ACÓRDÃO Nº 779/2021
Processo n.º 345/21
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que são recorrentes A. e B. e é recorrida a AT – Autoridade Tributária, os primeiros vieram interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), da decisão proferida pelo Tribunal Central Administrativo Norte no dia 21 de maio de 2020, que negou provimento ao recurso por eles interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu no dia 18 de julho de 2019, que julgou totalmente improcedente a impugnação pelos mesmos deduzida contra a liquidação de IRS relativa ao ano de 2013. Os recorrentes interpuseram ainda recurso dessa decisão para o Supremo Tribunal Administrativo, que, porém, julgou o recurso inadmissível.
2. O recurso de constitucionalidade apresenta o seguinte teor:
«A. e mulher, Recorrentes nos autos acima identificados, tendo sido notificados, através do ofício com a referência 002494832, do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo que julgou não preenchidos in casu os pressupostos legais do recurso de revista excecional, vêm dizer que mantêm interesse na subida do recurso que, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro e por referência ao Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte em 21 de maio de 2020, foi oportunamente interposto nos autos para o Tribunal Constitucional (cf. fls. 1032 SITAF e documento em anexo), cuja admissão e subida reiteram e requerem.
Subsidiariamente, acautelando a hipótese de assim se entender necessário ou oportuno à luz do disposto no n.º 2 do artigo 75.º da LTC, vêm (re)interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, assim como da alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa ("CRP"), da referida decisão do TCAN, de 21 de maio de 2020, a fls. 984 SITAF, que conheceu do mérito da causa e ora se tornou definitiva, nos mesmos termos do requerimento de fls. 1032 SITAF, que aqui se reproduzem:
Exmos. Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte
Exmo. Senhor Conselheiro Relator do Tribunal Constitucional
O presente recurso para o Tribunal Constitucional é interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, assim como da alínea b) do nº 1 do artigo 280º da CRP, estando, pois, em causa a aplicação, por parte do TCAN, de norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada pela Recorrente durante o processo e antes da prolação do Acórdão de que ora se recorre.
Em especial, na página 17 das suas alegações de recurso dirigido ao TCAN, haviam os Recorrentes
apontado o seguinte:
"No caso dos autos, a AT, por aplicação dos critérios presuntivos previstos no n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRS, determinou um valor de realização ou transmissão das ações pelo aqui Recorrente marido à C. no montante de EUR 55.525.600, concluindo, então, pela obtenção de um ganho pelo mesmo Recorrente marido de mais de 53 milhões de euros.
[...]
O acréscimo de capacidade contributiva resultante da contraprestação associada à segunda transmissão verificou-se na esfera de uma outra pessoa, jurídica e tributariamente, distinta dos aqui Recorrentes.
Ora, o princípio da capacidade contributiva, enquanto princípio geral da tributação e corolário do princípio da igualdade no domínio tributário, enquanto «pressuposto, limite e critério da tributação», exige que o legislador fiscal configure as obrigações dos contribuintes a partir de factos tributários que fundem a capacidade de suportar o encargo correspondente.
Conforme afirmou o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 348/97), «a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto». [...]"
A propósito desta invocada violação do principio da capacidade contributiva nessa dimensão, entendeu o TCAN no Acórdão recorrido que "[... ]não é possível afirmar que a tributação incide sobre uma riqueza que não existe ou que não está de acordo com a sua "capacidade de gastar", pois os Recorrentes têm o incremento patrimonial que decorre da consequente valorização das ações que detêm naquelas sociedades" [cf. página 35 do Acórdão recorrido] e que "o facto de as mais-valias apuradas na transmissão das ações não terem sido objeto de tributação [...] permitiu aos Recorrentes uma poupança fiscal que se traduz numa evidente maior capacidade contributiva" [cf. página 36 do Acórdão recorrido].
Nesse sentido, entendeu o TCAN que a tributação dos Recorrentes ao abrigo do disposto no n.º 1 e na alínea b) do n.º 2 do artigo 52º do Código do IRS, em causa nos autos, não viola o princípio da capacidade contributiva naquela dimensão, na medida em que sempre existe um incremento patrimonial na esfera jurídica do alienante pessoa singular que decorre da consequente valorização das participações sociais que este detém, direta e indiretamente, na sociedade que, por sua vez e por um valor superior, revendeu as ações por este primitivamente transmitidas e que realizou a mais-valia que não foi objeto de tributação.
Assim, a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional venha a apreciar é a norma ínsita à conjugação dos referidos n.º 1 e da alínea b) do n.º 2 do artigo 52º do Código do IRS [na redação aplicável à data dos factos], na interpretação que lhe foi dada pelo TCAN no Acórdão recorrido, no sentido de que tal norma permite à Autoridade Tributária e Aduaneira, quando considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado numa operação de transmissão de ações e o respetivo valor real, tributar em IRS o valor presumido dessa transmissão de ações determinado com base no último balanço, quando apure que o acréscimo patrimonial efetivo e não tributado que decorre da alienação das mesmas ações se verificou na esfera jurídica de uma pessoa coletiva, direta e indiretamente detida pelo primitivo alienante pessoa singular.
Tal enunciado interpretativo da referida norma, projetado na ratio decidendi do Acórdão recorrido nessa parte, viola o princípio da capacidade contributiva, o qual é corolário do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP, quebrando a necessária "conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto" exigida por aquele princípio.
Os Recorrentes suscitaram a mencionada questão de inconstitucionalidade, em especial, nas suas alegações de recurso dirigidas ao TCAN, apresentadas nos autos (cf. páginas 16 a 19 das referidas alegações), tendo a norma ínsita à conjugação das apontadas disposições legais vindo a ser aplicada por aquele Tribunal, que julgou não verificada tal questão de inconstitucionalidade e manteve a liquidação efetuada com base na mesma norma, interpretando-a e aplicando-a no apontado sentido desconforme com a Constituição.
NESTES TERMOS e nos demais de Direito, por estar em tempo e por se encontrarem preenchidos os requisitos previstos nos artigos 70.º a 75.º-A da LTC, requer a admissão do presente recurso, com os efeitos previstos no artigo 78.º da LTC, devendo o mesmo, em consequência, ser remetido para o Tribunal Constitucional, com as demais consequências legais.»
3. Através da Decisão Sumária n.º 451/2021, foi decidido não conhecer o objeto do recurso, em razão de a questão de constitucionalidade formulada pelo recorrente não se dirigir a qualquer norma que apresente respaldo suficiente na decisão recorrida como sua ratio decidendi. Foi a seguinte, no essencial, a fundamentação apresentada:
«5. (…) A questão dos recorrentes, recorde-se, diz respeito à «norma ínsita à conjugação dos referidos n.º 1 e da alínea b) do n.º 2 do artigo 52º do Código do IRS [na redação aplicável à data dos factos], na interpretação que lhe foi dada pelo TCAN no Acórdão recorrido, no sentido de que tal norma permite à Autoridade Tributária e Aduaneira, quando considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado numa operação de transmissão de ações e o respetivo valor real, tributar em IRS o valor presumido dessa transmissão de ações determinado com base no último balanço, quando apure que o acréscimo patrimonial efetivo e não tributado que decorre da alienação das mesmas ações se verificou na esfera jurídica de uma pessoa coletiva, direta e indiretamente detida pelo primitivo alienante pessoa singular».
Contudo, no recurso interposto para o TCAN, os recorrentes formularam a sua questão de constitucionalidade por referência, matricialmente, à «interpretação ínsita no n.º 2 do artigo 52.º do Código de IRS no sentido de que determina em absoluto o rendimento tributável sem que ao contribuinte seja dada a possibilidade de demonstrar o valor efetivo dessa capacidade contributiva ou acréscimo que se pretende tributar». E só esta norma poderia ser conhecida pelo Tribunal Constitucional, pois só em relação a ela têm os recorrentes legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC.
Sucede que essa norma não tem respaldo suficiente na decisão recorrida enquanto ratio decidendi da mesma, como se verifica a partir de uma análise dessa decisão, em particular das suas páginas 33 a 36 (fls. 164 a 165-verso dos autos), que ora se transcrevem:
«(...)
3.2.4.3. Violação do princípio da capacidade contributiva
O princípio constitucional da igualdade tributária, como expressão específica do princípio geral estruturante da igualdade (artigo 13.º da Constituição), encontra concretização “na generalidade e na uniformidade dos impostos. Generalidade quer dizer que todos os cidadãos estão adstritos ao pagamento de impostos (…); por seu turno, uniformidade quer dizer que a repartição dos impostos pelos cidadãos obedece ao mesmo critério idêntico para todos” (TEIXEIRA RIBEIRO, Lições de Finanças Públicas, 5.ª edição, pág. 261). E tal critério, como sublinha CASALTA NABAIS, encontra-se no princípio da capacidade contributiva: “Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)” (Direito Fiscal, 7.ª edição, 2012, pág. 155). Como pressuposto e critério de tributação, o princípio da capacidade contributiva “de um lado, constituindo a ratio ou causa da tributação afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na seleção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objeto e matéria coletável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto” (CASALTA NABAIS, ob. cit., pág. 157).
Assim o tem afirmado o Tribunal Constitucional, de que é exemplo o Acórdão n.º 84/2003:
«O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de “uniformidade” – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação», entendendo-se esse critério como sendo aquele em que «a incidência e a repartição dos impostos – dos “impostos fiscais” mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou “capacidade de gastar” (…) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício). (…) Não obstante o silêncio da Constituição, é entendimento generalizado da doutrina que a “capacidade contributiva” continua a ser um critério básico da nossa “Constituição fiscal” sendo que a ele se pode (ou deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados nos artigos 103º e 104º da CRP (…)».
Este Tribunal tem, todavia, salientado que o princípio da capacidade contributiva não dispensa o concurso de outros princípios constitucionais. Como se referiu no Acórdão n.º 711/2006, «é claro que o “princípio da capacidade contributiva” tem de ser compatibilizado com outros princípios com dignidade constitucional, como o princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, indispensáveis também para o cumprimento das finalidades do sistema fiscal». E prossegue: «Averiguar, porém, da existência de um particularismo suficientemente distinto para justificar uma desigualdade de regime jurídico, e decidir das circunstâncias e fatores a ter como relevantes nessa averiguação, é tarefa que primariamente cabe ao legislador, que detém o primado da concretização dos princípios constitucionais e a correspondente liberdade de conformação. Por isso, o princípio da igualdade se apresenta fundamentalmente aos operadores jurídicos, em sede de controlo da constitucionalidade, como um princípio negativo (…) - como proibição do arbítrio».
Como se refere no acórdão do TCAS, de 21.11.2019, proc. 016646/13.2BELRA:
«O dito princípio da capacidade contributiva (não obstante o silêncio da atual Constituição, é entendimento generalizado da doutrina que a “capacidade contributiva” continua a ser um critério básico da nossa “Constituição fiscal”, sendo que a ele se pode, ou deve, chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados nos artºs.103 e 104 do diploma fundamental) exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária. Isto porque se o princípio da igualdade tributária pressupõe o tratamento igual de situações iguais e o tratamento desigual de situações desiguais, a capacidade contributiva é o “tertium genus” - leia-se, o critério - que há de servir de base à comparação. Neste sentido, o princípio da capacidade contributiva opera tanto como condição, ou pressuposto, quanto como critério ou parâmetro da tributação. Opera como pressuposto ou condição visto que impede que a tributação atinja uma riqueza ou um rendimento que não existe; vale como critério ou parâmetro porque determina que a exação do património dos contribuintes se faça de acordo com a sua “capacidade de gastar” (ability to spend). Ou seja, contribuintes com a mesma capacidade de gastar devem pagar os mesmos impostos (igualdade horizontal), e contribuintes com diferente capacidade de gastar devem pagar impostos diferentes (igualdade vertical). Outro dos corolários deste princípio é precisamente a tributação do rendimento líquido do contribuinte, de onde deflui uma exigência de dedução das despesas necessárias à angariação do próprio rendimento (cfr. acórdão do T. Constitucional 601/2004, de 12/10/2004, proc. 793/03; acórdão do T. Constitucional 197/2013, de 9/04/2013, proc. 602/12; J. L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2007, pág.227 e seg.).»
Evidenciando-se, no caso concreto, que o valor real da transmissão das ações é muito superior ao valor considerado e que os Recorrentes detêm 99.6% da sociedade holding que detém 100% do capital social da R., na qual a operação de (re)venda das ações (alienação a entidades externas) produziu uma mais valia de 167.490.000 USD e os pagamentos à R. nos montantes de €9.766.706,21 (em 2014) e €42.000.000,00 (em 2015), não é possível afirmar que a tributação incide sobre uma riqueza que não existe ou que não está de acordo com a sua “capacidade de gastar”, pois os Recorrentes têm o incremento patrimonial que decorre da consequente valorização das ações que detêm naquelas sociedades. Mais, o facto de as mais valias apuradas na transmissão das ações não terem sido objeto de tributação, de todo em todo (ocorrendo, nas palavras da AT, uma “dupla não tributação”), permitiu aos Recorrentes uma poupança fiscal que se traduz numa evidente maior capacidade contributiva.
Acresce dizer que aos Recorrentes não estava, nem poderia estar, vedada a possibilidade de demonstrarem, por um lado, não terem aderência à realidade os factos em que a AT se baseou para concluir que “pode existir divergência entre o valor declarado e o valor real” ou, por outro lado, que o valor considerado para a transmissão das ações correspondia ao valor efetivo da operação.
Mas, não tendo provado uma coisa nem outra, subsiste a factualidade avançada pela AT, bem como as conclusões que dela retirou, motivo pelo qual têm de ser mantidas tanto a sentença recorrida como a liquidação impugnada.
Improcedem, assim e também, as conclusões DD) e LL) das alegações de recurso.»
Como se verifica, o entendimento que se consignou na decisão recorrida não foi o de que o artigo 52.º, n.º 2, do CIRS permite determinar em absoluto o rendimento tributável sem que ao contribuinte seja dada a possibilidade de demonstrar o valor efetivo dessa capacidade contributiva ou o acréscimo que se pretende tributar. Bem diversamente, o TCAN nota de modo explícito que aos recorrentes não «estava, nem poderia estar, vedada a possibilidade de demonstrarem, por um lado, não terem aderência à realidade os factos em que a AT se baseou para concluir que “pode existir divergência entre o valor declarado e o valor real” ou, por outro lado, que o valor considerado para a transmissão das ações correspondia ao valor efetivo da operação»; e acrescenta que, simplesmente, os recorrentes não lograram provar nem uma coisa nem outra.
Já quanto à questão de saber se é ou não acertada essa conclusão (de que os recorrentes não provaram nem uma coisa nem outra), aí já se está fora do domínio de normatividade dentro do qual a atividade de fiscalização concreta da constitucionalidade deste Tribunal tem por força de manter-se, pelo que é inequívoco que, entendida nesses termos, também nunca a questão seria possível de aqui conhecer. Sobra então a já analisada dimensão do problema que se estrutura em torno da (im)possibilidade de um contribuinte infirmar os factos em que a Autoridade Tributária baseou a sua conclusão de que pode existir divergência entre o valor declarado e o valor real e de demonstrar que o valor considerado para a transmissão das ações correspondia ao valor efetivo da operação. Ora, não tendo a decisão recorrida negado essa possibilidade aos recorrentes, não encontra a questão por eles trazida a este Tribunal respaldo bastante nessa decisão.
É certo que no recurso interposto para o Tribunal Central Administrativo os recorrentes indicaram que «[o] acréscimo da capacidade contributiva resultante da contraprestação associada à segunda transmissão verificou-se na esfera de uma outra pessoa, jurídica e tributariamente distinta dos aqui Recorrentes». Embora essa alegação não possa – reitera-se – ser entendida como uma suscitação adequada de uma questão de constitucionalidade, nem mesmo se lida à luz de outras considerações expendidas na mesma peça processual, ela não deixa de oferecer um certo suporte à questão constitucional conforme formulada no recurso de constitucionalidade, na parte da mesma em que se salienta o elemento de que «o acréscimo patrimonial efetivo e não tributado que decorre da alienação das mesmas ações se verificou na esfera jurídica de uma pessoa coletiva, direta e indiretamente detida pelo primitivo alienante pessoa singular». Contudo, mesmo aqui, nunca poderia considerar-se que o entendimento atribuído pelos recorrentes ao tribunal recorrido tenha verdadeira correspondência na sua decisão. Esta decisão não exprime semelhante entendimento, mas antes considera que os recorrentes – e não qualquer outra pessoa – «têm o incremento patrimonial que decorre da consequente valorização das ações que detêm naquelas sociedades» e que «o facto de as mais valias apuradas na transmissão das ações não terem sido objeto de tributação, de todo em todo (ocorrendo, nas palavras da AT, uma “dupla não tributação”), permitiu aos Recorrentes uma poupança fiscal que se traduz numa evidente maior capacidade contributiva». Portanto, de acordo com o entendimento acolhido na decisão recorrida – se ele é ou não o mais ajustado no plano infraconstitucional é, uma vez mais, questão de aqui não se pode curar – aquele acréscimo deu-se, sim, na «esfera jurídica» dos recorrentes.
Por estas razões, não se pode concluir que o recurso em apreço satisfaça o pressuposto de se referir a uma norma que tenha constituído ratio decidendi da decisão recorrida. O seu objeto não pode, por isso, ser conhecido, uma vez um eventual juízo de inconstitucionalidade por parte deste Tribunal seria inútil, por ser necessariamente insuscetível de se repercutir sobre a decisão recorrida em termos que pudessem impor a sua reforma.»
4. Inconformados, os recorrentes vêm reclamar daquela Decisão Sumária para a conferência, o que fazem, fundamentalmente, nos seguintes termos:
«Os ora Reclamantes apresentaram recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70° da LTC, assim como da alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição da República Portuguesa ("CRP"), pretendendo que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da norma ínsita à conjugação do n.º 1 e da alínea b) do n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRS (Na redação aplicável à data dos factos), na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal Central Administrativo Norte ("TCAN") no Acórdão proferido no dia 21 de maio de 2020, no sentido de que tal norma permite à Autoridade Tributária e Aduaneira, quando considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado numa operação de transmissão de ações e o respetivo valor real, tributar em IRS o valor presumido dessa transmissão de ações determinado com base no último balanço, quando apure que o acréscimo patrimonial efetivo e não tributado que decorre da alienação das mesmas ações se verificou na esfera jurídica de uma pessoa coletiva, direta e indiretamente detida pelo primitivo alienante pessoa singular.
(...)
Considerou primeiramente a Decisão Sumária que os ora Reclamantes, no recurso interposto para o TCAN, formularam a sua "questão de constitucionalidade por referência, matricialmente, à «interpretação ínsita no n.º 2 do artigo 52.º do Código de IRS no sentido de que determina em absoluto o rendimento tributável sem que ao contribuinte seja dada a possibilidade de demonstrar o valor efetivo dessa capacidade contributiva ou acréscimo que se pretende tributar»".
Pelo que, só aquela norma poderia ser conhecida pelo Tribunal Constitucional, pois só em relação a ela teriam os Reclamantes legitimidade para interpor recurso, entendendo-se ainda que tal norma não tem respaldo suficiente na decisão recorrida enquanto ratio decidendi da mesma.
Com o devido respeito, os aqui Reclamantes não podem perfilhar o entendimento preconizado na Decisão Sumária.
Na verdade, importa verificar que, nos autos de recurso perante o TCAN, os Recorrentes suscitaram duas questões de constitucionalidade: ambas relativas à única norma aplicada/interpretada nos autos - o artigo 52.º do Código do IRS - e ambas assentes numa violação do princípio da capacidade contributiva, corolário do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP.
Todavia, aquela primeira questão de constitucionalidade - relembre-se, a inconstitucionalidade da norma ínsita ao artigo 52.º do Código do IRS quando interpretada no sentido de determinar em absoluto o rendimento tributável sem que ao contribuinte seja dada a possibilidade de demonstrar o valor efetivo dessa capacidade contributiva - ficou efetivamente ultrapassada em face da decisão proferida pelo TCAN, não tendo sido semelhante interpretação concretamente aplicada no Acórdão recorrido (ao contrário do que sucedia na decisão proferida em 1.a instância, em face da qual se suscitou a inconstitucionalidade da interpretação nessa vertente).
Acontece que não foi por referência a essa primeira questão de constitucionalidade que os Recorrentes apresentaram recurso para este Tribunal, mas sim quanto à outra questão de constitucionalidade levantada nas alegações de recurso perante o TCAN.
Essa outra questão de constitucionalidade é relativa, naturalmente, à mesma norma aplicada nos autos – o artigo 52.º do Código de IRS – que, sendo interpretado no sentido de permitir a tributação na esfera singular do valor presumido de uma transmissão de ações quando a AT apure que o acréscimo patrimonial efetivo e não tributado que decorre da alienação das mesmas ações se verificou na esfera jurídica de uma pessoa coletiva, direta e indiretamente detida pelo primitivo alienante pessoa singular, se mostrava - e mostra - contrária ao mesmo princípio da capacidade contributiva.
Na verdade, conforme resulta do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional apresentado pelos Reclamantes, a dimensão da norma cuja apreciação de constitucionalidade foi suscitada no recurso apresentado perante este Tribunal não se prende, pois, com a "interpretação ínsita no n.º 2 do artigo 52.º do Código de IRS no sentido de que determina em absoluto o rendimento tributável sem que ao contribuinte seja dada a possibilidade de demonstrar o valor efetivo dessa capacidade contributiva ou acréscimo que se pretende tributam".
Com efeito, a norma ou interpretação normativa cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelos Reclamantes no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional foi, repisa-se, a norma ínsita ao mesmo artigo 52º do Código do IRS, na interpretação que lhe foi dada pelo TCAN no Acórdão recorrido, no sentido de que tal norma permite à Autoridade Tributária e Aduaneira, quando considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado numa operação de transmissão de ações e o respetivo valor real, tributar em IRS o valor presumido dessa transmissão de ações determinado com base no último balanço, quando apure que o acréscimo patrimonial efetivo e não tributado que decorre da alienação das mesmas ações se verificou na esfera jurídica de uma pessoa coletiva, direta e indiretamente detida pelo primitivo alienante pessoa singular.
Tal enunciado interpretativo da referida norma viola o princípio da capacidade contributiva, o qual é corolário do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da CRP, quebrando a necessária "conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto" exigida por aquele princípio.
A apontada questão de constitucionalidade foi suscitada pelos Reclamantes nas suas alegações de recurso dirigidas ao TCAN, tendo sido referido, concretamente, que:
"No caso dos autos, a AT, por aplicação dos critérios presuntivos previstos no n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRS, determinou um valor de realização ou transmissão das ações pelo aqui Recorrente marido à C. no montante de EUR 55.525.600, concluindo, então, pela obtenção de um ganho pelo mesmo Recorrente marido de mais de 53 milhões de euros.
[...]
O acréscimo de capacidade contributiva resultante da contraprestação associada à segunda transmissão verificou-se na esfera de uma outra pessoa, jurídica e tributariamente, distinta dos aqui Recorrentes.
Ora, o princípio da capacidade contributiva, enquanto princípio geral da tributação e corolário do princípio da igualdade no domínio tributário, enquanto «pressuposto, limite e critério da tributação», exige que o legislador fiscal configure as obrigações dos contribuintes a partir de factos tributários que fundem a capacidade de suportar o encargo correspondente.
Conforme afirmou o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 348/97, «a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto». [...]"
Desta enunciação decorre diretamente que, no entendimento dos Recorrentes, o artigo 52.º do Código do IRS em causa nos autos, interpretado no sentido de se mostrar suscetível de aplicação à situação concreta do processo (em que a mais-valia objeto de tributação foi obtida por uma sociedade e não pelo sujeito passivo de IRS que foi tributado pela AT na liquidação posta em crise), mostra-se contrário ao princípio da capacidade contributiva, corolário do princípio da igualdade no domínio tributário, pois este princípio exige uma conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto.
Na verdade, os Recorrentes entendem que a formulação que acima se transcreveu (que invoca, inclusivamente, o entendimento já anteriormente consagrado por este Tribunal Constitucional) é apta a cumprir os índices de clareza e inteligibilidade inerentes à suscitação da questão de constitucionalidade e à natureza instrumental do processo de fiscalização concreta da constitucionalidade.
Aliás, tanto assim é que, em face da questão formulada nesses moldes nas alegações de recurso pelos então Recorrentes, o Tribunal a quo, apreciando-a, veio a concluir expressamente que não se encontrava violado o princípio da capacidade contributiva nessa dimensão com a aplicação do disposto no artigo 52.º do Código do IRS ao caso concreto pois "não é possível afirmar que a tributação incide sobre uma riqueza que não existe ou que não está de acordo com a sua capacidade de gastar, pois os Recorrentes têm o incremento patrimonial que decorre da consequente valorização das ações que detêm naquelas sociedades."
Por conseguinte, entendem os aqui Reclamantes que, contrariamente ao plasmado na Decisão Sumária, a questão de constitucionalidade foi adequadamente suscitada perante o Tribunal a quo, que, inclusivamente, a apreciou,
Estando em causa nos autos uma interpretação do disposto no artigo 52.º do Código do IRS que — como se desenvolverá em sede de alegações do presente recurso — se mostra contrária aos parâmetros constitucionais exigidos pelo princípio da capacidade contributiva, corolário do princípio da igualdade em matéria tributária.
Sucede ainda que,
De acordo com a Decisão Sumária notificada, "mesmo aqui, nunca poderia considerar-se que o entendimento atribuído pelos recorrentes ao tribunal recorrido tenha verdadeira correspondência na sua decisão. Esta decisão não exprime semelhante entendimento, mas antes considera que os recorrentes — e não qualquer outra pessoa — «tem o incremento patrimonial que decorre da consequente valorização das ações que detém naquelas sociedades» e que «o facto de as mais valias apuradas na transmissão das ações não terem sido objeto de tributação, de todo em todo (ocorrendo, nas palavras da AT, uma "dupla não tributação"), permitiu aos Recorrentes uma poupança fiscal que se traduz numa evidente maior capacidade contributiva»".
A este respeito, cumpre referir que entendeu o TCAN, no Acórdão recorrido que "[...] não é possível afirmar que a tributação incide sobre uma riqueza que não existe ou que não está de acordo com a sua "capacidade de gastar", pois os Recorrentes têm o incremento patrimonial que decorre da consequente valorização das ações que detêm naquelas sociedades" e que "o facto de as mais- valias apuradas na transmissão das ações não terem sido objeto de tributação [...] permitiu aos Recorrentes uma poupança fiscal que se traduz numa evidente maior capacidade contributiva".
Conforme decorre do Acórdão recorrido, a norma interpretada e aplicada nos autos é, indiscutivelmente, o artigo 52.º do Código do IRS - aliás, é a única norma aplicada e interpretada, pois é também a única norma que sustenta a liquidação adicional de IRS emitida pela AT.
E, também indiscutivelmente, esta norma foi concretamente interpretada pelo TCAN precisamente no sentido que os Recorrentes reputam por inconstitucional, por ofender frontalmente o princípio da capacidade contributiva.
Na verdade, considerou o TCAN, em concreto, que a tributação do ora Reclamante em IRS - realizada nos autos, então, ao abrigo do disposto no artigo 52° do Código do IRS (em rigor, ao abrigo do disposto no seu n.º 1 e na alínea b) do seu n.º 2) -, não violava o princípio da capacidade contributiva nesta apontada dimensão, na medida em que ocorreria um incremento patrimonial na esfera jurídica do primitivo alienante pessoa singular que decorre da valorização das participações sociais que este detém, direta e indiretamente, na sociedade que realizou a mais-valia.
Nas palavras do TCAN: "[...] o Recorrente detém 99,6% da sociedade holding que detém 100% do capital social da D., [sociedade holding aquela] na qual a operação de (re)venda das ações (alienação a entidades externas) produziu uma mais valia de 167.490.000 USD."
Todavia, apesar desse facto de a mais-valia ter sido realizada na esfera de uma sociedade e não da pessoa singular que vem tributada em IRS ao abrigo do artigo 52.º do Código do IRS, "[...] não é possível afirmar que a tributação incide sobre uma riqueza que não existe ou que não está de acordo com a sua "capacidade de gastar", pois os Recorrentes têm o incremento patrimonial que decorre da consequente valorização das ações que detêm naquelas sociedades" e que "o facto de as mais-valias apuradas na transmissão das ações não terem sido objeto de tributação [...] permitiu aos Recorrentes uma poupança fiscal que se traduz numa evidente maior capacidade contributiva) ".
Ora, semelhante interpretação normativa não consubstancia qualquer "obiter dictum" do Acórdão recorrido.
Efetivamente, caso o TCAN tivesse considerado, neste seu segmento decisório, que se encontrava violado o princípio da capacidade contributiva nesta dimensão - como os ora Reclamantes entendem -, e estando nos autos perante uma situação em que a mais-valia foi realizada por uma outra pessoa, jurídica e tributariamente distinta daquela que, através do disposto no artigo 52.º do Código do IRS e detendo direta e indiretamente a sociedade que realizou a mais-valia, veio a ser adicionalmente liquidada presuntivamente pela AT em IRS, teria necessariamente julgado procedente o recurso.
Todavia, na sua decisão, o TCAN entendeu, pois, naqueles termos já transcritos e no capítulo relativo à(s) violação(ões) do princípio da capacidade contributiva, que a correção realizada com base na aplicação do disposto no artigo 52.º do Código do IRS ainda dá abrigo ou compreende dentro dos limites da capacidade contributiva a tributação da pessoa singular que detenha, direta e indiretamente, as ações da pessoa coletiva que realizou a mais-valia, com fundamento em que tal mais-valia valoriza a sociedade alienante e que, por isso, aumenta a "capacidade de gastar" ou gera um incremento patrimonial na esfera dos seus sócios diretos e indiretos.
É precisamente essa interpretação normativa do disposto no artigo 52.° do Código do IRS que, violando o princípio da capacidade contributiva nessa dimensão, vem apontada nas alegações de recurso para o TCAN e, ulteriormente, no presente recurso,
Sendo que tal interpretação normativa veio manifestamente aplicada no Acórdão recorrido, de tal forma que, caso se venha a entender que a mesma viola o princípio da capacidade contributiva - como os Recorrentes desenvolverão em sede de alegações do presente recurso -, a subsequente reforma da decisão recorrida em conformidade com o julgamento sobre a questão de (in)constitucionalidade determinaria - como se acredita que determinará - a procedência daquele recurso perante o TCAN.
Dito de outro modo, o TCAN julgou improcedente o recurso, nesta parte, por considerar que não se encontrava violado o princípio da capacidade contributiva ao tributar-se, ao abrigo do artigo 52.º do Código do IRS, a pessoa singular que detém, direta e indiretamente, a pessoa coletiva que realizou a concreta mais-valia que vem a consubstanciar o real objeto de tributação.
Nesse sentido, a interpretação normativa do disposto no artigo 52.º do Código do IRS que se reputa por inconstitucional nos autos foi ratio decidendi do acórdão do TCAN recorrido, que nela se fundou para julgar, no que a esse ponto diz respeito, o recurso improcedente - cf. capítulo 3.2.4.3 do Acórdão recorrido e, em especial, páginas 35 e 36, primeiro parágrafo, do mesmo Acórdão.
Assim, consideram os ora Reclamantes que, ao contrário do plasmado na Decisão Sumária notificada, a norma ou interpretação normativa a que se aludiu no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional tem verdadeira correspondência na decisão do TCAN, que manteve a aplicação da norma ínsita à conjugação das apontadas disposições legais do artigo 52.º do Código do IRS, julgou não verificada semelhante questão de inconstitucionalidade levantada nas alegações por não considerar concretamente violado o princípio da capacidade contributiva nessa dimensão e manteve a liquidação efetuada com base na mesma norma, interpretando-a e aplicando-a, pois, em sentido desconforme com a Constituição.
Razão pela qual o objeto do Recurso para fiscalização concreta de constitucionalidade interposto pelos ora Reclamantes deverá ser conhecido por este Tribunal, revogando-se, pois, a Decisão Sumária proferida, aqui reclamada, e prosseguindo os autos de Recurso os demais trâmites legais, nomeadamente, notificando-se os Recorrentes para alegações, o que se requer.»
5. Decorrido o prazo, a recorrida não se pronunciou.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. Pela Decisão Sumária n.º 451/2021, foi decidido não conhecer o objeto do recurso, em razão de a questão de constitucionalidade formulada pelo recorrente não ter sido suscitada de modo adequado perante o tribunal recorrido, e uma outra questão, que se entendeu ter sido adequadamente suscitada, não apresentar respaldo suficiente na decisão recorrida enquanto sua ratio decidendi. A reclamação, porém, afigura-se improcedente.
É verdade, como os recorrentes afirmam – e como, de resto, é expressamente referido na Decisão Sumária reclamada (p. 7) –, que do recurso pelos mesmos interposto para o Tribunal Central Administrativo Norte consta a seguinte passagem: «No caso dos autos, a AT, por aplicação dos critérios presuntivos previstos no n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRS, determinou um valor de realização ou transmissão das ações pelo aqui Recorrente marido à C. no montante de EUR 55.525.600, concluindo, então, pela obtenção de um ganho pelo mesmo Recorrente marido de mais de 53 milhões de euros. (...) O acréscimo de capacidade contributiva resultante da contraprestação associada à segunda transmissão verificou-se na esfera de uma outra pessoa, jurídica e tributariamente, distinta dos aqui Recorrentes. Ora, o princípio da capacidade contributiva, enquanto princípio geral da tributação e corolário do princípio da igualdade no domínio tributário, enquanto «pressuposto, limite e critério da tributação», exige que o legislador fiscal configure as obrigações dos contribuintes a partir de factos tributários que fundem a capacidade de suportar o encargo correspondente. Conforme afirmou o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 348/97, «a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto».» (fls. 132).
Na mesma peça, já em sede de conclusões do recurso, voltaram os recorrentes a este argumento formulando a sua pretensão nos seguintes termos: «Ao apurar um valor de imposto de quase 15 milhões de euros e exigir o respetivo pagamento aos aqui Recorrentes, tendo por referência uma transmissão de ações em que apenas foi efetivamente recebida uma contraprestação de USD 3.000.000, consubstanciada em títulos e share premium, a AT, na liquidação aqui posta em crise, e a decisão recorrida, que a manteve, ostensivamente violam o princípio da capacidade contributiva e a conceção de rendimento-acréscimo, subjacentes à tributação pessoal do rendimento dos sujeitos passivos de IRS e ao disposto nos artigos 10.º, n.º 4, alínea a), e 44.º, n.º 1, do Código do IRS.»
Ora, a formulação mais acima indicada, feita no corpo das alegações, já não se afigurava suficiente para satisfazer cabalmente o pressuposto da suscitação adequada de uma questão de constitucionalidade, visto que este pressuposto exige que o recorrente formule, de modo expresso e claro, o enunciado normativo que considera inconstitucional. De facto, além de se configurar como uma condição de legitimidade (cf. o artigo 72.º, n.º 2, da LTC), vinculando o recorrente a antecipar a questão de constitucionalidade que ulteriormente venha a enunciar no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional e a defini-la antes de se achar esgotado o poder jurisdicional da instância recorrida, o requisito da suscitação prévia tem uma evidente dimensão formal, fazendo impender sobre o recorrente um ónus de delimitar e especificar pela positiva o objeto do recurso perante o tribunal recorrido. Como refere Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra: Almedina, 2010, p. 97, com abundantes referências jurisprudenciais, o referido ónus implica uma «clara, precisa e expressa delimitação e especificação do objeto do recurso». Afirma ainda o mesmo autor que, «dada a sua relevância central na jurisprudência do Tribunal Constitucional, quando se pretenda questionar a constitucionalidade de uma dada interpretação normativa, é naturalmente indispensável que a parte identifique expressamente essa interpretação ou dimensão normativa, em termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os respetivos destinatários e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada com tal sentido» (p. 104). Isso não acontece com a peça processual em causa, o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Central Administrativo Norte, sendo que a invocação de jurisprudência constitucional por parte dos recorrentes não permite suprir a ausência de uma delimitação com tais características, sobretudo quando, como no caso, não se destine a auxiliar na identificação da norma a fiscalizar, mas antes em identificar parâmetros pretensamente violados.
Já a segunda formulação, além de continuar a não conter uma autêntica enunciação de uma norma, vem ainda adensar a natureza não normativa da argumentação – o que concorre para a insuficiente adequação da suscitação feita –, pois faz a pretensa violação decorrer, não de uma norma, mas do próprio ato de liquidação e da decisão que o manteve, em si mesmos considerados: «LL. Ao apurar um valor de imposto de quase 15 milhões de euros e exigir o respetivo pagamento aos aqui Recorrentes, tendo por referência uma transmissão de ações em que apenas foi efetivamente recebida uma contraprestação de USD 3.000.000, consubstanciada em títulos e share premium, a AT, na liquidação aqui posta em crise, e a decisão recorrida, que a manteve, ostensivamente violam o princípio da capacidade contributiva» (sublinhados nossos). Mais claramente ainda do que a formulação anteriormente referida, esta formulação é recortada por referência direta a elementos ou idiossincrasias do caso concreto, carecidas do caráter geral e abstrato necessário às questões de que este Tribunal Constitucional pode conhecer. O que contribui para explicar que o tribunal recorrido, depois de ter apresentado jurisprudência constitucional destinada a firmar a relevância dos princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva, tenha concluído esse ponto da sua decisão (o ponto 3.2.4.3., a fls. 164 ss. dos autos) com uma análise das particularidades do caso concreto, notando: «aos recorrentes mão estava, nem poderia estar, vedada a possibilidade de demonstrarem, por um lado, não terem aderência à realidade os factos em que a AT se baseou para concluir que “pode existir divergência entre o valor declarado e o valor real” ou, por outro lado, que o valor considerado para a transmissão das ações correspondia ao valor efetivo da operação. Mas não tendo provado uma coisa nem outra, subsiste a factualidade avançada pela AT, bem como as conclusões que dela retirou, motivo pelo qual têm de ser mantidas tanto a sentença recorrida como a liquidação impugnada. Improcedem, assim e também, as conclusões DD) e LL) das alegações de recurso» (fl. 165-v.).
É incontornável, aliás, a acentuada diferença entre qualquer das formulações acima apresentadas, constantes do recurso para o Tribunal Central Administrativo Norte, e aquela que os recorrentes já vieram apresentar em sede de recurso de constitucionalidade. Neste último, depois de terem transcrito estas mesmas passagens acima curadas, os recorrentes terminam acrescentando, aqui sim e pela primeira vez, um enunciado geral e abstrato: «Assim, a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional venha a apreciar é a norma ínsita à conjugação dos referidos n.º 1 e da alínea b) do n.º 2 do artigo 52º do Código do IRS [na redação aplicável à data dos factos], na interpretação que lhe foi dada pelo TCAN no Acórdão recorrido, no sentido de que tal norma permite à Autoridade Tributária e Aduaneira, quando considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado numa operação de transmissão de ações e o respetivo valor real, tributar em IRS o valor presumido dessa transmissão de ações determinado com base no último balanço, quando apure que o acréscimo patrimonial efetivo e não tributado que decorre da alienação das mesmas ações se verificou na esfera jurídica de uma pessoa coletiva, direta e indiretamente detida pelo primitivo alienante pessoa singular».
Pelo exposto, justifica-se manter o entendimento de que os recorrentes, relativamente a esta questão de constitucionalidade, não lograram satisfazer o pressuposto da suscitação prévia e adequada decorrente dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça, relativamente a cada qual, em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 1 de outubro de 2021 - Lino Rodrigues Ribeiro
Atesto o voto de conformidade do Conselheiro Presidente João Pedro Caupers e da Conselheira Maria José Rangel de Mesquita, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio)
Lino Rodrigues Ribeiro