ACÓRDÃO Nº 753/2021
Processo n.º 444/2021
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Recorrente A., ACE, vem reclamar da decisão sumária n.º 364/2021, que decidiu não conhecer do recurso interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo em 13 de dezembro de 2019.
2. O presente recurso de constitucionalidade é incidente de procedimento de impugnação judicial, interposto pela aqui recorrente de ato de liquidação de IVA relativo ao ano de 2001, no montante de € 8.068.502,08, e de juros compensatórios no montante de € 1.989.935,77, no âmbito da qual, e no que releva para o presente recurso, o Tribunal Central Administrativo Sul, por via do acórdão ora recorrido, negou provimento ao recurso e confirmou a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que havia julgado improcedente a impugnação judicial e absolvido a Fazenda Pública do pedido.
3. Nessa sequência, o impugnante interpôs o presente recurso para o Tribunal Constitucional para apreciação das «normas que se retiram da junção do número 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, na redação dada pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, articulada como o artigo 43.º da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, quando interpretadas (como foram interpretadas pelo Tribunal Central Administrativo Sul) no sentido de que a mesma (número 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária) deve ser aplicada também a factos tributários ocorridos antes da sua entrada em vigor, já que o artigo 43.º da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro não previu uma norma transitória estabelecendo a aplicação do novo número 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária apenas aos factos tributários ocorridos após a entrada em vigor dessa alteração legislativa».
4. Admitido o recurso e remetidos os autos a este Tribunal, o relator proferiu a decisão reclamada, que concluiu pelo não conhecimento do recurso, por inutilidade, em virtude de a questão colocada não versar a norma efetivamente aplicada na decisão recorrida como ratio decidendi:
«[N]o caso, a questão enunciada não corresponde a norma efetivamente aplicada, como ratio decidendi, na decisão recorrida. Com efeito, o tribunal a quo, ao manter a decisão recorrida na parte em que esta julga improcedente a invocada caducidade do direito à liquidação do IVA, acolhe e aplica critério normativo, extraído dos n.ºs 1 e 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, na redação do artigo 43.º da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, conjugado com o n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil, no sentido de que a mesma é aplicável aos prazos de caducidade em curso à data da sua entrada em vigor, considerando que o facto extintivo do direito a liquidar apenas opera no termo do prazo [cfr, em especial, fls. 234-235, alíneas a) e b)]. Sentido normativo que não se encontra impugnado no requerimento de interposição de recurso.
Acrescente-se que, saber se esse entendimento do direito infraconstitucional é certo ou errado, constitui matéria que não incumbe a este Tribunal apreciar.»
5. Na peça de reclamação, dizem os recorrentes:
«4. Da análise do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, verifica-se que o mesmo, após enunciar alguns "pontos firmes" sobre a Lei aplicável ao caso em análise (cf. páginas 10 a 12 do citado Acórdão), sufragou o seu entendimento com base na seguinte argumentação (cf. página 12 do Acórdão):
“O presente entendimento não enferma de inconstitucionalidade por violação da proibição constitucional de lei fiscal retroativa. E que, como se refere no Acórdão do STA, de 17.03.2011, P. 01076/09, "Entendemos pois que à determinação do termo inicial de contagem do prazo de caducidade do direito à liquidação de IVA relativo a Fevereiro e Junho de 2002 se aplica o disposto no n.º 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, na redação que lhe foi conferida vela Lei n." 32-B/2002, de 30 de Dezembro, não se consubstanciando tal aplicação numa aplicação retroativa daquela disposição legal, pois que o facto extintivo do direito a liquidar não é instantâneo (...), uma vez que o efeito extintivo do direito de liquidar apenas opera no termo do prazo e este ainda estava em curso à data da entrada em vigor da lei nova." (sublinhados e negritos nossos)
5. Verifica-se, assim, que a norma que foi efetivamente aplicada pelo Tribunal Central Administrativo Sul, foi a norma que se retira do número 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro.
6. Com efeito, é o próprio Tribunal Central Administrativo Sul que, depois de enunciar essa norma, e apenas essa, refere expressamente que tal aplicação [do disposto no número 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária] não consubstancia uma aplicação retroativa daquela disposição legal [a disposição legal que se retira do número 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária].
7. Foi, assim, esta norma legal, e não outras, que o Tribunal Central Administrativo Sul interpretou, num sentido normativo desconforme à Constituição, tendo consequentemente aplicado tal norma, nesse sentido normativo, sem cuidar de verificar que tal norma, assim interpretada, sempre seria uma norma legal inconstitucional devendo, assim, ser procurada uma interpretação conforme à Constituição.
8. Conclui-se, portanto, que o Tribunal Central Administrativo Sul sufragou o entendimento - através da citação do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 17 de março de 2011, no processo número 01076/09 - no sentido de que a a norma que se retira do número 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, interpretada no sentido de que se aplica a prazos já em curso, não se afigura inconstitucional (por violação da proibição de lei fiscal retroativa).
9. O facto de o Tribunal Central Administrativo Sul ter enunciado alguns "pontos firmes" para, posteriormente, passar para a análise concreta da questão de inconstitucionalidade suscitada pelo ora Reclamante, não permite a conclusão de que esses "pontos firmes" traduzem a norma utilizada pelo Tribunal a quo para julgar improcedente a pretensão do Reclamante - porque tal não resulta da decisão do Tribunal Central Administrativo Sul, desde logo porque o seu propósito foi, unicamente, enunciar os normativos legais aplicáveis nas situações de aplicação da lei no tempo.
10. Em face da análise do Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, conclui-se, sem margem para dúvidas, que o critério normativo utilizado por aquele Tribunal para indeferir a pretensão do Reclamante foi o que resulta da norma que se retira do número 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, tendo o Tribunal Central Administrativo considerado que essa norma legal, assim interpretada, não padecia de qualquer vício de inconstitucionalidade.
11. De facto, a aceitar-se que os "pontos firmes" enunciados nas páginas 10 a 12 do Acórdão reclamado seriam os critérios normativos acolhidos e aplicados pelo Tribunal Central Administrativo Sul para recusar o reconhecimento da inconstitucionalidade suscitada pelo Reclamante, também o Reclamante teria de ter invocado a inconstitucionalidade do número 2 do artigo 297.º do Código Civil (cf. ponto b) dos citados "pontos firmes" enunciados pelo Tribunal Central Administrativo Sul, na página 11 do Acórdão reclamado) - preceito legal que, naturalmente, não é inconstitucional, porque se limita a determinar a forma de contagem do prazo, no caso de aplicação de leis no tempo, não tendo sequer sido mencionado na decisão sumária da qual agora se reclama.
12. Conclui-se, assim, que ao contrário da posição sufragada pelo Excelentíssimo Juiz Conselheiro Relator, o critério normativo acolhido e aplicado pelo Tribunal Central Administrativo Sul foi o que resulta do número 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo Reclamante ao longo do processo e no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, tendo tal norma sido considerada não inconstitucional por parte do Tribunal Central Administrativo e, como tal, sido aplicada ao caso em apreço, apesar de essa aplicação redundar numa aplicação de norma legal fiscal retroativa.
13. Ao acima exposto, cumpre ainda referir que, ao contrário da posição sufragada na decisão reclamada, não se está perante uma questão de "saber se esse entendimento infraconstitucional é certo ou errado, [uma vez que] constitui matéria que não incumbe a este Tribunal apreciar".
14. Com efeito, da análise do processo subjacente ao presente recurso e, bem assim, do próprio requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, concluiu-se que o Reclamante não suscitou, perante o Tribunal Constitucional, a apreciação de um entendimento judicial certo ou errado.
15. Bem ao invés, do que se tratou - algo que foi bem entendido por parte do Tribunal Central Administrativo Sul - foi de ter sido suscitada a inconstitucionalidade de uma norma legal, interpretada num determinado sentido, na medida em que tal interpretação, de natureza normativa e desligada da mera aplicação ao caso concreto, redunda, consequentemente, na aplicação ao caso concreto de norma legal inconstitucional.
16. Ora, não podendo os Tribunais aplicar normas inconstitucionais, nos termos do artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa, do que se trata neste processo é de requerer a desaplicação de uma norma legal interpretada no sentido em que o foi pelo Tribunal Central Administrativo Sul, substituindo essa interpretação por outra interpretação que seja conforme à Constituição, evitando, assim, a aplicação de norma legal fiscal de natureza retroativa, por ser aplicável a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor - in casu, a interpretação normativa e posterior aplicação ao caso concreto da norma (assim interpretada) que se retira "do número 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, na redação da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, bem como do artigo 43.º da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, na medida em que altera o artigo 45.º da Lei Geral Tributária, sem prever uma norma transitória que determinasse a aplicação do novo número 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária apenas a factos tributários ocorridos após a sua entrada em vigor".
17. A este propósito, cumpre referir que, atualmente, é entendimento unânime que o Tribunal Constitucional pode (e deve) conhecer de inconstitucionalidade de normas interpretadas num determinado sentido inconstitucional, o que é algo diferente de se saber se um tribunal a quo aplicou bem ou mal a norma que foi chamado a aplicar, algo que não é sindicável perante o Tribunal Constitucional, enquanto tribunal de normas e não tribunal de decisões.
18. Acontece que, in casu, do que se trata não é de recorrer (e agora reclamar) de uma errada aplicação de norma legal por parte do Tribunal Central Administrativo Sul, mas antes da aplicação de uma norma legal inconstitucional, porque interpretada pelo Tribunal Central Administrativo Sul num sentido desconforme à Constituição, o que faz toda a diferença.
19. Constata-se, portanto, que o critério normativo aplicado pelo Tribunal Central Administrativo Sul, aquando do conhecimento do mérito da inconstitucionalidade que lhe foi colocada a escrutínio, foi o número 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, na redação da Lei n.º 32- B/2002, de 30 de dezembro, pelo que, tendo o Reclamante suscitado a sua inconstitucionalidade - ao longo do processo e no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional estão preenchidos os pressupostos de que, nos termos do número 2 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional, depende a apreciação do objeto do recurso.
20. Nessa medida, verifica-se que a tese sufragada pelo Excelentíssimo Juiz Conselheiro Relator na decisão reclamada na medida em que considera que o Tribunal Central Administrativo Sul usou como critério de decisão um "aglomerado normativo" que não corresponde efetivamente àquela que foi efetivamente a norma legal aplicada pelo Tribunal Central Administrativo Sul, não deverá vingar na ordem jurídica, pelo que deve ser anulada por Vossas Excelências.»
6. Notificada a recorrida, não foi apresentada resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
7. Como decorre do relatado, a decisão sumária reclamada fundamentou-se na verificação de que o recurso não reveste interesse processual, uma vez que o sentido normativo efetivamente aplicado pelo acórdão recorrido não encontra a devida identidade com aquele que foi indicado pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso, que desconsidera a mobilização, como fonte normativa, do disposto no artigo 12.º do Código Civil.
Na reclamação, o recorrente limita-se a disputar que assim seja, persistindo na mobilização unicamente do disposto no nº 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro.
Contudo, não lhe assiste razão.
Desde logo, a determinação da ratio decidendi da decisão recorrida depende unicamente dos termos do ato judicativa, sendo imprestável o modo como foi suscitado o problema de inconstitucionalidade.
Ora, independentemente de o recorrente ter problematizado apenas o disposto no nº 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, o tribunal a quo deixou claro que a solução da questão não dispensava a conjugação desse preceito com outros lugares do sistema jurídico, mormente o disposto no artigo 12.º do Código Civil, onde se encontra o princípio geral da aplicação da lei no tempo. Assim decorre, com maior nitidez, do trecho em que, entre outros «pontos firmes» se diz que «Tendo em conta que o efeito extintivo do direito à liquidação do IVA é o decurso do “inteiro” prazo de caducidade e não a ocorrência do seu “dies a quo”, a nova redacção do n.º 4 da Lei Geral Tributária é aplicável ao prazo em curso, atento o disposto na parte final do n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil» (fls. 335 e alíneas a) e b) da fundamentação de direito, já referidas na decisão reclamada, ainda que com lapso de escrita manifesto na indicação da paginação).
O trecho citado na reclamação nada obsta ou colide com o que se vem dizer, dando apenas sequência argumentativa ao que se dissera anteriormente.
Face ao exposto, mostra-se inteiramente acertado o sumariamente decidido.
III. Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação.
Pelo decaimento na reclamação, condena-se o recorrente nas custas, que se fixam em 20 (vinte) UC, em atenção à dimensão do impulso.
Notifique.
Lisboa, 23 de setembro de 2021 - Fernando Vaz Ventura - Mariana Canotilho - Pedro Machete