ACÓRDÃO N.º 930/2021
Processo n.º 1045/2021
2.ª Secção
Relator: Conselheiro José Eduardo Figueiredo Dias
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., veio o Ministério Público interpor recurso obrigatório de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), da decisão arbitral proferida em 05 de outubro de 2021 (cfr. fls. 3 a 10 dos autos) que recusou a aplicação da norma extraída do número 2 do artigo 43.º do Código do IRS, por esta ser incompatível com o Direito Comunitário, concretamente, com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (doravante, TFUE).
No Tribunal arbitral a quo foi fixado efeito suspensivo ao recurso, em conformidade com o que dispõe o artigo 78.º da LTC.
Notificado do despacho que fixou o efeito ao recurso, veio o recorrido apresentar o requerimento de fls. 26 a 28 verso, no qual requer, ao abrigo do estatuído no artigo 78.º, n.º 5, da LTC, a fixação de efeito meramente devolutivo ao recurso, invocando, para tanto, que:
«1. O Requerente foi notificado a 2021-10-07, na pessoa do seu mandatário, da decisão arbitral proferida nos autos identificados em epigrafe, a qual lhe foi procedente no que respeita ao objeto nuclear do seu pedido (cf. doc. 2).
2. Através daqueles autos, e conforme resulta do pedido de constituição de tribunal arbitral apresentado pelo Requerente, o Requerente pretendia (e requereu) a anulação parcial da liquidação de IRS n.º 2020 0000503006, com fundamento em vício de violação de lei (art. 63.º do TFUE),
3. por considerar que o regime diferenciado de tributação das mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes em território português (art. 43.º, n.º 2, do Código do IRS) estabelece uma discriminação incompatível com o princípio da liberdade de circulação de capitais, princípio fundamental da União Europeia.
4. A decisão arbitral proferida nos autos aderiu à fundamentação aduzida pelo Requerente, e em consequência determinou a anulação parcial da liquidação impugnada, conforme peticionado pelo Requerente, e na proporção por este requerida.
5. Notificado da decisão arbitral, o Ministério Público, a 2021-10-08, interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, nos termos da qual se pretende "que o Tribunal Constitucional aprecie da eventual contrariedade da citada norma constante do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, por referência ao disposto nos artigos 8.º, n.º 4, e 103.º, n.º 3, da Constituição".
6. Este recurso foi aceite por despacho arbitral datado de 2021-10-08, que atribuiu ao recurso subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo, nos termos do art. 78.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (cf. doc. 1).
7. O art. 78.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, que regula os efeitos e regime de subida dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, prevê, no seu n.º 4, que regra geral aqueles recursos têm efeito suspensivo e subida nos próprios autos.
8. No entanto, estabelece o n.º 5 do mesmo artigo que, quando ao recurso couber efeito suspensivo, o Tribunal, em conferência, pode, oficiosamente e a título excecional, fixar-lhe efeito meramente devolutivo, se, com isso, não afetar a utilidade da decisão a proferir.
9. Ora, no caso destes autos, verifica-se que a fixação de efeito meramente devolutivo não afetará, de forma alguma, a utilidade da decisão a proferir.
10. De facto, a pretensão anulatória do Requerente já se encontra cabalmente estabelecida por força da decisão do tribunal a quo, não sendo passível de alteração pela decisão do tribunal a quem.
11. Assim, e na medida em que a anulação do ato impugnado pelo Requerente já se encontra estabelecida - com fundamento na incompatibilidade entre o art. 43.º, n.º 2, do Código do IRS e o art. 63.º do TFUE -, pouco importa, no que toca ao efeito útil da decisão a proferir, que o ato impugnado pudesse ser (também) passível de anulação com fundamento em inconstitucionalidade.
12. A inconstitucionalidade daquele art. 43.º, n.º 2, do Código do IRS, atendo o peticionado pelo Requerente aquando da constituição do tribunal arbitral, a verificar- se, seria apenas mais um desvalor jurídico que acresceria aos já verificados pelo tribunal a quo quanto ao ato impugnado.
13. A verificação (ou não) da inconstitucionalidade daquela norma não implica, nestes termos, qualquer alteração ao conteúdo da decisão do tribunal a quo, que não se fundamentou em matérias de constitucionalidade,
14. Pelo que a fixação de efeito meramente devolutivo a estes autos de recurso em nada afetará a utilidade da decisão a proferir.
15. Porém, reflexamente, a atribuição de efeito suspensivo implica um (injustificado) postergar do efeito útil da decisão do tribunal a quo - e potencialmente também declarável pelo tribunal a quem -, pela possibilidade da Requerida nos autos recorridos poder recusar, com fundamento naquele efeito suspensivo, dar devido cumprimento aos comportamentos em que foi condenada.
16. Computadas ambas as perspetivas, resulta que a fixação de um efeito suspensivo a estes autos de recurso, não só não salvaguardará a utilidade da decisão que irá ser proferida por este douto Tribunal, como, e bem pelo contrário, denegará temporariamente, sem justificação, essa mesma utilidade ao Requerente.
17. Termos em que se requer, nos termos e para efeitos do previsto no art. 78.º, n.º 5 da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, a fixação de efeito meramente devolutivo aos presentes autos, na medida em que, com tal fixação, não será de forma alguma afetada a utilidade da decisão a proferir.».
2. Assegurado o contraditório prévio, veio o recorrente Ministério Público pronunciar-se pelo indeferimento do requerido, nos seguintes termos:
«1. O ora requerente, recorrido nos autos em epígrafe, pretende "a fixação de efeito meramente devolutivo aos presentes autos, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 78.°, n.°, da LOFPTC", alegando como fundamento deste pedido que "com tal fixação, não será de forma alguma afetada a utilidade da decisão a proferir" (fls. 26-27v.°).
2. O artigo 78.°, n.° 5, da LOFPTC, prevê, na passagem agora diretamente relevante o seguinte: "o Tribunal, em conferência, pode, oficiosamente e a título excepcional, fixar-lhe efeito meramente devolutivo, se, com isso, não afectar a utilidade da decisão a proferir.".
"Não afetar a utilidade da decisão a proferir" é um dos requisitos deste preceito legal. Porém, não é o único, pois que tal efeito meramente devolutivo apenas "a título excecional" poderá ser concedido.
Ou seja, como decorre do adjetivo integrado no enunciado da previsão legal, a regra é a cumulação automática do efeito suspensivo com o efeito devolutivo (típico do recurso) e só "a título extraordinário", casuisticamente, poderá o Tribunal (em conferência, nota orgânica colegial, coerente com a nota substantiva do caráter restritivo) suprimir o efeito suspensivo do recurso.
3. Porém, o requerente não invoca quaisquer factos e razões que possam caracterizar, na circunstância, a "excecionalidade" do seu caso.
Nem sequer indica, aliás, qual é o seu propósito com este pedido, por outras palavras, qual o direito ou interesse de que seja titular e para o qual pretende proteção judicial, provisória, através da supressão do efeito suspensivo do recurso. Abstratamente, poderíamos figurar, v.g., que fosse viável a execução provisória da decisão arbitral recorrida e que o ora requerente invocasse a premência de assim receber, a título condicional, o montante que poderá estar em excesso na liquidação.
Mas a verdade é que do requerimento em causa nada consta nesse sentido, ou noutro que fosse passível de revelar alguma "excecionalidade" na situação da vida subjacente à presente instância de recurso.
4. Por outra parte, atentos os fundamentos expressos e implícitos do seu pedido, o ora recorrido denota não estar ciente do alcance e objeto do presente recurso, nomeadamente quando afirma que a anulação do ato impugnado já se encontra estabelecida (n.° 10).
Basta considerar, para tanto, que a liquidação do respetivo IRS relativo ao ano de 2019, em matéria de mais-valias imobiliárias, foi (parcialmente) anulada com fundamento numa asseverada contradição entre o artigo 43.°, n.° 2, do CIRS e o artigo 63.°, n.° 1, do TFUE. E é essa, precisamente, a questão que deve ser resolvida no presente recurso (admitindo, ao menos para raciocinar, que o objeto do recurso é, em si mesmo, tal "contrariedade").
Por conseguinte, a decisão arbitral em causa, quanto a tal conflito normativo, não transitou em julgado...justamente porque foi objeto do presente recurso, obrigatório, como resulta claramente do requerimento de interposição do recurso: "pretende-se que o Tribunal Constitucional aprecie da eventual contrariedade da citada norma constante do n.° 2 do artigo 43.° do Código do IRS" (fls. 16v.°).
5. Por outra parte, ainda quanto a este aspeto do pedido, é também manifesto que não tem razão com a adventícia afirmação de que "a inconstitucionalidade daquele art. 43.°, n.° 2, do Código do IRS (...) a verificar- se, seria apenas mais um desvalor jurídico que acresceria aos já verificados pelo tribunal a quo quanto ao ato impugnado" (maxime, n.° 12).
Isto pela singela razão de que o presente recurso não é por constitucionalidade, mas antes por contrariedade, mais precisamente da eventual "contrariedade de uma norma constante de ato legislativo com uma convenção internacional" (LOFPTC, art., 72.°, n.° 1, al. i, e 71.°, n.° 2).».
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
3. O recurso interposto nos presentes autos funda-se na alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tendo, por força do n.º 4 do artigo 78.º da mesma Lei, efeito suspensivo.
Conforme se escreveu no Acórdão n.º 309/2009:
«No caso, porém, de recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, e em todos os outros casos em que o recurso para o Tribunal Constitucional é obrigatório (artigos 70.º, n.º 1, alíneas a), c), g), h) e i), e 72.º, n.º 2, da LTC), não funciona a regra da exaustão dos recursos ordinários (nem se justifica que se aguarde o decurso do prazo de interposição do recurso ordinário ou a ocorrência de qualquer causa extintiva), sendo desde logo exigível que o recurso seja imediata e diretamente interposto para o Tribunal Constitucional.
(…)
O caso dos recursos obrigatórios cai na regra residual do n.º 4 do artigo 78.º, sendo aplicável o efeito suspensivo com subida nos próprios autos; o que é consentâneo com a circunstância de a lei prever a interposição imediata do recurso em vista à apreciação da questão de constitucionalidade, diferindo para momento ulterior a prolação de decisão definitiva, na ordem judiciária comum, sobre a matéria da causa.».
O recurso foi, assim, admitido no Tribunal arbitral a quo com o efeito (suspensivo) adequado.
4. O artigo 78.º, n.º 5, da LTC permite, contudo, que o Tribunal Constitucional, em conferência, fixe, oficiosamente e a título excecional, efeito meramente devolutivo a um recurso cujo efeito seja suspensivo de acordo com as regras estabelecidas nos números precedentes do mesmo artigo.
Não obstante se trate de uma competência a exercer oficiosamente pela conferência, nada impede, porém, que, nesta formação, se pondere a atribuição de efeito suspensivo ao recurso a sugestão das partes ou de uma delas (neste sentido, cfr. Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra, Almedina, 2010, página 238, e Acórdão n.º 87/2019).
Importa, então, verificar, em face das circunstâncias do caso, se se justifica alterar o efeito atribuído ao presente recurso pelo Tribunal arbitral a quo.
Mantendo-se o efeito suspensivo, são dois os cenários a considerar, pressupondo que está em causa uma questão de contrariedade de uma norma constante de ato legislativo com uma convenção internacional, a saber: (i) se o recurso for julgado procedente, os autos baixarão ao Tribunal arbitral recorrido a fim de que este reforme a decisão em conformidade com o julgamento sobre a questão da contrariedade da norma constante de ato legislativo com a convenção internacional (artigo 80.º, n.ºs 2 e 5, da LTC); (ii) se o recurso for julgado improcedente, a confirmação do juízo de contrariedade com a convenção internacional determinará apenas a consolidação, a este respeito, do decidido em sede de decisão arbitral, sem que daí advenha, como direta e necessária decorrência da mesma, qualquer reembolso ao requerente do IRS e dos respetivos juros compensatórios, uma vez que se consignou, no segmento decisório de tal decisão arbitral, o seguinte:
«(…)
c) Não determinar, nesta instância, o reembolso, ao Requerente, do IRS e dos juros compensatórios, resultantes da anulação a que se referem as alíneas anteriores, dado que não se encontra demonstrado nestes autos que o pagamento tenha ocorrido, sempre com a ressalva de que a anulação do IRS e dos respetivos juros compensatórios, agora decidida, cria, na esfera jurídica da AT, o dever de proceder ao respetivo reembolso, caso tenha ocorrido pagamento;».
Ora, analisando os argumentos invocados pelo requerente, constata-se que o mesmo, desde logo, labora em erro quanto aos efeitos do recurso interposto, uma vez que entende que a decisão arbitral em crise não é passível de alteração, o que, como supra se consignou, não corresponde à realidade.
Com efeito, não está em causa apenas postergar, injustificadamente, o efeito útil da decisão arbitral, existindo, ao invés, uma concreta possibilidade de tal decisão poder vir a ser alterada, decorrente dos efeitos que, em abstrato, o recurso interposto acarreta – cfr. artigo 80.º, n.ºs 2 e 5, da LTC.
Por outro lado, a este propósito, pode ler-se, no Acórdão n.º 432/2020 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), o seguinte:
«(…)
[A] possibilidade de alteração do efeito do recurso dependerá, em primeira linha, da demonstração da existência de um prejuízo considerável emergente da suspensão da marcha do "processo-base" – ou da eficácia da decisão nele proferida e impugnada perante o Tribunal Constitucional; – e, num segundo nível, da análise da repercussão desta alteração na utilidade da análise da questão de constitucionalidade suscitada.
(…)
Uma vez mais, atesta-se que as hipóteses em que o Tribunal Constitucional tem lançado mão do mecanismo previsto no artigo 78.º, n.º 5, da LTC, surgem como inequivocamente excecionais, revelando características singulares que impõem uma reponderação da solução legalmente prevista quanto aos efeitos do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade. Por esse motivo, exige-se, neste âmbito, uma clara demonstração, à luz das particularidades do diferendo em análise, de que a observância da regra geral determinaria um prejuízo considerável para o processo e para os interesses nele controvertidos.
(…)
Tal como anteriormente reiterado, o recurso ao mecanismo previsto no artigo 78.º, n.º 5, da LTC, por implicar um afastamento da opção expressamente adotada pelo legislador, assume natureza que não pode deixar de ser excecional. Essa excecionalidade implica, por isso – e nos termos comprovados – que o Tribunal Constitucional apenas utilize essa prerrogativa quando constate que as características do caso impõem uma reponderação do regime regra. Neste sentido, apresenta-se como pressuposto base da utilização desta faculdade a demonstração da necessidade impreterível de proceder à modificação do efeito do recurso, sob pena de prejuízo considerável para o prosseguimento da lide, tendo em conta os interesses em conflito.»
Nesta conformidade, o carácter excecional atribuído à possibilidade de alteração do efeito do recurso para efeito meramente devolutivo impõe que, para que a mesma ocorra, se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:
i) demonstração da existência de um prejuízo considerável emergente da suspensão do processo ou da eficácia da decisão nele proferida, tendo em conta os interesses em conflito; e
ii) não afetação da utilidade do conhecimento da questão suscitada no recurso.
Sucede que, no caso vertente, o requerente nada invocou que permitisse concluir pela verificação dos sobreditos requisitos, de modo a considerar que estamos perante uma situação excecional que justifique a alteração pretendida.
Com efeito, quanto ao primeiro dos elencados requisitos, limitou-se a referir que o efeito suspensivo lhe denega temporariamente, sem justificação, a utilidade da decisão, sem explicar e concretizar a razão subjacente a tal conclusão, sendo certo que, como vimos, os potenciais efeitos do recurso estão longe de ser os que o requerente invoca. Tanto basta, assim, para concluir que o motivo invocado não prevalece sobre o interesse subjacente à previsão de efeito suspensivo do recurso interposto, o qual assenta na necessidade de estabilizar, antes de mais, a questão do afastamento da norma constante de ato legislativo potencialmente aplicável por contrariedade com convenção internacional.
Por outro lado, alicerçando-se na (errónea) ideia de que a decisão do tribunal arbitral a quo não é passível de alteração, afirma que a fixação de efeito meramente devolutivo não afetará a utilidade da decisão a proferir, o que, manifestamente, não preenche o requisito negativo previsto na parte final do n.º 5 do artigo 78.º da LTC – não afetação da utilidade do conhecimento da questão suscitada no recurso.
5. Nestes termos, não ocorrendo uma situação de exceção, traduzida no preenchimento dos aludidos requisitos, não se alterará o efeito fixado ao recurso.
III – Decisão
Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não utilizar a faculdade excecional conferida pelo n.º 5 do artigo 78.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, mantendo o efeito suspensivo fixado ao recurso no Tribunal arbitral a quo.
Sem custas.
Lisboa, 10 de dezembro de 2021 – José Eduardo Figueiredo Dias – Assunção Raimundo – Pedro Machete