ACÓRDÃO Nº 303/2022
Processo n.º 317/2021
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Mariana Canotilho
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro), o Ministério Público interpôs recurso, para si obrigatório, da sentença proferida a 20 de janeiro de 2021 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Penafiel.
No requerimento de interposição de recurso, peticiona a apreciação da norma do artigo 3.º, n.º 1, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril (doravante NRFGS), «quando estabelece como critério de fixação do limite de garantia (plafond legal) a retribuição do trabalhador, determinando um nível de proteção quantitativamente inferior aos trabalhadores com salário menor».
2. Admitido o recurso e remetidos os autos a este Tribunal, foi determinado o seu prosseguimento. O Ministério Público apresentou alegações, concluindo pela procedência do recurso de constitucionalidade, com os seguintes fundamentos:
“A questão de constitucionalidade que agora constitui objecto do recurso, já foi trazida ao Tribunal Constitucional em quatro processos nos quais, oportunamente, o Ministério Público apresentou Alegações (Proc. n.º 1205/19, 3.ª Secção, Proc. n.º1206/19, 1ª Secção e Proc. n.º 213/2020, da 2ª Secção e 300/2021, da 3ª Secção).
Iremos pois, seguidamente, transcrever a parte pertinente das Alegações então apresentadas:
‘III
1. É o seguinte o teor do n.º 1, do artigo 3.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril:
“O Fundo assegura o pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho, referidos no n.º 1 do artigo anterior, com o limite máximo global equivalente a seis meses de retribuição, e com o limite máximo mensal correspondente ao triplo da retribuição mínima mensal garantida”.
IV
2. Conforme resulta com evidência do conteúdo dos excertos da decisão impugnada que acabamos de reproduzir, imputa esta à norma legal contestada, a ínsita no n.º 1, do artigo 3.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, a violação do princípio da igualdade, na medida em que “estabelece um limite máximo à responsabilidade da entidade demandada que é variável em função do salário dos trabalhadores: quanto maior o salário maior a responsabilidade que o FGS assume no pagamento dos créditos laborais em caso de insolvência”.
3. Perante a opinião acabada de exprimir e que sustenta a douta decisão recorrida, cabe-nos começar por apurar quais os objecto e fins do Fundo de Garantia Salarial e, bem assim, qual a natureza dos créditos a cujo cumprimento se encontra vinculado.
4. Se atentarmos no teor do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, apuramos que:
“No novo regime, o FGS continua a surgir como um fundo autónomo que não integra o âmbito de proteção social garantido pelo sistema de segurança social, antes com este se relacionando, quer pela via de parte do seu financiamento, quer pela via da sua gestão entregue ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P. (IGFSS, I. P.)”.
5. Ou seja, distintamente do pressuposto pelo Mm.º Juiz “a quo”, que afirma que “o mecanismo de proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência da entidade empregadora tem objetivos marcadamente sociais de quem pode ficar mais fragilizado, ou em maiores dificuldades, na sequência da declaração de insolvência”, o legislador do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, esclarece que o Fundo de Garantia Salarial não integra o âmbito de protecção social garantido pelo sistema de segurança social.
6. Para além disso, clarifica, igualmente, o legislador ordinário no n.º 1, do artigo 1.º do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, que o Fundo de Garantia Salarial “(…) assegura o pagamento ao trabalhador de créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação”.
7. Ou seja, os créditos cujo pagamento é assegurado pelo Fundo de Garantia Salarial, dos quais os trabalhadores são titulares, correspondem a dívidas pré-existentes emergentes de contratos de trabalho, contraídas pelos empregadores, nos casos em que ocorra uma das situações elencadas no n.º 1, do artigo 1.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril.
8. Comprovando esta asserção, se necessário fosse, encontra-se a circunstância plasmada no n.º 1, do artigo 4.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, de o Fundo ficar “sub-rogado nos direitos e nos privilégios creditórios do trabalhador, na medida dos pagamentos efetuados, acrescidos de juros de mora vincendo”.
9. Atento o exposto, facilmente apuramos que o Fundo de Garantia Salarial substitui-se aos empregadores, com as condições e os limites elencados no Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, no pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação pré-existentes, de que os trabalhadores já eram, consequentemente, titulares.
10. Tais créditos, os previstos na norma legal geral e abstracta agora contestada, porque potencialmente emergentes de distintos contratos de trabalho, celebrados com diferentes trabalhadores, virtualmente possuidores de inúmeras e díspares competências académicas e aptidões profissionais e tendo por objecto as mais heterogéneas funções e tarefas, nunca poderiam deixar de se consubstanciar em pagamentos «quantitativamente» desiguais e em garantias desses pagamentos também «quantitativamente» desiguais.
11. Aliás, adiantemo-lo já, se a lei ordinária tratasse todos os trabalhadores, independentemente das suas tarefas, obrigações laborais, competência, formação, responsabilidades, riscos de actividade, tempo de serviço ou experiência profissional, do mesmo modo, em termos «quantitativamente» iguais, aí sim, deparar-nos-íamos com uma evidente violação do princípio da igualdade, plasmado no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa, na sua dimensão de igualdade da retribuição do trabalho, proclamada na alínea a), do n.º 1, do artigo 59.º, do Texto Fundamental.
12. Com efeito, não nos esqueçamos de qual o entendimento sobre o princípio constitucional da igualdade que vem, de há muito, a ser adoptado pelo Tribunal Constitucional, e bem exemplificado, entre outros, no seu douto Acórdão n.º 412/02, no qual se esclarece que:
“O princípio da igualdade abrange fundamentalmente três dimensões ou vertentes: a proibição do arbítrio, a proibição de discriminação e a obrigação de diferenciação, significando a primeira, a imposição da igualdade de tratamento para situações iguais e a interdição de tratamento igual para situações manifestamente desiguais (tratar igual o que é igual; tratar diferentemente o que é diferente); a segunda, a ilegitimidade de qualquer diferenciação de tratamento baseada em critérios subjectivos (v.g., ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social) e, a última surge como forma de compensar as desigualdades de oportunidades.
(…)
Também no Acórdão nº. 409/99, de 29 de Junho, in “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, vol. 44º, págs. 461 a 485, se disse:
“O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional”.
13. Ora, no que concerne ao tratamento distinto de situações qualitativa e quantitativamente distintas, como as que se alicerçam no prescrito no n.º 1, do artigo 3.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, ele, não se revelando infundadamente discriminatório, dá, ao contrário do sustentado na douta decisão recorrida, cumprimento ao imposto pelo princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa.
14. Princípio da igualdade este que, no domínio laboral, exibe como seu afloramento o conteúdo da alínea a), do n.º 1, do artigo 59.º, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o sub-princípio de que «para trabalho igual salário igual».
15. Acontece que, também no que respeita a este princípio – ou sub-princípio – a jurisprudência do Tribunal Constitucional é inequívoca no sentido da obrigatoriedade de ser dado tratamento igual a realidades iguais mas, simultaneamente, de ser dado tratamento diferente, e na medida dessa diferença, a realidades distintas.
16. Com efeito, diz-nos o Tribunal Constitucional, no seu douto Acórdão n.º 584/98, com relevância para a presente discussão, que:
“(…) [A] justiça exige que, quando o trabalho prestado for igual em quantidade, natureza e qualidade, seja igual a remuneração. E reclama (nalguns casos, apenas consentirá) que a remuneração seja diferente, pagando-se mais a quem tiver melhores habilitações ou mais tempo de serviço. Deste modo se realiza a igualdade, pois que, como se sublinhou no acórdão n.º 313/89, (publicado nos Acórdão do Tribunal Constitucional, 13º volume, tomo II, páginas 917 e seguintes), do que no preceito constitucional citado se trata é de um direito de igualdade”.
17. Mais adiante no mesmo aresto, transcrevendo o mencionado Acórdão n.º 313/89, acrescentam os ilustres Conselheiros, que:
“Uma justa retribuição do trabalho é, no fundo, o que os princípios enunciados no preceito transcrito visam assegurar: a retribuição deve ser conforme à quantidade, natureza e qualidade do trabalho; deve garantir uma existência condigna; e a trabalho igual - igual em quantidade, natureza e qualidade - deve corresponder salário igual.
O princípio “para trabalho igual salário igual” não proíbe, naturalmente, que o mesmo tipo de trabalho seja remunerado em termos quantitativamente diferentes, conforme seja feito por pessoas com mais ou menos habilitações e com mais ou menos tempo de serviço, pagando-se mais, naturalmente, aos que maiores habilitações possuem e mais tempo de serviço têm. O que o princípio proíbe é que se pague de maneira diferente a trabalhadores que prestam o mesmo tipo de trabalho, têm iguais habilitações e o mesmo tempo de serviço.
O que, pois, se proíbe são as discriminações, as distinções sem fundamento material, designadamente porque assentes em meras categorias subjectivas.
Se as diferenças de remuneração assentarem em critérios objectivos, então elas são materialmente fundadas, e não discriminatórias.
Tratar por igual o que é essencialmente igual e desigualmente o que é essencialmente diferente - eis o que exige o princípio da igualdade (...)”.
18. No mesmo sentido se pronuncia Rui Medeiros, a páginas 831 da Constituição Portuguesa Anotada, Volume I, Coord. de Jorge Miranda e Rui Medeiros, Universidade Católica Portuguesa, 2017, ao afirmar que:
“O preceito, no quadro do sistema constitucional português, não pode deixar de ser lido em conjugação com o artigo 13.º da Constituição. Por isso, à luz do princípio constitucional da igualdade, o essencial reside na proibição de diferenciações injustificadas, sendo a enumeração do corpo do artigo 59.º, meramente exemplificativa. O legislador constitucional limita-se a indicar alguns dos principais fatores de discriminação ilegítima dos trabalhadores. Outros poderão existir, incluindo, em face da nova redação do artigo 13.º, n.º 2, introduzida na revisão de 2004, por motivos que se prendem com a orientação sexual. A Constituição não veda, naturalmente, diferenciações. A própria alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º, como se confirmará de seguida, ao consagrar “o princípio de que para trabalho igual salário igual”, reconhece a legitimidade de diferenciações em matéria de retribuição do trabalho, designadamente em função da sua natureza e qualidade. Todavia, não havendo fundamento material para distinguir, a diferenciação será constitucionalmente interdita, sendo para o efeito, irrelevante que o fator de distinção esteja ou não expressamente autonomizado no corpo do n.º 1 do artigo 59.º”.
19. Ora, no caso vertente, estabelecendo a norma legal desaplicada – a ínsita no n.º 1, do artigo 3.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril - como valor de referência para o pagamento assegurado pelo Fundo de Garantia Salarial de créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação o da remuneração auferida mensalmente pelo trabalhador requerente, com o limite máximo mensal correspondente ao triplo da retribuição mínima mensal garantida, limita-se o legislador ordinário a reconhecer, em tal regime garantístico, as desigualdades resultantes das diferenças salariais decorrentes das regras inerentes ao funcionamento do mercado laboral (que, idealmente, reflectem as diferenças de quantidade, natureza e qualidade do trabalho prestado por cada trabalhador), que não podem deixar de se reflectir na solução normativa consagrada, e nos montantes dos valores a prestar, sob pena de violação do afloramento do princípio da igualdade proclamado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa.
20. Não faria sentido, dizemos nós, que visando o Novo regime do Fundo de Garantia Salarial criado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, assegurar aos trabalhadores o pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho, em caso de incumprimento pela entidade patronal, conduzisse a sua execução ao pagamento de valores quantitativamente iguais a todos os trabalhadores, independentemente dos valores das suas remunerações e das circunstâncias das suas relações laborais.
21. A acrescentar ao acabado de referir, porque não despiciendo, há que relembrar que, no tocante aos valores dos tributos fiscais e das contribuições para a segurança social incidentes sobre as remunerações – factor relevante para o financiamento, ainda que indirecto, do Fundo de Garantia Salarial – também os que oneram as remunerações mais elevadas são quantitativamente superiores aos que oneram retribuições mais reduzidas, circunstância que, ao ser ignorada, só aprofunda a evidência da violação do princípio da igualdade que imputamos ao juízo normativo que sustenta a douta decisão impugnada.
22. Ou seja, atento o acabado de expor, não se vislumbra que a norma ínsita no n.º 1, do artigo 3.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, “quando estabelece como critério de fixação do limite de garantia (plafond legal) a retribuição do trabalhador, determinando um nível de proteção quantitativamente inferior aos trabalhadores com salário menor (…)” se revele susceptível de violar o princípio da igualdade, proclamado, conjuntamente nos artigos 13.º e 59.º, n.º 1, alínea a), ambos da Constituição da República Portuguesa.
23. Por força de tudo o explanado, entende o Ministério Público que deverá ser tomada decisão no sentido de não julgar inconstitucional aquela interpretação do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, revogando-se a douta decisão “a quo” e, consequentemente, concedendo-se provimento ao presente recurso.’
(...)
4. Conforme resulta com evidência do conteúdo da decisão impugnada, imputa esta à norma legal contestada, a ínsita no n.º 1, do artigo 3.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, a violação do princípio da igualdade, na medida em que “estabelece um limite máximo à responsabilidade da entidade demandada que é variável em função do salário dos trabalhadores: quanto maior o salário maior a responsabilidade que o FGS assume no pagamento dos créditos laborais em caso de insolvência”.
5. Todavia, distintamente do pressuposto pelo Mm.º Juiz “a quo”, que afirma que “o mecanismo de proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência da entidade empregadora tem objetivos marcadamente sociais de quem pode ficar mais fragilizado, ou em maiores dificuldades, na sequência da declaração de insolvência”, o legislador do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, esclarece que o Fundo de Garantia Salarial não integra o âmbito de protecção social garantido pelo sistema de segurança social.
6. Para além disso, clarifica, igualmente, o legislador ordinário no n.º 1, do artigo 1.º do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, que o Fundo de Garantia Salarial “(…) assegura o pagamento ao trabalhador de créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação”.
7. Ou seja, os créditos cujo pagamento é assegurado pelo Fundo de Garantia Salarial, dos quais os trabalhadores são titulares, correspondem a dívidas pré-existentes emergentes de contratos de trabalho, contraídas pelos empregadores, nos casos em que ocorra uma das situações elencadas no n.º 1, do artigo 1.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril.
8. Tais créditos, os previstos na norma legal geral e abstracta agora contestada, porque potencialmente emergentes de distintos contratos de trabalho, celebrados com diferentes trabalhadores, virtualmente possuidores de inúmeras e díspares competências académicas e aptidões profissionais e tendo por objecto as mais heterogéneas funções e tarefas, nunca poderiam deixar de se consubstanciar em pagamentos «quantitativamente» desiguais e em garantias desses pagamentos também «quantitativamente» desiguais.
9. Aliás, adiantemo-lo já, se a lei ordinária tratasse todos os trabalhadores, independentemente das suas tarefas, obrigações laborais, competência, formação, responsabilidades, riscos de actividade, tempo de serviço ou experiência profissional, do mesmo modo, em termos «quantitativamente» iguais, aí sim, deparar-nos-íamos com uma evidente violação do princípio da igualdade, plasmado no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa, na sua dimensão de igualdade da retribuição do trabalho, proclamada na alínea a), do n.º 1, do artigo 59.º, do Texto Fundamental.
10. Ora, no que concerne ao tratamento distinto de situações qualitativa e quantitativamente distintas, como as que se alicerçam no prescrito no n.º 1, do artigo 3.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, ele, não se revelando infundadamente discriminatório, dá, ao contrário do sustentado na douta decisão recorrida, cumprimento ao imposto pelo princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa.
11. Princípio da igualdade este que, no domínio laboral, exibe como seu afloramento o conteúdo da alínea a), do n.º 1, do artigo 59.º, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o sub-princípio de que «para trabalho igual salário igual».
12. Ora, no caso vertente, estabelecendo a norma legal desaplicada – a ínsita no n.º 1, do artigo 3.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril - como valor de referência para o pagamento assegurado pelo Fundo de Garantia Salarial de créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação o da remuneração auferida mensalmente pelo trabalhador requerente, com o limite máximo mensal correspondente ao triplo da retribuição mínima mensal garantida, limita-se o legislador ordinário a reconhecer, em tal regime garantístico, as desigualdades resultantes das diferenças salariais decorrentes das regras inerentes ao funcionamento do mercado laboral (que, idealmente, reflectem as diferenças de quantidade, natureza e qualidade do trabalho prestado por cada trabalhador), que não podem deixar de se reflectir na solução normativa consagrada, e nos montantes dos valores a prestar, sob pena de violação do afloramento do princípio da igualdade proclamado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa.
13. Não faria sentido, dizemos nós, que visando o Novo regime do Fundo de Garantia Salarial criado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, assegurar aos trabalhadores o pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho, em caso de incumprimento pela entidade patronal, conduzisse a sua execução ao pagamento de valores quantitativamente iguais a todos os trabalhadores, independentemente dos valores das suas remunerações e das circunstâncias das suas relações laborais.
14. Ou seja, atento o acabado de exibir, não se vislumbra que a norma ínsita no n.º 1, do artigo 3.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, “quando estabelece como critério de fixação do limite de garantia (plafond legal) a retribuição do trabalhador, determinando um nível de proteção quantitativamente inferior aos trabalhadores com salário menor (…)” se revele susceptível de violar o princípio da igualdade, proclamado, conjuntamente nos artigos 13.º e 59.º, n.º 1, alínea a), ambos da Constituição da República Portuguesa.”
3. Notificada para responder, a recorrida nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
4. Tal como enunciado no requerimento de interposição de recurso, a norma questionada, tal como enunciada pelo recorrente, inclui no objeto do pedido, a par do sentido normativo desaplicado – a norma que limita a garantia de pagamento pelo Fundo de Garantia Salarial (FGS) de créditos emergentes do contrato de trabalho –, a própria causa de pedir, com referência ao entendimento de que essa norma determina «um nível de proteção quantitativamente inferior aos trabalhos com salário menor». Essa premissa releva já do mérito do juízo, devendo, então, ser afastada do enunciado da questão.
Nos termos da decisão recorrida, a norma objeto de recusa de aplicação, em razão de um juízo de inconstitucionalidade, resulta de um segmento ideal do disposto no n.º 1 do artigo 3.º do NRFG: aquele que se refere aos trabalhadores cujo salário mensal, tomado pelo legislador como valor de referência, é igual ou inferior ao triplo da retribuição mínima garantida. É em relação a estes que, no entender do juiz a quo, a norma oferece “um nível de garantia de pagamento quantitativamente inferior”, introduzindo assim “uma discriminação que se afigura estar proibida”, uma vez que “não se vislumbra qualquer razão material para a diferença de proteção em razão do salário auferido nos termos estabelecidos: o mecanismo de proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência da entidade empregadora tem objetivos marcadamente sociais de proteção de quem pode ficar mais fragilizado, ou em maiores dificuldades, na sequência da declaração de insolvência, o que significa que a menor proteção acordada aos trabalhadores que recebem menores salários conflitua com esse objetivo primordial”.
Importa, então, delimitar a questão em função do recorte subjetivo a que procedeu a decisão recorrida – os trabalhadores cujo salário não ultrapasse o triplo da retribuição mínima mensal garantida – articulado com o limite máximo global estipulado no preceito, correspondente a seis meses da retribuição do trabalhador. Nestes termos, o objeto material do recurso a conhecer é integrado pela norma extraída do n.º 1 do artigo 3.º do NRFGS, no sentido em que, não excedendo a retribuição mensal do trabalhador valor correspondente ao triplo da retribuição mensal garantida, o Fundo de Garantia Salarial assegura o pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho, referidos no n.º 1 do artigo 2.º do mesmo regime, com o limite máximo global equivalente a seis meses dessa retribuição mensal.
5. Como se disse, a dimensão normativa em apreço encontra-se contida no Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, que procedeu à transposição da Diretiva n.º 2008/94/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, relativa à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador, e incide sobre dimensão normativa contida no artigo 3.º do diploma.
Vejamos a redação desse preceito e também do artigo 2.º do diploma, na parte mais relevante, com o qual, nos termos indicados supra, se encontra em relação de comunicação.
«Artigo 2.º
Créditos abrangidos
1 - Os créditos referidos no n.º 1 do artigo anterior abrangem os créditos do trabalhador emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação.
2 - Aos créditos devidos ao trabalhador referidos no número anterior deduzem-se:
a) Os montantes de quotizações para a segurança social, da responsabilidade do trabalhador;
b) Os valores devidos pelo trabalhador correspondentes à retenção na fonte do imposto sobre o rendimento.
3 - O Fundo entrega às entidades competentes as importâncias referidas no número anterior.
4 - O Fundo assegura o pagamento dos créditos previstos no n.º 1 que se tenham vencido nos seis meses anteriores à propositura da ação de insolvência ou à apresentação do requerimento no processo especial de revitalização ou do requerimento de utilização do procedimento extrajudicial de recuperação de empresas.
5 – (...).
6 – (...).
7 – (...).
8 – (...).
9 – (...).»
«Artigo 3.º
Limites das importâncias pagas
1 – O Fundo assegura o pagamento de créditos emergentes de contrato de trabalho, referidos no n.º 1 do artigo anterior, com o limite máximo global equivalente a seis meses de retribuição, e com o limite máximo mensal correspondente ao triplo da retribuição mensal garantida.
2 – Quando o trabalhador seja titular de créditos correspondentes a prestações diversas, o pagamento é prioritariamente imputado à retribuição base e diuturnidades.»
Do mérito do recurso
6. A questão de constitucionalidade colocada nos presentes autos – a da conformidade com a Constituição da República Portuguesa (CRP) da norma do artigo 3.º, n.º 1, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial «quando estabelece como critério de fixação do limite de garantia (plafond legal) a retribuição do trabalhador, determinando um nível de proteção quantitativamente inferior aos trabalhadores com salário menor» foi já apreciada e decidida pelo Tribunal Constitucional, nos Acórdãos n.º 347/2021, 379/2021, 462/2021 e 504/2021.
No Acórdão n.º 379/2021, desta 2.º Secção, o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional a norma do art.º 3.º, n.º 1, do Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, no sentido de que, não excedendo a retribuição mensal do trabalhador valor correspondente ao triplo da retribuição mensal garantida, o Fundo de Garantia Salarial assegura o pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho, referidos no n.º 1 do artigo 2.º do mesmo diploma, com o limite máximo global equivalente a seis meses da retribuição mensal do trabalhador. Decisão idêntica foi tomada nos restantes arestos citados.
Lê-se no Acórdão n.º 379/2021:
“7. O Fundo de Garantia Salarial concretiza a imposição constitucional de instituição de instituição de garantias especiais dos salários, consagrada no n.º 3 do artigo 59.º da Constituição, assegurando que os créditos salariais que não possam ser pagos pelos empregadores por motivo de insolvência ou de situação económica difícil sejam satisfeitos, integrando um acervo de medidas legislativas que permite aos créditos salariais beneficiar de uma proteção acrescida relativamente aos demais créditos sobre o empregador. Como também referido no Acórdão n.º 328/2018:
«2.4.1. A proteção da retribuição inclui, nos termos do artigo 59.º, n.º 3, da Constituição, a previsão de “garantias especiais”, cuja modelação cabe ao legislador, que, para o efeito, goza de “ampla liberdade” (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, p. 1166). Não obstante, a instituição do mecanismo do Fundo de Garantia Salarial (para além de – como vimos – consistir numa obrigação para o Estado Português decorrente do Direito da União) não pode deixar de ser vista como concretização de uma das garantias a que se refere aquele n.º 3 (nesse sentido, v. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2014, p. 777).
Não é inócua a apontada ligação entre o mecanismo do FGS e a norma do n.º 3 do artigo 59.º da CRP. Tratando-se de uma das garantias ali previstas, ao escolher (apesar de, nessa escolha, se encontrar vinculado pelo Direito da União) instituir o FGS como uma das garantias especiais da retribuição, o legislador está vinculado à construção de um regime que lhe assegure um mínimo de efetividade, sem a qual resultaria esvaziada de sentido a norma constitucional, com respeito pela igualdade (artigos 13.º e 59.º, n.º 1, da CRP). Por outro lado, tratando-se de atribuir, no apontado contexto, um direito a uma prestação pecuniária, e de limitar no tempo a efetividade desse direito pelo não exercício, tal atribuição deve operar, na compaginação destas duas vertentes, segundo regras claras, certas e objetivas – exigência decorrente do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).»
Todavia, a garantia de pagamento de créditos salariais que decorre do NRFGS não cobre todos os riscos de incumprimento de créditos do trabalhador emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação, nem responde ilimitadamente.
Tem como pressuposto uma situação de insolvência ou de dificuldade económica do devedor e exige a verificação de certos requisitos formais - (a) sentença de declaração de insolvência do empregador; (b) despacho do juiz que designa o administrador judicial provisório, em caso de processo especial de revitalização ou (c) despacho de aceitação do requerimento proferido pelo IAPMEI - Agência para a Competitividade e Inovação, I. P., no âmbito do procedimento extrajudicial de recuperação de empresas (artigos 1.º, n.º 1, e 2.º, n.º 1, do NRFGS).
Os limites da garantia decorrem da fixação de um período de referência - o Fundo só assegura o pagamento dos créditos que se tenham vencido nos seis meses anteriores à propositura da ação de insolvência ou à apresentação do requerimento no processo especial de revitalização ou do requerimento de utilização do procedimento extrajudicial de recuperação de empresas (artigo 2º, n.º 4, do NRFGS) – e da estatuição no n.º 1 do artigo 3.º de valores máximos para o pagamento pelo Fundo de créditos salariais.
8. Deve ser salientado que a estatuição de limites à garantia de créditos salariais do trabalhador a cargo da instituição pública não constitui inovação do NRFGS, pois existem desde o início do sistema protetor. O Decreto-Lei n.º 50/85, de 27 de fevereiro, estabelecia que a «garantia de pagamento (…) respeita aos últimos 4 meses compreendidos no período de 6 meses imediatamente anteriores à declaração de extinção, falência ou insolvência da entidade empregadora (…)» e que o «montante máximo da retribuição mensal assegurada não pode exceder o triplo da remuneração mínima garantida por lei para o sector de atividade em que o trabalhador desenvolvia a sua atividade» (artigo 2.º). Por sua vez, o Decreto-lei n.º 219/99, de 15 de junho, previa que o «Fundo paga créditos emergentes de contratos de trabalho que se tenham vencido nos seis meses que antecedem a data da propositura da ação ou da entrada do requerimento» e que os «créditos são pagos até ao montante equivalente a quatro meses de retribuição, a qual não pode exceder o triplo da remuneração mínima mensal mais elevada garantida por lei» (artigo 4.º, n.º 1). Por último, o Regulamento do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 35/2004, de 29 de julho, estipulava que o «Fundo de Garantia Salarial assegura o pagamento dos créditos (…) que se tenham vencido nos seis meses que antecedem a data da propositura da ação ou apresentação do requerimento” e que os “créditos são pagos até ao montante equivalente a seis meses de retribuição, não podendo o montante desta exceder o triplo da retribuição mínima mensal garantida» (artigo 320.º, n.º 1).
9. Também a proteção conferida pela Diretiva n.º 2008/94/CE convive com a possibilidade de os Estados Membros acolherem na sua concretização o estabelecimento de limites máximos aos pagamentos, em função da capacidade financeira de cada um e da necessidade de assegurar a solvabilidade da instituição de garantia. Essa faculdade é referida no Considerando n.º 7, onde se diz que «Os Estados-Membros podem estabelecer limites à responsabilidade das instituições de garantia, que devem ser compatíveis com o objetivo social da diretiva e podem tomar em consideração os diferentes valores dos créditos», e encontra concretização no n.º 3 do artigo 4.º da Diretiva, com a salvaguarda de que tais limites «não devem ser inferiores a um limiar socialmente compatível com o objetivo social da presente diretiva».
Também o Tribunal de Justiça da União Europeu (TJUE), na sua jurisprudência, reconhece a compatibilidade de tais limites com a injunção de criação de um nível mínimo comum de proteção salarial dos trabalhadores no espaço da União. Assim, em decisão do caso Virginie Marie Gabrielle Guigo c. Fond «Garantirani vzemania na rabotnitsite i sluzhitelite», Processo n.º C-338/17 (EU:C:2018:605), por acórdão de 25 de julho de 2018, disse o TJUE (acessível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?qid=1533140923473&uri=CELEX:62017CJ0338:
«28. Segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, a finalidade social desta diretiva consiste em assegurar a todos os trabalhadores assalariados um mínimo de proteção ao nível da União Europeia em caso de insolvência do empregador através do pagamento dos créditos em dívida emergentes de contratos ou de relações de trabalho, respeitantes à remuneração relativa a um determinado período (Acórdãos de 28 de novembro de 2013, Gomes Viana Novo e o., C‑309/12, EU:C:2013:774, n.º 20, e de 2 de março de 2017, Eschenbrenner, C‑496/15, EU:C:2017:152, n.º 52 e jurisprudência referida).
29. É à luz deste objetivo que o artigo 3.º da referida diretiva impõe que os Estados‑Membros tomem as medidas necessárias para que as instituições de garantia nacionais assegurem o pagamento dos créditos em dívida aos trabalhadores.
30. Contudo, como o Tribunal de Justiça já salientou, a Diretiva 2008/94 confere aos Estados‑Membros a faculdade de limitarem a obrigação de pagamento através da fixação de um período de referência ou de um período de garantia e/ou do estabelecimento de limites máximos aos pagamentos (v., por analogia com a Diretiva 80/987, Acórdão de 28 de novembro de 2013, Gomes Viana Novo e o., C‑309/12, EU:C:2013:774, n.º 22, e Despacho de 10 de abril de 2014, Macedo Maia e o., C‑511/12, não publicado, EU:C:2014:268, n.º 21).
31. Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, as disposições da Diretiva 2008/94 relativas à faculdade conferida aos Estados‑Membros de limitarem a sua garantia demonstram que o sistema estabelecido pela referida diretiva tem em conta a capacidade financeira desses Estados‑Membros e que procura preservar o equilíbrio financeiro das suas instituições de garantia (v., por analogia, Acórdão de 28 de novembro de 2013, Gomes Viana Novo e o., C‑309/12, EU:C:2013:774, n.º 29, e Despacho de 10 de abril de 2014, Macedo Maia e o., C‑511/12, não publicado, EU:C:2014:268, n.º 21)».
10. No presente processo, a decisão recorrida não coloca em causa a conformidade constitucional da aposição pelo legislador de limites máximos ao pagamento assegurado pelo FGS. Colocando-se numa perspetiva puramente quantitativa, tendo em atenção os valores máximos globais dos créditos salariais garantidos por quem aufere salário contratualmente fixado em montante inferior ao triplo da retribuição mínima garantida (essa é a condição do requerente no processo-base), o julgador dirige a crítica de inconstitucionalidade, à luz do princípio da igualdade na proteção dos créditos salariais, à estipulação de um critério variável, que toma como referente a específica retribuição do trabalhador. Afirma o tribunal a quo que a dimensão normativa aqui em apreço, cuja aplicação recusou, ao não estabelecer um montante fixo, que funcione como um teto para as prestações a satisfazer aos trabalhadores, independentemente do respetivo nível salarial, comporta uma diferenciação de tratamento dos trabalhadores arbitrária, sem racionalidade subjacente. Isso porque, na ótica do julgador, ao variarem em função do efetivo salário de cada um, instituiu-se «um menor nível de proteção quantitativa aos trabalhadores que recebem salários mais baixos».
De facto, na fixação do limite máximo global garantido, o legislador escolheu adotar um critério distinto do que sucede com o limite mensal, indexando a garantia ao montante da retribuição mensal do titular do crédito mensal em questão, criando, desse modo, uma proteção que, em valor global ou absoluto, é maior ou menor em função da prestação retributiva mensal devida.
Porém – antecipe-se – essa diferenciação não se mostra arbitrária, nem excessiva.
11. Constitui entendimento abundante e reiterado deste Tribunal que o princípio da igualdade não proíbe ao legislador que faça distinções, mas apenas diferenciações de tratamento (e sua medida) sem justificação racional e bastante. A este propósito, pode ler-se no Acórdão n.º 362/2016, em síntese da posição do Tribunal sobre o parâmetro da igualdade, na sua dimensão de proibição do arbítrio, aqui invocada:
«Numa perspetiva de igualdade material ou substantiva – aquela que subjaz ao artigo 13.º, n.º 1, da Constituição e que se traduz na igualdade através da lei –, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da desigualdade. Tal implica a determinação prévia da igualdade ou desigualdade das situações em causa, porquanto no plano da realidade factual não existem situações absolutamente iguais. Para tanto, é necessário comparar situações em função de um certo ponto de vista. Por isso, a comparação indispensável ao juízo de igualdade exige pelo menos três elementos: duas situações ou objetos que se comparam em função de um aspeto que se destaca do todo e que serve de termo de comparação (tertium comparationis). Este termo – o «terceiro (elemento) da comparação» – corresponde à qualidade ou característica que é comum às situações ou objetos a comparar; é o pressuposto da respetiva comparabilidade. Assim, o juízo de igualdade significa fazer sobressair ou destacar elementos comuns a dois ou mais objetos diferentes, de modo a permitir a sua integração num conjunto ou conceito comum (genus proximum).
Porém, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88:
«A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).
O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º.
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.»
Por outro lado, não é função do princípio da igualdade garantir que todas as escolhas do legislador sejam racionais e coerentes ou correspondem à melhor solução. Nesse particular, justifica-se recordar a jurisprudência constitucional firmada no Acórdão n.º 546/2011:
«[O] n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os atos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de sistemas legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003 – que o carácter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjetivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, “racionais”. O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do “merecimento” – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou a igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face à ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por desrazoabilidade, as escolhas do legislador. Fora destas circunstâncias, e, nomeadamente, sempre que estiver em causa a simples verificação de uma menor “racionalidade” ou congruência interna de um sistema legal, que contudo se não repercuta no trato diverso – e desrazoavlmente diverso, no sentido acima exposto – de posições jurídico-subjetivas, não pode o Tribunal Constitucional emitir juízos de inconstitucionalidade. Nem através do princípio da igualdade (artigo 13.º) nem através do princípio mais vasto do Estado de direito, do qual em última análise decorre a ideia de igualdade perante a lei e através da lei (artigo 2.º), pode a Constituição garantir que sejam sempre “racionais” ou “congruentes” as escolhas do legislador. No entanto, o que os dois princípios claramente proíbem é que subsistam na ordem jurídica regimes legais que impliquem, para as pessoas, diversidades de tratamento não fundados em motivos razoáveis.»
12. Ora, as prestações pecuniárias a cargo do Fundo de Garantia Salarial revestem a condição de mecanismo substitutivo de prestações salariais (acrescendo às prestações pecuniárias asseguradas no âmbito do sistema previdencial da segurança, previstas nos artigos 50.º e segs. da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, as quais, pese embora partilhem em geral a natureza – garantia de eventualidades através de prestações substitutivas de rendimentos de trabalho – não se confundem com o sistema normativo em que se inscreve a dimensão normativa em análise) que o empregador deixou de satisfazer, mitigando o efeito aflitivo que a privação de tais rendimentos comporta para o trabalhador, mormente pela incapacidade de assegurar o seu sustento e da família, bem como a satisfação de encargos assumidos, através do pagamento pelo Estado do crédito salarial correspondente a 6 meses da respetiva retribuição.
A indexação do valor da prestação garantida à concreta retribuição do trabalhador encontra justificação material na necessária ligação entre o risco atuarial coberto – a eventualidade de incapacidade de cumprimento da obrigação salarial geradora do crédito, determinada por insolvência ou difícil situação económica do empregador – e o funcionamento do sistema institucional de garantia, que atua como um seguro do salário, conferindo a todo os agentes do sistema laboral – empregadores e trabalhadores – condições de estabilidade e segurança, propiciadoras de uma maior produtividade e, desse modo, promotoras de desenvolvimento económico.
Sendo essa a finalidade social do regime, não faria sentido – não seria racional e, como aponta o Ministério Público, colocaria dúvidas de constitucionalidade de outra ordem - que todos os trabalhadores fossem pagos por igual, independentemente do montante das retribuições cobertas pela garantia. De facto, visando este conferir aos trabalhadores a segurança de que, em caso de insolvência ou graves dificuldades económicas do empregador, lhe é assegurado pelo FGS um nível de rendimentos igual ou aproximado ao que contavam receber num período de seis meses, a norma em análise permite que esse desiderato seja plenamente atingido relativamente aos trabalhadores que têm salários mais baixos (iguais ou inferiores ao triplo da retribuição mensal garantida) e satisfeito em parte quanto aos demais, em razão direta do maior nível salarial respetivo. Dito de outro modo, a fórmula legal significa que a percentagem de cobertura marginal do nível salarial assegurado pela norma em exame desce proporcionalmente consoante aumente o valor da retribuição, importando então, ao invés do ponderado pelo tribunal recorrido, numa ótica substantiva que atente à teleologia do FGS, seja conferido uma proteção qualitativamente superior aos trabalhadores que auferem salários mais baixos.
13. A esse fundamento material da norma em exame junta-se um outro, não menos relevante, radicado na preservação do equilíbrio financeiro e solvabilidade do sistema de garantia instituído, que já vimos ser compatível com a Diretiva 2008/94/CE.
Nos termos do artigo 14.º, o financiamento do FGS é fundamentalmente assegurado pelas contribuições dos empregadores e do Estado (a par de outras fontes de receita, previstas do artigo 28.º do NRFGS, cuja arrecadação apresenta um grau significativo de contingência, desde logo as provenientes da recuperação de créditos pagos aos trabalhadores no exercício das suas atribuições no âmbito da insolvência), sendo suportado em larga medida por contribuição dos empregadores calculada em função do montante da retribuição mensal do trabalhador. Trata-se, assim, de um sistema quase inteiramente autofinanciado, tendo por base uma relação sinalagmática entre a contribuição e prestação pública, sujeita então às vinculações do princípio da contributividade, à semelhança do sistema previdencial (artigo 54.º da Lei n.º 4/2007). Justifica-se, assim, em função da racionalidade inerente à manutenção do equilíbrio financeiro do sistema de garantia, a aludida diferença de tratamento entre os sujeitos e, bem assim, a sua medida.
Conclusão similar é afirmada em decisão singular proferida pelo TJUE, datada de 3 de março de 2021, em pronúncia no caso JL c. Fondo de Garantia Salarial (Fogasa), Processo n.º C-841/19 (EU:C:2021:159). Nela foi decidido que a diferença de tratamento entre trabalhadores a tempo parcial e trabalhadores a tempo inteiro, por via do estabelecimento para estes de um limite máximo de pagamento pela instituição de garantia pro rata temporis, estabelecido no artigo 33.º do Estatuto dos Trabalhadores, em Espanha, não constitui discriminação indireta no que respeita às condições de emprego e ao sexo, acolhendo o argumento de que a diferenciação encontra razoabilidade no facto de a instituição de garantia em Espanha (denominada Fogasa) ser «financiad[a] por contribuições pagas pelos empregadores, cuja taxa se aplica aos salários que servem de base ao cálculo da contribuição destinada a financiar os riscos cobertos pelo sistema nacional de segurança social» (cfr. §48; decisão acessível em https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=70AD41FB51F98490DE37593EA59B66B4?text=&docid=238701&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=5097677 ).
Pode, é certo, entender-se que outra deveria ser a contribuição do Orçamento do Estado para o Fundo, em função do respetivo relevo social, de modo a proporcionar uma garantia superior, por efeito de limites fixos mais alargados, como parece decorrer de algumas passagens da decisão recorrida. Todavia, essas considerações já não relevam da atuação do princípio da igualdade enquanto norma de controlo, mas da avaliação do mérito das políticas públicas no âmbito sócio-laboral, inscritas na margem de conformação do legislador democraticamente legitimado.
14. Não se mostrando violado o princípio da igualdade, na vertente da igualdade da proteção do salário, que resulta das disposições conjugadas dos artigos 13.º e 59.º, n.º 3, da Constituição, nem qualquer outro parâmetro de constitucionalidade, cumpre proferir julgamento negativo de inconstitucionalidade e conceder provimento ao recurso.”
7. O presente caso não apresenta particularidade de relevo em relação àquele que foi apreciado no Acórdão n.º 379/2021, acima indicado, nem qualquer outra razão que justifique apreciação diversa da que ali foi adotada. Nesses termos, cumpre reiterar aqui o juízo de não inconstitucionalidade, o que determina a procedência do presente recurso.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do art.º 3.º, n.º 1, do Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, no sentido de que, não excedendo a retribuição mensal do trabalhador valor correspondente ao triplo da retribuição mensal garantida, o Fundo de Garantia Salarial assegura o pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho, referidos no n.º 1 do artigo 2.º do mesmo diploma, com o limite máximo global equivalente a seis meses da retribuição mensal do trabalhador;
b) Conceder provimento ao recurso interposto e determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o julgamento da questão da inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 27 de abril de 2022 - Mariana Canotilho - António José da Ascensão Ramos - José Eduardo Figueiredo Dias - Assunção Raimundo - Pedro Machete