aprovação desse tipo de quadro normativo.
Em segundo lugar e ainda que para estes efeitos pouca diferença faça, já resulta do que vai dito, não se pode sequer afirmar que ao conselho diretivo de ISS, IP coubesse apenas densificar uma norma legal, como pretende o recorrente. Como dissemos, a definição de competências das secções de execução e, por inerência, dos Tribunais Administrativos e Fiscais pelo conselho diretivo de ISS, IP, não está vinculada a nenhum critério, antes está entregue à discricionariedade administrativa daquele órgão. Não existe qualquer forma de parâmetro ou de critério legal que ao conselho diretivo coubesse dar densidade, pelo que não é legítimo dizer-se que apenas lhe cabe “conferir precisão” à Lei. Trata-se de uma competência e autoridade autónomas atribuídas por inteiro pela Lei.
Depois, este é um caso em a Lei ordinária substitui a norma constitucional, verdadeiramente invertendo a hierarquia entre fontes e substituindo-se à Constituição da República Portuguesa. O vício de inconstitucionalidade por violação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea p) e 166.º, n.º 3, todos da Constituição da República Portuguesa, não atinge (ou não atinge apenas) a deliberação do conselho diretivo de ISS, IP n.º 793/2020, antes localiza-se diretamente na norma dos artigos 3.º-A, n.º 3, e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, aprovada pela Lei n.º 2/2020, de 31 de março. Em violação frontal daquele quadro de Direito constitucional, as normas citadas, na interpretação sindicada, atribuem a um órgão administrativo competência para definir, no plano jurídico-processual, a repartição de competências entre Tribunais Administrativos e Fiscais (em matéria de execuções instauradas por ISS, IP) e elegem uma forma própria para que a alteração produza efeitos na ordem jurídica (a deliberação do conselho diretivo de ISS, IP, sujeita a publicação em Diário da República, como acima deixámos impresso).
De resto, em face do vazio normativo que os artigos 3.º-A, n.º 3 e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, representam quanto a regras de atribuição de competência a Tribunais da jurisdição administrativa-fiscal (que nenhuma contêm), o único critério a este respeito estabelecido em Lei é, repetimos, o que se colhe do disposto nos artigos 3.º-A, n.º 1 e 5.º, n.º 1, do diploma, que a defere para o Tribunal com poder jurisdicional sobre o local de sede ou de residência do executado. Nesse pressuposto e como bem aponta o Tribunal “a quo”, o disposto nos artigos 3.º-A, n.º 3 e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, na interpretação normativa fiscalizada, colide também com a proibição constitucional estabelecida no artigo 112.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa: a norma-objeto confere a atos de natureza não legislativa (a deliberação do conselho diretivo de ISS, IP) o poder de, com benefício de autonomia, discricionariedade e com eficácia geral, à semelhança de atos legislativos (como tal, gozando de efeitos exteriores ao órgão), suprimir o efeito da única norma estatutiva da repartição de competências entre órgãos jurisdicionais constante da Lei, frontalmente postergando por inteiro a citada norma da Lei Fundamental.
Assim, resta concluir que os artigos 3.º-A, n.º 3 e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, quando interpretados no sentido de permitirem que, por via da deliberação do conselho executivo de ISS, IP referida no primeiro dos dispositivos legais (seja a deliberação n.º 793/2020), se altere o âmbito de competências dos Tribunais Administrativos e Fiscais (seja do TAF de Mirandela), são materialmente inconstitucionais por violação dos artigos 165.º, n.º 1, alínea p), 166.º, n.º 3 e 112.º, n.º 5, todos da Constituição da República Portuguesa.
9. Compete-nos ainda sinalizar outros dois vícios de inconstitucionalidade do programa normativo sob fiscalização, que não foram colocados na decisão recorrida (nem pelas partes), mas de que este Tribunal Constitucional pode conhecer, ex vi artigo 79.º-C, parte final, da LTC.
9.1. O princípio do processo justo e equitativo, em especial em matéria administrativa, acha-se agasalhado nos artigos 20.º, n.º 4 e 268.º, n.º 4, ambos da Constituição da República Portuguesa, e, para além do mais, por ele se postula o “direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias” (v. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Ed., 2007, p. 415). O confronto judiciário entre portadores de interesses opostos, seja o caso da administração e de um particular, pois, deverá pautar-se pela paridade de oportunidades de litigância, de direitos conferidos e de ónus impostos (especialmente se cominatórios ou preclusivos do exercício de faculdades processuais), adotando uma fórmula reguladora que garanta a simetria de posições entre demandante e demandado e que impeça a criação de desníveis em favor ou desfavor de qualquer um dos intervenientes em confronto que possam enviesar o procedimento judiciário e constituir, só por si, fator operante da decisão, como tal apto a influenciar o sentido de desfecho da causa.
Em essência, exige o princípio que seja concedida “a possibilidade de as partes exercerem, com igualdade de armas, uma defesa efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e de, numa base paritária, poderem influenciar a decisão judicial” (v. Acórdão do TC n.º 29/2020; v., também, entre muitos outros, Acórdãos do TC n.ºs 147/92, 346/92, 223/95 e 738/2021) e é também neste contexto jurídico-constitucional que importa levar em conta o programa normativo sob fiscalização.
Na verdade, cabe relembrar que a regulamentação em causa constitui parte integrante da disciplina jurídico-processual de instâncias jurisdicionais (de natureza executiva) em que ISS, IP é parte, ou seja, em que se apresenta como sujeito jurídico de Direito público em exercício de pretensão própria sobre particulares, estando-lhe conferida, por isso, legitimidade ativa na instância.
Ora, ao órgão de cúpula de ISS, IP são atribuídos pelos artigos 3.º-A, n.º 3 e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, na interpretação normativa sob fiscalização, poderes para escolher o Tribunal em que as suas iniciativas executivas serão julgadas. A norma permite que as competências dos Tribunais Administrativas e Fiscais sejam alteradas tantas vezes quantas o conselho diretivo de ISS, IP entenda que lhe são úteis e em função dos critérios que, discricionariamente, tenha por mais convenientes.
Esta prerrogativa tem de se entender ilegítima num processo de partes caracterizado pela oposição de pretensões entre sujeitos intervenientes e é tanto mais grave quando se está perante um confronto entre entidade estadual e particular, essencialmente caracterizado por um ataque direto ao património da primeira sobre o segundo.
Veja-se que, por esta via, é possível a ISS, IP gerir a distribuição deste contencioso entre Tribunais em função da sua carteira de interesses e sem necessidade de levar em conta a posição dos sujeitos jurídicos com que se confronta ou o necessário equilíbrio a que deve obedecer a instância como garantia da igualdade entre litigantes, coeva ao princípio de due process of law.
A transferência de competências admitirá a ISS, IP, por exemplo, concentrar o julgamento dos incidentes em ações executivas em que demanda em Tribunais que exibam entendimentos mais protetivos dos seus interesses, potenciando maior sucesso na litigância no cômputo global. Pense-se, em incidente de oposição à execução, na controvérsia que existe sobre o padrão probatório apto a ilidir a presunção de culpa sobre gestores, constitutiva de responsabilidade por dívidas contributivas da empresa gerida (artigos 23.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1, alínea b), ambos da Lei Geral Tributária e artigos 342.º, n.º 1 e 344.º, n.º 1, ambos do Código Civil [CC]); ou, em incidente para verificação e graduação de créditos, a divisão jurisprudencial que existiu sobre a prevalência do privilégio imobiliário por contribuições a ISS, IP sobre hipotecas (artigos 686.º, n.º 1 e 751.º, ambos do CC e artigo 11° do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio). À semelhança destas questões, muitas outras importarão divisão jurisprudencial, especialmente em 1.ª instância, e não há dúvidas de que a proliferação de dado entendimento poderá conferir a uma das partes grande vantagem sobre a outra.
Caso a direção de ISS, IP opte por acumular competências em Tribunais Administrativos e Fiscais que adotem entendimentos mais benignos para a sua pretensão executiva, reduzindo a atividade jurisdicional de Tribunais mais renitentes em adotar leituras pro fisco, é bem possível que essa decisão insufle de forma importante o sucesso global do seu contencioso, especialmente quando se leve em conta o volume deste tipo de litigância estatal e as condições de irrecorribilidade das decisões de 1.ª instância (cfr. artigo 280.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT). Este efeito será obtido do programa normativo sindicado, porém e como fica evidente, com flagrante sacrifício da igualdade processual entre litigantes.
Talvez com maior importância prática, as normas sob sindicância permitem a ISS, IP gerar dificuldades acrescidas para executados, seus opositores nas instâncias executivas, pela deslocalização dos processos judiciais em que são demandados, impondo-lhes encargos adicionais que podem significar a inviabilidade económica global do litígio (pense-se em causas de menor valor) e dificultando de forma importante o seu acesso aos autos para consulta e preparação de defesa.
Se se pretender um exemplo concreto que ilustre o que viemos de dizer, veja-se o caso que subjaz ao presente recurso e no que lhe está ínsito: um particular residente em Lisboa, a propósito de uma dívida contributiva associada à sua atividade profissional de € 1.488,96, vê a competência para o julgamento da oposição à ação executiva que lhe foi movida por ISS, IP deslocada, por força de deliberação do órgão diretivo desta entidade, para o Tribunal de Mirandela, Bragança, a cerca de 460kms da sua residência e a mais de cinco horas de viagem. Enquanto ISS, IP beneficia de um órgão executivo sediado na localidade, José Guilherme Nunes vê-se obrigado a gerir o litígio a grande distância, incorrendo nos custos inerentes, designadamente com deslocações de mandatário, e suportando todo o leque de inconvenientes e dificuldades acrescidas que a circunstância acarreta.
É certo que a atividade administrativa está também vinculada à Constituição da República Portuguesa (artigo 266.º, n.ºs 1 e 2 da Lei Fundamental) e que, em princípio, a deliberação do conselho diretivo de ISS, IP teria de levar em conta estes parâmetros. No entanto, como já fez ver a doutrina, “não se pode olvidar que a administração deve sempre, em qualquer caso, prosseguir o interesse público da administração, agindo, nesta perspetiva, com parcialidade, ‘na medida que lhe cumpre defender um interesse [o da administração] que pode estar em conflito com o interesse de um particular’ (cfr., sublinhando a diferença BATISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, págs. 148-149)” (v. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, vol. III, Univ. Católica Ed., 2020, p. 40)
Por outro lado, inserindo-se a decisão num espaço de discricionariedade administrativa e conferindo, por isso, a inerente latitude ao órgão diretivo de ISS, IP, o seu controlo jurisdicional acha-se condicionado. Em qualquer caso e de radical, o simples facto de uma das partes dispor desta prerrogativa, submetendo a outra, que dela não dispõe, temos quanto baste para que se atinja, de forma constitucionalmente incomportável, a necessária equidade do processo judicial-tributário.
Assim, concluímos que os artigos 3.º-A, n.º 3 e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, quando interpretados no sentido de permitirem que, por via da deliberação do conselho executivo de ISS, IP referida no primeiro dos dispositivos legais (seja a deliberação n.º 793/2020), se altere o âmbito de competências dos Tribunais Administrativos e Fiscais (seja do TAF de Mirandela), são materialmente inconstitucionais por violação dos artigos 20.º, n.º 4 e 268.º, n.º 4, ambos da Constituição da República Portuguesa.
9.2. Tributário do princípio da separação de poderes, indissociável do Estado-de-Direito (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa; v. Acórdão do TC n.º 581/2000) e integrado na reserva de revisão constitucional (artigo 288.º, alínea m) da Constituição da República Portuguesa), a independência dos Tribunais consagra-se no artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa e possui indisputável protagonismo na estrutura e disciplina normativa do sistema judiciário:
“O Estado de Direito postula o reconhecimento – e a garantia – da autonomia dos tribunais no exercício da sua tarefa de administração de justiça, sendo a independência dos tribunais garantia, condição e meio indispensável para a realização do direito e da justiça. (…) a independência é, deve ser, o status essencial de um verdadeiro tribunal e de um autêntico juiz, pois só no pressuposto dela e através dela a intenção à verdade e à justiça que é estruturalmente inerente à atividade dos tribunais – de cada tribunal – é suscetível de ser alcançada. Só no pressuposto dela e através dela existe a ‘garantia de que a sentença judicial pode valer como emanação do direito e não simplesmente como ato decisionista do Estado’” (v. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, op. cit., p. 34)
Na dimensão que mais nos interessa, “a independência dos tribunais exprime, em primeiro lugar, a autonomia dos órgãos aos quais incumbe a administração da justiça em face dos órgãos atuantes das demais funções do Estado, a comummente dita independência externa”, de que decorre, designadamente, a “não sujeição dos tribunais a ordens ou instruções das demais autoridades públicas” (v. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, op. cit., p. 37). Dito de outro modo, trata-se de um princípio que postula a não-ingerência de outros órgãos do poder público na organização, gestão e realização da função jurisdicional cometida aos Tribunais pela Constituição (artigo 202.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
A independência da jurisdição exige “garantias, orgânicas, estatutárias e processuais” (Acórdão do TC n.º 52/92), cabendo à Lei ordinária modelar um sistema de estrutura orgânica e processual que ofereça segurança efetiva sobre a impermeabilidade do poder judicial a influências exteriores.
Ora, uma disposição legal que confira a um órgão administrativo poderes para definir a competência dos Tribunais em razão do território (ainda que apenas quanto a dada matéria) é, obviamente, uma lapidar abrogação do estatuto constitucional de independência da Jurisdição, tanto mais assim quando suceda de forma discricionária, sem vinculação a critérios legais e sem limitações, representando uma subordinação do poder judicial à autoridade administrativa: consubstancia, como tal, uma violenta ingerência na independência externa dos Tribunais, claramente incompatível com o disposto no artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa.
A reserva de Lei da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição da República Portuguesa), impondo um processo legislativo parlamentar para que se defina o recorte da distribuição de competências entre órgãos jurisdicionais, também no que tange a respetiva divisão territorial, deve entender-se, neste domínio, ela própria instrumental da independência dos Tribunais, especialmente levando em conta os ganhos de transparência, de controlo presidencial e as prerrogativas de fiscalização preventiva e sucessiva consagradas na Constituição (cfr. artigos 134.º, alínea b), 278.º e 281.º, todos da Constituição da República Portuguesa), em absoluto contraste com o que sucede com um ato administrativo do órgão diretivo de ISS, IP.
O Ministério Público defende que o “legislador está legitimado para autorizar a disciplina interna da redistribuição das secções de execução da Segurança Social, através de soluções gestionárias exaradas em Deliberação do Conselho Diretivo do IGFSS, de acordo com previsão legal – prevista no art. 3.º-A, n.º 3 do Dec.-Lei n.º 42/2001 –, pelo que um tal poder não foi originária e autonomamente «usurpado» por aquele órgão”.
Esta afirmação é, por si só, muito discutível, já que a função das secções executivas está integrada na orgânica do processo judicial, mesmo antes de ser suscitado qualquer incidente que caiba a um Tribunal decidir (cfr. artigos 4.º e 6.º, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro e artigos 148.º e 151.º, ambos do CPPT) e a deslocalização do processo nesta fase pode importar prejuízo importante para a litigância dos demandados, à semelhança do que acima vimos, por dificultar a consulta do processo e dos atos executivos formalizados que nele se documentam.
Seja como for, não é essa a dimensão normativa do preceito que aqui está em debate: deixando de parte a gestão de recursos de ISS, IP ou a legitimidade com que pode influir na acessibilidade dos autos para um adversário processual, o legislador não se pode entender legitimado a criar soluções que introduzam uma autoridade administrativa na autonomia do poder judicial e que contenham o risco de produzir um efeito de asfixia no exercício independente da sua missão. É esse o perigo potencial decorrente de uma norma com estes carateres, já que a definição do âmbito de competências dos Tribunais tem de ser considerada uma matéria particularmente sensível e central para a administração de justiça: conferir, por exemplo, ao Ministro da Justiça poderes para definir a repartição de competências entre Tribunais criminais quanto ao julgamento de delitos económicos e de crimes cometidos no exercício de funções públicas, ao diretor-geral da Autoridade Tributária a dos Tribunais tributários quanto a impugnações de atos de liquidação de impostos, iguais poderes à direção da Autoridade para as Condições do Trabalho quanto à competência da jurisdição laboral em matéria de contra-ordenações (etc.), não significa menos do que subordinar o exercício do poder judicial ao que seja o sentido discricionário do governo em funções e das autoridades administrativas a quem essa prerrogativa seja conferida, que assim definirão o conteúdo do mandato de cada órgão jurisdicional de acordo com o que sejam as diretivas políticas de contexto, fulminando o arquétipo de uma justiça estadual independente.
Cabe deixar impresso que a relação entre entidades administrativas e Tribunais, especialmente quando se entrecruzam no âmbito das respetivas atribuições, é, hoje, motivo de grande preocupação em matéria de independência judicial, já que se assiste a uma tendência para alargar o leque de atribuições das primeiras e para lhes conceder poderes funcionais e de participação na atividade judiciária progressivamente mais abrangentes e intrusivos. Esta orientação de política legislativa consubstancia um progressivo cerceamento da independência do poder jurisdicional e é apta a conduzir a uma paulatina assimilação ao poder político. É esse o fenómeno a que se veio assistindo em países como a Hungria (v. Resolução do Parlamento Europeu de 12 de setembro de 2018, maxime ponto 12 e Relatório de 2021 sobre o Estado de Direito relativo à Hungria, caps. I e IV) e a Polónia (v. Recomendação da Comissão 2017/1520 de 26 de julho de 2017, pontos 12 a 44), inspirando amplas reservas sobre a segurança do Estado de Direito no espaço da União e é em oposição a esse resultado que se posiciona, cabalmente, o artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa.
Em face do exposto, concluímos que os artigos 3.º-A, n.º 3 e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, quando interpretados no sentido de permitirem que, por via da deliberação do conselho executivo de ISS, IP referida no primeiro dos dispositivos legais (seja a deliberação n.º 793/2020), se altere o âmbito de competências dos Tribunais Administrativos e Fiscais (seja do TAF de Mirandela), são materialmente inconstitucionais por violação do artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa.
10. Uma última nota para referir que a decisão recorrida apontou ainda vício de inconstitucionalidade ao programa normativo sob fiscalização por violação do princípio do juiz natural, aflorado no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa.
Em essência, o princípio impõe que as regras de atribuição de titularidade a processos para julgamento decorram de um quadro normativo, geral e abstrato, distanciado de qualquer instância específica, entendida esta como a peculiar relação jurídico-processual entre determinados sujeitos jurídicos subordinada ao poder judicial e dirigida à formulação de um juízo sobre uma providência judiciária. Proíbe-se assim, como refração da independência do poder jurisdicional e garantia de isenção e imparcialidade na administração de justiça, medidas que se traduzam na transferência ad hoc da titularidade de um processo específico entre magistrados judiciais ou que permitam o seu desaforamento nessas condições (v, sobre a matéria, Acórdãos do TC n.ºs 614/03, 7/2014, 808/2014, 255/2018; na doutrina, J. FIGUEIREDO DIAS, Sobre o sentido do princípio jurídico-constitucional do “juiz natural”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 111.º, n.º 3615, p. 86 e J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Ed., Coimbra Ed., 2007, p. 525).
Nesta parte, acompanhamos a posição do Ministério Público: a interpretação normativa dos artigos 3.º-A, n.º 3 e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, que se encontra sob fiscalização, constitui, ela mesma, uma forma de preordenação das regras de competência entre Tribunais e de definição da titularidade de processos por juiz, abstraída da singularidade de qualquer causa. Não se divisa qualquer efeito que conduzisse à deslocação ad hoc de processos entre juízes ou entre Tribunais. Assim sendo, não vemos que seja fundada a crítica dirigida ao programa normativo na decisão recorrida com base no citado princípio constitucional.”
9. O presente caso não apresenta particularidade de relevo em relação àquele que foi apreciado no Acórdão n.º 755/2022, acima indicado, nem qualquer outra razão que justifique apreciação diversa da que ali foi adotada. Nesses termos, cumpre reiterar aqui o juízo de inconstitucionalidade então firmado.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucionais os artigos 3.º-A, n.º 3, e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, quando interpretados no sentido de permitirem uma alteração da competência territorial de um tribunal administrativo e fiscal, através de deliberação do conselho diretivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P., por violação dos artigos 112.º, n.º 5, e 20.º, n.º 4 º, ambos da Constituição da República Portuguesa; e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 17 de novembro de 2022 – Mariana Canotilho - António José da Ascensão Ramos – José Eduardo Figueiredo Dias – Assunção Raimundo – Pedro Manchete