ACÓRDÃO Nº 227/2022
Processo n.º 650/21
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Assunção Raimundo
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, A. e B. vieram interpor recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante, abreviadamente, LTC), do acórdão daquele tribunal, datado de 15 de junho de 2021, que indeferiu a reclamação para a conferência, mantendo a decisão singular do relator que julgou improcedente o recurso deduzido da decisão de primeira instância, proferida nos autos de insolvência, que indeferiu o pedido de sustação imediata de quaisquer diligências de venda do imóvel correspondente à sua casa de morada de família.
2. Pela Decisão Sumária n.º 651/2021, proferida ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, decidiu-se não conhecer do objeto do recurso, com a fundamentação seguinte (cf. fls. 99-102):
«[…]
4. No requerimento de interposição de recurso apresentado nos autos, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, os recorrentes vêm suscitar a inconstitucionalidade «do artigo 6º-B, n.º 6, alínea b) da Lei n.º 1-A/2020 (redação introduzida pela Lei n.º 4-B/2021), quando interpretado no sentido oferecido por este Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, que exclui da sua hipotização os atos de liquidação/venda no processo de insolvência, sendo o regime exclusivo do processo executivo», invocando que a referida norma viola os artigos 13.º, 20.º, n.º 4, 25.º e 65.º da CRP, imanentes dos princípios da igualdade; garantia de um due processo of law (processo equitativo), como alicerce estruturante do Direito democrático; o livre desenvolvimento da personalidade e integridade pessoal e o direito à habitação, como matrizes radiculares da tutela da dignidade da pessoa humana, consagrada no artigo 1º, n.º 1, da CRP.
Ora, como se verá em detalhe, a interpretação normativa questionada nos autos não constitui o fundamento jurídico determinante da decisão do tribunal a quo.
5. Como resulta da decisão recorrida, a ratio decidendi do acórdão recorrido, ao manter a decisão sumária de indeferimento o pedido de sustação da diligência de venda da casa de morada de família, no âmbito do processo de insolvência, assenta, na melhor interpretação do regime constante no artigo 6.º-B, n.º 5, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro. Como se pode ler no seguinte trecho do acórdão recorrido:
«[…] o princípio da suspensão dos prazos de atos processuais estabelecida no n.º 1 do artigo 6.º-B do citado diploma legal, na sua atual redação, não se estende aos processos urgentes, como é o processo de insolvência que, de acordo com o disposto no artigo 6.º-B, n.º 5, al. b), continua a ser tramitados, sem suspensão de prazos, atos e diligências.
Quer dizer:
Esta suspensão dos atos de venda não é aplicável aos processos urgentes, como é o caso do processo de insolvência.
Por conseguinte, para o legislador, a proteção dos insolventes, em razão da sua fragilidade por falta de habitação própria, não impõe a suspensão da venda, mas tão só a suspensão da entrega do imóvel que constitua a casa de habitação daquele.
E, a nosso ver, tal interpretação não se nos afigura ilegal e/ou inconstitucional […]».
E, de seguida, o tribunal recorrido concretiza o seu raciocínio, expondo ainda que:
«[…] Isto é, na mens legislatoris – art.º 9.º do C. Civil - está precisamente a sua exclusiva aplicação do invocado art.º 6.º-B, n.º1, da referida Lei, em processos não urgentes, como é o processo executivo, e não também em processo urgentes, como é o de insolvência, sendo que estes processos, como estatuído no art. 6.º-B, n.º 5, al. b), da referida Lei, continuam a ser tramitados, sem suspensão de prazos, atos e diligências.
Por conseguinte, como bem se decidiu na 1.ª Instância, trata-se de um corolário, no âmbito do processo executivo, do princípio da suspensão dos prazos de atos processuais estabelecida no n.º 1 do art. 6.º-B, o qual se não estende aos processos urgentes, como o processo de insolvência. Ao invés, estes processos, como estatuído no art. 6.º-B, n.º 5, al. b), continuam a ser tramitados, sem suspensão de prazos, atos e diligências, sendo que que a proteção do insolvente, em razão da sua fragilidade por falta de habitação própria, não impõe a suspensão da venda, mas tão só da entrega do imóvel que constitua a casa de habitação daquele.
Por conseguinte, aos recorrentes não assiste a razão ao defenderem a sua aplicação também ao processo de insolvência. […]».
Concluindo, a final, e “en passant”, quanto à questão de inconstitucionalidade suscitada pelos recorrentes, que «no caso em apreço, não merece censura a douta decisão recorrida (…) quando decidiu não suspender a referida venda, mas tão só a entrega do imóvel que constitui a casa de habitação dos insolventes».
Conclui-se, assim, face ao que antecede, que o acórdão recorrido, ao pronunciar-se sobre a arguida inconstitucionalidade do artigo 6.º-B, n.º 6, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020 (na redação introduzida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro), o fez a título de obiter dictum (e, naturalmente também, por ter sido essa a questão suscitada nos autos, relativamente à qual tinha um dever de pronúncia). No entanto, a análise da referida norma (ou interpretação normativa) não constitui o verdadeiro critério de decisão do caso concreto submetido a juízo.
Ora, em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade, não compete ao Tribunal Constitucional sindicar o resultado da atividade ponderativa e subsuntiva própria das instâncias, nem a estas se substituir na apreciação dos factos materiais da causa, na definição da correta conformação da lide e/ou na determinação da melhor interpretação do direito ordinário aplicável. Os seus poderes de cognição, para além de circunscritos à questão jurídico-constitucional que lhe é colocada, estão condicionados – como expressão da instrumentalidade do recurso de fiscalização concreta – à efetiva aplicação pelo tribunal a quo da norma ou interpretação normativa cuja inconstitucionalidade foi suscitada, devendo esta ser fundamento determinante da solução jurídica dada ao pleito.
Neste caso, porém, como se viu, o critério de decisão assentou na melhor interpretação do regime constante, não da alínea b) do n.º 6 do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020 (na redação introduzida pela Lei n.º 4-B/2021), mas sim do disposto na alínea b), do respetivo n.º 5 – que expressamente prevê a regra da tramitação (ou não suspensão dos prazos, atos e diligências) dos processos urgentes, como é o processo de insolvência.
Assim, não havendo coincidência entre a interpretação normativa sindicada no presente recurso e o critério normativo que foi acolhido pela decisão recorrida, a utilidade do presente recurso de constitucionalidade sempre estaria liminarmente afastada. É que, ainda que o objeto do recurso de constitucionalidade fosse conhecido e fosse emitido um juízo de inconstitucionalidade da norma sindicada, essa decisão não teria qualquer projeção na decisão recorrida, nem determinaria a sua reforma, nos termos previstos no artigo 80.º, n.º 2, da LTC.
Conclui-se, por isso, pela inutilidade do presente recurso de constitucionalidade, o que impede de conhecer o respetivo objeto.»
3. Inconformados, vêm deduzir a presente reclamação para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos (cf. fls. 115-121):
1. Exsuda a estupefação dos Recorrentes, diz-se com o devido respeito, que muito é, e não arredando a elevada consideração por este Colendo Tribunal, constatado o teor da Decisão da Exmª Srª. Conselheira Relatora.
2. Bem se sabe, que o Direito não é uma ciência exata, mas convenhamos, há-de ao menos, no paradigma da dogmática jurídica, caminhar por critérios razoáveis de segurança, transparência, lógica e inteligibilidade na tarefa hermenêutica e teleológica da interpretação da norma jurídica a que há-de subsumir-se o caso concreto.
3. Brade-se, que não se quer com isto efetuar uma guisa de approach ao realismo jurídico americano, que reconduz a ciência jurídica à prognose das decisões judiciais.
4. A dogmática jurídica hodierna, que estilhaça o modelo mecanicista e reducionista do positivismo puro do Século XIX, está porém, naturalmente, vinculada ao controlo racional ou empírico das suas construções teóricas (inclusas as decisões judiciais), num quadro de objetividade.
5. O julgador, estando sujeito ao postulado da vinculação à lei, é sempre confrontado com esta prova de racionalidade (e objetividade), e quando, no caso concreto, entenda dever afastar-se das trilhas dogmáticas estabelecidas, sentir-se-á obrigado a um particular esforço de fundamentação da decisão (ónus da justificação) e da coerência da sua ratio decidendi, enquanto regra generalizável.
6. A dogmática jurídica exerce, também, uma função estabilizadora e uniformizadora da prática jurídica, promovendo a previsibilidade da decisão e a certeza jurídica, que vai ao encontro do postulado da vinculação do julgador à lei e ao Direito. (Sic. Batista Machado, in “Introdução ao Discurso Legitimador”, pp. 365 e 366).
7. Ora, no caso em apreço, a Exmª Conselheira Relatora postergou tal postulado, bordando uma decisão a descoberto de fundamento legal. Vejamos sumariamente:
8. Arrimou-se a Decisão Sumária, ora, posta em crise, num alegado impedimento formal, que tange com a alegada inexistência na, ratio decidendi, das interpretações normativas inquinadas, para fazer naufragar a pretensão recursiva dos recorrentes.
9. O arrazoado argumentativo erigido na predita Decisão Sumária, enferma, porém, no nosso modestíssimo entendimento, de um equívoco, que lhe corrói os alicerces.
10. Desde logo, muito mal se compreendem os enredos dedáleos por onde se enleia a Sr.ª Relatora para ferretar ad limine a pretensão recursiva dos Recorrentes.
11. Tropeça a Exm.ª Sr.ª Relatora numa putativa deformação técnica da pretensão recursiva bordada pelos Recorrentes, no que tange ao segmento da questão reportada ao artigo 6º-B, n.º 6, alínea b) da Lei n.º 1-A/2020 (redação introduzida pela 4-B/2021), quando, no eloquente discurso vazado na decisão sumária, ora, posta em crise, o enfoque estaria na alínea b), do respetivo n.º 5, e que teria passado despercebido aos Recorrentes.
12. Com o devido respeito, não se lobriga a pertinência, na dinâmica recursiva apresentada ao Tribunal desta sibilina alínea b) do n.º 5, que francamente, nos parece, completamente desajustada do objeto do recurso.
13. Todas as interpretações normativas invocadas na peça recursória, podem extrair-se da decisão recorrida, servindo-lhe, aliás, de radícula e oferecendo o lastro à ratio decidendi nela implícita.
14. Não são meros obiter dictum, antes, tais interpretações normativas serviram de geist à decisão do julgador, e por isso formaram a sua ratio decidendi.
15. E para a sindicabilidade da decisão, como se pretende, na esteira do direito ao recurso e tutela jurisdicional efetiva e cabal, não é necessário que tais interpretações normativas exsudem de forma expressa, tabelar e escancarada do texto da decisão recorrida, como, inelutavelmente, desemboca a presente Decisão Sumária.
16. Basta, que as preditas interpretações normativas, que respaldaram a decisão do julgador, transpareçam de forma mais ou menos implícita, de forma mais ou menos diáfana, de forma mais ou menos subentendida ou tácita do arrazoado expendido na decisão.
17. Note-se, ainda, neste cenário, que os Recorrentes convocaram o Tribunal Constitucional para sindicar e escrutinar a alegada inconstitucionalidade emergente, diretamente, da dimensão interpretativa acolhida no Aresto posto em crise, da norma jurídica concreta (artigo 6º-B, n.º 6, alínea b) da Lei n.º 1-A/2020 (redação introduzida pela 4-B/2021)) que estreitou o conceito de execução, expulsando o processo falimentar, como processo de execução universal que é.
18. O Recorrente, jamais, colocou sob o olhar crítico do Tribunal Constitucional a apreciação da própria decisão, antes, de forma pura e cristalina, a interpretação patológica de uma determinada norma que o Tribunal efetuou, e que ofende a Lei Fundamental, e que esteve na radícula da ratio decidendi.
19. É isto que está em causa nesta pretensão recursiva.
20. Com o devido respeito, que muito é, mas a argumentação desenhada pela Exmª Sr.ª Relatora, não se desprende do jargão discursivo, abstrato e pouco denso, sem qualquer correspondência com o caso concreto.
21. É evidente, que a alegada inconstitucionalidade da dimensão interpretativa tirada de determinada norma pelo Tribunal “a quo” está, inelutavelmente, aboletada na própria decisão, que a acolhe.
22. Não se pode confundir é a nuvem com Juno.
23. Ora, do requerimento de interposição de recurso onde se levantam as questões da inconstitucionalidade, surge com a clareza do relâmpago, que o que está a ser submetido à sindicância crítica do Colendo Tribunal Constitucional, é a dimensão interpretativa da norma, e não a decisão tout court, não se descortinando, ainda, qualquer dessintonia entre a interpretação normativa sindicada no recurso e o critério normativo que foi acolhido pela decisão recorrida.
TERMOS EM QUE,
Ex Positis
Nos mais de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Ex.ªs, deve dar-se provimento à presente Reclamação, e ipso facto:
a) Requer que sobre a matéria do Recurso recaia um Acórdão julgado em Conferência, para apreciação da inconstitucionalidade da norma, ali, apontada.
Assim decidindo, farão V. Ex.ªs a costumada e reta JUSTIÇA.»
4. O Ministério Público junto do Tribunal Constitucional veio responder, dizendo, em suma, o seguinte (fls. 131-136):
«[…]
4º
Ora, concorda-se inteiramente com esta fundamentação da Ilustre Conselheira Relatora, para não tomar conhecimento do presente recurso de constitucionalidade, posição, esta, que traduz jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional.
5º
Na sua reclamação para a conferência (cfr. fls. 115-121 dos autos), os ora reclamantes não se circunscrevem a rebater a fundamentação da Decisão Sumária reclamada, mas, talvez à míngua de melhor argumento, acabam por assentar a sua defesa em artifícios oratórios que poderão respeitar a outras realidades, mas não à justiça constitucional nacional.
Referem, com efeito, os ora reclamantes:
“15. E para a sindicabilidade da decisão, como se pretende, na esteira do direito ao recurso e tutela jurisdicional efetiva, e cabal, não é necessário que tais interpretações normativas exsudem de forma expressa, tabelar e escancarada do texto da decisão recorrida, como, inelutavelmente, desemboca a presente Decisão Sumária.
16. Basta, que as preditas interpretações normativas, que respaldaram a decisão do julgador, transpareçam de forma mais ou menos implícita, de forma mais ou menos diáfana, de forma mais ou menos subentendida ou tácita do arrazoado expendido na decisão.”
6º
Ora, a jurisprudência constitucional tem um entendimento muito diferente, exigindo uma coincidência entre a interpretação normativa suscitada no recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC e a ratio decidendi da decisão recorrida.
O que, no caso sub judice, não se verifica.
7º
Com efeito, o despacho da Juíza de Comércio de Coimbra – Juiz 3, de 18 de fevereiro de 2021, é particularmente claro quando define a norma em que fundamenta a sua decisão (cfr. fls. 13 frente e verso dos autos) (destaques do signatário):
“É certo que o art. 6º-B, nº 6, al. b), da Lei nº 1-A/2020 prevê, agora, ao contrário do que sucedia na sua anterior redação, a suspensão de quaisquer atos a realizar em sede de processo executivo, com exceção dos pagamentos que devam ser feitos ao exequente através do produto da venda dos bens penhorados e dos atos que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja não realização lhe provoque prejuízo irreparável.
No entanto, ao contrário do que parecem entender os insolventes, esta suspensão dos atos de venda não é aplicável em sede de processo de insolvência. Ao invés, julga-se que se trata de um corolário, no âmbito do processo executivo, do princípio da suspensão dos prazos de atos processuais estabelecida no nº 1 do art. 6º-B, o qual se não estende aos processos urgentes, como o processo de insolvência. Ao invés, estes processos, como estatuído no art. 6º-B, nº 5, al. b), continuam a ser tramitados, sem suspensão de prazos, atos e diligências. Sendo que a proteção do insolvente, em razão da sua fragilidade por falta de habilitação própria, não impõe a suspensão da venda, mas tão só da entrega do imóvel que constitua a casa de habitação daquele.”
8º
De igual modo, o Acórdão recorrido, de 15 de junho de 2021, do Tribunal da Relação de Coimbra, apreciou a questão de constitucionalidade invocada pelo arguido (cfr. fls. 65 verso – 69 verso dos autos) e concluiu (destaques do signatário):
“Por conseguinte, como bem se decidiu na 1ª instância, trata-se de um corolário, no âmbito do processo executivo, do princípio da suspensão dos prazos de atos processuais estabelecida no nº 1 do art. 6º-B, o qual se não estende aos processos urgentes, como processo de insolvência. Ao invés, estes processos, como estatuído no art. 6º-B, nº 5, al. b), continuam a ser tramitados, sem suspensão de prazos, atos e diligências, sendo que a proteção do insolvente, em razão da sua fragilidade por falta de habitação própria, não impõe a suspensão da venda, mas tão só da entrega do imóvel que constitua a casa de habitação daquele.
Por conseguinte, aos recorrentes não assiste a razão ao defenderem a sua aplicação também ao processo de insolvência.”
9º
Trata-se, pois, de uma decisão das instâncias recorridas definindo a melhor interpretação e aplicação do direito infraconstitucional, não cabendo, em princípio, ao Tribunal Constitucional sindicar uma tal interpretação.
10º
Julga-se, pelos motivos indicados, que a presente reclamação para a conferência deverá ser indeferida, mantendo-se, assim, incólume a Decisão Sumária 651/2021, de 25 de outubro, que lhe deu causa.».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. Nos presentes autos, os recorrentes deduziram o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, do acórdão proferido no Tribunal da Relação de Coimbra, a 15 de junho de 2021. Tal como enunciado no respetivo requerimento de interposição, o recurso tinha por objeto o «artigo 6º-B, n.º 6, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020 (redação introduzida pela Lei n.º 4-B/2021), quando interpretado no sentido oferecido por este Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, que exclui da sua hipotização os atos de liquidação/venda no processo de insolvência, sendo o regime exclusivo do processo executivo».
Pela Decisão Sumária n.º 651/2021 decidiu-se não conhecer do objeto do recurso, por carecer de utilidade, uma vez que a dimensão normativa sindicada nos autos não constituía a ratio decidendi do acórdão recorrido.
6. Na presente reclamação, os reclamantes vêm discordar do juízo firmado na decisão sumária reclamada sem, no entanto, demonstrarem – como, aliás, já sucedia com o respetivo requerimento de interposição de recurso – que a dimensão normativa sindicada nos autos tenha sido de facto aplicada como ratio decidendi do acórdão recorrido.
A sua argumentação gravita agora em torno de uma pretensa aplicação implícita da interpretação normativa invocada na peça recursória. Sustentam, em síntese, que, para a sindicabilidade da decisão, basta que «as preditas interpretações normativas, que respaldaram a decisão do julgador, transpareçam de forma mais ou menos implícita, de forma mais ou menos diáfana, de forma mais ou menos subentendida ou tácita do arrazoado expendido na decisão».
Assim não é.
7. Como se afigura claro e inequívoco, para efeitos de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta, não basta que se delimite uma norma ou interpretação normativa implicitamente adotada na decisão recorrida. Atendendo ao carácter instrumental deste mecanismo adjetivo, impõe-se uma integral correspondência entre a dimensão interpretativa sindicada e a ratio decidendi da decisão recorrida, sob pena de subversão do instituto (cf., neste sentido, o recente Acórdão n.º 60/2022).
Com efeito, embora estes recursos tenham por objeto uma norma, é necessário que a decisão proferida neste Tribunal possa repercutir-se, de forma útil, sobre a decisão recorrida, o que só sucederá quando houver uma efetiva e estrita coincidência entre a interpretação normativa sindicada e a que foi aplicada pelo tribunal recorrido, ao fundamentar a respetiva decisão.
Perscrutando a fundamentação acolhida pelo acórdão recorrido, facilmente se intui que o critério de decisão assentou na interpretação do disposto na alínea b) do n.º 5 do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei n.º 4.º-B/2021, de 1 de fevereiro, do qual decorre que «o princípio de suspensão dos prazos de atos processuais estabelecida no n.º 1 do artigo 6.º-B do citado diploma legal, na sua atual redação, não se estende aos processos urgentes, como é o caso do processo de insolvência».
Explicitando este seu entendimento, o tribunal a quo veio ainda afirmar, de modo perfeitamente claro, que:
«Como bem refere o despacho sob recurso, o citado artigo 6.º-A foi revogado pela Lei n.º 4-B/2021, de 01.02, e, além do mais, aditou à Lei n.º 1-A/2020 o seu atual artigo 6.º-B, que continua a prever, no seu n.º 11, idêntica suspensão dos atos a realizar em sede de processo de insolvência relacionados com a concretização de diligência de entrega judicial da casa de morada de família, não sendo prevista qualquer alteração à tramitação dos processos de insolvência, mantendo-se inalterado o regime dos atos de venda. (…).
Daí que, a proteção dos insolventes, em razão da sua fragilidade por falta de habitação própria, não impõe a suspensão da venda, mas tão só a suspensão da entrega do imóvel que constitua a casa de habitação daquele. (…)».
A solução lógico-jurídica do pleito não passou, assim, – como defendem os ora reclamantes – por estreitar «o conceito de execução, expulsando o processo falimentar, como processo de execução universal que é». Ou seja, o tribunal a quo não veio interpretar restritivamente o disposto no artigo 6.º-B, n.º 6, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, na sua atual redação, mas sim interpretar o regime expressamente consagrado pelo legislador, neste quadro decorrente da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, nas normas legais atrás mencionadas, que estabelecem a regra da continuidade da tramitação dos processos urgentes, entre os quais se inclui o processo de insolvência (cf. artigo 9.º do CIRE), no qual apenas se prevê a sustação das diligências de entrega do imóvel, que constitua a casa de morada de família do insolvente, mas não já das respetivas diligências de venda.
Não está, portanto, verificado o pressuposto da coincidência com a ratio decidendi, que constitui uma inerência do caráter instrumental dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade, pelo que se impõe confirmar a decisão sumária que assim decidiu.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC’s, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 31 de março de 2022 - Assunção Raimundo - José Eduardo Figueiredo Dias - Pedro Machete