ACÓRDÃO N.º 793/2022
Processo n.º 952/19
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Mariana Canotilho
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Juízo de Trabalho de Leiria (Tribunal Judicial da Comarca de Leiria), em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., foi pelo primeiro interposto recurso de constitucionalidade obrigatório ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), da sentença proferida por aquele Tribunal, em processo especial por acidente de trabalho, em 12 de maio de 2019 (fls. 265-282).
2. Em consequência de acidente de trabalho que vitimou a ora recorrida, foi instaurado o competente processo no tribunal a quo, que declarou a existência de uma obrigação de pagamento, por parte da entidade empregadora, pela qual responde a entidade seguradora, sem prejuízo do direito de regresso sobre aquela, entre outras prestações, de uma “prestação suplementar por assistência a terceira pessoa, no valor mensal de € 397,50 com início em 27.07.2016, a pagar 14 vezes ao ano e atualizável anualmente de acordo com a atualização da RMMG”. Para o que aqui releva, o acórdão recorrido dispõe o seguinte:
“Atendendo, ainda, a que necessita de ajuda permanente de terceira pessoa pelo período de 6 horas diárias, tem direito à prestação suplementar prevista nos arts 53° a 55° da LAT.
No que a esta matéria respeita temos que:
Conforme resulta do auto de junta médica, a autora, em virtude do acidente de trabalho sofrido, padece, para além do mais, de amputação pelo terço distal do úmero.
Atendendo às inerentes dificuldades nas atividades do dia-a-dia causadas por tal incapacidade, como sejam as relacionadas com higiene pessoal, confeção de alimentos, arranjo de roupas, entre outras, dada a "perda" do membro superior direito, encontra-se necessitada de ajuda de terceira pessoa pelo período de 6 horas diárias, conforme parecer dos srs peritos médicos. A reparação das consequências de um acidente de trabalho que determine uma situação de dependência do sinistrado para as tarefas básicas diárias, implica a atribuição da denominada "prestação suplementar para assistência a terceira pessoa", prevista nos arts 53° a 55° da Lei n° 98/2009 de 04 de setembro (de ora avante LAT/2009).
Como decorre do art 53°, n°s 1 e 2 da LAT/2009, esta prestação suplementar destina-se, nos termos da lei, a "compensar os encargos com assistência de terceira pessoa em face da situação de dependência em que se encontre ou venha a encontrar o sinistrado por incapacidade permanente para o trabalho, em consequência de lesão resultante de acidente" e "depende de o sinistrado não poder, por si só, prover à satisfação das suas necessidades básicas diárias, carecendo de assistência permanente de terceira pessoa.".
Esta prestação suplementar era já prevista no art 19° da Lei n° 100/97, de 13 de setembro (de ora avante LAT/1997).
Como diferença fundamental, face ao regime atual, o facto de a prestação ser calculada tendo por referência, como seu limite máximo, a remuneração mínima mensal garantida. Diversamente, a LAT/2009 toma como limite máximo o valor de 1.1. do IAS, substancialmente inferior à RMMG (1.1. do IAS hoje de € 479,34 e à data do acidente de € 461,14).
Tendo em atenção que a natureza das coisas determina que a sinistrada, para prover às suas necessidades, tenha de contratar e remunerar terceira pessoa para lhe dar apoio diário, o montante de 1.1. do IAS é manifestamente inferior ao que receberia um trabalhador do serviço doméstico (correspondente, pelo menos, à retribuição mínima mensal garantida, atualmente de € 600,00).
Cabe perguntar quem, em situações normais, se prestaria a realizar tais tarefas tendo como referência tal montante?
E não é a justa reparação dos trabalhadores pelas consequências derivadas de acidentes de trabalho princípio consagrado na nossa Lei Fundamental (art 59° n° 1 alínea f) da CRP)?
Seria injusto e gravoso para a sinistrada ter o encargo de pagar, a pessoa com quem celebrasse contrato de trabalho, remuneração superior à que resulta do limite máximo imposto legalmente para esta prestação suplementar, dado que manifestamente contrário ao princípio da "justa reparação", sendo certo que o princípio que norteou a consagração deste direito à prestação suplementar foi o de compensar os sinistrados, em situação de dependência, pelos encargos que tenham de suportar com a contratação de terceiros.
Por outro lado, seria violador do princípio constitucional da igualdade permitir que um trabalhador que tivesse sofrido um acidente de trabalho antes de 01 de janeiro de 2010, com consequências para a sua autonomia no dia-a-dia, determinantes da atribuição desta prestação suplementar, tenha direito a uma prestação para assistência de terceira pessoa de montante substancialmente superior ao de um trabalhador que sofra um sinistro após essa data, sendo certo que, conforme supra, o valor do IAS é muito inferior ao da RMMG e que durante muitos anos não foi atualizado, nem sequer de acordo com a taxa de inflação.
O princípio da igualdade é um princípio estruturante da nossa Ordem Jurídica e um dos pilares de um Estado de Direito Democrático e Social.
Conforme J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada" - 3a edição, 1993, fls 124 a 131 - na "dimensão democrática", o princípio da igualdade exige a explícita proibição de discriminações (positivas e negativas) na participação no exercício do poder político..." na sua dimensão social acentua a função social "impondo a eliminação das desigualdades fácticas (económicas, sociais e culturais), de forma a atingir-se a igualdade real...", protegendo-se, assim, a "igual dignidade social" de todos os cidadãos".
São inadmissíveis as "diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável", estando totalmente proibido o "arbítrio", nomeadamente do legislador, apesar de não se coartar a "liberdade de conformação legislativa".
Proíbe-se, assim, a "discricionariedade legislativa", impondo que a diferenciação tenha um fundamento racional e objetivo, seja materialmente fundada " sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade.".
E só podemos concluir que a alteração legislativa ocorrida não obedeceu a qualquer critério objetivo, é irracional, não materialmente fundada, conduzindo à injusta diferenciação de cidadãos na mesma posição somente pelo facto de terem sofrido acidentes de trabalho em datas diferentes.
Em referência à Proposta de Lei n° 88/X, aprovada em Conselho de Ministros, que visava proceder à regulamentação da matéria de acidentes de trabalho e doenças profissionais, e que previa que o referencial para o cálculo desta prestação (entre outras) passasse a ser o que resulta do montante da pensão mínima mais elevada do regime geral da Segurança Social (in DAR II série A n° l/X/2 de 16-09-2006), escreveu Viriato Reis in "Nótulas sobre a Proposta de Lei que regulamenta o Código do Trabalho relativamente a acidentes de trabalho e doenças profissionais" in Maia Jurídica Ano V, n° 1 (Jan - Junho 2007): "uma alteração tão significativa nos direitos dos pensionistas, sinistrados e familiares seus beneficiários, com forte incidência nos valores pecuniários em que os mesmos se traduzem, exigiria uma explicação do legislador quanto à opção tomada de alteração do referencial-base para o cálculo de todas essas prestações. Todavia, da exposição de motivos da PL não consta qualquer referência a essa matéria, sendo certo que na parte preambular do diploma se referem outras alterações e aspectos que o próprio legislador considera serem inovatórios e, por isso, merecedores de serem destacados.".
Continuando na análise desta inversão de posição do legislador, que já se adivinhava na vigência do CT2003, conforme supra, mas agora com referência ao Projeto Lei n° 786/X, que está na origem da Lei n° 98/2009, de 04 de setembro, publicado na separata do DAR n° 104, de 30-05-2009, escreveu ainda o mesmo Ilustre Autor, in "A Lei de Acidentes de Trabalho Aspetos Controversos da Sua Aplicação", cujo texto foi apresentado na Conferência Comemorativa do Centenário da 1a Lei de Acidentes de Trabalho, organizada pelo Instituto de Seguros de Portugal, que decorreu em 28.11.2013:
"Foi, assim, apresentado o Projecto de Lei 786/X, no qual o referencial para o cálculo daqueles subsídios e prestações complementares já previstos no regime anterior (da LAT de 1997) passou a ser o valor de 1,1 IAS, o que, como se sabe, veio a ser consagrado na LAT de 2009.
Ora, também quanto a esta opção o legislador não deu qualquer explicação, sendo que na exposição de motivos do Projecto de Lei surgem elencados alguns dos aspectos que os deputados proponentes entenderam que mereciam destaque, sem mencionar esta alteração a que estamos a fazer referência, e tendo, simultaneamente, deixado escrito que não se visava romper com o regime jurídico anterior."
Com efeito, conforme exposição de motivos deste projeto lei, o mesmo não visava "romper com o regime jurídico estabelecido quer pela Lei n° 100/97, de 13 de setembro, regulamentada pelo Decreto-Lei n° 143/99, de 30 de abril, quer pelo Decreto-Lei n° 248/99, de 2 de julho, quer mesmo pelas disposições normativas constantes no anterior Código do Trabalho entretanto revogadas, mas sim proceder a uma sistematização das matérias que o integram, organizando-o de forma mais inteligível e acessível, e corrigir os normativos que se revelaram desajustados na sua aplicação prática, quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista constitucional e legal (...)"
Mas o certo é que se "rompeu" efetivamente com o regime anterior consagrando um regime de reparação que, no que a esta prestação suplementar respeita, se mostra altamente prejudicial para os sinistrados, e fundador de discriminação.
Com efeito, calculando o valor da prestação suplementar com base na RMMG teríamos, para o ano de 2016, o valor de € 7.420,00 (= € 530,00 x 14 meses) e com base no 1,1 do IAS apenas o valor de € 6.455,96 (= € 461,14 x 14 meses), uma diferença de € 964,04.
É também o entendimento do legislador infraconstitucional (da LAT/2009) manifestamente irrazoável, sem qualquer fundamento lógico ou racional, contrariando o disposto no art 59°, n° 1 alínea f) da C.R.P., direito fundamental dos trabalhadores a "assistência e justa reparação", vindo "fragilizar" a sua posição jurídica e impedindo o ressarcimento justo dos danos causados pelo acidente de trabalho ou doença profissional.
Conforme, ainda, mesma obra de Gomes Canotilho e Vital Moreira, a fls 313 a 322: o princípio da justa reparação é um direito positivo que impõe ao legislador a concretização de medidas pelo Estado que conduzam à sua efetiva obtenção e proteção. Para além do mais, é impeditivo da adoção de medidas "socialmente retrógradas".
E a medida que resulta do disposto no art 54°, n°s 1 e 4 da LAT/2009 é efetivamente "socialmente retrógrada" e, como tal, o preceito é materialmente inconstitucional.
Contraria, aliás, a filosofia subjacente à consagração legal do direito a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa a sinistrados especialmente vulneráveis, que ficam inibidos de, por si só, proverem às suas necessidades básicas em virtude de acidente de trabalho, impedindo uma subsistência condigna e conduzindo a situações de vida que se irão inevitavelmente degradando, assim prejudicando a justa reparação das consequências do sinistro ou doença.
A propósito de alterações legislativas e proteção da confiança dos cidadãos referiu-se no douto Acórdão do Tribunal Constitucional n° 574/98, de 13.10.1998:
"a protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica na actuação do Estado obriga este, para que a vida em comunidade decorra com normalidade e sem sobressaltos, à garantia de um mínimo de certeza e de segurança do direito das pessoas e das expectativas que lhes são juridicamente criadas, pelo que uma alteração legislativa que modifique de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva aqueles mínimos de certeza e segurança que devem ser respeitados não pode deixar de contender com tal princípio constitucional.
O cidadão deve poder prever que as intervenções legislativas do Estado se façam segundo uma certa lógica racional e por forma a que ele se possa preparar para adequar a sua futura actuação a tais intervenções e de tal modo que uma tal actuação possa ser reconhecida na ordem jurídica e tenha os efeitos e consequências que são previsíveis face à decorrência lógica da modificação realizada.".
Conclusão:
O art 54°. n°s 1 e 4 da Lei n° 98/2009. de 04 de setembro, é inconstitucional quando determina que a referência para o cálculo da prestação suplementar para a assistência a terceira pessoa seja o valor de El do IAS, sendo este o seu limite máximo, por violação do princípio do Estado de Direito, do princípio da igualdade e ainda do direito à justa reparação dos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho ou doença profissional consagrados nos arts 2°, 13° n° 1 e 59° n° 1 alínea f) da C.R.P..
Assim, deve ser pago à sinistrada a prestação suplementar desde a data da alta, pelo valor de 397,50 (= 530,00 € : 8 x 6), atualizável anualmente de acordo com a atualização da RMMG, sendo o valor da prestação atualmente de € 450,00, a pagar 14 vezes ao ano.”
3. Perante esta decisão, o Ministério Público veio apresentar requerimento de interposição de recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional (fls. 284, verso), que foi admitido (fls. 389). Nesta sequência, subidos os autos e verificando-se que se encontravam preenchidos os pressupostos processuais, as partes foram notificadas para apresentar as suas alegações (fls. 395).
4. O Ministério Público apresentou alegações, pugnando pela conformidade constitucional da dimensão normativa desaplicada e pelo provimento do recurso, tendo concluído no seguinte sentido (fls. 397-408, verso):
«Conclusões:
8.1 A Lei n.º 98/2004, de 4 de setembro veio regulamentar o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do artigo 284.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro.
8.2. Ao introduziu um regime respeitador de uma abordagem jurídica integrada e articulada, na perspetiva de um sistema coerente dos institutos em presença, a Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro assume uma natureza essencialmente inovatória, principalmente no que respeita à matéria dos acidentes de trabalho.
8.3. O artigo 23º da Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro consagra como princípio geral relativo do direito à reparação, decorrente de acidente de trabalho, duas modalidades de prestação: a prestação em espécie e a prestação em dinheiro.
8.4. Nos termos da alínea h) do artigo 47º, a prestação suplementar para assistência de terceira pessoa está compreendida como uma prestação em dinheiro.
8.5. O cálculo e a definição das prestações em dinheiro fazem-se com recurso a determinados critérios e referenciais previstos na lei, enquanto as prestações em espécie pressupõem a assunção do valor integral respetivo.
8.6. A Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro, veio introduzir como valor referencial para cálculo de diversas das prestações em dinheiro o Indexante dos Apoios Sociais, estabelecendo, designadamente, que o montante da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa se apura por referência ao valor do IAS como limite máximo, conforme dispõe o artigo 54º ora em apreciação.
8.7. O critério utilizado pelo legislador para cálculo do montante da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa é comum ao utilizado para cálculo de outras prestações em dinheiro prevista no mesmo diploma.
8.8. O artigo 53º da Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro, consagra a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa como uma prestação suplementar da pensão que se destina a compensar os encargos com assistência de terceira pessoa em face da situação de dependência em que se encontre ou venha a encontrar o sinistrado por incapacidade permanente para o trabalho, em consequência de lesão resultante de acidente.
8.9. Tem, pois, esta prestação uma natureza necessariamente suplementar destinando-se a compensar os encargos, não se podendo assim considerar como finalidade da mesma o pagamento integral dos custos decorrentes da assistência a terceira pessoa. Estaremos, antes, perante uma prestação de certa forma assistencial, de natureza protetiva e suplementar às demais prestações devidas.
8.10. Podendo considerara-se que o fundamento da reparação atribuída em sede de acidentes de trabalho, designadamente quando falamos de prestações como a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, assume uma natureza híbrida, simultaneamente indemnizatória e alimentar.
8.11. O Indexante dos Apoios Sociais foi criado pela Lei 53-B/2006, de 29/12, a par de novas regras de atualização das pensões e outras prestações sociais do sistema de segurança social, como referencial determinante da fixação, cálculo e atualização dos apoios e outras despesas e das receitas da administração central do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, qualquer que seja a sua natureza, previstos em atos legislativos ou regulamentares.
8.12. Pretendeu-se uniformizar os critérios referenciais para apuramento dos montantes das diversas prestações sociais, afastando-os da indexação ao salario mínimo, passando a ser utilizado em diversos subsídios, prestações sociais e apoios do Estado como o Rendimento Social de Inserção (RSI), o montante do subsídio social de desemprego, o limite mínimo do subsídio de doença e o valor das prestações por morte ou por despesas de funeral, sendo tido em conta para definir que níveis de rendimentos conferem isenção de taxas moderadoras.
8.13. Atendendo à finalidade inovatória, por um lado, e ao objetivo de consagração de um sistema integrado e coerente, por outro subjacentes à Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro, considera-se como adequada a adoção por este diploma, do mesmo referencial utilizado no cálculo de outras prestações de natureza social do Estado, tanto mais quando se considera a natureza jurídica das prestações ora em análise.
8.14. O montante da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa obtido por recurso referencial ao IAS, como consagrado Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro, nos n.ºs 1 e 4 do artigo 54º da Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro - pese embora a diferença do montante da prestação calculada por referência ao RMG - consubstancia-se nos parâmetros dos objetivos legais de uma assistência digna, bem como da justa reparação, às vítimas de acidente de trabalho, consagrada constitucionalmente, no artigo 59º da Constituição da República Portuguesa.
8.15. Pelas mesmas razões se considera que a alteração legislativa que determinou a alteração relativa ao critério para cálculo do montante da prestação, porque não coloca em causa na sua essência, os direitos das vítimas de acidente de trabalho, constitucionalmente garantidos, se situa no âmbito dos poderes de conformação legislativa permitidos constitucionalmente.
8.16. Por outro lado, não se vislumbra como uma uniformização de critérios quanto ao modo como se calculam prestações com caraterísticas que se podem considerar similares, pode por em causa o princípio da igualdade dos cidadãos.
8.17. Assim, por tudo o exposto, deve considerar-se como constitucionalmente conforme os n.ºs 1 e 4 do artigo 54º da Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro, quando determina que a referência para o cálculo da prestação suplementar para a assistência a terceira pessoa seja o valor de 1.1 do IAS, sendo este o seu limite máximo.
8.18. Uma vez que não se verifica violação dos princípios constitucionais previstos no artigo 2º, no n.º 1 do artigo 13º e na alínea f) do artigo 59º da Constituição da República Portuguesa.»
5. Regularmente notificada, a recorrida não apresentou contra-alegações (fls. 409-410).
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
a) Delimitação do objeto do recurso
6. Em primeiro lugar, importa analisar a conformação do objeto do presente recurso.
Conforme resulta das transcrições supra, a dimensão normativa cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida corresponde à interpretação normativa do artigo 54.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, quando determina que a referência para o cálculo da prestação suplementar para a assistência a terceira pessoa é o valor de 1,1 do IAS, sendo este o seu limite máximo. Porém, atenta a fundamentação daquela decisão, verifica-se que o tribunal a quo entendeu que esta norma era incompatível com o artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, apenas na medida em que o valor correspondente a 1,1 Indexante dos Apoios Sociais (IAS), utilizado ali como referência, se situa aquém do valor fixado para a retribuição mínima mensal garantida para o mesmo ano. De facto, é em razão desta diferença que a interpretação normativa questionada faz com que seja “injusto e gravoso para a sinistrada ter o encargo de pagar, a pessoa com quem celebrasse contrato de trabalho, remuneração superior à que resulta do limite máximo imposto legalmente para esta prestação suplementar, dado que manifestamente contrário ao princípio da ‘justa reparação’”.
É, portanto, a norma constante do artigo 54.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 98/2009, na medida em que permite que «a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa tenha um limite máximo que pode ser inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida» e que, em consequência, “a respetiva atualização anual seja também inferior à percentagem em que o for a referida remuneração”, cuja constitucionalidade aqui deve ser aferida.
Os preceitos normativos em causa têm o seguinte teor:
Artigo 54.º
Montante da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa
1 - A prestação suplementar da pensão prevista no artigo anterior é fixada em montante mensal e tem como limite máximo o valor de 1,1 IAS.
[…]
4 - A prestação suplementar é anualmente atualizável na mesma percentagem em que o for o IAS.
A constitucionalidade da norma extraída da articulação destes preceitos é questionada, segundo o recorte objetivo da decisão recorrida, à luz dos parâmetros constitucionais decorrentes do artigo 2.º, do artigo 13.º e do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa.
b) Mérito
7. A questão de constitucionalidade colocada nos presentes autos – a da conformidade com a Constituição da República Portuguesa (CRP) da norma do artigo 54.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 98/2009, na medida em que permite que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa tenha um limite máximo que pode ser inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida e que, em consequência, a respetiva atualização anual seja também inferior à percentagem em que o for essa remuneração - foi já apreciada e decidida pelo Tribunal Constitucional, nos Acórdão n.º 151/2022, 194/2022 e 699/2022, embora, nessa sede, apenas por referência ao disposto no n.º 1 do artigo 54.º da Lei n.º 98/2009. Como, porém, claramente resulta da leitura dessa jurisprudência, o objeto material apreciado nessa sede é idêntico ao do presente caso, justificando-se a mobilização dos argumentos então aduzidos para resolução desta lide.
Nos dois primeiros arestos citados, da 3.ª Secção, o Tribunal decidiu julgar inconstitucional a norma em causa, com os seguintes fundamentos:
“Desde a publicação da Lei n.º 83, de 24 de julho de 1913, que consagrou pela primeira vez o direito dos «operários e empregados» a «assistência clínica, medicamentos e indemnizações» em caso de «acidente de trabalho, sucedido por ocasião do serviço profissional e em virtude desse serviço» (artigo 1.º), o sistema legal de proteção dos trabalhadores em caso de infortúnio laboral conheceu sucessivas modificações, cuja tendência, no essencial, se projetou no reforço da proteção especial concedida aos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho, designadamente — e no que aqui especialmente releva — através da ampliação do âmbito objetivo do direito à reparação pelo dano sofrido, independentemente de culpa do empregador.
É nessa tendência que se situa a Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965, que promulgou as bases do regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais, ao consagrar, pela primeira vez, o direito do trabalhador sinistrado a uma «prestação suplementar», devida nos casos em que, «em consequência da lesão resultante do acidente, a vítima não pude[sse] dispensar a assistência constante de terceira pessoa» (Base XVIII). Tendo como objetivo, «de algum modo, compensar o acréscimo das despesas que efetua um sinistrado que, por motivo das lesões sofridas, não pode dispensar a assistência permanente de terceira pessoa» (Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho, Notas e Comentários à Lei n.º 2127, Coimbra, Almedina, 1995, p. 88), a prestação suplementar prevista na Base XVIII da Lei n.º 2127 pressupunha já a fixação de uma pensão — não sendo por isso devida nos casos de incapacidade temporária, ainda que absoluta — e tinha como valor máximo o correspondente a 25 por cento do montante da pensão fixada (n.º 1), não se atendendo para o respetivo cálculo à parte da pensão que excedesse 80 por cento da retribuição-base (n.º 2).
À Lei n.º 2127 seguiu-se a Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, com origem na Proposta de Lei n.º 67/VII, que aprovou o (então) novo regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais. Reconhecendo que, «nalguns aspetos», a Lei n.º 2127 «não cumpr[ia] integralmente o seu objetivo fundamental», que consistia «em assegurar aos sinistrados condições adequadas de reparação dos danos decorrentes das lesões corporais e materiais originadas pelo acidente ou doença profissional», o Governo procurou, com aquela iniciativa legislativa, «criar condições para melhorar, de uma maneira geral, o nível das prestações garantidas aos sinistrados, nomeadamente pecuniárias». As medidas para o efeito adotadas incluíam a «criação do subsídio por situações de elevada incapacidade permanente», como «compensação adicional para os casos mais graves de incapacidade com permanência», a determinar através de um «cálculo baseado no valor do salário mínimo nacional». Cálculo que, tendo sido estendido à fixação do valor de outras prestações pecuniárias, como a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa (artigo 19.º da Proposta de Lei), procurava refletir também a ideia de que, sendo obrigatória a transferência da responsabilidade por acidentes de trabalho para uma entidade seguradora, «qualquer alteração dos benefícios te[ria] reflexos quase imediatos em termos de financiamento», com consequências para a «competitividade das nossas empresas, para a criação e manutenção dos postos de trabalho e para a criação de riqueza» (Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 13, 10 de janeiro de 1997, p. 208 e ss.).
Mantendo inalterado o pressuposto para a atribuição da prestação suplementar que constava já da Base XVIII da Lei n.º 2127 — não poder o sinistrado, em consequência da lesão resultante do acidente, dispensar a assistência constante de terceira pessoa —, a Lei n.º 100/97 veio fixar-lhe assim um novo limite máximo, ao prescrever que o respetivo valor não poderia ser «superior ao montante da remuneração mínima mensal garantida para os trabalhadores do serviço doméstico».
Este regime, constante do artigo 19.º da Lei n.º 100/97, veio a ser em parte complementado no artigo 48.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de abril, que procedeu à respetiva regulamentação no que respeita à reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho. Concretizando a previsão do n.º 3 do artigo 19.º da Lei n.º 100/97, estabeleceu-se aí a possibilidade de antecipação da atribuição da prestação suplementar para o «dia seguinte ao da alta», sempre que o médico assistente entendesse que o sinistrado não podia dispensar a assistência de uma terceira pessoa. Esta prestação suplementar provisória era «equivalente ao montante da remuneração mínima garantida para os trabalhadores do serviço doméstico» (n.º 1), sendo os montantes pagos considerados aquando da fixação final dos direitos do sinistrado (n.º 3).
A explicitação do critério utilizado para fixar o limite máximo da prestação suplementar não ficaria completa sem uma referência ao Decreto-Lei n.º 19/2004, de 20 de janeiro, que procedeu à uniformização do salário mínimo nacional para o serviço doméstico com o salário mínimo nacional para as outras atividades (artigo 1.º), com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2004 (artigo 3.º).
À Lei n.º 100/97 sucedeu, por último, a Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, que, tal como previsto no artigo 284.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, veio regulamentar o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (referido adiante pela sigla «RAT»).
É na Lei n.º 98/2009, entrada em vigor a 1 de janeiro de 2010 (artigo 188.º), que se inscreve a norma impugnada.
9. Com origem no Projeto de Lei n.º 786/X, a Lei n.º 98/2009 introduziu em matéria de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais um regime que, apesar de novo, não pretendeu «romper totalmente com o regime anteriormente estabelecido», mas antes proceder «a uma sistematização das matérias que o integram, organizando-o de forma mais inteligível e acessível, e corrigir os normativos que se revelaram desajustados na sua aplicação prática, quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista constitucional e legal, como é exemplo o caso da remição obrigatória de pensão por incapacidade parcial permanente» (cf. exposição de motivos que acompanhou o Projeto de Lei n.º 786/X).
Apesar de enunciar expressamente os aspetos mais relevantes do novo regime proposto, o Projeto de Lei n.º 786/X nada refere, na sua exposição de motivos, quanto à reformulação do regime de atribuição da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa. É fácil, no entanto, de verificar que as modificações operadas pelo RAT, essencialmente concentradas nos respetivos artigos 53.º a 55.º, resultaram desde logo na previsão de uma disciplina mais completa e detalhada para a atribuição da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa.
O artigo 53.º do RAT (ao qual se referirão todos os artigos seguidamente mencionados, sem indicação de outro diploma) começa por esclarecer a finalidade da prestação suplementar: trata-se de uma prestação suplementar da pensão e «destina-se a compensar os encargos com assistência de terceira pessoa em face da situação de dependência em que se encontre ou venha a encontrar o sinistrado por incapacidade permanente para o trabalho, em consequência de lesão resultante de acidente» (n.º 1). A atribuição da prestação suplementar depende por isso — e reside aqui o seu pressuposto — «de o sinistrado não poder, por si só, prover à satisfação das suas necessidades básicas diárias», nomeadamente as relacionadas com os «cuidados de higiene pessoal, alimentação e locomoção», «carecendo de assistência permanente de terceira pessoa» (n.ºs 2 e 5), que pode ser um seu familiar (n.º 5). A assistência «pode ser assegurada através da participação sucessiva e conjugada de várias pessoas, incluindo a prestação no âmbito do apoio domiciliário, durante o período mínimo de seis horas diárias» (n.º 6).
O artigo 54.º estabelece, por seu turno, as regras para a determinação do valor da prestação suplementar, levando em conta que se trata de uma prestação pecuniária (artigo 47.º, n.º 1, alínea h)) de realização periódica (artigo 47.º, n.º 3), que «acompanha o pagamento mensal da pensão anual e dos subsídios de férias e de Natal» (artigo 78.º, n.º 4). Tal prestação é «fixada em montante mensal e tem como limite máximo o valor de 1,1 IAS» (n.º 1), sendo anualmente atualizável na mesma percentagem em que o for o IAS» (n.º 4). À semelhança do que antes constava do artigo 48.º do Decreto-Lei n.º 143/99, estabelece-se ainda o direito do sinistrado à atribuição de uma prestação suplementar provisória «a partir do dia seguinte ao da alta e até ao momento da fixação da pensão definitiva», de «montante equivalente» a 1,1 IAS, sempre que «o médico assistente entender» que o mesmo «não pode dispensar a assistência de uma terceira pessoa» (n.º 2), sendo os montantes pagos considerados aquando da fixação final dos direitos do sinistrado (n.º 3).
10. Pressupondo uma incapacidade permanente para o trabalho que impeça o sinistrado de realizar, por si mesmo, as atividades necessárias à satisfação das suas necessidades básicas diárias, a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa constitui uma prestação pecuniária cumulável quer com as prestações em espécie elencadas no artigo 25.º, quer com as demais prestações pecuniárias devidas em caso de incapacidade permanente para o trabalho.
Estas últimas integram: (i) a pensão por incapacidade permanente e o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente (artigo 47.º, n.º 1, alíneas c) e d), respetivamente), que se destinam a compensar o sinistrado pela perda ou redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho (artigo 48.º, n.º 2); (ii) o subsídio para readaptação de habitação, quando necessária (artigo 47.º, n.º 1, alínea i)); e (iii) a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa (artigo 47.º, n.º 1, alínea h)).
A pensão por incapacidade permanente é anual e vitalícia, correspondendo a 80% da retribuição em caso incapacidade absoluta para todo e qualquer trabalho, acrescida de acrescida de 10% desta por cada pessoa a cargo sinistrado, até ao limite da retribuição; em caso de incapacidade absoluta para o trabalho habitual, será fixada entre 50% e 70% da retribuição, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível (artigo 48.º, n.º 3, alíneas a) e b), respetivamente). O subsídio por situação de elevada incapacidade permanente constitui, por sua vez, uma prestação de atribuição única (artigo 47.º, n.º 1), destinada a compensar o sinistrado com incapacidade permanente absoluta ou incapacidade permanente parcial igual ou superior a 70%, pela perda ou elevada redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho (artigo 67.º, n.º 1). O subsídio para readaptação de habitação corresponde igualmente a uma prestação pecuniária de atribuição única (artigo 47.º, n.º 3), mas cuja finalidade é o pagamento das despesas suportadas com a readaptação da habitação do sinistrado por incapacidade permanente para o trabalho que dela necessite, em função da sua incapacidade (artigo 68.º, n.º 1).
A atribuição cumulativa destas quatro prestações — pensão por incapacidade permanente, subsídio por situação de elevada incapacidade permanente, subsídio para readaptação de habitação, quando necessária, e prestação suplementar para assistência a terceira pessoa — constitui o modo através do qual se efetiva, no âmbito do RAT, a reparação pecuniária do dano emergente de acidente de trabalho nos casos em que, como sucedeu no presente, dele resultou uma incapacidade permanente absoluta que retirou ao sinistrado a possibilidade de prover à satisfação das suas necessidades básicas diárias sem a assistência permanente de terceira pessoa.
11. Enquanto as prestações em espécie se efetivam através da simples imputação à entidade responsável das despesas inerentes aos cuidados e serviços elencados no artigo 25.º, as prestações em dinheiro pressupõem a fixação do respetivo valor: no caso da pensão, a base de cálculo é dada pelo valor da retribuição do sinistrado (artigo 71.º, n.º 1); no caso do subsídio por situação de elevada incapacidade permanente, do subsídio para readaptação de habitação e da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa o referencial é outro.
No âmbito da Lei n.º 100/97, o valor de cada uma destas três prestações era definido ou limitado, à semelhança do que sucedia com o subsídio por morte e as despesas de funeral, com base na remuneração mínima mensal garantida: o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente era igual a 12 vezes a remuneração mínima mensal garantida à data do acidente (artigo 23.º da referida Lei); o subsídio para readaptação de habitação era fixado até ao limite de 12 vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data do acidente (artigo 24.º da mesma Lei); e a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa era fixada, conforme acima visto, em valor não superior ao montante da remuneração mínima mensal garantida para os trabalhadores do serviço doméstico (artigo 19.º do diploma mencionado).
Com a entrada em vigor da Lei n.º 98/2009, o elemento de referência para o cálculo das referidas prestações deixou de ser a retribuição mínima garantida para passar a ser o IAS — mais concretamente 1,1 IAS: 12 vezes o valor de 1,1 IAS em vigor à data do acidente no caso do subsídio por situação de elevada incapacidade permanente (artigo 67.º) e do limite máximo subsídio para readaptação de habitação (artigo 68.º); e 1,1 IAS no caso do limite máximo da prestação mensal suplementar para assistência a terceira pessoa (artigo 54.º, n.º 1), cujo valor é anualmente atualizável na percentagem em que aquele o for (artigo 54.º, n.º 2).
Ao contrário do que sucede com o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente devido em caso de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (artigo 67.º, n.º 3), o RAT continua a não estabelecer quais os elementos a atender na fixação do valor da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa.
De acordo com a orientação prevalecente na jurisprudência dos tribunais comuns — de resto, firmada já no âmbito de vigência da Lei n.º 100/97 —, a prestação suplementar, para além de ser devida 14 vezes ao ano (v., entre outos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.05.2010, Processo n.º 786/06.9TTGMR.P1.S1, e os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 12.12.2005, Processo n.ºs 0515361, e de 21.02.2018, Processo n.º 1419/13.2TTPNF.P1, todos disponíveis, tal como os demais seguidamente mencionados, em www.dgsi.pt), deve ser graduada em função do tempo requerido pela satisfação das necessidades do sinistrado que demandam a assistência de terceira pessoa, tomando em consideração a maior ou menor autonomia daquele e a sua capacidade restante para prover à satisfação de as respetivas necessidades básicas diárias; ou, dito de outra forma, de acordo com o número de horas em que o sinistrado carece da assistência de terceira pessoa, o que dependerá, por sua vez, da gravidade das limitações que o mesmo apresente e da maior ou menor extensão do quociente de autonomia e de capacidade de satisfação das respetivas necessidades básicas diárias. De tal modo que o limite máximo legalmente estabelecido — antes o valor da retribuição mínima mensal garantida, agora o valor correspondente a 1,1 IAS — apenas deverá ser atingido nos casos mais graves, sendo de graduar em sentido inverso nos casos em que a dependência é menor, tendo em conta a capacidade restante da vítima do acidente de trabalho (v., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.11.2007, Processo n.º 07S2716, e de 08.05.2013, Processo n.º 771/11.9TTVIS.C1.S1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.12.2007, Processo n.º 8145/2007-4, e de 13.09.2019, Processo n.º 1210/16.4T8LMG.C1, do Tribunal da Relação do Porto de 23.01.2012, Processo n.º 340/08.0TTVJG.P1, e do Tribunal da Relação de Évora de 14.07.2021, Processo n.º 2053/19.9T8VFX.E1).
12. Clarificados os aspetos essenciais do regime legal de reparação pecuniária dos danos emergentes de acidente de trabalho de que resultou para o sinistrado uma incapacidade permanente que o impede de prover à satisfação das suas necessidades básicas diárias sem a assistência permanente de uma terceira pessoa, é altura de verificar se e em que medida o direito dos trabalhadores à justa reparação em caso de infortúnio laboral, consagrado na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, impõe ao legislador a previsão de uma prestação adicional e autónoma, que permita ao sinistrado fazer face a essa situação de dependência em que se viu colocado em consequência do tipo e ou nível de incapacitação originado pela lesão resultante do acidente.
Para responder a esta questão, importa não perder de vista a relação entre as diferentes prestações pecuniárias contempladas no RAT, em particular entre a prestação principal — a pensão anual e vitalícia, com o complemento constituído pelo subsídio de elevada incapacidade permanente — e a prestação suplementar — a prestação para assistência a terceira pessoa —, que são devidas em caso de incapacidade permanente para o trabalho.
Essa relação perspetiva-se, desde logo, a partir da função desempenhada por cada uma delas.
Conforme se afirmou no Acórdão n.º 433/2016, a pensão anual e vitalícia tem como finalidade «a substituição ou compensação da perda da contribuição que o vencimento do próprio trabalhador representava para a sua subsistência». Ela visa reparar o direito à integridade económica ou produtiva do trabalhador através da reintegração da sua concreta capacidade de ganho, desempenhando neste sentido uma «função de garantia de subsistência do sinistrado» (v., Acórdãos n.º 136/2014 e 621/2015). Justamente porque a pensão visa — e visa apenas — a compensação do prejuízo económico sofrido pelo sinistrado em consequência da perda ou redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho, o respetivo valor é fixado em função do grau de desvalorização sofrido pela vítima, tendo como referente de cálculo o valor da retribuição e até 80% deste.
Seja por ter em vista a atenuação dos efeitos que a limitação a 80% da retribuição do valor máximo da pensão atribuível ao sinistrado exerce sobre a efetiva reintegração da sua concreta capacidade de ganho (neste sentido, Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, Coimbra, Almedina, 2001, p. 123), seja, como sustenta a jurisprudência dos tribunais comuns, por visar em qualquer caso «facilitar a adaptação do sinistrado à sua situação de desvalorização funcional com perda de capacidade de ganho, permitindo-lhe porventura efetuar uma aplicação económica que lhe proporcione outros proventos ou reorientar a sua vida profissional para outro tipo de atividade» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.02.2006, Processo n.º 05S3820, em fundamentação seguida, entre outros, nos Acórdãos Relação de Lisboa de 28.05.2008, Processo n.º 3670/2008-4, e de 28.04.2021, Processo n.º 8807/17.3T8LSB.L1-4), o subsídio de elevada incapacidade permanente participa da função reparadora do direito à integridade produtiva do trabalhador que a pensão tipicamente desempenha, constituindo, nesse sentido — que a lei expressamente assinala (artigo 48.º, n.º 2) —, uma prestação ainda destinada a compensar o prejuízo económico sofrido pelo sinistrado em consequência da perda ou redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho.
E, como adiante melhor se verá, não deixa de ser essa também — porventura até de forma ainda mais impressiva — a função desempenhada pela prestação para assistência a terceira pessoa.
Sendo devida, conforme visto já, nos casos em que a lesão resultante do acidente privou o sinistrado da capacidade de prover, por si só, à satisfação das suas necessidades básicas diárias, tal prestação constitui um reforço ou um complemento do valor da pensão, que visa compensar a despesa adicional gerada pelo recurso à assistência permanente de uma terceira pessoa, de que o sinistrado passou a depender na medida inerente à perda da aptidão necessária para tratar autonomamente da sua pessoa, designadamente para prestar a si próprio os cuidados de higiene, alimentação e locomoção de que carece.
13. Assim vistas as coisas, a resposta à questão de saber se a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa integra ou não o conteúdo do direito à justa reparação consagrado na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição parece facilitada, seja qual for a direção em que se siga.
Na jurisprudência constitucional, a ideia de que a «justa reparação» em face dos danos provocados por acidente de trabalho aponta para um conceito compreensivo de dano laboral e este para uma conceção reintegradora da função do regime especial de proteção dos trabalhadores em caso de infortúnio laboral parece ter sido assumida no Acórdão n.º 433/2016. A propósito da densificação «do direito fundamental dos trabalhadores à assistência e justa reparação quando vítimas de acidentes de trabalho (e doenças profissionais), plasmado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP», afirmou-se aí que «a ideia de justiça na reparação – retirada do próprio léxico da norma constitucional citada – comete o legislador na incumbência de facultar os meios necessários e adequados à efetivação desse direito dos trabalhadores com vista à reparação dos danos sofridos pelas vítimas de um acidente de trabalho, a qual se procura efetiva e verdadeiramente dirigida à superação ou, não sendo tal possível, à compensação dos danos na saúde e na capacidade e aptidão dos trabalhadores para a vida ativa e, em particular, para a atividade laboral». Daí que o conceito de justa reparação se não «esgot[e] na atribuição aos trabalhadores de pensões por incapacidade (prestações em numerário), antes incluindo prestações de diferentes tipos, como as reparações em espécie [...]».
Se assim for compreendida a justa reparação devida aos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho, o estatuto constitucional da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa parece assegurado. Nos casos em que a materialização dos riscos inerentes à prestação laboral resulte em lesão que incapacite o sinistrado para o trabalho de forma permanente e o torne simultaneamente dependente da assistência permanente de terceira pessoa para acudir às suas necessidades básicas diárias, certas delas essenciais à própria sobrevivência, a justa reparação do dano laboral não poderá deixar de contemplar a atribuição de uma prestação cumulativa, que reflita e compense o correspondente encargo. Conclusão que, diga-se ainda, surgirá tanto mais evidente quanto mais presente se tiver a vinculação do sistema de direitos fundamentais à dignidade da pessoa humana, enquanto «étimo fundante» daqueles (Acórdão n.º 212/2010).
Ainda que por uma ordem de razões diversa, não é diferente a resposta que se obtém à luz da orientação perfilhada no Acórdão n.º 786/2017, este tirado em Plenário.
De acordo com tal orientação, o «conteúdo do direito consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, corresponde à função desempenhada pelo instituto da reparação por infortúnio laboral» e esta à «reparação do dano estritamente laboral, consubstanciado na perda de capacidade de ganho do trabalhador vítima de acidente de trabalho ou doença profissional». Aquele direito «constitui uma garantia de reparação do dano laboral, o mesmo é dizer, de reconstituição ou de compensação da capacidade de ganho perdida pelo trabalhador em virtude de ter sofrido um acidente de trabalho [...]».
Se, como vimos, é à pensão anual e vitalícia, eventualmente acompanhada do subsídio de elevada incapacidade permanente, que cabe a reintegração da concreta capacidade de ganho do trabalhador sinistrado, a atribuição de uma prestação destinada a compensar os encargos suportados pelo sinistrado com a contratação de pessoa capaz de lhe prestar a assistência permanente necessária tem a função de obviar a que o valor da pensão seja desviado para aquele fim e nele se consuma ou até mesmo esgote. Na ausência de uma prestação suplementar como a que se encontra prevista no artigo 53.º do RAT, o sinistrado que, em consequência do acidente, se confrontasse simultaneamente com a ablação da sua plena capacidade de ganho e a perda da autonomia funcional indispensável à satisfação das suas necessidades básicas diárias, ver-se-ia obrigado a alocar pelo menos parte do valor da pensão à contratação da assistência requerida pela superação desta situação de dependência, com consequente e simétrica depreciação da compensação pela perda do vencimento que aquela visa representar. Nestas situações, pode mesmo dizer-se que a pensão apenas constituirá um mecanismo de efetiva reintegração da concreta capacidade de ganho do trabalhador sinistrado se e na medida em que o custo inerente à superação do estado de dependência em que o acidente o colocou se encontre acautelado por outra via; e, consequentemente, que, verificando-se tal circunstância, a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa constitui uma condição indispensável para que a pensão possa funcionar como um real sucedâneo da contribuição antes representada pelo vencimento do sinistrado e, neste sentido, como uma garantia efetiva da sua subsistência.
14. Integrando-se a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa no conteúdo do direito consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição — que, como este Tribunal afirmou já, tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (Acórdão n.º 612/2008) —, a questão que importa seguidamente resolver é a de saber se o legislador pode fixar-lhe um limite máximo inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida.
Para responder a tal questão, há que começar por verificar se é essa a solução que decorre do artigo 54.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, que estabelece como limite máximo do valor da prestação o correspondente de 1,1 IAS.
Ainda que os respetivos valores possam conjunturalmente aproximar-se, o IAS e a retribuição mínima mensal garantida constituem grandezas de natureza diversa.
O IAS foi criado pela Lei n.º 53-B/2006, de 29 de dezembro, tendo passado a constituir, em substituição da retribuição mínima mensal garantida, o referencial determinante da fixação, cálculo e atualização dos apoios sociais do Estado e, bem assim, de quaisquer outras despesas e receitas por este realizadas ou cobradas (artigos 2.º e 8.º, n.º 1, da referida Lei). Tendo em conta esta sua função, o valor do IAS é atualizado anualmente com efeitos a partir do dia 1 de janeiro de cada ano, ponderados os seguintes indicadores de referência: (i) o crescimento real do produto interno bruto (PIB), correspondente à média da taxa do crescimento médio anual dos últimos dois anos, terminados no 3.º trimestre do ano anterior àquele a que se reporta a atualização ou no trimestre imediatamente anterior, se aquele não estiver disponível à data de 10 de dezembro; e (ii) a variação média dos últimos 12 meses do índice de preços no consumidor (IPC), sem habitação, disponível em dezembro do ano anterior ao que reporta a atualização, ou em 30 de novembro, se aquele não estiver disponível à data da assinatura do diploma de atualização (artigo 4.º da Lei n.º 53-B/2006, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 254-B/2015, de 31 de dezembro).
Na medida em que, o direito à justa reparação por acidentes de trabalho continua a ser perspetivado no ordenamento jurídico nacional, «não como um direito à segurança social destinado a proteger os cidadãos em situações de falta ou insuficiência de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho, mas como um direito dos trabalhadores no âmbito da legislação do trabalho, baseado num regime de responsabilidade civil do empregador tendo em vista a recuperação do sinistrado, segundo o princípio da restauração natural, ou a fixação de uma compensação pecuniária em caso de morte ou incapacidade para o trabalho, e que pressupõe, como garantia de pagamento, a obrigatoriedade de transferência da responsabilidade do empregador para uma instituição seguradora» (Acórdão n.º 161/2011), pode desde logo questionar-se a adequação funcional do IAS para intervir como referencial de cálculo na determinação do limite máximo da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa.
Seja como for, para responder à questão que diretamente nos ocupa, importa ter presente o seguinte: no ano de 2010 ¾ o primeiro em que vigorou a Lei n.º 98/2009 ¾, o IAS fixava-se em € 419,22 (Portaria n.º 1514/2008, de 24 de dezembro), valor que se manteve até ao ano de 2017 (cf. Decreto-Lei n.º 323/2009, de 24 de dezembro; Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro; Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro; Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro; Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro; Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro e Decreto-Lei n.º 253/2015, de 30 de dezembro); no ano de 2017, o IAS voltou a ser atualizado, tendo sido fixado em € 421,32 (Portaria n.º 4/2017, de 3 de janeiro); no ano de 2018, foi atualizado para € 428,90 (Portaria n.º 21/2018, de 18 de janeiro) e no ano de 2019 para € 435,76 (Portaria n.º 24/2019, de 17 de janeiro); no ano de 2020 subiu para € 438,81 (Portaria n.º 27/2020, de 31 de janeiro), valor que se manteve em 2021, tendo sido fixado para o ano de 2022 em €443,20 (Portaria n.º 294/2021, de 13 de dezembro).
O estabelecimento de uma retribuição mínima mensal garantida (RMMG) resulta, por sua vez, da concretização pelo Estado da incumbência enunciada na alínea a) do n.º 2 do artigo 59.º da Constituição. Assim, a lei garante aos trabalhadores uma retribuição mínima mensal, seja qual for a modalidade praticada, cujo valor é determinado anualmente por legislação específica, ouvida a Comissão Permanente de Concertação Social, tendo em conta, entre outros fatores, as necessidades dos trabalhadores, o aumento de custo de vida e a evolução da produtividade, tendo em vista a sua adequação aos critérios da política de rendimentos e preços (artigo 273.º, n.ºs 1 e 3, do Código do Trabalho). De acordo com essa ponderação, a RMMG foi fixada: para o ano de 2010 em € 475,00 (Decreto-Lei n.º 5/2010, de 15 de janeiro); para o ano de 2011 em € 485,00 (Decreto-Lei n.º 143/2010, de 31 de dezembro), valor que só voltou a ser atualizado em 2014, subindo para € 505,00, valor que se manteve em 2015 (Decreto-Lei n.º 144/2014, de 30 de setembro); no ano de 2016 foi fixada em € 530,00 (Decreto-Lei n.º 254-A/2015, de 31 de dezembro); no ano de 2017 em € 557,00 (Decreto-Lei n.º 86-B/2016, de 29 de dezembro); no ano de 2018 em € 580,00 (Decreto-Lei n.º 156/2017, de 28 dezembro); no ano de 2019 em € 600,00 (Decreto-Lei nº 117/2018, de 27 dezembro); no ano de 2020 em € 635,00 (Decreto-Lei nº 167/2019, de 21 novembro); no ano de 2021 em € 665,00 (Decreto-Lei n.º 109-A/2020, de 31 de dezembro); finalmente, para o ano de 2022, foi fixada no montante de € 705 (Decreto‑Lei n.º 109‑B/2021, de 7 de dezembro).
Confrontando os valores que, desde a entrada em vigor da Lei n.º 98/2009, foram correspondendo a 1,1 IAS com aqueles que resultaram da atualização da RMMG, verifica-se que os primeiros se situam consideravelmente aquém dos segundos. A tendência é mesmo para a acentuação dessa diferença, como o comprovam os anos de 2021 e 2022: em 2021, o diferencial era de € 182,31 (€ 665,00 - € 438,81x1,1), saldando-se atualmente em € 217,48 (€ 705 - €443,20x1,1).
15. Sabendo-se que, no âmbito da Lei n.º 100/97, o valor da prestação suplementar tinha com limite máximo o montante da retribuição mínima mensal garantida (cf. supra, o n.º 11), a confrontação da norma sindicada com o direito consagrado na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição pode, à partida, ocorrer por uma de duas vias.
A primeira corresponde a um controlo de constitucionalidade baseado na proibição do retrocesso social: alcançado já um certo nível de realização do direito à justa reparação dos trabalhadores, quando vítimas de acidente de trabalho, o simples facto de o legislador retroceder nesse nível de efetivação seria suficiente para se ter por constitucionalmente vedada a substituição da solução que constava do artigo 19.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, por aquela que atualmente resulta do n.º 1 do artigo 54.º do RAT.
Tal perspetiva não pode ser, todavia, aceite. Como este Tribunal vem assinalando, «[s]ó seria assim se se admitisse uma proibição geral de retrocesso social, em matéria de direitos sociais, no sentido de que nunca poderia ser criado um novo regime legal que pudesse afetar qualquer situação jurídica que se encontrasse abrangida pela lei anterior», o que acarretaria a destruição da «autonomia da função legislativa, cujas características típicas, como a liberdade constitutiva e a autorevisibilidade, seriam praticamente eliminadas se, em matérias tão vastas como os direitos sociais, o legislador fosse obrigado a manter integralmente o nível de realização e a respeitar em todos os casos os direitos por ele criados» (Acórdão n.º 575/2014).
Negada a «autonomia normativa da proibição do retrocesso ¾ isto é, assente que «dela não se retira qualquer parâmetro próprio de controlo da afetação negativa dos direitos sociais» (Acórdão n.º 794/2013) ¾, a consequência só pode ser uma: a verificar-se, a inconstitucionalidade da norma sindicada não resultará do simples facto de o legislador de 2009, através da substituição dos referenciais que operou, ter permitido que o montante máximo da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa retrocedesse para um valor significativamente aquém daquele que se obtinha por aplicação da solução anterior; só poderá resultar de uma resposta afirmativa à questão de saber se, nesse retrocesso, foi ou não indevidamente afetado o próprio direito à justa reparação dos trabalhadores, quando vítimas de acidente de trabalho.
É o que se procurará determinar nos pontos seguintes.
16. É pacifica na jurisprudência constitucional a visão segundo a qual o legislador dispõe de alguma margem de livre conformação na concretização do direito à justa reparação por acidentes de trabalho, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.
Para determinar o âmbito dessa liberdade e, sobretudo, verificar se os respetivos limites foram inobservados na edição da norma cuja aplicação foi recusada nos autos são duas as possibilidades que se abrem.
A primeira assenta na ideia de que o direito à justa reparação em caso de acidentes de trabalho apresenta natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Assim, tendo presente que constituem normas restritivas de direitos, liberdades e garantias aquelas que «encurtam o seu conteúdo e alcance», originando o «estreitamento do próprio “conteúdo” do direito constitucional» (Acórdão n.º 413/1989), o que importará essencialmente determinar é se, ao permitir que o valor máximo da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa venha a situar-se abaixo do montante da retribuição mínima mensal garantida, a solução sindicada veio fragilizar a posição jurídica do sinistrado em acidente laboral, inviabilizando-lhe a obtenção de uma reparação que possa ser considerada justa, em violação do disposto no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição (neste sentido, v. os Acórdãos n.ºs 147/2006, 59/2007 e 161/2009).
Seguindo-se esta via, parece que a resposta só poderá ser afirmativa. É certo que, incorporando o sistema português um modelo de transferência obrigatória da responsabilidade pela reparação dos danos provocados por acidente de trabalho para uma entidade seguradora (artigo 79.º, n.º 1, do RAT), a evolução do regime legal de proteção em caso de infortúnio laboral vem refletindo também, como vimos (cf. supra, o n.º 8.), a preocupação em preservar um certo equilíbrio entre «benefícios» e «financiamento», de forma a não pôr em causa a competitividade das empresas, bem como a criação e manutenção dos postos de trabalho. Simplesmente, até por estar em causa a garantia da integridade da própria pensão enquanto prestação reintegradora da concreta capacidade de ganho do trabalhador vítima de acidente laboral, tal interesse não tem peso suficiente para legitimar o abaixamento do limite máximo da prestação suplementar devida em caso de incapacitação funcional profunda para um nível inferior ao da retribuição mínima mensal garantida. Isto é, aquela que o sinistrado terá, ele próprio, de assegurar sempre que a situação de dependência originada pela lesão resultante de acidente de trabalho exija a assistência permanente de terceira pessoa durante oito horas diárias (artigo 203.º, n.º 1, do Código de Trabalho).
A outra via possível, para que remete a jurisprudência mais recente deste Tribunal, assenta, por sua vez, na ideia de que «o direito à assistência e justa reparação em caso de infortúnio laboral integra a classe dos direitos fundamentais a prestações normativas, ou seja, a que o legislador institua regimes jurídicos constitutivos de determinados bens, direitos que se traduzem, em primeira linha, num dever de ação legislativa do Estado. Em virtude dele, «[o Estado] está vinculado a prever, por via legislativa, a obrigação de reparação e a assistência…por parte da entidade patronal (ou de outra entidade que se lhe substitua)….» (Acórdão n.º 599/2004). Trata-se, por natureza, de um direito de pendor positivo, correlativo de um dever estadual de legislar» (Acórdão n.º 786/2017).
Sob tal enquadramento, a questão de constitucionalidade suscitada pela norma sindicada converte-se num problema de violação da proibição da proteção deficitária ou insuficiente. Mais concretamente, no problema de saber se, ao estabelecer para a prestação suplementar um limite máximo que pode vir a situar-se aquém do montante correspondente à retribuição mínima mensal garantida, o legislador de 2009 não apenas reduziu o nível de proteção alcançado em 1997, como, em resultado dessa redução, acabou por situar a ordem jurídica aquém do nível mínimo de proteção do direito dos trabalhadores à justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho, imposto pela alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição.
A resposta é uma vez mais afirmativa.
Não se ignora que a função dos direitos fundamentais enquanto a direitos a prestações normativas, associada ao princípio da proibição da insuficiência, não impõe ao legislador a colocação do direito infraconstitucional no ponto ótimo ou grau ideal de efetivação do conteúdo do direito económico ou social de que se trate; apenas o impede de conceder um nível de satisfação que, tudo visto e ponderado, nomeadamente a liberdade de conformação do legislador, se revele deficitário ou insuficiente. No mínimo, tal exigência pressupõe uma proteção que não seja apenas aparente ou ilusória, mas antes efetiva e eficaz. É aqui que reside a medida do controlo jurisdicional: tal controlo destina-se a verificar se certa norma assegura ao direito fundamental em causa, não uma proteção plenamente eficiente, mas uma proteção suficientemente eficiente tendo em conta o conteúdo que a Constituição lhe assinala.
Ora, nos casos em que, em consequência da lesão em que se materializou o risco inerente à prestação laboral, o trabalhador se vê simultaneamente confrontado com supressão da sua plena capacidade de ganho e a perda da autonomia funcional necessária à satisfação das necessidades básicas diárias, a efetivação do direito à justa reparação a que alude a alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição não pode deixar de pressupor a atribuição de uma prestação suplementar da pensão em valor congruente com a necessidade de contratação da assistência de terceira pessoa.
Nesta hipótese, em que a proteção plenamente eficiente corresponderia à ausência de qualquer limite máximo à graduação do valor da prestação suplementar de modo a permitir o ressarcimento da integralidade da despesa que o sinistrado suportará com a contratação de terceira pessoa, a proteção suficientemente eficiente pressupõe que aquele limite máximo, a existir, seja fixado levando em conta não menos do que o valor da retribuição mínima mensal garantida praticada no mercado de trabalho — isto é, aquele com que o sinistrado terá de contar para assegurar a assistência de que carece. Que é esse o referencial pressuposto pela concretização suficientemente eficiente do direito à justa reparação em caso de acidente de trabalho é conclusão tanto mais evidente quanto presente se tiver que o limite máximo da pensão suplementar tenderá a ser atingido apenas nos casos mais graves, graduando-se em sentido inverso o restante universo de casos (cf. supra, o n.º 11).
Em suma: seja vista como um estreitamento do conteúdo do direito dos trabalhadores à justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho, seja encarada como uma solução deficitária do ponto de vista do nível de efetivação daquele direito que a Constituição impõe ao legislador, há que concluir que a norma sindicada é incompatível com o que dispõe o artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Lei Fundamental, e, consequentemente, que o presente recurso não deverá obter provimento.”
8. O presente caso não apresenta particularidade de relevo em relação àquele que foi apreciado nos Acórdãos n.º 151/2022 e 194/2022, acima indicados, bem como no Acórdão n.º 699/2022, da 1.ª Secção, cuja fundamentação é semelhante aos anteriores, nem qualquer outra razão que justifique apreciação diversa da que ali foi adotada. Nesses termos, cumpre reiterar aqui o juízo de inconstitucionalidade, o que determina a improcedência do presente recurso.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma resultante da interpretação do artigo 54.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 98/2009, na medida em que permite que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa tenha um limite máximo que pode ser inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, e que a respetiva atualização anual seja também inferior à percentagem em que o for essa remuneração, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa; e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 17 de novembro de 2022 – Mariana Canotilho - António José da Ascensão Ramos – José Eduardo Figueiredo Dias – Assunção Raimundo – Pedro Manchete