ACÓRDÃO N.º 778/2022
Processo n.º 856/2022
3ª Secção
Relatora: Conselheira Joana Fernandes Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que é recorrente A. e recorrido o B., foi interposto recurso, ao abrigo dos artigos 70.º e 75.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (doravante, «LTC»), do acórdão proferido por aquele Tribunal, em 9 de junho de 2022, que decidiu não conhecer do recurso interposto pela ora reclamante, relativamente ao despacho prolatado, em 28 de abril de 2021, pelo Juízo de Execução de Setúbal – J 2 – do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, por o mesmo não ser recorrível.
2. Através da Decisão Sumária n.º 579/2022, decidiu-se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso.
Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«II. Fundamentação
4. O artigo 75.º-A da LTC define, nos seus n.ºs 1 a 4, os requisitos formais do requerimento de interposição do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade.
Preceitua o n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC que, independentemente do tipo de recurso, deverá indicar-se «a alínea do n.º 1 do artigo 70.º ao abrigo da qual o recurso é interposto e a norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie». Tratando-se de recurso interposto ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o recorrente deve ainda a norma ou princípio constitucional ou legal que considera ter violado e, bem assim, a peça processual em que suscitou, durante o processo, a questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade que pretende ver solucionada pelo Tribunal Constitucional (n.º 2). Já no caso dos recursos previstos nas alíneas g) e h) do artigo 70.º, deve indicar também a decisão do Tribunal Constitucional que, com anterioridade, julgou inconstitucional ou ilegal a norma aplicada pela decisão recorrida (n.º 3), sendo tal regime aplicável, com as necessárias adaptações, ao recuso previsto na alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º (n.º 4).
Acresce, ainda, como requisito geral, o ónus de identificar a decisão que se pretende recorrer.
Na hipótese de o requerimento de interposição do recurso ser deficiente — isto é, não indicar algum dos elementos previstos no artigo 75.º-A da LTC —, é facultada ao recorrente a possibilidade de suprir a ausência da indicação em falta através do convite ao aperfeiçoamento previsto nos n.ºs 5 e 6 do mesmo artigo.
Contudo, figura distinta do requerimento deficiente é a do requerimento inepto.
Conforme se ressalta no Acórdão n.º 498/2022, «o convite ao aperfeiçoamento previsto n.º 5 do artigo 75.º-A da LTC apenas tem lugar no caso de o requerimento de interposição do recurso ser deficiente — isto é, não indicar algum dos elementos previstos nos n.ºs 1 a 4 do artigo 75.º-A da LTC —, não sendo aplicável às hipóteses de ineptidão. Esta resulta da omissão da totalidade ou quase totalidade daquelas indicações». A omissão da «quase totalidade» dos elementos previstos nos n.ºs 1 a 4 do artigo 75.º-A da LTC é justamente a situação analisada no referido Acórdão n.º 498/2022, mas também no Acórdão n.º 9/2017, casos em que o recorrente se limitou a indicar a alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Em suma, o requerimento em que faltem todas, ou quase todas, menções impostas por lei não é defeituoso, mas sim inepto, situação que não pode ser suprida através do convite ao aperfeiçoamento.
5. No presente caso, estamos perante um requerimento inepto.
A recorrente apenas identifica a decisão recorrida (referindo expressamente que se pretende recorrer do acórdão proferido em 9 de junho de 2022), mas não contém quaisquer das menções impostas pelos n.ºs 1 a 4 do artigo 75.º-A da LTC.
Desde logo, não identifica a alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC ao abrigo do qual o recurso é interposto, pelo que, nem sequer é possível apreender o tipo, ou espécie, de recurso de fiscalização concreta que pretende interpor.
Ademais, a recorrente também não identifica a norma (ou interpretação normativa) cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada.
Ora, estamos perante a ausência de menções essenciais, que tornam o requerimento absolutamente ininteligível. É, assim, inepto. Como se escreve no Acórdão n.º 13/2022 (em que o recorrente também não tinha feito as indicações previstas no artigo 70.º, n.º 1, da LTC) «estamos perante absoluta ausência de definição de temática da instância de recurso qualificável como vício de ineptidão. Quando seja assim, um convite ao aperfeiçoamento pelo Tribunal não constitui uma faculdade para aperfeiçoar o ato praticado, mas o benefício de uma segunda oportunidade (e de um segundo prazo) para interpor recurso de fiscalização concreta, resultado processualmente inadmissível e que conduz a que o vício seja impassível de sanação (v., neste sentido, acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 252/2008, 112/2013 e 9/2017)». Nas palavras usadas no Acórdão n.º 112/2013, o requerimento de interposição de recurso pela recorrente não é um «objeto imperfeito capaz de se tornar perfeito», mas sim um «impulso vazio de conteúdo, inepto, imprestável para sobre ele recair qualquer apreciação de (in)verificação dos requisitos e pressupostos exigidos pelo legislador», razão pelo qual admitir «a apresentação de novo requerimento nessas circunstâncias nada tem de aperfeiçoamento; antes representa a concessão de novo prazo de recurso, sem que tal seja consentido pelo n.º 1 do artigo 75.º da LTC».
Acresce que o exarado no requerimento manifesta a imputação direta de um suposto vício de inconstitucionalidade (não identificado) ao que foi decidido pelas instâncias, o que sempre tornaria inidóneo o objeto do recurso. Não se consegue, aliás, sequer percecionar qual a norma ou interpretação normativa que a recorrente pretende ver sindicada. A recorrente insurge-se, apenas, contra diversas decisões das instâncias (e não apenas o acórdão recorrido), discordando das mesmas e não lhes reconhecendo razão no plano do direito ordinário ou, de forma genérica, considerando que não são conformes à Constituição.
O que sempre levaria a concluir pela inidoneidade impeditiva do conhecimento do recurso».
3. Inconformada com tal decisão, a reclamante apresentou requerimento nos seguintes termos:
«A. pede a amabilidade de desculpar, mas afigura-se-lhe que a douta decisão sumária nº 579/2022 contém algumas imprecisões relativamente ao enunciado da invocada omissão de identificação de inconstitucionalidades em que terão incorrido as instâncias, pelo que roga respeitosa e tempestivamente a sua
ACLARAÇÃO
para todos os efeitos e com todas as consequências legais inerentes, podendo naturalmente e em alternativa V. Exª entender esta solicitação como uma
RECLAMAÇÃO PARA A DIGNA CONFERÊNCIA
o que V. Exª decidirá segundo o seu apurado critério.
Na verdade e como resulta dos autos e é do conhecimento judicial ( nº 2 do artigo 412º do CPC ):
a. Apesar de entretanto terem casado e a casa de morada de família entretanto penhorada ser propriedade comum do casal, A. é a única executada neste 1593, por dívidas societárias contraídas por ela antes do seu casamento com Abel.
b. Este processo dura consabidamente há uma década.
c. Em 2020, o casal foi citado para o 1623 incidente exatamente sobre a mesma casa de morada de família.
d. Incidindo o 1623 sobre a mesma casa de morada de família, o sr. AE e bem decidiu paralisar aí a metade de A. (artigo 794º do mesmo Código e Lei nº 13/2016, de 23 de Maio).
e. Assim sendo e até por vicissitudes processuais várias que não vêm ao caso, Abel continua sozinho nesse 1623.
f. O que não se compreende e precisamente quanto a essa lei de 2016, portanto já vigente há 6 anos e meio, é que o sr. AE deste 1593 não tenha procedido aqui justamente como o seu colega oficiosamente fez ali no 1623, paralisando a mesma metade de A..
g. Esta notória contradição claramente inconstitucional tem passado inadvertida às instâncias, o que naturalmente gera no espírito das partes uma entropia iníqua dificilmente digerível e sumamente preocupante, já que se trata do destino de um lar fundamental e vital para a sobrevivência da família.
h. Também a reclamante invocou expressamente aquela que julga ser a base da fase mais recente da sua via recursiva, assente numa interpretação que crê inconstitucional respeitantemente à questão fundacional da interpretação da Lei nº 4-B/2001, de 1Fev e mormente quanto ao artigo 6º-B a partir do seu nº 6.
i. Diz respeito à contagem de prazos no âmbito dos processos executivos como este e em função do texto dos preceitos imediatamente precedentes desse diploma, defendendo a reclamante e crê que com razão que este suspendeu inteiramente os prazos atinentes a tais processos executivos.
j. Acresce que o douto acórdão da RE diz que deve ser rejeitado o recurso da decisão de indeferimento de retificação, mas entretanto e a tempo e horas, já o recurso propriamente dito havia sido interposto e motivado, como facilmente se vê pela leitura dos autos.
k. De facto, o recurso a se foi realmente formulado e narrado independentemente da regra da precedência ditada pelo nº 2 do artigo 614º do CPC, pelo que também por esta via o citado acórdão da RE incorre insolitamente em contradição igualmente inconstitucional».
4. O recorrido não se pronunciou.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. Através da Decisão Sumária n.º 579/2022, concluiu-se pela inadmissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto nos presentes autos com fundamento na ineptidão do requerimento de interposição. Para assim concluir, fez-se notar que a reclamante não indicou a alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC ao abrigo do qual o recurso foi interposto, nem identificou a norma cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada. Assim como não referiu ¾ explicita-se agora ¾ as normas ou princípios constitucionais que considera terem sido violados, nem a peça processual em que terá suscitado previamente nos autos a questão de inconstitucionalidade que pretende sujeitar à apreciação deste Tribunal, apesar de se tratar de menções todas elas impostas pelos n.ºs 1 a 4 do artigo 75.º-A da LTC.
Para além disso, notou-se que, ao fundamentar o recurso na convicção de que «as instâncias se recusaram a aplicar correta e plenamente esses comandos normativos vigentes e, ao agirem por essa forma, estão a vulnerar normas e princípios constitucionais», a reclamante imputara diretamente um suposto vício de inconstitucionalidade (não identificado) ao que fora decidido pelo Tribunal recorrido, discordando dos termos em o direito fora aplicado ao caso, o que sempre colocaria a pretensão subjacente ao recurso fora do âmbito consentido pelo carácter estritamente normativo do sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade.
6. No requerimento apresentado, a reclamante começa por fazer um pedido de aclaração da Decisão Sumária n.º 579/2022. Sucede que, de acordo com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 613.º do Código de Processo Civil, na sua redação atual, aplicáveis por força do disposto no artigo 69.º da LTC, proferida a decisão, só é lícito ao juiz «retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença» (v. n.º 2 do artigo 613.º). Diferentemente do que sucedia no âmbito da vigência do Código de Processo Civil, na versão anterior à reforma operada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho (v. artigo 669.º, n.º 1, alínea a), na apontada redação), o «pedido de aclaração» da sentença corresponde a um incidente atípico, no sentido em que não se encontra previsto na lei adjetiva atualmente em vigor. Tal entendimento tem sido, de resto, reiteradamente afirmado na jurisprudência deste Tribunal. Conforme se escreveu no Acórdão n.º 401/15:
«[…]
[Após a prolação de acórdão e] de acordo com o Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, aplicável aos recursos para o Tribunal Constitucional nos termos do artigo 69.º da LTC, o poder jurisdicional deste Tribunal ficou esgotado, sendo lícito apenas retificar erros materiais, suprir nulidades, ou proceder à reforma do acórdão (artigos 613.º, n.ºs 1 e 2 e 666.º do CPC, de 2013). Com efeito, deixou de ser admitido, como acontecia no regime processual civil precedente, incidente de aclaração, sem prejuízo da ocorrência de ambiguidade ou obscuridade passar a estar prevista como fundamento de nulidade do acórdão, contando que torne a decisão ininteligível (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, de 2013).
[…]».
Para além disso, verifica-se que o pedido de aclaração formulado pela reclamante não contém, sequer implicitamente, a imputação à decisão sumária sob censura de qualquer obscuridade ou contradição, suscetível de comprometer a inteligibilidade do julgado ¾ e, nessa medida, de fundamentar a arguição da nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil ¾, o que sempre determinaria o desatendimento da pretensão formulada. Com efeito, a reclamante limita-se a dar conta de «imprecisões», sem identificar ou fundamentar qualquer vicissitude suscetível de afetar a compreensibilidade dos fundamentos invocados na decisão reclamada. É, por outro lado, manifesto que tal decisão não padece de quaisquer erros ou lapsos materiais que importe retificar. Acresce, por fim, que o meio de reação previsto na LTC para que o reclamante obtenha a sindicância da decisão sumária é a reclamação para a conferência (artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC), carecendo, assim, o requerido do menor fundamento legal.
7. De todo modo, tem assinalado a jurisprudência deste Tribunal que o pedido de aclaração onde surja patente a vontade de reverter a decisão sumária impõe a convolação do requerimento apresentado em reclamação para a conferência, prevista no n.º 3 do artigo 78.º-A, da LTC, por ser esse o único meio de impugnação admissível (v., entre outros, Acórdãos n.ºs 401/2009, 191/2016 e 39/2018). Sendo certo que a própria reclamante articula no seu requerimento uma reclamação para a conferência, ainda que o faça a título subsidiário, para o caso de não se atender ao pedido de aclaração formulado a título principal, importa, pois, apreciá-la.
Nos termos do n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, «[d]a decisão sumária do relator pode reclamar-se para a conferência». Tal possibilidade visa facultar ao recorrente a oportunidade de ver apreciado o seu requerimento de interposição do recurso por uma formação colegial, sendo por isso de admitir que a reclamação deva ser analisada ainda que não tenham sido invocadas específicas razões destinadas a contrariar o sentido da decisão proferida pelo relator quanto à admissibilidade do recurso.
No presente caso, a reclamante não indica os motivos da sua discordância relativamente ao juízo formulado na decisão ora reclamada, nem apresenta qualquer argumento destinado a refutar a conclusão de que o requerimento de interposição do recurso é inepto ou que a pretensão que nele manifestou se situa fora do âmbito dos poderes de cognição atribuídos ao Tribunal Constitucional. Tudo o que faz é reafirmar a sua inconformação com o decidido pelas instâncias, voltando a colocar as decisões judiciais e o acerto da aplicação do direito ordinário no epicentro do recurso.
Procedendo-se à reponderação das razões invocadas pela relatora, entende-se que a decisão de não admitir o recurso de constitucionalidade merece ser confirmada.
Assim, a presente reclamação deverá ser indeferida.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro, ponderados os critérios estabelecidos no respetivo artigo 9.º, sem prejuízo do apoio judiciário que beneficie.
Lisboa, 17 de novembro de 2022 – Joana Fernandes Costa – Gonçalo de Almeida Ribeiro – João Pedro Caupers