ACÓRDÃO N.º 500/2021
Processo n.º 353/2021
3ª Secção
Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante, «LTC»), dos acórdãos proferidos por aquele Tribunal, em 12 de fevereiro e 6 de abril de 2021.
2. O ora recorrente impugnou junto do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão a decisão proferida pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (doravante «CMVM») que, no âmbito do processo de contraordenação n.º 33/2014, lhe aplicou: (i) pela prática de uma contraordenação prevista no artigo 389.º, n.º 1, alínea a), do Código dos Valores Mobiliários (doravante «CdVM»), com fundamento na violação, a título doloso, do dever de divulgação de informação com qualidade, previsto no artigo 7.º do CdVM, relativamente à informação divulgada no relatório e contas consolidadas relativo ao ano de 2012, a coima de €475.000,00 (quatrocentos e setenta e cinco mil euros); (ii) pela prática de uma contraordenação prevista no artigo 389.º, n.º 1, alínea a), do CdVM, com fundamento na violação, a título doloso, do dever de divulgação de informação com qualidade, previsto no artigo 7.º do CdVM, em relação à informação divulgada no relatório de governo societário de 2012, na coima de €275.000,00 (duzentos e setenta e cinco mil euros); e (iii) em cúmulo jurídico, a coima única de €600.000,00 (seiscentos mil euros).
2.1. Tendo o recurso sido julgado apenas parcialmente procedente, o recorrente foi condenado: (i) na coima de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), pela violação, a título doloso, do dever de divulgação de informação com qualidade, previsto e punido pelos artigos 7.º, 389.º, n.º 1, alínea a) e 388.º, n.º 1, alínea a), todos do CdVM, relativamente à informação divulgada no relatório e contas consolidadas relativo ao ano de 2012; (ii) na coima de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), pela violação, a título doloso, do dever de divulgação de informação com qualidade, previsto e punido pelos artigos 7.º, 389.º, n.º 1, alínea a) e 388.º, n.º 1, alínea a), todos do CdVM, em relação à informação divulgada no relatório de governo societário de 2012; e (iii) em cúmulo jurídico, na coima única de € 310.000,00 (trezentos e dez mil euros).
2.2. Inconformado, o recorrente interpôs recurso desta sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa.
2.3. O recurso foi admitido pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão que, por despacho datado de 10 de agosto de 2020, atribuiu aos autos natureza urgente.
2.4. Por acórdão prolatado em 12 de fevereiro de 2021, o Tribunal da Relação julgou o recurso totalmente improcedente.
2.5. Na sequência da prolação do referido aresto, o ora recorrente apresentou perante o Tribunal da Relação requerimento, peticionando, entre o mais, que fosse decretada a prescrição do procedimento contraordenacional com o consequente arquivamento dos autos.
2.6. Por acórdão prolatado em 6 de abril de 2021, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou tal pretensão improcedente.
3. O recorrente interpôs, então, recurso para este Tribunal de ambos os acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, através de requerimento com o seguinte teor:
«A., vem interpor RECURSO para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, no que se refere ao Acórdão prolatado a 12.02.2021, bem como o proferido a 06.04.2021, os quais aplicaram normas jurídicas que o recorrente tem por materialmente inconstitucionais, recurso que é oferecido conjuntamente vista a homogeneidade substancial da matéria em causa, na parte em que tais arestos decidiram sobre normas jurídicas relativas aos tema da suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional, cuja desconformidade com a Lei Fundamental foi suscitada tempestivamente, o que faz, estando em prazo, nos termos e com os fundamentos seguintes:
Contexto
1. Em motivação de recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, o ora recorrente configurou, como temas de inconstitucionalidade material duas questões: (i) uma atinente à configuração típica das normas que estatuem o ilícito contraordenacional e à medida da coima (ii) outra, o respeitante ao tema da prescrição do procedimento contraordenacional.
Foi esta a configuração que o recorrente colocou à decisão do Tribunal da Relação, como se extrai das conclusões da motivação do recurso:
Quanto ao primeiro tema [conclusão 5ª, desenvolvida nas conclusões 6ª e 7ª]:
5.ª Como foi prevenido na impugnação «o complexo normativo formado pelos artigos 7º, 388º, n.º 1, a) e 389º, n.º 1, c) do Código de Valores Mobiliários, ao prever que «a prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita ou a omissão dessa prestação gera uma contraordenação muito grave, punível com coima que pode atingir os cinco milhões de euros, é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 29º e 18º da Constituição, ao ofender o princípio da tipicidade e da proporcionalidade das sanções.»
Quanto ao segundo tema [conclusão 4ª]:
4.ª O conjunto normativo formado pela Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, com a redação conferida pelo artigo 2º e 6º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 06.04 e artigos 8º e 10º da Lei n.º 16/2020, de 29.05 quando determina a aplicação aos processos pendentes da suspensão do prazo substantivo de prescrição do procedimento contraordenacional neles prevista é materialmente inconstitucional, por violação do artigo 29º, n.º 1 e 4 da Constituição.
2. Por acórdão proferido a 12.02.2021 foram desatendidas as questões suscitadas e decretada a vigência, aplicação e conformidade constitucional das normas contraordenacionais postas em crise, tanto na vertente da configuração típica do ilícito de mera ordenação social, como ainda no que se refere à suspensão do decurso do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional.
3. Ante o mencionado acórdão, o ora recorrente suscitou a nulidade do mesmo, o que foi desatendido, mediante acórdão proferido a 26.03.2021.
4. Dado que o acórdão referido, firmado a 12.02.2021, ao decidir sobre um dos temas que lhe foi colocado, consignara como data de prescrição do procedimento contraordenacional aplicável a estes autos, o dia 17 de março do corrente, o ora requerente, por requerimento levado aos autos a 25.03.2021, reiterou um dos temas que havia concitado e sobre o qual ocorrera tomada de posição parcial por parte do Tribunal da Relação, o da prescrição do procedimento contraordenacional.
Tomada de posição parcial porquanto no mencionado aresto ficara consignada, sim, como se disse, como data de prescrição o dia 17 de março do corrente, nada tendo ficado determinado com força de caso julgado no que se refere à valia e conformidade constitucional das normas atinentes à suspensão da contagem do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional.
Antes o aresto em causa consignou o seguinte [na sua página 163] em relação à específica questão suscitada pelo ora recorrente [n.º 100, itálico nosso]:
Questão 8: O conjunto normativo formado pela Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, com a redação conferida pelos artigos 2.º e 6.º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 06.04, e artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29.05, quando determina a aplicação aos processos pendentes da suspensão do prazo substantivo de prescrição do procedimento contraordenacional neles prevista é materialmente inconstitucional, por violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa?
100. A resposta à questão anterior torna ociosa e inútil, neste tempo e sede, logo proscrita, a busca de resposta à presente, pelo que não se procederá à sua análise.
5. Foi então esta a configuração que o recorrente deu neste requerimento ao tema em apreço o da prescrição do procedimento contraordenacional:
5. O artigo 7º, números 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 e Março, o artigo 6º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril e os artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29.05, quando em concatenação normativa com os artigos 29º do Código Penal e artigo 5º, n.º 2, a) do CPP, estes por remissão do estatuído nos artigos 32º e 41º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, quando determinem a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a anteriores à sua vigência e com isso determinarem a aplicação em modo retroativo de lei mais gravosa para o agente do ilícito a quem são imputados atos antecedentes à sua entrada em vigor, são materialmente inconstitucionais [artigo 29º, números 1, 3 e 4], o que desde já se previne.
6. São igualmente inconstitucionais os referidos preceitos quando configurados em aplicação conjunta com o artigo 3º, n.º 3 do Código Penal, permitindo a retroatividade da lei pretérita que suspenda o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a factos anteriores à sua entrada em vigor.
7. Os referidos preceitos, ao determinarem a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a um processo que continua a correr seus termos e relativamente a cujos prazos os arguidos continuam adstritos, como se denota pela tramitação dos presentes autor, gera uma situação de desigualdade, em favor da pretensão punitiva do Estado e contra o direito dos arguidos, o que fere essas normas jurídicas de inconstitucionalidade material, agora nos termos do artigo 13º, n.º 1 da Lei Fundamental, o que igualmente fica prevenido.
6. Ante tal requerimento, foi, enfim, proferido a 06.04.2021, acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, assinado pelo qual foi desatendida a pretensão do ora recorrente e decretada a vigência, aplicação e conformidade constitucional das normas contraordenacionais postas em crise no que se refere à prescrição do procedimento contraordenacional.
7. Aqui chegados o recorrente tem, como temas que suscita ao Tribunal Constitucional, duas questões que, como se disse, são (i) uma atinente à configuração típica das normas que estatuem o ilícito contraordenacional e a medida da coima, a qual foi suscitada na motivação de recurso interposto da decisão do Tribunal a quo e decidida pelo acórdão do Tribunal da Relação de 12.02.2021 (ii) outra, o respeitante ao tema da prescrição do procedimento contraordenacional, a qual foi prevenida naquela motivação de recurso e também em requerimento autónomo, a 25.03.2021, tendo integrado citado dos acórdãos de 12.02.2021 e 06.04.2021.
8. Dada a homogeneidade da formulação dos temas prevenidos em sede de prescrição, o ora recorrente consigna-os no presente recurso como integrando o respetivo objeto, abstendo-se de suscitar a matéria em dois recurso autónomos, o que faz, porque privilegia critérios de profissionalismo, lealdade processual e tentativa de configuração técnica dos temas e não atitudes dilatórias como foi pressuposto pelo Tribunal da Relação em decisão pela qual o signatário se considera profissionalmente ofendido [como se dirá a propósito dos efeitos inerentes ao regime de subida].
9. Cumprindo agora o exigido pelos artigos 75-Aº da Lei do Tribunal Constitucional [Lei n.º 28/82, de 15 de novembro] indicam-se nesta petição os requisitos exigíveis para a regularidade formal da mesma:
9.1.Fundamento do recurso: alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
9.2.Normas jurídicas cuja inconstitucionalidade material está em causa: como se disse, são dois os complexos normativos cuja inconstitucionalidade material foi posta em causa pelo recorrente (i) um atinente à configuração típica das normas que estatuem o ilícito contraordenacional e a medida da coima (ii) outro, o respeitante ao tema da prescrição do procedimento contraordenacional.
9.2.1. Primeiro complexo normativo: o complexo normativo formado pelos artigos 7º, 388º, n.º 1, a) e 389º, n.º 1, c) do Código de Valores Mobiliários, ao prever que «a prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita ou a omissão dessa prestação gera uma contraordenação muito grave, punível com coima que pode atingir os cinco milhões de euros».
9.2.2. Normas da Constituição que determinam a inconstitucionalidade material em causa relativamente ao primeiro complexo normativo: artigos 29º e 18º da Constituição, ao ofender o princípio da tipicidade e da proporcionalidade das sanções.
Ocorre violação da regra da tipicidade [prevista no artigo 29º da Constituição e que tem de ser aplicada como princípio geral à vertente sancionatória do Direito contraordenacional] visto (i) o carácter indeterminado do conceito «informação verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita», cuja densificação o legislador não prevê no referido diploma, nem por remissão para qualquer outro normativo regulamentar de onde resulte um critério seguro que subtraia o destinatário da norma do arbítrio interpretativo e assim da consequente insegurança jurídica decorrente da elasticidade de tal preceito não conhecer limites definidos no que respeita ao seu âmbito material de aplicação e (ii) face à amplitude da moldura sancionatória, a qual varia entre 25 mil e cinco milhões de euros.
Verifica-se violação da regra da proporcionalidade das sanções decorrente da circunstância de, a partir de um âmbito de previsão construído de modo indeterminado, passível de leituras das mais diversas, um regime jurídico por isso ambíguo, referente a toda e qualquer prestação de informação à CMVM e mesmo à sua omissão, o legislador admitir a imposição de sanções pecuniárias de valor tão elevado quanto o máximo de cinco milhões de euros.
9.2.3. Segundo complexo normativo: este segundo complexo normativo foi prevenido em duas formulações essencialmente homogéneas, uma na motivação de recurso que deu azo ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.02.2021 e uma outra que está na origem no acórdão da mesma Relação de 06.04.2021, e assim:
-» primeira formulação: o complexo normativo formado pela Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, com a redação conferida pelo artigo 2º e 6º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 06.04 e artigos 8º e 10º da Lei n.º 16/2020, de 29.05 quando determina a aplicação aos processos pendentes da suspensão do prazo substantivo de prescrição do procedimento contraordenacional neles prevista é materialmente inconstitucional, por violação do.
-» segunda formulação:
O artigo 7º, números 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 e Março, o artigo 6º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril e os artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29.05, quando em concatenação normativa com os artigos 29º do Código Penal e artigo 5º, n.º 2, a) do CPP, estes por remissão do estatuído nos artigos 32º e 41º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, quando determinem a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a anteriores à sua vigência e com isso determinarem a aplicação em modo retroativo de lei mais gravosa para o agente do ilícito a quem são imputados atos antecedentes à sua entrada em vigor.
Os referidos preceitos quando configurados em aplicação conjunta com o artigo 3º, n.º 3 do Código Penal, permitindo a retroatividade da lei pretérita que suspenda o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a factos anteriores à sua entrada em vigor.
Os referidos preceitos, ao determinarem a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a um processo que continua a correr seus termos e relativamente a cujos prazos os arguidos continuam adstritos, como se denota pela tramitação dos presentes autos, gera uma situação de desigualdade, em favor da pretensão punitiva do Estado e contra o direito dos arguidos.
9.3.Normas da Constituição que determinam a inconstitucionalidade material em causa relativamente ao segundo complexo normativo: artigos 29º, números 1, 3 e 4 e 13º, n.º 1 da Constituição.
9.4.Peças processuais em que se verificou a aplicação das normas jurídicas em apreço: o acórdão referido firmado a 12.02.2021 e o acórdão proferido a 06.04.2021.
9.5.Peças processuais em que o recorrente suscitou a questão que ora coloca em exame: a motivação de recurso interposto que deu origem ao mencionado acórdão de 12.02.2021 e o requerimento de 25.03.2021.
10. Regime de subida e efeitos: imediato e nos autos, com efeito suspensivo [Lei do Tribunal Constitucional, artigo 78º].
Nestes termos, deve ser admitido e feito seguir os seus termos o recurso interposto, concedido provimento ao mesmo, e em consequência ordenada a reforma das decisões em causa na parte em que aplicaram normas cuja inconstitucionalidade se suscita e, em consequência de tudo, decretada:
(1) a inaplicabilidade por ofensa à Constituição dos artigos 7º, 388º, n.º 1, a) e 389º, n.º 1, c) do Código de Valores Mobiliários;
(2) a extinção do procedimento contraordenacional, por desconformidade com a Constituição do estatuído nos artigos 7º, números 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 e março, o artigo 6º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril e os artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29.05, quando em concatenação normativa com os artigos 29º do Código Penal e artigo 5º, n.º 2, a) do CPP, estes por remissão do estatuído nos artigos 32º e 41º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro».
4. Admitido o recurso e determinado neste Tribunal o seu prosseguimento, o recorrente apresentou as respetivas alegações, nos seguintes termos:
«A., recorrente nos autos à margem identificados, notificado que foi para o efeito, vem oferecer as seguintes ALEGAÇÕES, para fundamento do que definiu como objeto de conhecimento por esse Tribunal:
1. O recorrente submeteu a exame por este Tribunal Constitucional dois complexos normativos, evidenciando terem sido aplicados nestes autos e demonstrando ter prevenido a questão da sua desconformidade com a Lei Fundamental.
2. Importa, agora, em sede de alegações, desenvolver o argumento relativamente ao fundamento do que invocou, ficando o que não tiver sido alcançado, sujeito ao suprimento de Vossas Excelências.
Inconstitucionalidade do primeiro complexo normativo
3. O recorrente suscitou o exame de inconstitucionalidade de um primeiro complexo normativo, indicando as normas da Lei Fundamental que tinha por violadas e fê-lo pela seguinte forma:
9.2.1. Primeiro complexo normativo: o complexo normativo formado pelos artigos 7º, 388º, n.º 1, a) e 389º, n.º 1, c) do Código de Valores Mobiliários, ao prever que «a prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita ou a omissão dessa prestação gera uma contraordenação muito grave, punível com coima que pode atingir os cinco milhões de euros».
9.2.2. Normas da Constituição que determinam a inconstitucionalidade material em causa relativamente ao primeiro complexo normativo: artigos 29º e 18º da Constituição, ao ofender o princípio da tipicidade e da proporcionalidade das sanções.
4. Tal como se sustentou na própria petição de recurso:
4.1. -» Ocorre violação da regra da tipicidade [prevista no artigo 29º da Constituição e que tem de ser aplicada como princípio geral à vertente sancionatória do Direito contraordenacional]:
(1) Considerando o carácter indeterminado do conceito «informação verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita», cuja densificação o legislador não prevê no referido diploma, nem por remissão para qualquer outro normativo regulamentar de onde resulte um critério seguro que subtraia o destinatário da norma do arbítrio interpretativo e assim da consequente insegurança jurídica decorrente da elasticidade de tal preceito não conhecer limites definidos no que respeita ao seu âmbito material de aplicação;
Afloramentos múltiplos do princípio da tipicidade em matéria contraordenacional têm provindo desse Tribunal.
Assim, o Acórdão n.º 76/2016:
«[…]o princípio constitucional da tipicidade implica que a lei especifique suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime ou contraordenação (ou que constituem os seus pressupostos) e que efetue a necessária conexão entre o crime ou contraordenação e o tipo de pena ou coima que lhe corresponde.
Trata-se de princípio já consolidado, como se colhe deste Acórdão n.º 466/2012:
«Não se pode afirmar que as exigências de tipicidade valham no direito de mera ordenação social com o mesmo rigor que no direito criminal. Aliás nem sequer existe no artigo 29.º da Constituição, que se refere às garantias substantivas do direito criminal, um preceito semelhante àquele que existe no artigo 32.º, a respeito das garantias processuais, alargando-as, com as necessárias adaptações, a todos os outros processos sancionatórios (artigo 32.º, n.º 10). Contudo, sendo o ilícito de mera ordenação social sancionado com uma coima, a qual tem repercussões ablativas no património do infrator, também aqui se devem respeitar os princípios necessariamente vigentes num Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), como o da segurança jurídica e da proteção da confiança. Corno se disse no Acórdão n.º 41/2004 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt) “Está, porém, consolidado no pensamento constitucional que o direito sancionatório público, enquanto restrição relevante de direitos fundamentais, participa do essencial das garantias consagradas explicitamente para o direito penal, isto é, do núcleo de garantias relativas à segurança, certeza, confiança e previsibilidade dos cidadãos (v. Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 158/92, de 23 de abri4 263/94, de 23 de março, publicados no D.R., II Série, de 2 de setembro de 1992 e de 19 de julho de 1994, e n° 269/2003, de 27 de maio, inédito). E se tal não resulta diretamente dos preceitos da chamada Constituição Penal, resultará, certamente, do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2° da Constituição.” A determinabilidade do conteúdo de proibições cujo desrespeito é sancionado com uma coima é um pressuposto da existência de uma relação equilibrada entre atado e cidadão. Na verdade, essa exigência é um fator de garantia da proteção da confiança e da segurança jurídica, uma vez que o cidadão só pode conformar autonomamente as suas condutas se souber qual a margem de ação que lhe é permitida e quais as reações do Estado aos seus comportamentos.
E se a menor danosidade da sanção das contraordenações (as coimas), que nunca afetam o direito à liberdade, conjuntamente com a necessidade de prosseguir finalidades próprias da ordenação da vida social e económica, as quais são menos estáveis e dependem, muitas vezes, de políticas sectoriais concretas, permitem uma aplicação mais aberta e maleável do princípio da tipicidade, comparativamente ao universo penal, o caráter sancionatório e a especial natureza do ilícito contraordenacional não deixam de exigir um mínimo de determinabilidade do conteúdo dos seus ilícitos. Uma vez que nas contraordenações a proibição legal assume especial importância na valoração como ilícitas de condutas de ténue relevância axiológica, a sua formulação tem que necessariamente constituir uma comunicação segura ex-ante do conteúdo da proibição aos seus destinatários.»
(2) E afigura-se que é o que tem de ser convocado ante expressões de uma flagrante vacuidade, aptas a ser preenchidas por realidades de determinação arbitrária, porquanto nenhuma referência significativa se encontrará nessas formulações sem contornos semânticos de mínima precisão;
(3) Ponderando a amplitude da moldura sancionatória, a qual varia entre 25 mil e cinco milhões de euros.
Temos presente que o Acórdão n.º 360/2011 definiu que «o legislador ordinário, na área do direito de mera ordenação social, goza de ampla liberdade de fixação dos montantes das coimas aplicáveis, devendo o Tribunal Constitucional apenas emitir um juízo de censura, relativamente às soluções legislativas que cominem sanções que sejam manifesta e claramente desadequadas à gravidade dos comportamentos sancionados. Se o Tribunal fosse além disso, estaria a julgar a bondade da própria solução legislativa, invadindo indevidamente a esfera do legislador que, neste campo, há-de gozar de uma confortável liberdade de conformação, ainda que ressalvando que tal liberdade de definição de limites cessa em casos de manifesta e flagrante desproporcionalidade.» [itálico nosso].
(4) Enfim, ante a necessidade de se ponderar a correlação entre a tipicidade e a proporcionalidade, porquanto, mesmo afrouxando as exigências de rigor no que aos enunciados típicos respeita, ainda assim, não se pode atingir o limite em que, enunciados de vacuidade patente possam dar azo a sanções de alta severidade, gravemente lesivas do património das pessoas.
Esse Tribunal Constitucional tem dado acolhimento a essa necessidade de valoração prudente e ponderada, como o ilustram as seguintes decisões:
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 666/1994:
«A regra da tipicidade das infrações, corolário do princípio da legalidade, consagrado no nº 1 do artigo 29º da Constituição (nullum crimen, nulla poena, sine lege), só vale, qua tale, no domínio do direito penal, pois que, nos demais ramos do direito público sancionatório (maxime, no domínio do direito disciplinar), as exigências da tipicidade fazem-se sentir em menor grau: as infrações não têm, aí, que ser inteiramente tipificadas. Simplesmente, num Estado de Direito, nunca os cidadãos (cidadãos-funcionários incluídos) podem ficar à mercê de puros atos de poder. (…) No Estado de Direito, as normas punitivas de direito disciplinar que prevejam penas expulsivas, atenta a gravidade destas, têm de cumprir uma função de garantia. Têm, por isso, que ser normas delimitadoras. É que, a segurança dos cidadãos (e a correspondente confiança deles na ordem jurídica) é um valor essencial no Estado de Direito, que gira em torno da dignidade da pessoa humana - pessoa que é o princípio e o fim do Poder e das instituições (cf. artigos 2º e 266º, nºs 1 e 2, da Constituição).»
4.2. -» Verifica-se, por outro lado, violação da regra da proporcionalidade das sanções decorrente da circunstância de, a partir de um âmbito de previsão construído de modo indeterminado, passível de leituras das mais diversas, se consagrar um regime jurídico ambíguo, referente a toda e qualquer prestação de informação à CMVM e mesmo à sua omissão, ante o qual o legislador admite a imposição de sanções pecuniárias de valor tão elevado quanto o máximo de cinco milhões de euros.
O Tribunal Constitucional teve já o ensejo de sobre este princípio emitir uma orientação.
Exemplar da mesma o Acórdão n.º 47/2019:
«Enquadrando-se no âmbito da limitação de direitos fundamentais, maxime do direito de propriedade, as coimas apresentam-se como suscetíveis do teste jusfundamental material, consubstanciado sobretudo no princípio da proibição do excesso, com os seus postulados da adequação, necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.
«Assim, a determinação da coima aplicável, expressa sob a forma de um "mínimo" e de um máximo", coloca questões de proporcionalidade: ao associar uma coima a uma conduta, o legislador expressa o que entende ser, de algum modo, a gravidade absoluta dessa conduta, ao mesmo tempo que sopesa a gravidade relativa dessa conduta no confronto com outras punidas no mesmo (ou até diferente) âmbito contraordenacional. É certo que as ponderações do legislador na fixação de uma determinada escala de gravidade de contraordenações são marcadas por um elevado grau de subjetividade, pois tem que se reconhecer que nenhuma específica medida de sanção se perfila como a única possivelmente apropriada.
«Mas isso não significa, contudo, que a medida de desaprovação expressada por uma coima não deva ser ancorada em elementos racionais ou não tenha que ser testada materialmente pela teoria das restrições jusfundamentais. Como referimos, é jurisprudência do Tribunal Constitucional que são merecedoras de censura as opções legislativas que cominem sanções manifesta e claramente inadequadas à gravidade dos comportamentos puníveis. De modo que a estatuição legal da moldura de coima para um ou para um conjunto de tipos contraordenacionais deve considerar as necessidades preventivas e admonitórias do Estado e conter-se dentro dos limites que os direitos, liberdades e garantias lhes traçam proibindo sanções excessivas.»
Inconstitucionalidade do segundo complexo normativo
5. Quanto ao segundo complexo normativo, a diferença entre as duas formulações que o recorrente suscitou tem a ver com o facto de à data em que a segunda foi apresentada estava em causa também a Lei n.º 16/2020, de 29.05, que teve de ser convocada, ao manter o mesmo princípio que estava em causa ante a primeira formulação: o da aplicação retroativa de normas sobre prazos de prescrição em matéria contraordenacional.
6. Importa, pois, considerar o tema na sua amplitude.
7. Foram estas, recorde-se, as duas formulações que o recorrente colocou em juízo:
9.2.3. Segundo complexo normativo: este segundo complexo normativo foi prevenido em duas formulações essencialmente homogéneas, uma na motivação de recurso que deu azo ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.02.2021 e uma outra que está na origem no acórdão da mesma Relação de 06.04.2021, e assim:
-» Primeira formulação: o complexo normativo formado pela Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, com a redação conferida pelo artigo 2º e 6º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 06.04 e artigos 8º e 10º da Lei n.º 16/2020, de 29.05 quando determina a aplicação aos processos pendentes da suspensão do prazo substantivo de prescrição do procedimento contraordenacional neles prevista;
-» Segunda formulação: o artigo 7º, números 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 e Março, o artigo 6º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril e os artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29.05, quando em concatenação normativa com os artigos 29º do Código Penal e artigo 5º, n.º 2, a) do CPP, estes por remissão do estatuído nos artigos 32º e 41º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, quando determinem a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a factos anteriores à sua vigência e com isso determinarem a aplicação em modo retractivo de lei mais gravosa para o agente do ilícito a quem são imputados atos antecedentes à sua entrada em vigor.
8. A conjugação as formulações em causa (i) delineia o tema [conformidade com a Constituição das normas jurídicas que decretaram a suspensão dos prazos de prescrição do procedimento contraordenacional] e (ii) procede ao enunciado dos preceitos daquela Lei Fundamental que se podem convocar para um juízo de desconformidade: os artigos 29º, números 1, 3 e 4 e 13º, n.º 1 da Constituição, ao que haverá de concitar-se agora o estatuído no artigo 19º, n.º 6 da mesma Lei Fundamental.
9. O raciocínio do ora recorrente para sustentar tal conclusão estriba-se no seguinte:
9.1.-» Por normas jurídicas atinentes à prescrição do procedimento entendem-se as que determinam o respetivo prazo, bem como as causas da sua suspensão e interrupção, estando aqui em causa um acervo de normas jurídicas atinentes à suspensão do procedimento contraordenacional, decretadas por lei avulsa;
9.2.-» As normas em causa, relativas que são à prescrição do procedimento contraordenacional têm natureza jurídica idêntica às normas sobre prescrição do procedimento criminal;
9.2.1. A primeira razão tem a ver com a natureza sancionatória do que está em causa: através dele tornam-se ilícitas certas condutas e aplicam-se sanções à sua violação.
A ilicitude decorre de se lhes atribuir o desvalor de ser considerado ilícito de mera ordenação social o que esteja em contravenção com os ditames desse Direito.
As sanções, de cunho pecuniário, denominam-se coimas, mas atingem valores de uma grandeza que o Direito Criminal comum não chega a conhecer.
9.2.2. Não vale, por isso, desqualificar tais normas, como se, sendo regulatórias, não procedessem a essa regulação através da imposição de sanções; nem se pode dizer que, por se centrarem na aplicação de sanções de cunho pecuniário, têm perfil diverso das normas de Direito Criminal, pois este também tipifica condutas puníveis com [e por vezes apenas com -] pena de multa.
Isto sem deixar de relevar que no âmbito do ilícito de mera ordenação social existem outras sanções que não as pecuniárias, no caso, por exemplo, as sanções acessórias [veja-se o artigo 21º do RGCO].
9.2.3. Ganha, pois, sentido o estatuído pelo Acórdão n.º 260/93 do Tribunal Constitucional, ao ter determinado:
«Com efeito, retomando a fundamentação do Acórdão nº 227/92, o princípio da aplicação retroativa da lei penal de conteúdo mais favorável apenas se encontra formulado para o domínio penal. No entanto, há-de valer também no domínio do ilícito de mera ordenação social, pelo menos quanto a elementos tão caracterizadores do direito sancionatório como são os que dizem respeito à prescrição e consequente extinção do procedimento judicial, isto tendo em atenção a razão de ser daquele princípio.»
9.3.-» As normas sobre suspensão do procedimento contraordenacional têm natureza substantiva, porquanto, tal como as de Direito Criminal, definem obstáculos à punição;
Trata-se, pois, tal como as de Direito Criminal, no que às normas sobre prescrição do procedimento contraordenacional respeita, de obstáculos à punição, através da extinção daquele e da impossibilidade jurídica de o processo prosseguir e conduzir à aplicação de uma sanção final, a coima.
9.4.-» Mesmo que tais normas tivessem natureza mista sempre estariam, neste particular, sujeitas ao regime jurídico do Direito substantivo;
A construção vem patrocinada por Taipa de Carvalho [na sua monografia sobre Sucessão de Leis Penais, página 238], segundo o qual, havendo normas reguladoras do instituto da prescrição que considera como estritamente processuais, integra as referentes à suspensão da prescrição na tipologia das de cunho substantivo.
Eis o que sustenta, em conformidade, Germano Marques da Silva: [nas suas lições, Direito Penal Português, I volume]:
«[…] há algumas leis que disciplinando o processo têm natureza mista, processual e substantiva, e a essas leis deve aplicar-se o regime substantivo, enquanto concretamente for mais favorável ao arguido. É o que se passa com as leis sobre prescrição do procedimento criminal e sobre condições de procedibilidade.»
E é esta precisamente a perspetiva do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23 de Fevereiro de 2012 [proferido no processo n.º 201/10.3GBVRS.E1, publicado na dgsi], quando, depois de considerar a proibição de aplicação retroativa de normas jurídicas incriminatórias e punitivas, estatuiu:
«Semelhante é o resultado para quem defende o instituto da prescrição como tendo natureza adjetiva ou mista, pois as normas relativas à prescrição, seus prazos e causas de suspensão ou interrupção, inserem-se nas designadas normas processuais materiais, vinculadas também ao
princípio da legalidade, pois comportam elementos relativos à punibilidade do agente.
«Tais normas processuais materiais não são alheias à questão da retroatividade da lei penal, a qual veda a possibilidade de agravação do estatuto do arguido a partir de modificações posteriores à lei aplicável ao facto praticado, matéria a que também não é alheio o teor do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do CPP.»
9.5.-» Mesmo que tivessem natureza processual, não poderiam conhecer aplicação imediata, porquanto gerariam regime jurídico em concreto mais desfavorável para o arguido, o que é vedado por lei e implicaria igual lesão a princípios jurídicos constitucionais e tanto assim é que a lei impõe o recurso excecional em prol da aplicação ultractiva da lei pretérita derrogada nos casos em que o imediatismo da lei nova fosse, em concreto, mais desfavorável aos arguidos.
A exceção a favor da ultractividade decorre do estatuído no artigo 5º, n.º 2 do CPP, o qual vale como princípio geral, aplicável ao domínio do ilícito de mera ordenação social, em virtude da remissão direta efetuada no artigo 41º do RGCO.
9.6.-» A data referencial para se determinar qual a lei determinante do regime jurídico global de prescrição é a data da ocorrência da contraordenação que integra o objeto do procedimento;
Eis o que decorre do previsto no próprio artigo 3º, n.º 1 do RGCO.
No caso estando em causa alegadas infrações ao Código de Valores Mobiliários, existe regime especial, consagrado no artigo 418º do referido diploma, o qual derroga por isso, o regime geral previsto no artigo 27º do RGCO.
E, como já se suscitou nos autos, está em causa, vista a data das alegadas contraordenações, o regime do citado artigo 418º na versão anterior à Lei n.º 28/2017 de 30 de maio.
E está em causa pela mesma razão que dita, afinal, o presente recurso: ter a Lei n.º 28/017 decretado um prazo de prescrição mais gravoso [oito anos] em substituição do fixado anteriormente ao seu início de vigência [cinco anos], pelo que não poderia aplicar-se de modo retractivo a contraordenações consumadas em data anterior à data da sua entrada em vigor.
9.7.-» Em consequência da sua natureza jurídica, enquanto integrantes de Direito material punitivo, as normas jurídicas que regulem a prescrição do procedimento contraordenacional não podem aplicar-se de modo retractivo, princípio que se estende a todas as componentes desse instituto, desde o que determina o prazo da prescrição, ao que regula a suspensão e a interrupção do seu decurso;
9.8.-» Não obsta a tal a circunstância de ter ocorrido, em virtude das mesmas leis que se referem, suspensão dos prazos processuais, porquanto se trata de situações inconfundíveis (i) as normas sobre prazos de processo têm natureza adjetiva, instrumental, são normas processuais e estão sujeitas por isso à aplicação imediata, com impossibilidade de retroatividade e única exceção é a favor da ultractividade da lei pretérita mais favorável [ou, e não vem ao caso, quando a nova lei quebrar a coerência da tramitação processual, seja a sua harmonia];
9.9.-» Igualmente não obsta a tal circunstância tratar-se de legislação decretada em contexto de pandemia e poder considerar-se assim legislação temporária ou mesmo legislação de emergência, porquanto (i) a lei temporária [no sentido previsto no artigo 2º, n.º 3 do Código Penal] não pode ser aplicada de modo retractivo [salvo havendo sucessão de leis temporárias, a posterior mais favorável do que a transata] e (ii) a própria Constituição da República, no seu artigo 19º, n.º 6 considerou que o estado de emergência não legitima a derrogação da regra da não retroatividade da lei penal, como decorre dos Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, que declarou o estado de emergência [artigo 5.º, n.º1], n.º 17-A/2020, de 2 de Abril [artigo 7.º, n.º1] e n.º 20-A/2020, de 17 de Abril (artigo 6.º, n.º1), que renovaram o estado de emergência.
No sentido da primeira asserção, o Acórdão da Relação de Lisboa de 24 de Julho de 2020 [proferido no processo n.º 128/16.5SXLSB.L1-5 e publicado na dgsi].
No sentido da segunda proposição e de modo expresso o Acórdão da Relação de Lisboa de 9 de março de 2021 [proferido no processo n.º
207/09.5PAAMD.A.L1-5 e publicado na dgsi] e o Acórdão da mesma Relação de 21 de Julho de 2020 [proferido no processo n.º 76/15.6SRLSB.L1-5, publicado na dgsi].
9.10-» Não se diga que estamos ante razões de «superior interesse público», porquanto (i) as mesmas não poderão derrogar salvaguardas constitucionais expressas (ii) e têm valor relativo, como se demonstra a circunstância de os próprios prazos processuais terem continuado a decorrer e a impor-se, com o processo a ser tramitado, e desde a fase judicial, em ritmo de aceleração inusitada;
Estamos, pois, ante uma grave distorção: a emergente de legislação que não procedeu na totalidade à suspensão dos prazos processuais, prazos aplicados em concreto num processo que entrou em ritmo de aceleração, e poderem virar-se agora contra o arguido “superiores razões” que, não tendo impedido o decurso dos prazos a que os seus mandatários estiveram adstritos, justificariam, sim, que a prescrição do procedimento mantivesse a sua contagem.
Os imprevistos e s limitações decorrentes da situação pandémica e o reflexo que geraram no funcionamento da justiça não impediram, aliás, a tramitação do presente processo.
10.Trata-se, em suma, de uma questão de princípio, como bem o expressou Germano Marques da Silva [Ética e estética do processo penal em tempo de crise pandémica, Revista do Ministério Público, número especial COVID-19: 2020, páginas 109 a 127]: não permitir o intolerável.
CONCLUSÕES
1.ª O complexo normativo formado pelos artigos 7º, 388º, n.º 1, a) e 389º, n.º 1, c) do Código de Valores Mobiliários, ao prever que «a prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita ou a omissão dessa prestação gera uma contraordenação muito grave, punível com coima que pode atingir os cinco milhões de euros» é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 29º e 18º da Constituição, ao ofender o princípio da tipicidade e da proporcionalidade das sanções;
2.ª O complexo normativo formado pelo artigo 7º, números 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 e Março, o artigo 6º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril e os artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29.05, quando em concatenação normativa com os artigos 29º do Código Penal e artigo 5º, n.º 2, a) do CPP, estes por remissão do estatuído nos artigos 32º e 41º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, quando determinem a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a factos anteriores à sua vigência e com isso determinarem a aplicação em modo retractivo de lei mais gravosa para o agente do ilícito a quem são imputados atos antecedentes à sua entrada em vigor, é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 29º, números 1, 3 e 4 e 13º, n.º 1, bem como o artigo 19º, n.º 6, todos da Constituição.
Nestes termos, deve ser decretada a inconstitucionalidade material das normas em apreço e, subsequentemente, reformada a decisão que as aplicou, e assim, expurgada das mesmas, decretado arquivamento dos autos (i) pela impossibilidade jurídica de aplicação do primeiro acervo normativo (ii) pela prescrição do procedimento contraordenacional, como é de JUSTIÇA!
5. O Ministério Público apresentou as suas contra-alegações, concluindo da seguinte forma:
«VI – Conclusões
1. No presente recurso, interposto por A., em data não apurada mas não posterior a 9 de Abril de 2021, a fls. 5 a 8 v.º dos autos supra-epigrafados, pretende o recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade “(1) [D]o complexo normativo formado pelos artigos 7º, 388º, n.º 1, a) e 389º, n.º 1, c) do Código de Valores Mobiliários, ao prever que «a prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita ou a omissão dessa prestação gera uma contraordenação muito grave, punível com coima que pode atingir os cinco milhões de euros»; e (2) [D]o complexo normativo formado pelo artigo 7º, números 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, o artigo 6º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril e os artigos 8.º e 10º da Lei n.º 16/2020, de 29.05, quando em concatenação normativa com os artigos 29º do Código Penal e artigo 5º, n.º 2, a) do CPP, estes por remissão do estatuído nos artigos 32º e 41º do Decreto- Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, quando determinem a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a factos anteriores à sua vigência e com isso determinarem a aplicação em modo retroativo de lei mais gravosa para o agente do ilícito a quem são imputados atos antecedentes à sua entrada em vigor”.
2. Tal recurso foi interposto do douto acórdão datado de 12 de fevereiro de 2021, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, a fls. 93 a 258.
3. Este recurso foi interposto, conforme resulta, com evidência, dos autos, “(…) ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da LTC (…)”.
4. Os parâmetros de constitucionalidade cuja violação é imputada à interpretação normativa identificada são os princípios da tipicidade e da proporcionalidade quanto à primeira e a “situação de desigualdade em favor da pretensão punitiva do Estado e contra o direito dos arguidos”, no que tange à segunda.
5. A primeira questão de constitucionalidade suscitada pelo, ora, recorrente, não é nova, já tendo merecido do Tribunal Constitucional numerosas pronúncias, que o conduziram, inclusivamente, a considerá-la – conforme resulta, a título de exemplo, dos seus doutos Acórdãos n.º 761/20 e 270/20 - questão revestida de “simplicidade”.
6.Com efeito, a questão da alegada violação do princípio da tipicidade, conjugado, ou não, com o princípio da proporcionalidade, emergente, em sede contraordenacional, do invocado “carácter indeterminado” do conceito modelador da norma tipificadora do ilícito ou, em casos paralelos, das normas sancionatórias em branco, permitiu ao Tribunal Constitucional produzir jurisprudência firme, reiterada e uniforme no sentido da não inconstitucionalidade de tais normas sancionatórias, desde que as mesmas não afetem as dimensões de segurança e previsibilidade que devem ser garantidas aos cidadãos destinatários das mesmas.
7. Sintetizando a conteúdo da firme jurisprudência constitucional quanto a esta matéria, podemos afirmar, em consonância com o constante do Acórdão n.º 85/2012 que, para além de a exigência de determinabilidade do tipo predominante no direito criminal não operar no domínio contraordenacional em termos idênticos ao que ocorre no direito criminal, a conformação do tipo contraordenacional resultante da conjugação das diversas disposições legais invocadas, evidencia uma técnica de tipificação dos ilícitos contraordenacionais sustentada em remissões materiais, por via das quais o tipo sancionatório remete para deveres tipificados no próprio Código, sem lesão de quaisquer princípios ou regras constitucionais.
8. Devemos, consequentemente, concluir, nesta parte, que a interpretação normativa do disposto, conjugadamente, nos artigos 7.º, 388.º, n.º 1, alínea a) e 389.º, n.º 1, alínea c) do Código de Valores Mobiliários – os identificados pelo recorrente - ao prever que «a prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita ou a omissão dessa prestação gera uma contraordenação muito grave, punível com coima que pode atingir os cinco milhões de euros», não se revela violadora do princípio da tipicidade, enquanto sub-princípio ínsito no princípio da legalidade.
9.Também no que concerne à invocada violação, por parte do prescrito nesta interpretação normativa, do conteúdo do princípio constitucional da proporcionalidade, recorreremos ao conteúdo do já citado Acórdão n.º 85/2012, o qual também se pronunciou, em termos transponíveis para o presente dissídio, sobre a compatibilidade constitucional daquela interpretação normativa com o conteúdo constitucional.
10. Antes, porém, não deixaremos de notar que não se nos afigura juridicamente pertinente alicerçar a invocação da suposta violação do princípio da proporcionalidade na conjugação entre o valor alegadamente elevado das contraordenações aplicáveis aos infratores e a anteriormente arguida falta de determinabilidade do tipo contraordenacional.
11. Com efeito, ainda que se admita discutir a desproporcionalidade da moldura contraordenacional das sanções aplicáveis ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 388.º, do Código dos Valores Mobiliários, afigura-se-nos que tal discussão é estranha à questão da invocada deficiência da tipificação das infrações elencadas, dela não resultando qualquer eventual ofensa ao princípio da proporcionalidade, a qual apenas poderá dimanar da desconformidade entre o valor dos atos puníveis e o montante das coimas aplicáveis.
12. Com a jurisprudência do Tribunal Constitucional quanto a esta dimensão de constitucionalidade da interpretação normativa impugnada afirmaremos que o princípio da proporcionalidade “apenas deve considerar-se violado nos casos em que o legislador incorreu em inquestionável e evidente excesso, prevendo sanções desnecessárias, inadequadas ou manifesta e claramente excessivas; em suma, só poderá falar-se de inconstitucionalidade nas situações em que o legislador dispunha comprovadamente de meios menos gravosos para proteger os bens jurídicos em causa”.
13. Em face do acabado de expor, somos a concluir, nesta parte, que não se apura, em consonância com a jurisprudência deste Tribunal Constitucional, que a interpretação normativa retirada do disposto nos artigos 7.º, 388.º, n.º 1, alínea a), e 389º, n.º 1, alínea c) do Código de Valores Mobiliários, ao prever que a prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita ou a omissão dessa prestação gera uma contraordenação muito grave, punível com coima que pode atingir os cinco milhões de euros, se revel violadora de quaisquer princípios ou regras constitucionais, designadamente dos invocados princípios da tipicidade e da proporcionalidade.
14. No que concerne ao segundo complexo normativo identificado pelo recorrente, o atinente à invocada inconstitucionalidade do disposto no “artigo 7.º, números 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, no artigo 6º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril e nos artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, quando em concatenação normativa com os artigos 29.º do Código Penal e artigo 5.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, estes por remissão do estatuído nos artigos 32.º e 41.º do Decreto- Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, quando determinem a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a factos anteriores à sua vigência e com isso determinarem a aplicação em modo retroativo de lei mais gravosa para o agente do ilícito a quem são imputados atos antecedentes à sua entrada em vigor”, não poderemos deixar, ainda antes de o examinar no contexto da inevitável legislação produzida no âmbito do estado constitucional de excepção, de o balizar à luz da doutrina e da jurisprudência do Tribunal Constitucional incidentes sobre o instituto da prescrição dos procedimentos criminal e contraordenacional.
15. Com efeito, um dos pressupostos em que assenta a argumentação expendida pelo recorrente e que se desvenda na formulação da interpretação normativa contestada, materializa-se na assunção da ocorrência da violação de um direito fundamental do arguido corporizada na suposta “aplicação em modo retractivo de lei mais gravosa para o agente do ilícito a quem são imputados atos antecedentes à sua entrada em vigor”.
16. Ora, independentemente da discussão, que assumiremos, sobre a natureza retroativa ou retrospetiva da interpretação normativa agora impugnada, contestamos a ideia subjacente ao argumentário expendido pelo recorrente, no sentido de que à data da prática da infração nasceu na sua esfera jurídica um direito à prescrição do procedimento contraordenacional cujo prazo viu iniciada, nesse momento, a sua contagem, posteriormente suspensa pela legislação reguladora do estado de exceção constitucional – o estado de emergência - reiterando a doutrina consagrada pelo Tribunal Constitucional no sentido do não reconhecimento de um qualquer direito à prescrição do procedimento criminal e, por maioria de razão, do procedimento contraordenacional.
17. Em termos expressos poderemos afirmar, inequivocamente - uma vez que inexistem quaisquer preceitos com essa formulação -, que a Constituição da República Portuguesa não consagra, em qualquer das suas normas, um suposto direito a beneficiar da prescrição do procedimento criminal.
18. Aceitando este entendimento expresso pelo Tribunal, deveremos inferir que a Constituição da República Portuguesa não consagra, implícita ou explicitamente, uma regra de imprescritibilidade, ou de proibição da imprescritibilidade do procedimento criminal.
19. Do exposto resulta, não só, conforme já adiantáramos, a confirmação da inexistência de um direito constitucional à prescrição do procedimento criminal mas, igualmente, a afirmação da inexistência de quaisquer constrangimentos constitucionais à liberdade de conformação do legislador ordinário no que concerne à regulamentação da prescrição, desde que tal regulamentação seja estabelecida de forma precisa e concreta e impeça situações em que se opere, na prática, a ineficácia do instituto.
20. Ora, atendendo à configuração do caso que nos ocupa, afigura-se-nos certo que a regulamentação que enquadrou e definiu a suspensão, justificada e temporária, dos prazos de prescrição relativos a todos os tipos de processos e procedimentos decretada pelo n.º 3, do artigo 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, encontrava-se predefinida pelo disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 27.º-A, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, conjugado com o prescrito no artigo 19.º, n.ºs 1, 2 3 e 6, da Constituição da República Portuguesa e, bem assim, com o teor do plasmado nos artigos 1.º, 2.º, 4.º, alínea a), e 5.º, n.º 1, do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, que declararam, legitima e temporariamente, o estado de emergência com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, que suspenderam o direito de deslocação e que, com a mesma justificação e respaldo constitucional, preencheram o conteúdo da alínea a), do n.º 1, do artigo 27.º-A, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, suspendendo, por via do decretado no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, a prescrição do procedimento contraordenacional durante o período, definido pela Assembleia da República, em que a falta de autorização legal impediu o decurso do prazo.
21. Com efeito, por força do disposto, conjugadamente, nos mencionados artigos 19.º, Constituição da República Portuguesa e 1.º, 2.º, e 4.º, do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, foram suspensos, embora com limitações, os direitos fundamentais de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional, o direito de propriedade e de iniciativa económica provada, os direitos dos trabalhadores, o direito de circulação internacional, o direito de reunião e de manifestação, a liberdade de culto na sua dimensão coletiva e o direito de resistência.
22. Resulta evidente que a suspensão destes direitos fundamentais, constitucional e legalmente suportada, aliada às restantes consequências sociais, económicas, sanitárias e relacionais da crise pandémica vivida, bem como da concomitante suspensão da atividade judicial não urgente, criaram óbvios constrangimentos ao exercício de direitos judiciários por parte dos cidadãos e à prática eficaz de atos processuais, com potencial repercussão substantiva na tempestividade do exercício de direitos fundamentais, na eficácia da sua prossecução processual e, bem assim, na prossecução do interesse punitivo do Estado e na defesa dos valores cuja proteção lhe está constitucionalmente cometida.
23. Consequentemente, dando resposta à situação de emergência sanitária sanitária que ganhou relevância determinante em 9 de Março de 2020 e aos entraves e compressões ao livre exercício de direitos processuais por parte dos cidadãos, resultantes da suspensão do direito fundamental de deslocação e das restrições ao funcionamento dos tribunais, suscetíveis de restringirem de facto o direito fundamental de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, decidiu a Assembleia da República, respaldada pela declaração do estado de emergência decretada pelo Presidente da República, preencher, dar corpo à previsão da alínea a), do n.º 1, do artigo 27.º-A, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, por via do decretado no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março.
24. Esta justificação, constitucionalmente ancorada, da suspensão excecional e provisória dos prazos de prescrição do procedimento contraordenacional revela a compatibilidade da solução alcançada com os princípios do Estado de direito democrático e da legalidade, bem como com as garantias de defesa dos arguidos em processo contraordenacional, não revelando a nunca comprovada “situação de desigualdade em favor da pretensão punitiva do Estado e contra o direito dos arguidos” ou, numa outra formulação, a “violação dos artigos 29º, números 1, 3 e 4 e 13º, n.º 1, bem como o artigo 19º, n.º 6, todos da Constituição”.
25. restantes pressupostos sobre os quais o recorrente sustenta a sua posição, que, distintamente do, por ele, defendido, que a contestada suspensão do prazo prescricional não tem natureza retroativa, uma vez que não se aplica a um facto duradouro ocorrido no passado mas sim natureza retrospetiva, na medida em que incidiu sobre um facto duradouro que se iniciou no passado mas que à data da publicação da norma suspensiva ainda não tinha decorrido integralmente.
26. Ou seja, ainda que admitamos que esta suspensão da prescrição do prazo do procedimento contraordenacional não tem natureza processual (posição que não é, ainda assim, unânime, conforme resulta, a título de exemplo, do teor do parecer subscrito pelo Sr. Professor Frederico de Lacerda da Costa Pinto, junto ao Processo n.º 367/21, da 1.ª Secção deste Tribunal) e que admitamos que lhe é aplicável, extraída do disposto no artigo 29.º, da Constituição, uma regra de proibição da aplicação retroativa de normas atinentes a tal suspensão, não podemos deixar de concluir, ainda assim, que tal regra não teria aplicação no caso vertente, o qual consubstancia, distintamente, uma situação de retro conexão ou de aplicação retrospetiva da interpretação normativa suspensiva do decurso do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional.
27. Consequentemente, não se revela a interpretação normativa impugnada suscetível de violar o princípio da proibição da retroatividade da aplicação da lei penal menos favorável ao arguido, não só porque não estamos perante a aplicação de uma lei penal, mas sim de uma norma contraordenacional, mas também porque tal norma não é retroativa e não regula as matérias atinentes ao facto típico, à sua imputação ou à pena legal cominada.
28. Por tal razão, não podemos deixar de recorrer, no que concerne à comprovação da compatibilidade constitucional das normas substantivas do direito de mera ordenação social, aos princípios do Estado de direito, da igualdade, da proporcionalidade e do direito de acesso ao direito e ao processo equitativo, por eles aferindo, e não exclusiva ou necessariamente valendo-nos do princípio da legalidade criminal, a conformidade de normas como a aqui impugnada com os relevantes comandos constitucionais.
29. Ora, também no que concerne ao cotejo da interpretação normativa impugnada com os princípios constitucionais acabados de enumerar não se nos afigura que possamos concluir que o complexo normativo formado pelos artigos 7.º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março; 6.º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril; 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, quando em concatenação normativa com os artigos 29.º do Código Penal; 5.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, estes por remissão do estatuído nos artigos 32.º e 41.º do Decreto- Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, se revele violador de qualquer deles, tanto mais que, conforme já apurámos acima, a identificada conjugação normativa entre o disposto nos artigos 19.º, n.ºs 1, 2, 3 e 6, da Constituição da República Portuguesa; 1.º, 2.º, 4.º, alínea a), e 5.º, n.º 1, do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março; 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março; e 27.º-A, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, assegurou aos cidadãos que, perante uma emergência sanitária como aquela que ainda vivemos, o Estado pudesse, através de uma medida excecional, temporária e proporcional, proteger os direitos dos cidadãos e o legítimo interesse destes e do Estado na proteção e no bom funcionamento do sistema financeiro, garantindo aos destinatários do complexo normativo contestado a sua legalidade, previsibilidade, proporcionalidade e a necessária segurança jurídica.
30. Por tudo o que ficou explanado, deverá o Tribunal Constitucional decidir, a final, não julgar inconstitucional, quer a interpretação normativa retirada do disposto nos artigos 7.º, 388.º, n.º 1, alínea a), e 389º, n.º 1, alínea c) do Código de Valores Mobiliários, ao prever que a prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita ou a omissão dessa prestação gera uma contraordenação muito grave, punível com coima que pode atingir os cinco milhões de euros; quer a interpretação normativa do disposto nos artigos 7.º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março; 6.º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril; 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, quando em concatenação normativa com os artigos 29.º do Código Penal; 5.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, estes por remissão do estatuído nos artigos 32.º e 41.º do Decreto- Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, quando determinem a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a factos anteriores à sua vigência e com isso determinarem a aplicação em modo retroativo de lei mais gravosa para o agente do ilícito a quem são imputados atos antecedentes à sua entrada em vigor e, consequentemente, negar provimento ao presente recurso.»
6. A CMVM apresentou as suas contra-alegações, concluindo da seguinte forma:
Parte I – Enquadramento e indicação de sequência
1.ª
O Recorrente A., arguido no processo de contraordenação n.º 33/2014 que tramitou na CMVM, (i) recorreu da Sentença proferida pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, tendo, nesse âmbito, suscitado a (in)constitucionalidade do “complexo normativo formado pelos artigos 7.º, 388.º, n.º 1, a), e 389.º, n.º 1, c) do [CdVM]” por, alegadamente, “ofender o princípio da tipicidade e da proporcionalidade das sanções” e (ii) requereu perante o Tribunal da Relação de Lisboa a extinção do procedimento contraordenacional por decurso do prazo de prescrição, arguindo, em síntese, que, “não poderão relevar-se, para o efeito de suspenderem o decurso do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional, [o disposto no] artigo 7.º, números 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, o artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril e os artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29.05, quando determinem a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional por factos anteriores à sua entrada em vigor”.
2.ª
O Tribunal da Relação de Lisboa julgou integralmente improcedente o recurso apresentado e considerou improcedente e “manifestamente infundado” o incidente suscitado pelo Arguido A., tendo o ora Recorrente interposto recurso dos respetivos Acórdãos para o Tribunal Constitucional.
3.ª
Nas alegações apresentadas, o Recorrente o Recorrente submete à apreciação do Tribunal Constitucional dois complexos normativos:
(i) O primeiro é o “complexo normativo formado pelos artigos 7.º, 388.º, n.º 1, a), e 389.º, n.º 1, c) do Código de Valores Mobiliários, ao prever que «a prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita ou a omissão dessa prestação gera uma contraordenação muito grave, punível com coima que pode atingir os cinco milhões de euros» é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 29.º e 18.º da Constituição, ao ofender o princípio da tipicidade e da proporcionalidade das sanções”;
(ii) O segundo é o “complexo normativo formado pelo artigo 7.º, números 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, o artigo 6.º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril e os artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29.05, quando em concatenação normativa com os artigos 29.º do Código Penal [sic] e artigo 5.º, n.º 2, a) do CPP, estes por remissão do estatuído nos artigos 32.º e 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, quando determinem a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a factos anteriores à sua vigência e com isso determinarem a aplicação em modo retractivo de lei mais gravosa para o agente do ilícito a quem são imputados atos antecedentes à sua entrada em vigor, é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 29.º, números 1, 3 e 4 e 13.º, n.º 1, bem como o artigo 19.º, n.º 6, todos da Constituição”.
4.ª
A tese do Arguido, ora Recorrente, não merece acolhimento, como se passa a demonstrar.
Parte II – Da alegada inconstitucionalidade da norma emergente dos artigos 7.º, 388.º, n.º 1, alínea a) e 389, n.º 1, alínea c), do CdVM
Capítulo I – Da interpretação efetuada pelo Tribunal a quo
5.ª
A tese do Recorrente A. – segundo a qual o tipo contraordenacional e respetiva sanção, previstos nos artigos 7.º, 388.º, n.º 1, alínea a), e artigo 389.º, n.º 1, alínea c), do CdVM, violam os princípios da tipicidade e da proporcionalidade – não foi acolhida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o qual decidiu, por Acórdão de 12.02.2021, que tanto o tipo contraordenacional respeitava as exigências de determinabilidade impostas pelo princípio da legalidade, como a moldura abstrata da coima observava o princípio da proporcionalidade.
Capítulo II – Da conformidade constitucional do tipo contraordenacional e da sanção previstos nos artigos 7.º, 388.º, n.º 1, alínea a), e 389, n.º 1, alínea c), do CdVM
Secção I – Da conformidade constitucional do tipo-de-ilícito à luz do princípio da legalidade
6.ª
O princípio da legalidade encontra-se consignado nos n.os 1, 3 e 4 do artigo 29.º da CRP, suporta-se em fundamentos externos (extra-penais) e internos (penais) e tem incidência no plano fonte normativa eleita para fundamentar ou agravar a responsabilidade do agente, bem como no plano da determinabilidade do tipo legal e na atividade do interprete e aplicador do Direito (aqui desdobrando-se no princípio da tipicidade).
7.ª
O princípio da legalidade é integralmente respeitado no ilícito tipificado pelas disposições conjugadas do artigo 7.º e do artigo 389.º, n.º 1, alínea c), do CdVM, tanto (i) na determinabilidade da conduta proibida, como (ii) na determinabilidade da sanção cominada.
8.ª
Por um lado, os comportamentos proibidos e sancionados por aquela norma são objetivamente determináveis, sendo o tipo contraordenacional idóneo a orientar os destinatários no sentido de apreender as condutas efetivamente proibidas, isto é, permite aos seus destinatários compreender quais os interesses jurídicos a proteger e o tipo de factos lesivos dos mesmos que a norma pretende evitar.
9.ª
Repare-se que os requisitos de qualidade previstos no artigo 7.º do CdVM fazem apelo a critérios facilmente apreensíveis pelo homem médio, com os quais este lida no dia-a-dia, apelando a realidades compreensíveis como seja o caráter não completo e não verdadeiro da informação divulgada – sendo que, no caso em apreço, está em causa uma norma que disciplina a atuação num específico setor regulado (o setor do mercado de valores mobiliário e outros instrumentos financeiros), cujos destinatários são uma sociedade emitente de valores mobiliários e respetivos administradores, a quem se exige uma compreensão e uma diligência acima da média, em função do tipo de atividade que desempenham, pelo que a sua capacidade de concretização do alcance da norma será correspondentemente superior àquela que se poderia esperar de um não profissional.
10.ª
A determinabilidade da conduta proibida resulta ainda da circunstância de o tipo contraordenacional circunscrevê-la em função do objeto da informação – não se trata de toda e qualquer informação, mas apenas a que diga respeito “a instrumentos financeiros, a formas organizadas de negociação, às atividades de intermediação financeira, à liquidação e à compensação de operações, a ofertas públicas de valores mobiliários e a emitentes” (cf. artigo 7.º, n.º 1, do CdVM).
11.ª
Por outro lado, a determinabilidade da sanção cominada não pode deixar de ser apreciada à luz do regime legal de determinação concreta da sanção aplicável: ora, o artigo 388.º, n.º 1, alínea a), do CdVM (preceito que estatui a moldura abstrata das contraordenações muito graves tipificadas no CdVM) estabelece com clareza os montantes mínimos e máximo da coima aplicável, sendo que o artigo 405.º do CdVM estatui expressamente os critérios de determinação da coima concreta – ou seja, o destinatário da norma conhece cabalmente a sanção em que incorre e os critérios que hão de presidir à sua determinação.
12.ª
Num setor regulado em que a conduta proibida (in casu: divulgação de informação sem qualidade) pode assumir múltiplas e diferentes concretizações e ser praticada por diferentes agentes, a amplitude da moldura sancionatória permite ao intérprete-aplicador do Direito, no caso concreto, aplicar uma sanção, respeitando, inter alia, a ilicitude concreta do facto, a culpa do agente, as exigências de prevenção ou a natureza e as características específicas do agente.
13.ª
A amplitude da moldura sancionatória assume-se como uma conciliação necessária entre o princípio da legalidade das sanções e o princípio da culpa, permitindo que, perante uma moldura sancionatória abstrata suficientemente ampla, se possam distinguir diferentes condutas ilícitas em razão da concreta culpa do agente: recorde-se que no direito sancionatório português o princípio da culpa se assume como limite inultrapassável da sanção.
14.ª
A conformidade das normas sindicandas com o princípio da tipicidade (tanto quanto ao tipo-de-ilícito, como quanto à sanção cominada) foi já reconhecida de forma lapidar pelo Tribunal Constitucional, maxime no Acórdão n.º 85/2012.
Secção II – Da conformidade constitucional da sanção estatuída no artigo 388.º, n.º 1, alínea a), do CdVM com o princípio da proporcionalidade
15.ª
A aferição da conformidade constitucional da norma sindicanda (o artigo 388.º, n.º 1, alínea a), do CdVM) implica considerar as finalidades inerentes à sanção contraordenacional (in casu, à coima), a natureza da conduta sancionada e o perigo ou dano que a mesma representa para os interesses protegidos, determinando se a coima prevista é necessária, adequada e proporcional tendo em vista a prossecução de tais finalidades, à luz da conduta sancionada
16.ª
Os montantes abstratos das coimas devem ser idóneos a cumprir as respetivas finalidades essencialmente preventivas, sob pena de comprometer o próprio cumprimento da lei.
17.ª
A contraordenação tipificada através das disposições conjugadas dos artigos 7.º, 388.º, n.º 1, alínea a), e 389.º, n.º 1, alínea c), do CdVM visa proteger interesses com relevância axiológica constitucional, como é o caso da proteção dos investidores e do regular funcionamento do mercado, sendo que tal contraordenação sanciona a prática de infrações muito graves, relacionadas com a qualidade da informação (pilar essencial do regular funcionamento do mercado).
18.ª
O quadro sancionatório consagrado no Código dos Valores Mobiliários – assente numa graduação tripartida das sanções – apresenta semelhanças com o quadro sancionatório previsto para as contraordenações ambientais, relativamente ao qual o Tribunal Constitucional reconheceu já apresentar proporcionalidade, atendendo designadamente à existência de “uma escala gradativa assente na classificação tripartida da gravidade das infrações”.
19.ª
O legislador jusmobiliário consagrou no artigo 405.º do CdVM um regime específico de determinação da coima concreta em função da ilicitude concreta do facto, da culpa do agente, dos benefícios obtidos, das exigências de prevenção, da natureza singular ou coletiva do agente, da situação económica do agente e da conduta anterior e posterior do agente.
20.ª
Assim, a moldura abstrata da coima consignada no artigo 388.º, n.º 1, alínea a), do CdVM (conjugada com a norma de sanção prevista no artigo 389.º, n.º 1, alínea c) do CdVM) revela-se necessária, adequada e proporcional.
21.ª
A conformidade das normas sindicandas com o princípio da proporcionalidade foi igualmente reconhecida pelo Tribunal Constitucional, maxime no Acórdão n.º 85/2012.
Parte III – Da alegada inconstitucionalidade da norma emergente dos artigos 7.º, n.os 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, do artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril e dos artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio
Capítulo I – Do prazo de prescrição das infrações imputadas ao Arguido A. e da interpretação efetuada pelo Tribunal a quo
22.ª
O prazo de prescrição do procedimento contraordenacional das infrações objeto do Acórdão recorrido é de cinco anos, de acordo com o disposto no artigo 418.º, n.º 1, do CdVM, na redação vigente à data da prática dos factos, tendo tal prazo sido interrompido, nos termos do disposto nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 28.º do RGCO (ex vi artigo 407.º do CdVM), por dois factos interruptivos, a saber: a notificação da acusação e a decisão condenatória proferida pela CMVM – assim, o prazo de prescrição das infrações em apreço é de sete anos e meio.
23.ª
O prazo de prescrição de sete anos e meio ainda não se completou, porquanto se verificaram no seu decurso várias causas de suspensão desse prazo – tal prazo suspendeu (i) por seis meses, de acordo com o disposto no artigo 27.º-A, n.º 2, do RGCORD, (ii) por 86 dias, de acordo com o disposto no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e (iii) por 74 dias, de acordo com o disposto no artigo 6.º-C, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.
24.ª
O ora Recorrente A. insurgiu-se contra a aplicação da causa de suspensão imposta pelo artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, pretendendo que o Tribunal da Relação de Lisboa declarasse a prescrição do procedimento contraordenacional no pressuposto de a mesma não ser aplicável aos prazos de prescrição que se encontravam em curso.
25.ª
O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que “[n]ão há, efetivamente, qualquer quadro de inconstitucionalidade no reconhecimento da validade da intervenção normativa de suspensão dos prazos processuais”, porquanto: (i) a suspensão dos prazos de prescrição foi imposta pela impossibilidade de tramitação dos processos em virtude do “confinamento de emergência”; (ii) o artigo 27.º-A do RGCO contém um enunciado não taxativo de causas de suspensão que admite a remissão para diplomas autónomos e posteriores sem colidir com os princípios da legalidade e da tipicidade; (iii) a suspensão em apreço não configura um caso de retroatividade direta ou de primeiro grau, aplicando-se a factos presentes e projetando os seus efeitos para o futuro; e (iv) tal medida não é arbitrária, nem desproporcional.
26.ª
O Tribunal a quo não descurou a “expressão nos autos da suspensão de emergência” – posto que os aí Requerentes (entre os quais o ora Recorrente) beneficiaram efetivamente da suspensão do prazo para a prática de atos processuais que lhes concedeu mais de três meses para o exercício do direito de impugnação judicial (ao invés dos 20 dias úteis previstos no artigo 59.º, n.º 3 do RGCO).
Capítulo II – Do regime de suspensão dos prazos de prescrição imposto pela legislação de emergência sanitária
27.ª
A resposta legislativa ao contexto pandémico entre março e maio de 2020 foi composta, essencialmente, por cinco diplomas que assumem relevância para a questão da suspensão da contagem dos prazos de prescrição: (i) o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, (ii) o Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, (iii) a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, (iv) a Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, e, quanto à cessação da suspensão dos prazos de prescrição, (v) a Lei n.º 16/2020, de 29 de maio.
28.ª
A situação fática que determinou a aprovação das medidas legislativas de emergência (nas quais se incluem a suspensão da contagem dos prazos de prescrição dos processos sancionatórios) permite compreender a configuração legal, o fundamento e a intencionalidade normativa da solução suspensiva dos prazos de prescrição – configura uma medida legislativa de emergência, de natureza temporária, que teve um âmbito temporal de aplicação coincidente com a situação de emergência sanitária vivida entre março e maio de 2020.
29.ª
A norma do artigo 7.º, n.os 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020 e do artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, reputada de inconstitucional pelo Recorrente, configura tão-só uma causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional – por um lado, não tem por objeto qualquer alteração aos pressupostos substantivos da responsabilidade contraordenacional (o facto típico, a imputação do mesmo ou a sanção cominada); por outro lado, não cria um novo prazo de prescrição, nem alarga um prazo de prescrição pré-existente, projetando-se ao invés na contagem de prazos de prescrição que se encontravam em curso à data da sua entrada em vigor.
30.ª
A norma do artigo 7.º, n.os 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020 e do artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, não foi motivada por uma mudança de política sancionatória, na vertente processual, que tipicamente esteia a sucessão de leis (i.e., o legislador não considerou que certo tipo de infrações merecem um prazo de prescrição superior), mas antes por uma imperiosa e excecional necessidade.
Capítulo III – Da conformidade constitucional do regime de suspensão dos prazos de prescrição imposto pela legislação de emergência sanitária
31.ª
O regime de suspensão dos prazos de prescrição imposto pela legislação de emergência sanitária é conforme à Constituição, considerando que inexiste qualquer violação do princípio da legalidade, na vertente de proibição de aplicação retroativa de lei sancionatória desfavorável, visto que não estamos perante um caso de retroatividade, nem de sucessão de leis no tempo, o que nos arreda do âmbito da própria ratio do princípio consignado no artigo 29.º, n.º 4, da Constituição e, consequentemente do seu âmbito de aplicação.
32.ª
Isso mesmo fica claro se atentarmos (i) na descrição do princípio da legalidade e suas vertentes no quadro do Direito das contraordenações, bem como da sua aplicação ao instituto da prescrição, (ii) na circunstância de não estarmos perante um problema de retroatividade nem de um caso de sucessão de leis sancionatórias e (iii) na conformidade do regime com os valores do Estado de Direito com arrimo constitucional.
Secção I – Do princípio da legalidade no Direito das contraordenações e sua aplicação ao instituto da prescrição
Subsecção I – Caracterização do princípio da legalidade
33.ª
O princípio da legalidade projeta-se (também) no âmbito da validade temporal da lei penal ou da aplicação da lei penal no tempo.
34.ª
Em matéria de aplicação da lei penal no tempo, assumem especial relevância (i) a proibição de aplicação retroativa de lei penal, (ii) a aplicação ultra-ativa de normas revogadas favoráveis ao agente e (iii) a aplicação retroativa de normas aprovadas posteriormente à conduta do agente mas que lhe sejam favoráveis – isto é, veda-se a punição de condutas que não eram puníveis no momento da prática do facto, bem como a aplicação de sanções mais graves do que aquelas que eram cominadas no tempus delicti, e impõe-se a aplicação do regime que lhe seja concretamente mais favorável (por aplicação ultra-ativa ou retroativa da lex mellior).
Subsecção II – Da aplicação do princípio da legalidade às normas sobre prescrição enquanto “normas processuais materiais” no quadro do Direito das contraordenações
35.ª
A Constituição distingue claramente as garantias de aplicação de Lei criminal (artigo 29.º) das garantias do processo criminal (artigo 32.º), sendo que, por via interpretativa, a doutrina e a jurisprudência atribuem frequentemente natureza mista às normas respeitantes ao instituto da prescrição, subsumindo-as às garantias previstas no artigo 29.º da CRP, designadamente aos princípios em matéria de aplicação de lei penal no tempo.
36.ª
A prescrição tem sido perspetivada pela jurisprudência constitucional como um valor constitucionalmente atendível, cuja relevância se reporta também ao plano substantivo.
37.ª
A autonomia dogmática, sancionatória e processual do Direito das contraordenações impede a aplicação automática de princípios penais com reflexos no instituto da prescrição ao domínio contraordenacional – desde logo, os princípios em matéria de aplicação de lei penal do tempo.
38.ª
A atribuição de natureza jurídica mista ao instituto da prescrição exige que se olhe para a alteração legislativa concreta e que se aprecie a aplicação dos princípios da proibição da retroatividade de lei desfavorável e da retroatividade de lei favorável, à luz dos seus fundamentos teleológicos.
39.ª
Ainda que tais fundamentos reclamem aplicação nos casos em que a Lei nova crie ou alargue um prazo de prescrição, já não justificam tal aplicação aos casos em que se criem novas causas de suspensão ou de interrupção da prescrição (atendendo à ratio de tais institutos, i.e., que o decurso do tempo não favoreça o agente “quando a pretensão punitiva do Estado e as suas exigências de punição são confirmadas através de certos atos de perseguição penal”).
40.ª
O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado a propósito do instituto da prescrição em termos que se referem à conformidade das normas apreciadas com o princípio da legalidade, na vertente de princípio da tipicidade, e, especificamente quanto às causas de suspensão e de interrupção, à censura da criação das mesmas por via interpretativa Todavia, tal realidade não corresponde ao caso sub judice, posto que não se está perante nenhum caso de criação jurisprudencial (por via interpretativa) de uma causa de suspensão, mas antes em face da previsão expressa da causa de suspensão numa Lei, aprovada pela Assembleia da República, num contexto excecional de emergência sanitária.
41.ª
Assim, a atribuição de natureza jurídica mista às normas relativas à prescrição não determina a inconstitucionalidade da interpretação normativa que aplique aos processos em curso a causa de suspensão prevista no artigo 7.º, n.os 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020 – a causa de suspensão do prazo de prescrição aí prevista, quando perspetivada no quadro do Direito das contraordenações e da sua autonomia dogmática, não constitui uma alteração legislativa que se subsuma à letra e à ratio da proibição da retroatividade de lei desfavorável e da retroatividade de lei favorável, encontrando-se legalmente prevista, sem colidir com o princípio da legalidade, na vertente de princípio da tipicidade.
Secção II – Da inexistência de um caso de sucessão de leis sancionatórias e de retroatividade inadmissível à luz do artigo 29.º, n.º 4, da Constituição
42.ª
O regime consignado no artigo 29.º, n.os 1 e 4, da CRP (e consequentemente dos artigos 2.º, n.os 1 e 4, do CP e 3.º, n.os 1 e 2 do RGCO) não é aplicável à norma do artigo 7.º, n.os 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020 e do artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 4-A/2020, porquanto tal aplicação seria estranha à ratio do princípio da legalidade criminal consagrado no artigo 29.º da CRP.
43.ª
No caso em apreço, inexiste, pois, uma verdadeira sucessão de leis sancionatórias para efeitos do disposto no artigo 29.º, n.os 1 e 4, da CRP, porquanto não só não existe uma alteração da valoração legislativa respeitante ao facto e à sua punibilidade, como nem sequer se verifica uma alteração de política legislativa processual, no sentido de o legislador considerar que certo tipo de infrações merece um maior prazo de prescrição.
44.ª
O princípio da aplicação da lei mais favorável exige que se determine qual o regime que concretamente se mostra mais favorável ao agente, vindo a jurisprudência dominante a afirmar que (i) “o sopeso da gravidade dos dois regimes não pode fazer-se só na consideração abstrata da lei, mas tem de ser feito depois de conexionada aquela consideração com as circunstâncias concretas do caso”, e que (ii) a opção pelo regime concretamente aplicável deve ser feita por um dos regimes em bloco.
45.ª
Considerando que a Lei n.º 1-A/2020 procedeu à suspensão dos prazos de prescrição e também à suspensão do prazo para a prática de atos processuais, a aplicação das normas de natureza suspensiva constantes de tal regime, não pode ser feita senão em bloco: a suspensão dos prazos de prática dos atos processuais e a suspensão do prazo de prescrição dos respetivos procedimentos estão umbilicalmente ligadas e comungam da mesma teleologia.
46.ª
Sento certo que, nos presentes autos, os Arguidos, incluindo o ora Recorrente, beneficiaram efetivamente dessa suspensão porquanto a impugnação judicial da decisão administrativa, que deve ocorrer no prazo de 20 dias úteis após a notificação da decisão, nos termos do artigo 59.º, n.º 3, do RGCO, ocorreu mais de três meses após a notificação da decisão em virtude da suspensão dos prazos processuais operada pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.
47.ª
A norma sindicanda não tem qualquer eficácia retroativa, suscetível de ser desfavorável ao arguido e, consequentemente, de ser proibida pela garantia constitucional da proibição da retroatividade da lei desfavorável consignada no artigo 29.º, n.os 1 e 4, da CRP.
48.ª
Segundo o Professor Doutor Frederico de Lacerda da Costa Pinto, uma lei processual que se aplique imediatamente aos processos em curso não tem o grau de retroatividade pressuposto na proibição de retroatividade da lei penal substantiva, pois, por um lado, “ao ser imediatamente aplicada no processo em curso a lei nova vai regular as intervenções processuais e o andamento do processo daí para a frente, o que manifestamente não constituiu um caso de retroatividade (…)” e, por outro lado, “uma lei nova que regule a suspensão da contagem do prazo de prescrição criminal (ou contraordenacional) está a incidir sobre uma realidade presente e futura (a contagem do prazo em curso pela entidade competente que vier a decidir sobre a prescrição) e não sobre a realidade que já aconteceu. (…)”.
49.ª
Apenas o esgotamento do prazo de prescrição produz efeitos jurídicos, pelo que uma lei que altere a sua contagem antes de esgotado não constitui um caso de retroatividade.
50.ª
O Tribunal Constitucional tem, no quadro de diferentes ramos do Direito nos quais vigora o princípio da legalidade, firmando jurisprudência segundo a qual uma lei que crie uma nova causa de suspensão de um prazo de prescrição não constitui um caso de retroatividade proibida, mas sim um caso de retrospetividade, retroatividade inautêntica ou retroatividade de segundo grau.
51.ª
Assim, não estamos perante um caso de sucessão de leis sancionatórias no tempo suscetíveis de mobilizar o disposto no artigo 29.º, n.os 1 e 4, da CRP, nem tampouco perante um caso de retroatividade proibida por esse preceito constitucional.
52.ª
A circunstância de nos encontrarmos fora do âmbito textual e teleológico do artigo 29.º, n.os 1 e 4, demonstra igualmente a falência do argumento do Recorrente no sentido de que a solução da suspensão dos prazos de prescrição prevista na Lei n.º 1-A/2020, de 19 março, viola o regime constitucional e infraconstitucional do estado de emergência, maxime o artigo 19.º, n.º 6, da Constituição e o artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro.
Secção III – Da conformidade constitucional do regime à luz dos valores do Estado de Direito com arrimo constitucional
53.ª
Face à natureza retrospetiva da lei nova que crie causas de suspensão ou de interrupção do prazo de prescrição, o crivo constitucional acolhido pela jurisprudência para avaliar da conformidade da lei com a Constituição é o da “ponderação entre o princípio da confiança jurídica e outros princípios ou bens constitucionalmente protegidos subjacentes à norma a apreciar”.
54.ª
A suspensão dos prazos de prescrição desempenhou a função essencial de preservar as possibilidades de exercício do poder punitivo estadual, cujo exercício foi impossibilitado durante a emergência sanitária. Tal poder punitivo visa proteger os bens jurídicos e interesse protegidos pelas infrações perseguidas, os quais, no caso em apreço, têm relevância axiológica constitucional, como é o caso da proteção dos investidores e do regular funcionamento do mercado.
55.ª
Entender que o legislador não pode criar novas causas de suspensão da prescrição ante situações excecionais e imprevisíveis, (i) constituiria uma limitação insuportável ao poder legislativo, (ii) votaria à impunidade arguidos que já haviam sido confrontados com a pretensão sancionatória estadual e (iii) frustraria as próprias finalidades do Direito sancionatório.
56.ª
A causa de suspensão dos prazos de prescrição, por permitir igualmente a suspensão para a prática de atos processuais, afigura-se uma medida favorável ao arguido e à manutenção das condições para o exercício do seu direito de defesa.
57.ª
A tese de que o prazo de prescrição não se pode suspender nessa conjuntura afigura-se manifestamente indefensável, pois (i) acarretaria, desde logo, um benefício desproporcionado para os arguidos, em detrimento da posição processual da entidade que se encontre a exercer o ius puniendi (equilíbrio esse que é imposto pelo princípio do processo equitativo acolhido no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição), bem como (ii) traduziria uma insustentável quebra da relação de solidariedade (vertical) que se estabelece entre o Estado e os seus cidadãos (o que seria uma manifesta afronta aos elementos fundantes da República Portuguesa e da sociedade que ela visa construir, nos termos do disposto no artigo 1.º da Constituição, frustraria no futuro a adoção de soluções semelhantes, pressionando o Estado a escolher, de forma inconciliável, entre a proteção da saúde dos cidadãos e a administração da justiça).
58.ª
A causa de suspensão do prazo de prescrição sindicada pelo Recorrente fundamenta-se numa “dupla legalidade” – “ela está, por um lado, normativamente antecipada em leis gerais aprovadas pelo Parlamento que preveem essa possibilidade (o artigo 120.º, n.º 1, do Código Penal e o artigo 27.º-A, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações) e surge concretizada, por outro lado, na legislação particular de emergência, em particular o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março”.
59.ª
A conformidade da solução legal sindicanda com o princípio da confiança é também de afirmar face aos critérios acolhidos pela jurisprudência constitucional para saber se as normas retrospetivas desfavoráveis violam tal princípio.
60.ª
A solução legal contida no artigo 7.º, n.os 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, suspendendo os prazos de prescrição em curso, constitui uma medida adequada a obviar aos obstáculos decorrentes da paralisação da administração da justiça, em função da crise de emergência sanitária vivida entre março e maio de 2020, necessária, face à imperiosa necessidade de salvaguardar a concordância prática entre a proteção da saúde pública e o interesse público inerente ao exercício do ius puniendi e proporcional (em sentido estrito), limitando-se à justa medida, visto que a causa de suspensão em apreço encontrava-se expressamente delimitada no tempo, enquanto durasse a situação excecional que a determinou (cf. artigo 7.º, n.º 2, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março).»
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A. O «primeiro complexo normativo»
7. A primeira questão de constitucionalidade enunciada pelo recorrente incide sobre «o complexo normativo formado pelos artigos 7º, 388º, n.º 1, a) e 389º, n.º 1, c) do Código de Valores Mobiliários, ao prever que “a prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita ou a omissão dessa prestação gera uma contraordenação muito grave, punível com coima que pode atingir os cinco milhões de euros”». Segundo o recorrente, o tipo contraordenacional em questão não observa as exigências decorrentes do «princípio da tipicidade» e do princípio da «proporcionalidade das sanções», violando assim os «artigos 29.º e 18.º da Constituição».
O artigo 7.º, relativo à qualidade da informação a prestar pelas entidades sujeitas aos poderes de regulação e de supervisão atribuídos à CMVM, integra-se no Título I do CdVM, que contém o conjunto das «disposições gerais» aplicáveis.
O seu teor é o seguinte:
«Artigo 7.º
Qualidade da informação
1 - A informação respeitante a instrumentos financeiros, a formas organizadas de negociação, às atividades de intermediação financeira, à liquidação e à compensação de operações, a ofertas públicas de valores mobiliários e a emitentes deve ser completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita.
2 - O disposto no número anterior aplica-se seja qual for o meio de divulgação e ainda que a informação seja inserida em conselho, recomendação, mensagem publicitária ou relatório de notação de risco.
3 - O requisito da completude da informação é aferido em função do meio utilizado, podendo, nas mensagens publicitárias, ser substituído por remissão para documento acessível aos destinatários.
4 - À publicidade relativa a instrumentos financeiros e a atividades reguladas no presente Código é aplicável o regime geral da publicidade.
Os artigos 338.º e 339.º inserem-se, por sua vez, no Capítulo II do Título VIII, dedicado à tipificação dos «Ilícitos de mera ordenação social» e à fixação das respetivas coimas, dispondo que:
«Artigo 388.º
Disposições comuns
1 - Às contraordenações previstas nesta secção são aplicáveis as seguintes coimas:
a) Entre (euro) 25 000 e (euro) 5 000 000, quando sejam qualificadas como muito graves.»
«Artigo 389.º
Informação
1 - Constitui contraordenação muito grave:
[…]
c) A prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita ou a omissão dessa prestação.»
Relativamente ao diploma anterior, o CdVM aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de novembro, alterou a técnica seguida no âmbito da tipificação dos ilícitos de mera ordenação social, abandonando «a simples remissão para as normas que consagram os deveres» em benefício da «sua delimitação autónoma» (ponto 22 do respetivo Preâmbulo).
Assim, a par da enumeração dos deveres relativos à qualidade da informação a prestar pelos intervenientes no mercado dos valores mobiliários, elencados no artigo 7.º, o artigo 389.º do CdVM descreve e qualifica as condutas conexas com relevância contraordenacional, integrando na categoria das contraordenações muito graves (n.º 1) «a prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita ou a omissão dessa prestação» (alínea c)).
O recorrente considera que, ao incluir o conceito de «informação verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita», a previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 389.º do CdVM reveste um nível de indeterminação não consentido pelo princípio da tipicidade. Trata-se, segundo alega, de um conceito que o legislador se absteve de densificar, diretamente ou «por remissão para qualquer outro normativo regulamentar de onde resulte um critério seguro que subtraia o destinatário da norma do arbítrio interpretativo e assim da consequente insegurança jurídica decorrente da elasticidade de tal preceito não conhecer limites definidos no que respeita ao seu âmbito material de aplicação».
Vejamos se assim é.
8. De acordo com os Estatutos da CMVM, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 5/2015, de 8 de janeiro, e alterados pela Lei n.º 148/2015, de 9 de setembro, a CMVM é uma pessoa coletiva de direito público, com a natureza de entidade administrativa independente (artigo 1.º, n.º 1), que tem por missão a regulação e supervisão dos mercados de instrumentos financeiros, bem como das entidades que neles atuam, nos termos previstos no CdVM e na respetiva legislação complementar (artigo 4.º, n.º 1). Para o efeito, dispõe de poderes de regulação, de regulamentação, de supervisão, de fiscalização e de sanção de infrações (artigo 1.º, n.º 2, alínea d)), nestes últimos se incluindo o processamento das contraordenações e a aplicação das respetivas coimas.
Neste contexto, as entidades que atuam nos mercados de instrumentos financeiros encontram-se sujeitas à supervisão da CMVM (artigo 359.º, n.º 1), à qual têm o dever legal de prestar toda a colaboração solicitada (artigo 359.º, n.º 3). Este dever de colaboração compreende a prestação dos elementos e da informação que em cada momento forem exigidos (artigo 361.º, n.º 2, alínea a)), de forma «completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita» (artigo 7.º, n.º 1).
É neste quadro legal que se inscreve a norma que atribui relevância contraordenacional qualificada à prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita, cuja previsão o recorrente considera não observar as exigências impostas pelo princípio da legalidade, na dimensão relativa à definição dos tipos de ilícito.
9. O princípio da legalidade penal constitui um elemento central do regime constitucional da lei penal nos Estados de direito democráticos, encontrando-se expressamente consagrado artigo 29.º da Constituição enquanto garantia pessoal de não punição fora do âmbito de uma lei escrita, prévia, certa e estrita.
Com a exigência de lei certa — aquela que agora releva — quer-se significar que a lei que cria ou agrava responsabilidade criminal deve especificar suficientemente os factos que integram o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos da aplicação de uma pena ou medida de segurança) e definir as penas (e as medidas de segurança) que lhes correspondem. Nesta aceção, o princípio da legalidade penal tem como corolário o princípio da tipicidade, condicionando a margem de conformação legislativa no âmbito da definição típica dos factos puníveis.
Apesar de tanto a epígrafe como a letra do artigo 29.º da Constituição «restring[irem] a sua aplicação direta apenas ao direito criminal propriamente dito (crimes e respetivas sanções)» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª ed., p. 498), o Tribunal Constitucional vem admitindo, em vasta e consolidada jurisprudência, que as exigências decorrentes do princípio da tipicidade são extensíveis ao direito de mera ordenação social, embora não se imponham aí na mesma medida ou com idêntica intensidade.
Desse acervo deu especialmente conta o Acórdão n.º 76/2016, que precisou o alcance do princípio da tipicidade no domínio das infrações contraordenacionais nos seguintes termos:
«[…] o facto de as contraordenações fazerem parte do poder punitivo estadual, cuja expressão máxima se encontra no direito penal, justifica que o seu regime jurídico seja influenciado pelos princípios e regras comuns a todo o direito sancionatório público. O direito de mera ordenação social é um direito sancionador, que permite à Administração participar no exercício do poder punitivo estadual, aplicando penalidades aos administrados, o que significa que esse direito e esse poder, enquanto emanação do jus puniendi, estão matizados pelos princípios e pelas regras “penais”. Por isso, há de admitir-se que os princípios constitucionais do direito penal possam influenciar os direitos sancionadores que derivam da mesma matriz.
[…].
O que não significa, é evidente, que não deixe de haver diferenciações na extensão desses princípios ao domínio contraordenacional. É que a autonomia material do ilícito de mera ordenação social em relação ao ilícito penal, que dá origem a um sistema punitivo próprio, com espécies de sanção, com procedimentos punitivos e agentes sancionadores distintos, obsta a que se proceda a uma transposição automática e imponderada para o direito de mera ordenação social dos princípios constitucionais que regem a legislação penal.
[…].
6. Assim acontece com a extensão dos princípios da legalidade e da tipicidade ao domínio contraordenacional.
[…]
A exigência de determinabilidade do conteúdo das normas penais, uma dimensão do denominado princípio da tipicidade, é avessa a que o legislador formule normas penais recorrendo a cláusulas gerais na definição dos crimes, a conceitos que obstem à determinação objetiva das condutas proibidas ou que remeta a sua concretização para fontes normativas inferiores, as chamadas normas penais em branco. A exclusão de fórmulas vagas na descrição dos tipos legais, de normas excessivamente indeterminadas e de normas em branco, leva em conta os valores da segurança e confiança jurídicas postulados pelo princípio da legalidade criminal. Com efeito, a exigência de clareza e densidade suficiente das normas restritivas, como é o caso das normas penais, é um fator de garantia da confiança e da segurança jurídica, «uma vez que o cidadão só pode conformar autonomamente os próprios planos de vida se souber com o que pode contar, qual a margem de ação que lhe está garantida, o que pode legitimamente esperar das eventuais intervenções do Estado na sua esfera pessoal» (Jorge Reis Novais, As restrições aos Direitos Fundamentais, não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, 2ª ed. pág. 770).
Deve reconhecer-se, porém, que a exigência de lex certa, como corolário do princípio da legalidade criminal, não veda em absoluto a formulação dos pressupostos jurídico-constitutivos da incriminação através de elementos normativos, conceitos indeterminados, cláusulas gerais e fórmulas gerais de valor. Seria inviável, até pela natureza da própria linguagem jurídica, uma determinação absoluta do tipo legal de ilícito.
[…]
Em princípio, a modelação do tipo legal de crime com recurso a conceitos indeterminados não afronta os princípios da legalidade e da tipicidade. Como reconhece o Tribunal Constitucional, após se interrogar sobre o grau admissível de indeterminação ou flexibilidade normativa em matéria de ilícitos penais, «uma relativa indeterminação dos tipos legais pode mostrar-se justificada, sem que isso signifique violação dos princípios da legalidade e da tipicidade» (Acórdão n.º 93/01).
Mas se é impossível uma total determinação dos elementos compósitos da ação punível, há de exigir-se um grau de determinação suficiente que não ponha em causa os fundamentos do princípio da legalidade. É que o princípio nullum crimen só pode cumprir a sua função de garantia se a regulamentação típica, ainda que indeterminada e aberta, for materialmente adequada e suficiente para dar a conhecer quais as ações ou omissões que o cidadão deve evitar. Como se escreve no Acórdão n.º 168/99, «averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima.
7. Nos demais domínios sancionatórios, como no direito de mera ordenação social e no direito disciplinar, a exigência de tipicidade não se faz sentir com a intensidade que tem no direito criminal. Com maior frequência os enunciados legislativos exprimem-se aí através de cláusulas gerais, conceitos indeterminados e enumerações exemplificativas.
[…]
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a sublinhar que a exigência de determinabilidade do tipo que predomina no direito criminal não tem que ter a mesma rigidez e a mesma densidade no domínio contraordenacional. Diz-se no Acórdão n.º 41/2004 que a «Constituição não requer para o ilícito de mera ordenação social o mesmo grau de exigência que requer para os crimes. Nem o artigo 29.º da Constituição se aplica imediatamente ao ilícito de mera ordenação social nem o artigo 165.º confere a este ilícito o mesmo grau de controlo parlamentar que atribui aos crimes»; e nos Acórdãos nºs 397/2012 e 466/12 conclui-se que «não se pode afirmar que as exigências de tipicidade valham no direito de mera ordenação social com o mesmo rigor que no direito criminal».
Todavia, a maior abertura dos tipos contraordenacionais causada pela utilização de cláusulas gerais e conceitos indeterminados não significa uma total ausência de determinação normativa. A norma ou conjunto das normas tipificadoras não podem deixar de descrever com suficiente clareza os elementos objetivos e subjetivos do núcleo essencial do ilícito, sob pena de violação dos princípios da legalidade e da tipicidade e sobretudo da sua teleologia garantística. Daí que só seja admissível uma “relativa indeterminação tipológica” que não saia da “órbitra daquilo que razoavelmente pode exigir-se em rigor descritivo ou limitativo, de modo a não esvaziar de conteúdo a garantia consubstanciada naqueles princípios” (Acórdão n.º 338/03). Exige-se pois um “mínimo de determinabilidade” das condutas ilícitas, de molde a que as decisões sancionatórias associadas sejam previsíveis e objetivas e não arbitrárias para os seus destinatários, que haja segurança na sua identificação e, consequentemente, quanto à sanção aplicável. A exigência de um mínimo de determinabilidade que permita identificar os comportamentos descritos em tipos contraordenacionais (e também em alguns tipos disciplinares) tem sido constante na jurisprudência constitucional, desde a Comissão Constitucional (parecer n.º 32/80, publicado in Pareceres da Comissão Constitucional, 14.º vol. pág. 51 e segs.) até à jurisprudência mais recente (Acórdãos nºs. 282/86, 666/94, 169/99, 93/01, 358/05, 635/2011, 85/2012, 397/12 e 466/12).
Analisando a anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a extensão dos princípios da legalidade e da tipicidade ao domínio contraordenacional, no Acórdão n.º 201/2014 conclui-se que «(i) embora tais princípios não valham “com o mesmo rigor” ou “com o mesmo grau de exigência” para o ilícito de mera ordenação social, eles valem “na sua ideia essencial”; (ii) aquilo em que consiste a sua ideia essencial outra coisa não é do que a garantia de proteção da confiança e da segurança jurídica que se extrai, desde logo, do princípio do Estado de direito; (iii) assim, a Constituição impõe “exigências mínimas de determinabilidade no ilícito contraordenacional” que só se cumprem se do regime legal for possível aos destinatários saber quais são as condutas proibidas como ainda antecipar com segurança a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito».
Deverá, pois, dizer-se que nos tipos contraordenacionais, a exigência de lex certa não será prejudicada com a identificação dos ilícitos mediante conceitos jurídicos indeterminados ou cláusulas gerais se for razoavelmente possível a sua concretização através de critérios lógicos, técnicos ou da experiência que permitam prever, com segurança suficiente, a natureza e as características essenciais das condutas constitutivas da infração tipificada».
Da jurisprudência constitucional podem extrair-se, pois, com toda a segurança, duas ideias fundamentais: no âmbito da definição dos ilícitos contraordenacionais, a Constituição somente impõe «exigências mínimas de determinabilidade»; mas estas apenas se encontrarão satisfeitas na medida em que o tipo legal permita aos respetivos destinatários darem-se conta de qual é a conduta proibida e da sanção que lhe corresponde.
10. Levando em conta essas «exigências mínimas de determinabilidade», este Tribunal teve já oportunidade de se pronunciar sobre norma semelhante à que integra o objeto do presente recurso.
Fê-lo no Acórdão n.º 85/2012, que se ocupou da questão de saber se tais exigências se encontram observadas na norma constante do 389.º, n.º 1, alínea a), do CdVM — que, então como agora, tipifica como contraordenação muito grave «a comunicação ou divulgação, por qualquer pessoa ou entidade, e através de qualquer meio, de informação que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita» —, em conjugação com os artigos 7.º e 388.º, n.º 1, alínea a), também do CdVM, que, tal como faz o recorrente, considerou «concorre[rem] para delimitar o âmbito do ilícito».
Relativamente ao grau de determinação observado na descrição da conduta proibida, lê-se no referido aresto:
«9.2. Restará saber se o tipo previsto no 389º n.º 1 alínea a) do CdVM viola as exigências mínimas de determinabilidade no ilícito contraordenacional. A norma qualifica como contraordenação muito grave “a comunicação ou divulgação, por qualquer pessoa ou entidade, e através de qualquer meio, de informação que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita”. Ora, apesar de o Decreto-lei n.º 52/2006, de 15 de março ter eliminado a referência ao objeto da informação – até aí expressamente delimitado como constituindo informação relativa a valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros – nem por isso se pode considerar que o tipo de ilícito tenha passado a ser demasiado amplo ou pouco claro, como alega o recorrente.
De facto, a norma objeto do presente recurso conjuga-se com outras disposições do CdVM, que concorrem para delimitar o âmbito do ilícito. Tais normas são, por um lado, o artigo 7.º e, por outro, o artigo 388.º n.º 1 alínea a) do CdVM.
Ora, deve desde logo sublinhar-se que o simples facto de o tipo contraordenacional dever ser lido em conjugação com outras normas presentes no mesmo diploma não viola, por si só, qualquer princípio constitucional. Trata-se de uma técnica de tipificação dos ilícitos contraordenacionais através de remissões materiais, em que o tipo sancionatório remete para deveres tipificados no próprio Código. Neste contexto, “ao contrário da generalidade dos tipos incriminadores que preveem condutas proibidas e, em imediata conexão com elas, uma pena, a técnica legislativa no Direito de mera ordenação social não tem de obedecer a este paradigma rígido da tipicidade. Pelo contrário, nesta área as funções heurística e motivadora das normas não se identificam com a norma de sanção, mas sim com a norma de conduta. Neste sentido, algumas funções da tipicidade penal são, no Direito de mera ordenação social, assumidas pelas próprias normas substantivas que impõem deveres, (…). Assim, a técnica de tipificação no Direito de mera ordenação social pode inclusivamente ser mais precisa para o destinatário da norma, já que descreve expressamente as normas de conduta (nos ‘pré-tipos’), ao contrário do que acontece nos tipos penais onde as normas de conduta surgem, na generalidade dos casos, apenas implícitas na matéria da proibição”. Em suma, “a exigência de tipicidade não tem no Direito de mera ordenação social de obedecer à mesma técnica dos tipos penais incriminadores” (Frederico da Costa Pinto, O novo regime dos crimes e contraordenações no Código dos valores mobiliários, Almedina, 2000, p. 28).
Posto isto, o que importa determinar é se a norma globalmente resultante da integração da remissão cumpre os requisitos e exigências da determinabilidade.
9.3. A norma do artigo 389º n.º 1 alínea a) deve ser lida, em primeiro lugar, em conjugação com a do artigo 7.º do CdVM.
Essa norma estabelece um dever de qualidade de informação a cargo das entidades que atuam no mercado de valores mobiliários. Ela prescreve que “a informação respeitante a instrumentos financeiros, a formas organizadas de negociação, às atividades de intermediação financeira, à liquidação e à compensação de operações, a ofertas públicas de valores mobiliários e a emitentes deve ser completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita”. Essas exigências aplicam-se, nos termos do n.º 2, seja qual for o meio de divulgação e ainda que a informação seja inserida em conselho, recomendação, mensagem publicitária ou relatório de notação de risco. Ora, desde logo cumpre esclarecer que, no contexto do presente diploma e dos deveres que o mesmo estabelece sobre as entidades bancárias, o conceito de “informação” não pode, contrariamente ao que alega o recorrente, ser considerado como indeterminado, nem tão pouco como vago ou pouco claro, encontrando-se perfeitamente circunscrito no artigo 7.º do CdVM, que delimita não só o conteúdo abrangido pela mesma (informação respeitante a instrumentos financeiros, a formas organizadas de negociação, às atividades de intermediação financeira, à liquidação e à compensação de operações, a ofertas públicas de valores mobiliários e a emitentes), como os veículos da mesma (informação inserida em conselho, recomendação, mensagem publicitária ou notação de risco)».
Tal como o tipo contraordenacional respeitante à alínea a) do n.º 1 do artigo 399.º do CdVM, apreciado no Acórdão n.º 85/2012, também o relativo à alínea c) do mesmo artigo e número, em causa no presente recurso, é integrado pelo conceito de informação «completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita»: ali, veda-se a comunicação ou divulgação, por qualquer pessoa ou entidade, de informação sem essas características; aqui, sanciona-se a prestação à CMVM de informação que não reúna tais propriedades.
11. O recorrente entende que, ao sancionar com coima as entidades sujeitas a supervisão que, no âmbito do cumprimento do seu dever de colaboração, prestem à CMVM informação «que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita», o legislador não observou, quanto à descrição da conduta proibida, as exigências mínimas de determinabilidade.
Saber se certo tipo contraordenacional é ou não suficientemente determinado é questão a que deverá responder-se tendo em conta a acessibilidade e a previsibilidade da norma de comportamento pelos respetivos destinatários.
Conforme notado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (doravante, «TEDH) no âmbito da interpretação do artigo 7.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o conceito de previsibilidade tem um alcance variável, dependendo em larga medida do conteúdo da norma sancionadora em causa, do âmbito ou domínio que a mesma pretenda regular, bem como do número e da condição dos respetivos destinatários. De todo o modo, tal exigência deverá considerar-se satisfeita onde quer que os sujeitos possam conhecer, através do texto da lei — complementado, se necessário, pela respetiva interpretação jurisprudencial, bem como pelo recurso a aconselhamento técnico especializado —, quais os atos e omissões suscetíveis de os responsabilizar (v. Radio France and Others v. France (2004) e Vasiliauskas v. Lithuania (2015)).
Pois bem.
No caso presente, encontramo-nos em face de uma norma que disciplina a atuação das entidades que operam nos mercados de instrumentos financeiros e se encontram sujeitas à supervisão da CMVM. Entre elas contam-se as entidades gestoras de mercados regulamentados, os intermediários financeiros, as sociedades gestoras de organismos de investimento coletivo, os consultores para investimento, os emitentes de valores mobiliários, as instituições de investimento coletivo sob forma societária, as sociedades de capital de risco, as sociedades gestoras de fundos de capital de risco e as sociedades de empreendedorismo social (artigo 359.º, n.º 1, do CdVM). O tipo contraordenacional em causa dirige-se aos sujeitos responsáveis por tais entidades, nos quais é mais do que razoável supor uma aptidão qualificada para a apreensão do conteúdo das regras que integram as boas práticas dos mercados de instrumentos financeiros, em particular daquelas que, relacionando-se diretamente com as exigências de transparência vitais no sector, supõem a prestação ao regulador de informação verdadeira, relevante, objetiva e completa, quando por este solicitada.
Em boa verdade, a apreensibilidade dos requisitos que definem a qualidade da informação a prestar pelas entidades sujeitas à supervisão da CMVM, vertidos nos artigos 7.º e 389.º, n.º 1, alínea c) do CdVM, não requer sequer particular sagacidade. Isto porque: informação completa só pode ser aquela que, tendo em conta o âmbito da solicitação formulada pelo regulador, reúna a totalidade dos elementos na disponibilidade do regulado, sem ocultação ou sonegação de qualquer dado relevante; informação verdadeira é a que não enferma de qualquer desconformidade entre a descrição feita e a realidade relatada; informação atual é aquela que está disponível no momento em que deve ser prestada; informação clara e objetiva é aquela que não padece de imprecisões ou ambiguidade; e, por fim, informação lícita é a que é obtida, reunida e prestada sem violação da lei.
Acresce que tais requisitos são exigidos para a prestação de informação específica, respeitante «a instrumentos financeiros, a formas organizadas de negociação, às atividades de intermediação financeira, à liquidação e à compensação de operações, a ofertas públicas de valores mobiliários e a emitentes» (artigo 7.º, n.º 1, do CdVM).
Daí que, ao conferir relevância contraordenacional à «prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita», o tipo legal constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 389.º do CdVM não comprometa a apreensibilidade do conteúdo do ilícito pelos respetivos (e particulares) destinatários, conclusão que, como se verá de seguida, não é afetada pela fixação, respetivamente em € 25.000 e € 5.000.000, dos limites mínimo e máximo da coima aplicável. Como se escreveu no Acórdão n.º 85/2012, em termos aqui inteiramente aplicáveis, «o tipo contraordenacional em causa resulta da interpretação conjugada das três normas referidas» — no caso presente, os artigos 7.º, 388.º, n.º 1, alínea a), e 389.º, n.º 1, alínea c), do CdVM —; «através da conjugação destes preceitos, a descrição do comportamento sancionado como contraordenação – e a sanção – resultam objetivamente determináveis para os destinatários, não podendo considerar-se violado o princípio previsto no artigo 29.º da Constituição».
12. O segundo vício apontado ao «primeiro complexo normativo» identificado pelo recorrente diz respeito aos princípios da proporcionalidade e da determinabilidade das sanções, à luz dos quais se tornam passíveis de censura constitucional os tipos contraordenacionais que contenham coimas manifesta e claramente excessivas ou cujos limites mínimo e máximo se encontrem separados por um intervalo de tal modo amplo que a moldura legal fixada deixe de poder «cumprir a sua função de garantia contra o exercício abusivo (persecutório e arbitrário) ou incontrolável do ius puniendi do Estado» (Acórdão n.º 574/1995).
Tomando em consideração o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 388.º do CdVM, na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de novembro, que fixava entre € 25.000 e €2.500.000 o montante da coima a aplicar pela prática de contraordenações muito graves, o Tribunal, no já referido Acórdão n.º 85/2012, concluiu que ambos os referidos princípios se encontravam observados.
No que respeita à exigência de determinabilidade, fê-lo nos seguintes termos:
«[…] o CdVM especifica no artigo 405.º os critérios que deverão presidir à determinação da medida da coima, nomeadamente a ilicitude concreta do facto, da culpa do agente, os benefícios obtidos, as exigências de prevenção, a natureza singular ou coletiva do agente. A determinação da coima em concreto resulta da ponderação, dentro da margem fornecida pelos limites mínimo e máximo estabelecidos pelo n.º 1 do artigo 388.º do CdVM, das circunstâncias que estão expressamente mencionadas na lei. É, assim, perfeitamente possível aos destinatários saber quais são as condutas proibidas, como ainda antecipar, com segurança, a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito.
E é nisto que consiste a necessária determinabilidade dos tipos contraordenacionais. Importa relembrar, com efeito, que da jurisprudência do Tribunal resulta que o estabelecimento de limites alargados das sanções, no domínio contraordenacional, não consubstancia em si uma violação de princípios constitucionais, devendo avaliar-se se a lei estabelece outros mecanismos que concorrem para a segurança jurídica.
No Acórdão n.º 574/95 (disponível no site do Tribunal Constitucional), o Tribunal considerou que o n.º 5 do artigo 670.º do CdVM então em vigor – que previa uma moldura sancionatória de 500.000$00 a 300.000.000$00 – não era inconstitucional, já que “a distância entre o limite mínimo e o limite máximo da coima” não seria “de molde a que esta deixe de cumprir a sua função de garantia contra o exercício abusivo (persecutório e arbitrário) ou incontrolável do ius puniendi do Estado”, já que o legislador teria fixado sem margem para dúvidas os limites “dentro dos quais se há de mover aquele que tiver de aplicar a coima”. Acrescentou-se ainda que “uma certa extensão da moldura sancionatória é de algum modo – pode mesmo dizer-se – o tributo que o princípio da legalidade das sanções tem de pagar ao princípio da culpa, que deriva da essencial dignidade da pessoa humana e se extrai dos artigos 1º e 25º, nº 1 da Constituição”.
É certo que no Acórdão n.º 547/01, o Tribunal reviu alguns destes argumentos, chegando a uma solução diferente no que toca ao n.º 4 do artigo 670.º do CdVM, que fixava uma coima de 500.000$00 a 300.000.000$00. Mas mesmo dentro deste prisma, o aresto não deixou de reconhecer que:
“(…) as características particulares do mercado de valores mobiliários não impediram o legislador de 1999 de alterar o sistema sancionatório das contraordenações com ele relacionadas, através do novo Código dos Valores Mobiliários.
Com efeito, por um lado, as contraordenações muito graves passam a ser puníveis com coimas de 25.000 a 2.500.000 euros [al. a) do nº 1 do artigo 388º], o que, apesar de representar ainda uma grande amplitude, atenua a distância substancial até aí existente entre um limite mínimo leve e um limite máximo particularmente severo.
Por outro lado, o artigo 405º do mesmo Código estabelece, de modo inovador, uma série de critérios e circunstâncias tendentes a permitir adequar a determinação concreta da sanção ao grau de ilicitude e da culpa do agente.
Deste modo, independentemente do juízo que possa merecer o novo regime, confirma-se que o legislador tem diversos meios de que se pode servir para evitar violar o princípio da determinação da sanção, decorrente do princípio da legalidade”.
Pode, por isso, concluir-se que o regime resultante da fixação dos limites máximo e mínimo que compõem a atual moldura sancionatória para as contraordenações muito graves da CdVM, em conjugação com a previsão expressa dos critérios e circunstâncias que devem pautar a determinação concreta da sanção, é suficiente para respeitar as exigências de determinabilidade sancionatória decorrente da Constituição.»
Já quanto ao princípio da proporcionalidade, afirmou o seguinte:
«Decorre […] da jurisprudência do Tribunal que o legislador tem uma ampla margem de conformação em matéria de previsão de contraordenações, uma vez que – há que recordá-lo – o princípio da proporcionalidade enquanto princípio da ultima ratio ou da subsidiariedade da punição vale apenas para o direito penal. No que toca à previsão de contraordenações, o legislador tem poderes mais amplos para decidir se é ou não necessário qualificar determinado comportamento como contraordenação, e maior margem de conformação no que toca à fixação das sanções aplicáveis aos comportamentos que decidiu tipificar como contraordenações. Sobre a salvaguarda do princípio da proporcionalidade em matéria de contraordenações, lê-se, por exemplo, no Acórdão n.º 574/95 (disponível no site do Tribunal):
«Quanto ao princípio da proporcionalidade das sanções, tem, antes de mais, que advertir-se que o Tribunal só deve censurar as soluções legislativas que cominem sanções que sejam desnecessárias, inadequadas ou manifesta e claramente excessivas, pois tal o proíbe o artigo 18º, nº 2, da Constituição. Se o Tribunal fosse além disso, estaria a julgar a bondade da própria solução legislativa, invadindo indevidamente a esfera do legislador que, aí, há de gozar de uma razoável liberdade de conformação [cf., identicamente, os acórdãos nºs 13/95 (Diário da República, II série, de 9 de fevereiro de 1995) e 83/95 (Diário da República, II série, de 16 de junho de 1995)], até porque a necessidade que, no tocante às penas criminais é - no dizer de FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal II, 1988, policopiado, página 271) - "uma conditio iuris sine qua non de legitimação da pena nos quadros de um Estado de Direito democrático e social", aqui, não faz exigências tão fortes.
De facto, no ilícito de mera ordenação social, as sanções não têm a mesma carga de desvalor ético que as penas criminais - para além de que, para a punição, assumem particular relevo razões de pura utilidade e estratégia social».
Neste contexto, o princípio da proporcionalidade apenas deve considerar-se violado nos casos em que o legislador incorreu em inquestionável e evidente excesso, prevendo sanções desnecessárias, inadequadas ou manifesta e claramente excessivas; em suma, só poderá falar-se de inconstitucionalidade nas situações em que o legislador dispunha comprovadamente de meios menos gravosos para proteger os bens jurídicos em causa.
[…]
O juízo de proporcionalidade implica, neste caso, a ponderação entre dois valores: o que é sacrificado, em confronto com aquele que o legislador visa proteger. Neste contexto, apenas um manifesto desequilíbrio entre tal relação poderá fundar a violação do princípio.
A contraordenação em causa visa salvaguardar um valor de inegável relevo; o da verdade e da transparência do mercado de valores mobiliários. De facto, a fiabilidade da informação é um pilar fundamental do mercado de valores mobiliários, que permite assegurar que a decisão de investimento seja inteiramente esclarecida. É, por isso, inegável que “é a existência de uma informação tão completa, verosímil e clara quanto possível que constitui a garantia essencial de funcionamento regular dos mercados” (Eduardo Paz Ferreira, “A informação no mercado de valores mobiliários”, in AA.VV., Direito dos Valores Mobiliários, Vol. III, Coimbra Editora, 2001, p. 145).
Em suma, a necessidade de assegurar a transparência e a fiabilidade da informação é essencial para o regular funcionamento do mercado de valores mobiliários.
Ora, o mercado e o sistema financeiro merecem proteção constitucional. O artigo 81º alínea f), prevê o funcionamento eficiente dos mercados, e nesse contexto, designadamente, a repressão de práticas lesivas do interesse geral, como incumbências prioritárias do Estado. Por seu turno, o artigo 101.º obriga a que o sistema financeiro seja estruturado por lei de modo a garantir a formação, a captação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, o artigo 101.º al. f) da CRP, (...) constitui uma amplíssima credencial constitucional para a intervenção, regulação e supervisão pública das atividades financeiras, com as necessárias limitações restrições da liberdade económica nesta área, com a extensão e a intensidade que os interesses em causa podem justificar (desde a autorização administrativa para a entrada na atividade até, no limite, a intervenção na gestão das instituições financeiras). De resto não estão aqui em causa somente valores constitucionais ligados à estabilidade financeira e ao desenvolvimento económico e social mas também a proteção dos direitos dos aforradores e investidores e clientes das instituições financeiras, a começar pelo seu direito de propriedade.”.
O funcionamento dos mercados de valores mobiliários constitui um instrumento específico do desenvolvimento económico do Estado. Estão em causa bens jurídicos supra-individuais afetos a um programa de desenvolvimento económico e isto explica a preocupação constitucional de tutela dos mercados. Mas não só. Em causa estão ainda os direitos patrimoniais dos aforradores, investidores e clientes das instituições financeiras. De facto, a exigência de informação corresponde ainda a uma exigência de proteção dos investidores que pretendam atuar no contexto de um mercado caracterizado por um elevado nível de risco. A contraordenação em causa visa também proteger direitos individuais, seja a salvaguarda do património próprio dos cidadãos.
Por fim, as exigências de informação e transparência permitem ainda garantir um sistema de igualdade de oportunidades dos investidores. São neste contexto particularmente ilustrativas as palavras de Eduardo Paz Ferreira, ao afirmar que “o equilíbrio automático que seria conseguido pelo funcionamento do mercado é, de facto, substancialmente perturbado pela existência de assimetrias de informação que vão determinar uma alocação imperfeita da riqueza” (ibid.). No contexto da regulação da Concorrência, o Tribunal teve também já oportunidade de sublinhar a importância da informação no domínio das atividades económicas ligadas ao exercício da iniciativa privada (Acórdão n.º 461/2011, disponível no site do Tribunal).
Para a salvaguarda dos referidos valores constitucionais, o legislador optou por estabelecer sanções que se revelassem dissuasoras. Como explica Frederico Lacerda da Costa Pinto, “o merecimento de tutela sancionatória destes bens radica, de uma forma geral, no facto de estar em causa a regularidade e a eficiência de um setor do sistema financeiro, reconhecido constitucionalmente (art. 101.º da Constituição), que desempenha funções económicas essenciais, como a diversificação das fontes de financiamento das empresas, a aplicação de poupanças das famílias ou a gestão de mecanismos de cobertura de risco de atividades e de investimentos” (op. ult. cit., p. 17)».
Apesar de o limite máximo da moldura constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 388.º do CdVM se situar, desde as alterações introduzidas pela Lei n.º 28/2009, de 19 de junho, em € 5.000.000, não há razão para divergir do sentido do juízo formulado no citado aresto.
13. A Lei n.º 28/2009, que teve na sua génese a Proposta de Lei n.º 227/X, procedeu à revisão do regime sancionatório no sector financeiro em matéria criminal e contraordenacional. De acordo com a exposição de motivos que acompanhou a referida Proposta de Lei, aquele diploma pretendeu levar a cabo «a atualização das molduras penais e dos montantes das coimas, que permanec[iam] inalterados desde a década de 90», com o objetivo «de adaptar as molduras das penas e os montantes das coimas à dimensão e características do sector financeiro na atualidade, de reforçar o efeito de punição e de dissuasão associado ao regime sancionatório, bem como de promover o alinhamento das molduras das coimas e das ferramentas processuais nos três sectores financeiros», elevando o limite máximo das coimas «aplicáveis às condutas especialmente graves» até montante máximo de € 5.000.000. Assim sucedeu no âmbito do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro (artigo 211.º), do Regime jurídico do acesso e exercício da atividade seguradora e resseguradora, aprovado Decreto-Lei n.º 94-B/98, de 17 de abril (artigo 214.º, n.º 1), e, no que aqui releva, do CdVM (artigo 388.º, n.º 1, alínea a)). Nos três sectores financeiros abrangidos, o limite máximo da coima aplicável às infrações mais graves foi fixado em € 5.000.000, em termos que se mantêm na atualidade (cf. artigo 211.º, n.º 1, Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, revisto pela última vez pela Lei n.º 58/2020, de 31 de agosto, e artigo 96.º-P do Regime jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora e resseguradora, aprovado pela Lei n.º 147/2015, de 09 de setembro).
Esta tendência para o agravamento do regime sancionatório do direito dos valores mobiliários foi subsequentemente completada pela Lei n.º 28/2017, de 30 de maio, que, conferindo nova redação à alínea c) do n.º 1 do artigo 388.º do CdVM, elevou para o dobro os limites mínimo e máximo da coima aplicável pela prática de contraordenações qualificadas como menos graves.
A Lei n.º 28/2017 - importa notá-lo - transpôs para o ordenamento jurídico português a Diretiva 2014/57/UE, do Parlamento e do Conselho, de 16 de abril de 2014, relativa às sanções penais aplicáveis ao abuso de informação privilegiada e à manipulação de mercado (abuso de mercado), que assumiu, em sintonia com o Regulamento (UE) 596/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014, relativo ao abuso de mercado (cf. artigo 1.º alínea e)) –, o de objetivo «garantir a integridade dos mercados financeiros da União e aumentar a proteção dos investidores e a confiança nesses mercados» (artigo 1.º, n.º 1) (v. considerando 1. da Diretiva 2014/57/UE e considerando 2 do Regulamento n.º 596/2014).
Partindo da constatação de que os regimes sancionatórios dos Estados-Membros eram, então, além de heterogéneos, «em geral, fracos» para assegurar a preservação da integridade do mercado (considerando 3.), a Diretiva 2014/57/UE procurou atualizar o quadro jurídico da União para proteger a integridade do mercado através do sancionamento penal das infrações mais graves, tendo em conta que a «criação de um mercado financeiro integrado e eficiente e o reforço da confiança dos investidores pressupõem que seja garantida a integridade do mercado. O bom funcionamento dos mercados dos valores mobiliários e a confiança do público nesses mercados são uma condição essencial do crescimento económico e da prosperidade» (considerando 1.)
14. Ainda que a propósito das contraordenações previstas no âmbito do regime jurídico aplicável às redes e serviços de comunicações eletrónicas, estabelecido pela Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, este Tribunal teve já oportunidade de se pronunciar sobre a compatibilidade com os princípios da proporcionalidade e da legalidade da fixação entre € 5.000 e € 5.000.000 da coima aplicável a pessoas coletivas pela prática das contraordenações previstas no respetivo âmbito (artigo 113.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2004, na sua redação originária).
Fê-lo no Acórdão n.º 78/2013, onde se escreveu o seguinte:
«A Recorrente, numa segunda linha de argumentação, alega que a moldura legal da coima é manifestamente excessiva, relativamente às consequências da infração, pelo que viola o princípio da proporcionalidade.
O n.º 2, do artigo 113.º, da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, na redação aplicada pela decisão recorrida, prevê a aplicação de uma coima entre € 5.000 e € 5.000.000.
O Tribunal Constitucional tem reconhecido ao legislador ordinário uma livre e ampla margem de decisão quanto à fixação legal dos montantes das coimas a aplicar (ver Acórdãos n.º 304/94, n.º 574/95, n.º 547/00, 67/2011 e 132/2011, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt), ainda que ressalvando que tal liberdade de definição de limites cessa em casos de manifesta e flagrante desproporcionalidade.
Se é verdade que a moldura sancionatória em causa se situa em valores muito elevados, há que ter presente que o cumprimento do dever em causa é essencial à supervisão e fiscalização de um setor de extraordinária relevância social, sendo certo que estas coimas se aplicam apenas a pessoas coletivas e que na área das comunicações operam empresas de enorme dimensão económica (o rendimento anual das empresas do setor nos últimos anos têm atingido cerca de 5% do PIB, segundo dados constantes do Anuário do Setor das Comunicações, edição de 2012 da Anacom, que pode ser consultado em www.anacom.pt,).Além disso, há que ter em conta que pode ocorrer a atenuação especial da punição quando se verifiquem circunstâncias que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de sanção, sendo, nesses casos, os limites da coima reduzidos a metade (artigo 18.º, n.º 3, do Regime Geral das Contraordenações).
Apesar das recentes alterações introduzidas na Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, pela Lei n.º 51/2011, de 13 de setembro, terem reduzido substancialmente os limites mínimo e máximo das coimas aplicáveis a esta contraordenação (a previsão passou a ter como limite mínimo € 1.000 e máximo € 1.000.000 – artigo 113.º, n.º 2, mm) e n.º 7), face às ponderações acima efetuadas não é possível afirmar, num critério de evidência, que a anterior moldura legal das coimas prevista para a violação de deveres de informação à Autoridade reguladora do setor e que foi aplicada pela decisão recorrida seja manifestamente excessiva, por se revelar flagrantemente desproporcionada relativamente à infração sancionada.
Finalmente, a Recorrente alega que a moldura legal da coima é demasiado abrangente, violando por isso o princípio da legalidade.
Num Estado de direito democrático a prevenção do crime deve ser levada a cabo com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, estando sujeita a limites que impeçam intervenções arbitrárias ou excessivas, nomeadamente sujeitando-a a uma aplicação rigorosa do princípio da legalidade, cujo conteúdo essencial se traduz em que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege). É neste sentido que o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, dispõe que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.
Não se pode afirmar que as exigências deste princípio valham no direito de mera ordenação social com o mesmo rigor que no direito criminal. Aliás nem sequer existe no artigo 29.º da Constituição, que se refere às garantias substantivas do direito criminal, um preceito semelhante àquele que existe no artigo 32.º, a respeito das garantias processuais, alargando-as, com as necessárias adaptações, a todos os outros processos sancionatórios (artigo 32.º, n.º 10). Contudo, sendo o ilícito de mera ordenação social sancionado com uma coima, a qual tem repercussões ablativas no património do infrator, também aqui se devem respeitar os princípios necessariamente vigentes num Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), como os da segurança jurídica, da proteção da confiança e da separação de poderes (vide, neste sentido, os Acórdãos n.º 41/2004 e 397/12, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
O problema que neste caso é colocado é o de uma eventual violação do princípio da legalidade pela excessiva amplitude existente entre a medida mínima e a medida máxima da coima. Em última análise, a excessiva amplitude tornaria imprevisível a sanção e transferiria incontrolavelmente para o aplicador da lei a fixação da sanção que, em rigor, cabe ao legislador, o que ofenderia os princípios constitucionais acima referidos.
A aplicação de uma coima tem sempre que ponderar a dimensão da gravidade do facto, da culpa do agente e da sua situação económica, não podendo a moldura fixada na lei deixar de ter uma amplitude que permita ao aplicador adequá-la às particularidades do caso concreto.
[…] A simples previsão de aplicação de uma coima entre € 5.000 e € 5.000.000 que constava da redação da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, aplicada pela decisão recorrida, foi entretanto substituída, pelas já referidas alterações introduzidas pela Lei n.º 51/2011, de 13 de setembro, por um sistema complexo de previsão de coimas que, classificando o incumprimento do dever de prestar as informações consagrado no artigo 108.º, n.º 1 e 3, como uma contraordenação grave (alínea mm), do n.º 2, do artigo 113.º), no n.º 7, do mesmo artigo 113.º, estabeleceu diversas molduras sancionatórias para as pessoas coletivas, de acordo com a sua dimensão:
[…]
Desta nova sistematização técnica da definição da moldura legal das coimas resulta seguramente uma maior previsibilidade do valor da coima aplicável, assim como uma significativa diminuição da liberdade do julgador na fixação do valor da coima a aplicar no caso concreto.
Esta constatação não significa, porém, que a amplitude da anterior previsão, na qual a decisão recorrida se moveu, ofendesse necessariamente os invocados princípios estruturantes do Estado de Direito democrático, da segurança jurídica, da proteção da confiança e da separação de poderes.
Ora, se a inobservância do dever que é sancionada pela contraordenação aqui em análise justifica, pela decisiva importância do cumprimento desse dever e pelo facto de se encontrarem entre os seus destinatários pessoas coletivas de considerável dimensão económica, a previsão de limites bastante elevados para a respetiva coima, também não é menos verdade que uma grande diversidade da relevância das informações a prestar e da dimensão económica das diferentes empresas a operar no setor das comunicações exige também uma grande maleabilidade da previsão legal, de forma a permitir ao aplicador adequar a coima às circunstâncias do caso.
Apesar de ser possível, como ficou demonstrado, o recurso a uma técnica legislativa que reduzisse a margem de liberdade do aplicador na definição da medida da coima a fixar no caso concreto, pode dizer-se que a enorme distância entre o limite mínimo e o máximo da coima (1000 vezes) não deixa de ser, como foi referido nos Acórdãos nº 574/95 e 41/2004 deste Tribunal (acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt), relativamente a uma diferente previsão contraordenacional, “um tributo justificado do princípio da legalidade ao princípio da culpa”.
Os limites estabelecidos na previsão sob fiscalização, ainda assim, não deixam de balizar as opções do aplicador numa medida que, atendendo às especificidades da infração e dos seus agentes, constitui um sacrifício tolerável das exigências de determinabilidade da previsão legal sancionatória.
Por estas razões não é possível afirmar que a norma sob fiscalização viole os princípios da legalidade, da segurança jurídica, da proteção da confiança, da separação de poderes e da proporcionalidade, imanentes a um Estado de Direito democrático, nem qualquer outro parâmetro constitucional, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente.»
Tendo em conta os critérios seguidos no Acórdão n.º 78/2013, dos quais se não vê razão para divergir, impõe-se concluir que moldura fixada no artigo 388.º, n.º 1, alínea a), do CdVM, não viola as exigências decorrentes dos princípios da proporcionalidade e da determinabilidade das sanções.
15. Como atrás se viu, o agravamento da natureza das contraordenações associadas à violação dos deveres de informação que impendem sobre os intervenientes nos mercados financeiros foi um dos objetivos assumidos, primeiro pela Lei n.º 28/2009 e, subsequentemente, pela Lei n.º 28/2017, esta em concretização das preocupações subjacentes à Diretiva 2014/57/UE.
Aliás, o considerando (18) da Diretiva 2014/57/UE, para efeitos de prossecução do referido objetivo de assegurar a integridade dos mercados financeiros por via da imposição, pelos Estados membros, de sanções penais ou não penais que sejam eficazes, proporcionais e dissuasivas, não deixa de fazer apelo, como exemplo, às sanções previstas no Regulamento (UE) n.º 596/2014 – cujo regime de sanções administrativas, dotado de aplicabilidade direta, prevê, relativamente a certas condutas violadoras dos seus preceitos, a aplicação, a pessoas singulares, de coimas máximas correspondentes a, pelo menos, 5.000.000 Euros (cf. artigo 30.º, n.º 2, alínea i), i)). Deste modo, a tendência para o agravamento do regime sancionatório do direito dos valores mobiliários nacional encontra respaldo no próprio regime contido em normas europeias que vinculam os Estados membros, seja quanto ao próprio regime definido por regulamento, seja quanto às finalidades fixadas em ato de direito derivado de harmonização de legislações.
Tendo em conta que a qualidade da informação prestada às autoridades de supervisão é decisiva para assegurar a transparência e o rigor das atividades de negociação nos mercados de instrumentos financeiros e a consequente proteção dos investidores, a fixação no máximo de € 5.000.000 da coima aplicável pela prestação à entidade de regulação e de supervisão de «informação que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita» não pode ser considerada, inclusivamente à luz das indicações extraíveis do direito da União, uma sanção manifesta e claramente excessiva, suscetível de ser censurada sub specie constitutionis. Uma vez que só a prestação à entidade de regulação e supervisão de informação com os requisitos exigidos no artigo 7.º do CdVM permitirá assegurar aquele desiderato, a sanção associada à contraordenação prevista no artigo 389.º, n.º 1, alínea c), do mesmo Código, não pode considerar-se arbitrária e ou excessiva, nem do ponto de vista da gravidade absoluta da conduta, nem mesmo na perspetiva da sua gravidade relativa. Esta é aferida através da confrontação da conduta sancionada com outras punidas no mesmo ou em âmbitos contraordenacionais congéneres, o que, tendo em conta o âmbito material da Lei n.º 28/2009 (supra, n.º 13), afasta em definitivo a violação do princípio da proporcionalidade das sanções, tanto mais quanto certo é que, nos casos em que se justifique a atenuação da punição, o limite máximo de € 5.000.000 é reduzido para metade (artigo 18.º, n.º 2, do Regime Geral das Contraordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, adiante designado pela sigla RGCO).
Resta verificar se a amplitude da moldura fixada no artigo 388.º, n.º 1, alínea a), do CdVM, é excessiva ao ponto de transferir do legislador para o julgador o poder de definir a sanção aplicável.
Tal como se concluiu no Acórdão n.º 78/2013 a propósito de moldura sancionatória com amplitude superior, a resposta é negativa. Aqui como ali, trata-se essencialmente de conferir à sanção aplicável a elasticidade necessária a acomodar os distintos níveis de desvalor da conduta, tendo em conta quer a diferenciada relevância das informações a prestar em cada momento à entidade de regulação e de supervisão, quer o diferente grau de incompletude, inverdade, ambiguidade ou falta de atualidade de que essa informação pode em concreto revestir-se, quer ainda a dissemelhante dimensão económica das diferentes entidades a operar no mercado dos valores mobiliários, sempre de forma a permitir ao aplicador adequar a coima às circunstâncias do caso.
Assim, apesar de «o princípio da legalidade das sanções [...] e, bem assim, o princípio da proibição de sanções de duração ilimitada ou indefinida vale[rem], na sua ideia essencial, para todo o direito público sancionatório, maxime, para o domínio do direito de mera ordenação social» (Acórdão n.º 574/95), não é possível afirmar que a norma sob fiscalização viole as exigências a que ambos sujeitam a definição das coimas aplicáveis.
Em suma: a norma que resulta da conjugação dos artigos 7.º, 388.º, n.º 1, a), e 389.º, n.º 1, alínea c), todos do CdVM, ao prever que a prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita ou a omissão dessa prestação gera uma contraordenação muito grave, punível com coima que pode atingir o valor máximo de cinco milhões de euros, não viola os princípios da tipicidade e da proporcionalidade, consagrados, respetivamente, nos artigos 29.º, n.ºs 1 e 3, e 18.º, n.º 2, da Constituição, devendo o recurso ser julgado improcedente nesta parte.
B. O «segundo complexo normativo»
16. A segunda questão de constitucionalidade colocada pelo recorrente incide sobre «o complexo normativo formado pela Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, com a redação conferida pelo artigo 2.º e 6.º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020, de 06.04 e artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29.05, quando determina a aplicação aos processos pendentes da suspensão do prazo substantivo de prescrição do procedimento contraordenacional neles prevista»; ou, numa formulação alternativa, sobre os «artigos 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, 6.º, n.º 2, da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, e 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, em concatenação normativa com os artigos 29.º do Código Penal e 5.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, estes por remissão do estatuído nos artigos 32.º e 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, quando determinem a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a [factos] anteriores à sua vigência e com isso determinarem a aplicação em modo retroativo de lei mais gravosa para o agente do ilícito a quem são imputados atos antecedentes à sua entrada em vigor».
Nas alegações que apresentou, o próprio recorrente reconhece que se trata, na verdade, de duas «formulações essencialmente homogéneas» da mesma norma jurídica, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada; isto é, a norma que determina a aplicação da causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional introduzida pela Lei n.º 1-A/2020 (artigo 7.º, n.º 3 e 4), mantida sem alterações pela Lei n.º 4-A/2020, que produziu efeitos a 9 de março de 2020 (artigo 6.º, n.º 2), e revogada pela Lei n.º 16/2020 com efeitos a 3 de junho (artigos 8.º e 10.º), aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência. É esta a proposição prescritiva que o recorrente considera violar a proibição de aplicação retroativa da lei penal de conteúdo desfavorável e o princípio da igualdade, constantes, respetivamente, dos artigos 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, e 13.º, n.º 1, da Constituição, bem como o n.º 6 do respetivo artigo 19.º, parâmetro aditado em alegações.
Para melhor compreender a solução impugnada, é útil começar por enquadrá-la no âmbito da sucessão de diplomas que foram aprovados, quer pela Assembleia da República, quer pelo Governo, para responder à emergência de saúde pública de âmbito internacional originada pelo surgimento do coronavírus SARS-CoV-2 e da doença Covid-19, declarada pela Organização Mundial de Saúde no dia 30 de janeiro de 2020 e qualificada como pandemia no dia 11 de março de 2020.
16.1. Antes ainda da declaração do primeiro estado de emergência em Portugal, ocorrida através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março de 2020, o Governo adotou um primeiro conjunto de «medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus - COVID 19», de carácter transversal, através do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março. Em matéria de atos e diligências processuais e procedimentais, estabeleceu-se aí, em termos que ainda hoje vigoram, a suspensão dos prazos para a prática de atos processuais ou procedimentos que devessem ser praticados junto de tribunais, designadamente judiciais, cujas instalações tivessem sido encerradas ou nas quais o atendimento presencial tivesse sido suspenso, por decisão de autoridade pública com fundamento no risco de contágio do COVID-19, enquanto perdurasse tal encerramento ou suspensão (artigo 15.º, n.º 1).
O diploma entrou em vigor no dia 14 de março (artigo 36.º), produzindo efeitos a 3 de março de 2020 relativamente, entre outras, às normas previstas para atos e diligências processuais e procedimentais (artigo 37.º).
16.2. Ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020 seguiu-se a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março — publicada, portanto, no dia seguinte ao decretamento do estado de emergência —, que complementou a disciplina constante daquele primeiro diploma através da aprovação de um novo conjunto de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e pela doença COVID-1.
Produzindo «efeitos à data da produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março» (artigo 10.º) — efeitos estes que ratificou (artigo 1.º, alínea a)) — a referida Lei veio estabelecer, no seu artigo 7.º, um conjunto de medidas relativas a prazos e diligências. Assim, os «atos processuais e procedimentais que dev[essem] ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos» a correr termos, designadamente, nos tribunais judiciais passaram a estar sujeitos ao «regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19» (n.º 1), «em data a definir por decreto-lei, no qual se declara[ria] o termo da situação excecional» (n.º 2). Paralelamente, esta passou a constituir «igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos» (n.º 3), prevalecendo tal regra «sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional» (n.º 4).
Para os processos urgentes pendentes nos tribunais judiciais — isto é, aqueles que, por força do disposto nos artigos 138.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e 104.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, correm termos durante as férias judiciais —, o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 estabeleceu um regime especial de suspensão dos prazos para a prática de atos (n.º 5), com ressalva da prática de quaisquer atos processuais e procedimentais através de meios de comunicação à distância adequados, sempre que tecnicamente viável (n.º 8), bem como da realização presencial dos atos e diligências urgentes em que estivessem em causa direitos fundamentais, desde que a sua realização não implicasse a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes (n.º 9).
16.3. A Lei n.º 1-A/2020 foi alterada, pela primeira vez, pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril.
Para além de incluir uma norma interpretativa da Lei n.º 1-A/2020 — de acordo com a qual o «artigo 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, deve[ria] ser interpretado no sentido de ser considerada a data de 9 de março de 2020, prevista no artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, para o início da produção de efeitos dos seus artigos 14.º a 16.º, como a data de início de produção de efeitos das disposições do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março» (artigo 5.º) —, a Lei n.º 4-A/2020 procedeu, no seu artigo 2.º, à alteração dos artigos 7.º e 8.º daquela.
No que diz respeito ao artigo 7.º — aquele que aqui releva —, tal alteração consistiu na substituição da referência ao regime das férias judiciais que até então vigorava em matéria de prazos e de diligências, pela suspensão, pura e simples, «de todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que dev[essem] ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos» a correr termos, designadamente, nos tribunais judiciais, «até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19» (n.º1), a decretar nos termos que resultavam já da previsão do respetivo n.º 2. Enquanto perdurasse, a situação excecional continuou a constituir causa de suspensão dos prazos de prescrição relativos a todos os tipos de processos e procedimentos, regra cuja prevalência se manteve sobre quaisquer regimes que estabelecessem prazos máximos imperativos de prescrição (n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º, cuja redação não foi alterada).
O regime especialmente previsto para os processos urgentes foi igualmente modificado.
Por força da nova redação conferida ao n.º 7 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, estes continuaram a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências, desde que fosse «possível» e «adequado» assegurar a prática de atos ou a realização de diligências com observância das regras de distanciamento físico estabelecidas nas respetivas alíneas a) e b); não o sendo, aplicar-se-lhes-ia o regime de suspensão de todos os prazos fixado no n.º 1 para os processos e procedimentos em geral (alínea c)).
Por força do artigo 6.º da Lei n.º 4-A/2020, a nova redação conferida ao artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 produziu os seus efeitos a 9 de março de 2020, com exceção dos preceitos aplicáveis aos processos urgentes.
16.4. O artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 veio a ser integralmente revogado pela Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, que alterou as medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença Covid-19, produzindo os seus efeitos a partir do dia 3 de junho (artigos 8.º e 10.º). Em sua substituição, foi aditado à Lei n.º 1-A/2020 o artigo 6.º-A, que estabeleceu um regime processual transitório e excecional para as diligências a realizar no decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, no âmbito dos processos e procedimentos a correr termos, designadamente, nos tribunais judiciais.
17. Inscrevendo-se no contexto normativo acima descrito, a questão de constitucionalidade colocada pelo recorrente diz respeito a saber se a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional introduzida pelo artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020 - que vigorou sem alterações desde o dia 9 de março de 2020 (artigo 5.º da Lei n.º 4-A/2020) até ao dia 3 de junho de 2020 (artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020) -, pode aplicar-se aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência sem com isso originar a violação das normas da Constituição que consagram a proibição de aplicação retroativa da lei penal in malam partem (artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4), o princípio da igualdade (artigo 13.º, n.º 1) e os limites materiais da declaração do estado de emergência (artigo 19.º, n.º 6).
Antes de prosseguirmos para a análise da questão que assim foi configurada, há um ponto que convém ser clarificado.
Para além dos artigos 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, e 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, acima mencionados, o arco-legal identificado pelo recorrente inclui ainda o artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 4-A/2020, preceito que, conforme visto, fixou em 9 de março de 2020 a data da produção de efeitos daquele artigo 7.º, «na redação introduzida» por esta Lei. Sucede que, conforme visto também, os n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 não foram alterados pela Lei n.º 4-A/2020, razão pela qual lhes não é aplicável o disposto no n.º 2 do referido artigo 6.º. Embora a vigência da causa de suspensão ali prevista se haja iniciado, de facto, a 9 de março de 2020, trata-se de um efeito produzido direta e exclusivamente pela norma interpretativa que veio a constar do artigo 5.º da Lei n.º 4-A/2020, a qual, tendo por objeto o artigo 10.º da Lei n.º 1-A/2020, fixou «como a data de início de produção de efeitos das disposições do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020» o dia 9 de março de 2020.
Do ponto de vista da delimitação do objeto do recurso, decorrem daqui duas importantes consequências.
A primeira é que o preceito constante do n.º 2 do artigo 6.º da Lei n.º 4-A/2020 não integra a base-legal que suporta - rectius, que é apta a suportar - a solução normativa impugnada. Respeitando à aplicação a processos pendentes por factos praticados antes do início da respetiva vigência da causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional cuja fixação integrou o conjunto de medidas aprovadas pela Assembleia da República para fazer face à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, a interpretação impugnada procede, na realidade, apenas dos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, preceitos que vigoraram até 3 de junho de 2020, data em que produziu efeitos a Lei n.º 16/2020, que procedeu à respetiva revogação.
A segunda consequência prende-se com o exato âmbito da questão de constitucionalidade enunciada pelo recorrente. Tal como delimitado no requerimento de interposição, o objeto do recurso não contempla a questão relativa ao início da vigência da causa de suspensão do prazo de prescrição prevista nos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, que este diploma determinou produzir «efeitos à data da produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março» (artigo 10.º), e a Lei n.º 4-A/2020 veio fixar, através de norma interpretativa, em 9 de março de 2020 (artigo 5.º). Para além de não ter sido específica e autonomamente enunciada pelo recorrente, tal questão pressuporia, conforme se viu, a convocação de base legal diversa daquela que foi precisada pelo recorrente, o que a coloca fora do âmbito do objeto do recurso. Este é integrado pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, interpretados no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, sendo essa a norma que se impõe seguidamente apreciar.
18. Já em sede de alegações, o recorrente invocou a incompatibilidade da interpretação impugnada com o artigo 19.º, n.º 6, da Constituição, respeitante à suspensão do exercício de direitos no âmbito da declaração de estado de sítio ou de emergência. No segmento tido em vista pelo recorrente, estabelece-se aí que «[a] declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar […] a não retroatividade da lei criminal […]».
Tendo em conta que a interpretação impugnada deriva de preceitos constantes de Lei aprovada pela Assembleia da República, a invocação de parâmetro extraído do n.º 6 do artigo 19.º da Constituição não tem razão de ser.
Vejamos porquê.
O artigo 134.º, alínea d), da Constituição, comete ao Presidente da República a competência para declarar o estado de sítio ou o estado de emergência, mediante audição do Governo e autorização da Assembleia da República (artigo 138.º, n.º 2). De acordo com o disposto na Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, alterada pela Lei Orgânica n.º 1/2012, de 11 de maio (Lei Orgânica que estabelece o Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência − LOESEE), tal competência é exercida através de um decreto (artigo 11.º), cujo conteúdo inclui, entre o mais, a «[e]specificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso ou restringido» (artigo 14.º, n.º 1, alínea d)).
O decreto presidencial traça o âmbito do poder de execução da declaração do estado de sítio ou do estado de emergência cometido ao Governo (artigo 17.º da LOESEE). Este poder compreende a tomada das «providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional» (artigo 19.º, n.º 8, da Constituição), com respeito pelo «princípio da proporcionalidade», designadamente quanto aos «meios utilizados» (artigo 19.º, n.º 4, da Constituição). Tais providências, que caducam com a declaração presidencial, incluem a adoção de medidas materiais e normativas, através das quais se efetiva a suspensão ou restrição do exercício dos direitos, liberdades e garantias especificados no decreto presidencial (cf. Acórdão n.º 352/2021).
Em traços largos, é este o âmbito em que opera a cláusula de salvaguarda - ou o limite dos limites - constante do n.º 6 do artigo 19.º da Constituição.
Ao estabelecer que a «declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião», o n.º 6 do artigo 19.º dirige-se exclusivamente aos poderes de emergência que emergem do estado de exceção constitucional: (i) ao poder de declaração, na medida em que veda ao Presidente da República a possibilidade de decretar a suspensão ou a limitação do exercício dos direitos, liberdades e garantias constantes do elenco; e (ii) ao poder de execução, na medida em que o Governo, nas providências que lhe compete adotar, apenas pode atingir negativamente os direitos, liberdades e garantias especificados no decreto presidencial.
Nas palavras do Acórdão n.º 352/2021, «este poder normativo [do Governo] é absolutamente excecional e não inibe o uso regular do poder legislativo normal. O seu exercício baseia-se num título extraordinário (a declaração do estado de exceção), reveste carácter temporário (a vigência do decreto presidencial) e é orientado a uma finalidade específica (a restauração da normalidade constitucional)». São os riscos próprios desta ampliação anormal das competências do poder executivo através da atribuição de amplas prerrogativas num domínio por excelência reservado à lei parlamentar (alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição) que o limite traçado no artigo 19.º, n.º 6, da Constituição pretende mitigar: através da definição do elenco de direitos, liberdades e garantias inacessíveis aos poderes de emergência, a Constituição «exclui liminarmente que o juízo sobre a matéria seja realizado pelos poderes constituídos num cenário de crise potencialmente caracterizado por insuficiência epistémica e risco acrático – por outras palavras, num contexto de elevada probabilidade de erro e tentação de abuso» (idem).
Tais considerações permitem demonstrar a razão pela qual o parâmetro extraído do n.º 6 do artigo 19.º da Constituição, aditado pelo recorrente em alegações, não é útil nem apropriado para contraditar a validade constitucional da solução impugnada. Esta não decorre de normas emitidas pelo Governo em execução da declaração do estado de emergência constante do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020 ou de qualquer uma das suas sucessivas renovações; decorre antes de normas constantes de Lei aprovada pela Assembleia da República no exercício da sua normal competência legislativa, o qual não é inibido, nem condicionado pela declaração do estado de emergência.
É por isso que o vício de inconstitucionalidade apontado pelo recorrente, a existir, só poderá resultar da confrontação direta com a proibição de aplicação retroativa da lei penal de conteúdo desfavorável, consagrada no artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição, do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, na interpretação segundo a qual a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência.
19. Tal como exposta nas alegações produzidas junto deste Tribunal, a tese sustentada pelo recorrente para demonstrar a incompatibilidade da norma sindicada com a proibição de aplicação retroativa da lei penal de conteúdo desfavorável assenta nas seguintes premissas: (i) as normas jurídicas que disciplinam a prescrição do procedimento contraordenacional têm natureza jurídica idêntica às normas que integram o instituto da prescrição do procedimento criminal, estando por isso sujeitas ao mesmo regime constitucional; (ii) tal como as normas que definem o prazo de prescrição do procedimento criminal e estabelecem as causas da sua interrupção, também as normas que tipificam as respetivas causas de suspensão revestem natureza material, encontrando-se sujeitas aos limites que a Constituição fixa à aplicação da lei criminal substantiva nos mesmos exatos termos em que o estão as normas que definem as ações e omissões puníveis e determinam as penas correspondentes; (iii) qualquer norma que preveja uma nova causa de suspensão do decurso do prazo de prescrição, ainda que constante de legislação temporária ou de legislação de emergência, não pode produzir efeitos em processos pendentes por factos praticados antes do início da respetiva vigência sem com isso violar a proibição constante do artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição; (iv) esta proibição constitui uma salvaguarda constitucional não derrotável por razões de «superior interesse público», cujo valor é, em concreto, além do mais relativo, como o demonstra a circunstância de os «próprios prazos processuais terem continuado a correr e a impor-se, com o processo a ser tramitado».
Para além de contar já com algum apoio doutrinário (v., neste sentido, José Joaquim Fernandes Oliveira Martins “A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março – uma primeira leitura e notas práticas”, Revista Julgar Online, março de 2020, disponível em http://julgar.pt/a-lei-n-o-1-a2020-de-19-de-marco-uma-primeira-leitura-e-notas-praticas/, p. 7, e Rui Cardoso/Valter Baptista, Estado de Emergência - COVID-19 Implicações na Justiça, Centro de Estudos Judiciários, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/eb_Covid19_2Edicao.pdf, p. 533-536), a tese sustentada pelo recorrente dispõe de um expressivo lastro jurisprudencial.
Nos acórdãos proferidos em 21 de julho de 2020 (Processo n.º 76/15.6SRLSB.L1-5, disponível, tal como os demais adiante referidos, em http://www.dgsi.pt/) e 24 de julho de 2020 (Processo n.º 128/16.5SXLSB.L1-5), o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que a «causa de suspensão dos prazos de prescrição […] relativos a todos os tipos de processos e procedimentos», prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, não é aplicável aos processos pendentes por factos praticados em momento anterior ao início da respetiva vigência sob pena de violação do disposto no artigo 29.º da Constituição — mais concretamente do respetivo o n.º 4, uma vez que em ambas as decisões estava em causa a prescrição da pena aplicada nos autos.
Partindo da conceção da prescrição como uma categoria exclusiva ou predominantemente material, ligada à dignidade punitiva do facto e sujeita aos mesmos princípios que valem para as normas que tipificam os ilícitos penais, os arestos citados extraíram dela duas distintas conclusões: a primeira é que as normas relativas à prescrição, aos seus prazos e às respetivas causas de suspensão e de interrupção se encontram sujeitas à proibição da aplicação retroativa da lei penal e à imposição da aplicação retroativa da lei penal de conteúdo mais favorável, sendo o momento ou critério relevante o tempus delicti (artigo 2.º. n.º 1, do Código Penal); a segunda é que a tal asserção não admite qualquer ressalva ou desvio, ainda que se trate da aplicação de uma causa de suspensão do prazo de prescrição prevista em normas excecionais, temporárias e de emergência. Tal entendimento veio a ser, no essencial, reafirmado no acórdão da mesma Relação de 9 de março de 2021 (Processo n.º 207/09.5PAAMD-A.L1-5), ainda que, tratando-se também aí de um problema de prescrição da pena, o momento apontado para a determinação da lei aplicável tenha sido o do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Sem grandes variações de base argumentativa, a orientação prevalecente no Tribunal da Relação de Lisboa veio a ser secundada pelos Tribunais da Relação de Évora e do Porto, em decisões de 23 de fevereiro de 2021 (Processo n.º 201/10.3GBVRS.E1) e de 14 de abril de 2021 (Processo n.º 300/19.6Y9PRT-B.P1), respetivamente, a primeira relativa à prescrição do procedimento criminal e, a segunda, à prescrição da coima. Em ambos os referidos arestos vingou uma vez mais o entendimento de que a aplicação da causa de suspensão da prescrição do procedimento e das sanções, estabelecida no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, a factos praticados em momento anterior ao início da respetiva vigência constitui necessariamente uma aplicação retroativa de normas em sentido mais gravoso para o agente do ilícito, consequência proscrita pela proibição contida no artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição.
20. Apesar de maioritária, a orientação jurisprudencial acabada de expor não é, todavia, unânime.
Em acórdão de 11 de fevereiro de 2021 (Processo n.º 89/10.4PTAMD-A.L1-9), o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que a «suspensão do prazo de prescrição previsto no art.º 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020 não se traduz numa decisão mais gravosa para o arguido, pois o prazo de prescrição da pena mantém-se rigorosamente o mesmo, antes e depois da vigência da citada lei. A única diferença é que, esta, por razões de superior interesse público, suspendeu-o temporariamente, para voltar, depois, a correr».
Na base desta distinta compreensão do problema e da diferente solução que para ele foi alcançada encontra-se o relevo atribuído ao especial recorte e à particular função da causa de suspensão da prescrição estabelecida no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020. Isto é, ao facto de o estabelecimento dessa causa de suspensão se inserir num conjunto de medidas excecionais destinadas a fazer face à crise pandémica global, em virtude da qual «o país e o mundo quase pararam», e se justificar «pelo facto de as diligências processuais com vista à execução da pena em que o arguido fo[ra] condenado, por força da respetiva infeção epidemiológica, terem deixado de poder ser exercidas com a eficácia e prontidão previstas e exigíveis em circunstâncias normais». Nestas circunstâncias, a alegação de que a «aplicação do n.° 3 do art. 7.° da Lei n.° 1-A/2020, de 19-03, violaria o princípio da proibição da aplicação da lei penal mais desfavorável, consagrado no art. 29.°, n.° 1 e 4 da CRP, e no art. 2.°, n.° 1 e 4 do CP», a ser julgada procedente, equivaleria, na perspetiva ainda do Tribunal, à concessão de «um injustificável “benefício ao infrator”»: o «prazo de prescrição da pena não se suspenderia e o arguido também tinha a certeza, por outro lado, de que, por força da mesma lei, diligências processuais não poderiam, entretanto, ser desencadeadas no sentido da execução da referida pena».
Esta orientação acabou por ser mais extensamente desenvolvida, agora a propósito da prescrição da coima, em acórdão da mesma Relação de 13 de março de 2021 (Processo n.º 309/20.7YUSTR.L1-PICRS), cuja fundamentação o Tribunal aqui recorrido integralmente secundou para concluir, no acórdão de 6 de abril de 2021, que o procedimento contraordenacional instaurado contra o recorrente não se encontra prescrito. Reproduzindo a linha argumentativa seguida naquele aresto, o Tribunal a quo considerou que a aplicação da causa de suspensão do prazo prescricional prevista no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 a processos pendentes por factos anteriores ao início da sua vigência não viola a Constituição, conclusão que extraiu de um conjunto de premissas de sentido oposto àquelas que sustentam a tese defendida pelo aqui recorrente.
No essencial, as premissas enunciadas no acórdão recorrido podem resumir-se nos seguintes termos: (i) ao ressalvar expressamente os casos previstos na lei, o n.º 1 do artigo 27.º-A do RGCO contém um elenco não taxativo das causas de suspensão da prescrição, que podem constar de «um diploma autónomo e […] posterior», já que «o princípio da confiança não reclama que se materialize a possibilidade de serem conhecidas todas as causas de suspensão do prazo de prescrição no momento da consumação»; (ii) a causa de suspensão da prescrição prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, «tem relação umbilical com a crise sanitária», na medida em que traduz a «resposta legislativa a uma vera impossibilidade física, a saber, a de promover e materializar a tramitação dos processos em virtude do confinamento de emergência»; (iii) a aplicação da referida causa de suspensão a processos pendentes por factos cometidos em momento anterior à respetiva vigência não evidencia uma situação de «retroatividade direta ou de primeiro grau, no sentido de aplicação de regra nova a contexto passado», mas antes a «aplicação de preceito a quadro temporal futuro relativo a realidade contemporânea – a pendência processual»; e (iv) a «inexistência de uma verdadeira retroatividade e o carácter específico da jurisdição de mera ordenação social afastam liminarmente que se possa equacionar uma violação do disposto no n.º 4 do 29.º da CRP».
Tendo sido este o percurso argumentativo levado a cabo pelo Tribunal recorrido, vejamos se e em que medida merece ele confirmação.
21. Ao considerar que a aplicação imediata da causa de suspensão da prescrição prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, não integra uma hipótese de «retroatividade direta ou de primeiro grau, no sentido de aplicação de regra nova a contexto passado» — mas antes, depreende-se, uma situação de retroatividade inautêntica ou imprópria, própria das normas que preveem inovadoramente consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor, mas que se mantêm nessa data -, o Tribunal a quo não só aderiu a uma conceção do instituto da prescrição inteiramente distinta daquela que é defendida pelo recorrente, como acabou por alinhar, ainda que sem o dizer, com a posição que, a propósito das normas que procedem ao alargamento dos prazos de prescrição, vem sendo sufragada por importantes sectores da doutrina estrangeira, sobretudo germânica e italiana, assim como pelo TEDH e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (adiante, «TJUE»).
A tese defendida pelo recorrente pode resumir-se do seguinte modo: a prescrição do procedimento criminal constitui uma causa de extinção da responsabilidade penal (ou um pressuposto negativo da punibilidade), o que determina que todas as normas que integram o respetivo regime — isto é, as normas que fixam os prazos de prescrição e as normas que estabelecem as respetivas causas de suspensão e de interrupção — pertençam ao direito penal substantivo e se encontrem sujeitas, por força dessa sua localização, ao regime de vigência temporal previsto para a lei penal substantiva, quer na dimensão integrada pela proibição da retroatividade da lei nova, quer na relativa à aplicação do regime da lei penal mais favorável.
A conceção subjacente ao acórdão recorrido opõe-se-lhe em quase toda a linha. Na base desta parece encontrar-se a ideia segundo a qual a resposta à questão de saber se certa norma do regime da prescrição — aqui, o n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 — se acha ou não sujeita à incidência do artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição, não decorre, pelo menos em definitivo, da opção que previamente se faça quanto à natureza material, processual ou mista daquele instituto; depende antes de se verificarem ou não, relativamente a ela, as razões subjacentes à proibição da aplicação da lei penal a factos cometidos antes do início da sua vigência (neste sentido, v. Claus Roxin, Derecho Penale, Parte Generale, Tomo I, 2.ª edição, trad. de Diego-Manuel Luzon Peña e Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Madrid, 1997, Civitas, p. 165). De acordo com o Tribunal a quo, tais razões têm na sua génese «o princípio da confiança» — o agente orienta o seu comportamento confiando que o mesmo será apreciado de acordo com a lei em vigor no momento em que decide levá-lo a cabo (idem, p. 989) — e este não é posto em causa pela fixação, em momento posterior à prática do ilícito, de uma nova causa de suspensão do prazo prescricional. Uma vez que o estabelecimento de uma nova causa de suspensão tem como efeito diferir para um momento ulterior o termo final do prazo previsto, a orientação sufragada pelo Tribunal recorrido é perfeitamente ilustrável através do exemplo dado por Roxin para justificar a viabilidade da aplicação das normas que ampliam os prazos de prescrição a factos cometidos antes do início da respetiva vigência: «um orador parlamentar recorrerá sem receio ao emprego de palavras fortes por saber que beneficia da proteção concedida pelo § 36 e que dela não poderá ser posteriormente privado; mas ninguém pode confiar em que não será castigado porque se vai produzir a prescrição do procedimento» (ibidem).
As consequências desta construção, que o Tribunal recorrido em parte explicitou, são fáceis de antecipar: em matéria de prescrição, a confiança do agente apenas será violada se a aplicação imediata da lei nova determinar a reabertura de prazos de prescrição já integralmente decorridos. Ao «produzir-se a prescrição, o autor fica impune e pode confiar nisso»; se, posteriormente, se viesse a considerar que a prescrição, afinal, não se produzira, «isso suporia uma posterior (re)fundamentação da punibilidade, contrária ao fim do art. 103 II da GG», preceito da Grundgesetz que consagra a proibição da aplicação retroativa da lei penal (ibidem).
Na doutrina italiana, esta perspetiva é defendida por Giorgio Marinucci e Emilio Dolcini, autores que, na linha de Roxin (idem, p. 165), admitem claramente que uma lei nova alargue o prazo de prescrição em curso, desde que este não se tenha ainda esgotado. Assim, nos casos em que a lei nova amplia a duração do tempo necessário para que se verifique a prescrição, importará distinguir a hipótese «em que, à data da entrada em vigor da lei, já decorreu o tempo da prescrição do crime, da situação em que a prescrição ainda não está concluída. No primeiro caso, a aplicação retroativa da nova disciplina é inadmissível: decorrido o tempo necessário para que ocorra a prescrição, o agente deixa de poder ser punido e deverá poder confiar neste estado de coisas […]». Ao contrário, «qualquer ampliação do prazo que intervenha antes de verificada a prescrição de acordo com a lei vigente à data da prática do crime […] pode aplicar-se aos factos cometidos antes do início da sua entrada em vigor. Esta aplicação não atenta contra o princípio da irretroatividade: a ratio deste princípio é tutelar a expetativa do cidadão em saber previamente se e em qual medida poderá vir a ser punido, e não já fazê-lo saber por quanto tempo deverá permanecer escondido após o cometimento do facto até poder voltar tranquilamente à vida do dia a dia. É evidente que o autor do crime pode fazer cálculos desta natureza, mas o princípio da irretroatividade não está orientado para a proteção de semelhantes cálculos» (Manuale di Diritto Penale, Parte Generale, Milão, 2004, Giuffrè Editore, p. 59).
22. A construção exposta – cujo essencial acaba por reconduzir-se à ideia de que a retroatividade proibida em matéria de prescrição do procedimento criminal tem como marco temporal de referência, não o facto criminoso, mas o terminus do prazo prescricional fixado na lei em vigor à data da respetiva prática —, encontra igualmente respaldo na jurisprudência do TEDH. No julgamento do caso Coëme and Others v. Belgium, em acórdão datado de 22 de junho de 2000, o TEDH distinguiu expressamente a questão de saber se o n.º 1 do artigo 7.º da Convenção é violado por uma disposição que restaure a possibilidade de punição por atos que deixaram de ser puníveis pelo decurso do prazo previsto na lei vigente à data da respetiva prática, do problema de saber se, não tendo esse prazo decorrido ainda na totalidade, tal violação pode ser imputada à aplicação imediata a procedimentos pendentes de norma que venha estender o limite temporal até ao qual aquela punição pode ter lugar. Respondendo negativamente a esta última questão, o Tribunal afirmou que o artigo 7.º, n.º 1, da Convenção, não pode ser interpretado no sentido de impedir, por efeito da aplicação imediata de uma lei nova, a prorrogação dos prazos de prescrição quando essa prescrição ainda não ocorreu (§ 149). Explicitando posteriormente tal entendimento, o TEDH acabou por esclarecer que aquela afirmação tem implícita a qualificação das normas relativas à prescrição como normas processuais, o que encontra justificação no facto de se tratar de normas que não definem as infrações nem as penas correspondentes, mas antes se limitam a estabelecer uma simples condição prévia para o exame do caso (Cesare Preveti v. l’Italie, 8 de dezembro de 2009, § 80).
A orientação firmada pelo TEDH — note-se por último — foi seguida sem desvios pelo TJUE, no célebre caso Taricco, onde se confrontaram distintas conceções acerca da natureza das normas sobre prescrição e a sua relação com a proibição da retroatividade: a conceção adotada pelo Tribunal Constitucional italiano, segundo a qual a «prescrição deve considerar‑se um instituto de direito substantivo, que o legislador pode modelar através de um balanceamento razoável entre o direito ao esquecimento e o interesse em perseguir os crimes até que o alarme social provocado pelo crime não se desvaneça […], mas sempre no respeito daquela premissa constitucional inderrogável» dada pela proibição da aplicação retroativa de normas penais in malam partem (Acórdão n.º 115 de 2018, ponto 10., acessível, tal como os demais adiante citados, em https://www.cortecostituzionale.it/default.do); e a conceção defendida pelo próprio TJUE, de acordo com a qual o «artigo 49.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), que consagra os princípios da legalidade e da proporcionalidade dos delitos e das penas, segundo os quais, nomeadamente, ninguém pode ser condenado por uma ação ou por uma omissão que, no momento da sua prática, não constituía infração perante o direito nacional ou o direito internacional», não se opõe «à prorrogação do prazo de prescrição e [à] sua aplicação imediata», uma vez que, tal como o TEDH vem afirmando a propósito do artigo 7.º da Convenção, também aquela «disposição não pode ser interpretada no sentido de que impede uma prorrogação dos prazos de prescrição quando os factos imputados não estão prescritos» (Acórdão do TJUE de 8 de setembro de 2015, Processo C‑105/14, pontos 56-58).
23. A perspetiva seguida pelo TEDH e corroborada na jurisprudência do TJUE — que, como vimos, acaba por deslocar o critério relevante para aferir da violação da proibição da retroatividade do plano da proteção da confiança do agente para plano da classificação das normas relativas à prescrição — corresponde, em larga medida, à tese defendida pela recorrida CMVM, que se apoia no parecer da autoria de Francisco Lacerda da Costa Pinto, junto aos presentes autos. Tendo por referência a concreta causa de suspensão do prazo de prescrição prevista no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, que é propositadamente distinguida das normas que procedem ao alargamento do prazo legal de prescrição anterior, afirma-se no referido parecer que a «prescrição do procedimento criminal ou contraordenacional constitui uma condição negativa de procedibilidade, sendo um instituto de natureza processual pelo seu objeto (análise do decurso do tempo para exercício processual da pretensão punitiva e dos atos processuais relevantes para o efeito), pela falta de conexão imediata com o facto punível e pelo seu destinatário imediato (a entidade competente para tomar a decisão no processo)». Assim, «a vigência (e a eficácia temporal) de uma causa de suspensão da contagem do prazo de prescrição (de natureza criminal ou contraordenacional), aplicada aos processos em curso (em que não se tenham esgotado os prazos de prescrição do procedimento) não está sujeita à proibição de aplicação retroativa da lei penal (ou contraordenacional), nem ao regime de aplicação da lei que se revele concretamente mais favorável ao agente»; trata-se de «matéria que está fora da letra, da ratio e dos objetivos dos regimes acolhidos nos artigos 29.º, n.º 1 e n.º 4, da Constituição, do artigo 2.º, n.º 1 e n.º 4, do Código Penal, e do artigo 3.º, n.º 1 e n.° 2, do RGCords», sendo o seu «regime de vigência temporal» determinado pelo «artigo 5.º do Código de Processo Penal» e «delimitado pelas garantias de defesa do arguido, tutelado pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição».
Tais conclusões — note-se ainda — encontram-se em estreita sintonia com o critério da «conexão imediata com o facto» proposto por Roxin para identificar e delimitar, de entre as normas pertencentes ao ordenamento jurídico-penal, aquelas que, revestindo natureza material, se encontram sujeitas ao regime constitucional previsto para a lei penal: os elementos que pertencem ao «“complexo do facto”», encarado «no seu conjunto», constituem pressupostos jurídico-materiais da punibilidade e integram o Direito material; inversamente, os «elementos alheios ao complexo do facto», como a prescrição ainda não verificada, constituem pressupostos de procedibilidade e integram o Direito processual (ob. cit., p. 988).
24. Não é esta, todavia, a orientação que vem sendo sufragada na jurisprudência deste Tribunal quanto à prescrição do procedimento criminal e da pena.
A propósito das causas de suspensão da prescrição, disso deu expressamente conta o Acórdão n.º 183/2008, tirado em Plenário, que se distanciou da tese acima exposta nos termos que se seguem:
«Pode colocar-se a questão de saber se as causas de suspensão da prescrição estão, ou não, abrangidas por este princípio-garantia da legalidade criminal. Na Alemanha, por exemplo, esta matéria tem sido excluída do âmbito da garantia constitucional da legalidade, por se considerar a prescrição como mero pressuposto processual que se refere exclusivamente às condições de exercício da ação penal (assim Leibholz/Rink, Grundgesetz Kommentar, Art. 103., Köln, 1975/2005, Rz. 1492; sobre a aceitação generalizada da prescrição como mero pressuposto processual na jurisprudência, Lemke, in Strafrechtgesetzbuch, hrsg. Kindhäuser/ /Neumann/Paeffgen, Bd 1, 2. Aufl., 2005, p. 2146).
Como explica Claus Roxin, a natureza da “prescrição” não é irrelevante, pois dela depende a aplicabilidade do princípio da legalidade que “se limita ao direito penal substantivo” (Strafrecht, 3. Aufl., 1997, p. 912 s.).
A posição da nossa doutrina é porém diferente. Ela admite, e bem, que a prescrição tem, pelo menos em parte, uma natureza substantiva (sobre a dupla natureza processual e substantiva do instituto da prescrição, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português. Parte Geral, II, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra 1993, p. 698 ss. e Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, III, Lisboa 1999, p. 225), sendo certo que se considera em geral que o princípio da legalidade se deverá impor sempre que ele funcione como garantia do arguido, ou seja, sempre que a ultrapassagem do sentido semântico da norma criminal funcione contra o arguido».
A perspetiva segundo a qual a prescrição do procedimento criminal constitui «para o arguido uma garantia material ou não meramente procedimental» (Acórdão n.º 297/2016) foi desenvolvida numa série de outros arestos, designadamente no Acórdão n.º 445/2012, que a sustentou nos termos seguintes:
«6. O instituto da prescrição do procedimento criminal justifica-se, desde logo, por razões substantivas, ligando-se a exigências político-criminais ancoradas nos fins das penas. Com o decurso do tempo, além do enfraquecimento da censura comunitária presente no juízo de culpa, por um lado, perdem importância as razões de prevenção especial, desligando-se a sanção das finalidades de ressocialização ou de segurança. Por outro lado, também do ponto de vista da prevenção geral positiva se justifica o instituto. Com o correr do tempo sobre a prática do facto, vai perdendo consistência a prossecução do efeito da pena de afirmação contrafáctica das expectativas comunitárias sobre a vigência da norma, já apaziguadas ou definitivamente frustradas. Finalmente há a considerar o efeito do tempo no agravamento das dificuldades probatórias, com a consequente potenciação do grau de incerteza do resultado. O que, em associação com a ideia de que à intervenção penal deve ser reservado um papel de ultima ratio, só legitimada quando ainda se mantenham a necessidade de assegurar os seus objetivos, justifica que o Estado não prossiga o procedimento transcorrido que seja o período de tempo legalmente determinado (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 699).»
Ainda que por referência à prescrição, não do procedimento, mas da pena, a ideia de que a prescrição constitui um pressuposto negativo da punição, e não uma mera condição negativa de procedibilidade (ou de exequibilidade), foi expressamente afirmada no Acórdão n.º 625/2013:
«A prescrição das penas funciona, assim, como um pressuposto negativo da punição, sendo apontado a este instituto uma natureza mista, substantiva e processual, que leva a que as normas que integram o seu regime sejam qualificadas como normas processuais materiais (FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit, pág. 702, da ed. de 1993, da Aequitas, e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, em “Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pág. 383, da 2.ª ed., da Universidade Católica Editora).»
25. Apesar de o Tribunal vir perfilhando o entendimento de que o instituto da prescrição tem uma natureza, senão material, pelo menos mista, a ideia de que essa classificação é suficiente para determinar sem mais a sujeição de todos os elementos que integram o respetivo regime jurídico a todas as exigências que decorrem do princípio da legalidade, enquanto garantia pessoal de não punição fora do domínio de uma lei escrita, prévia, certa e estrita, não encontra respaldo, pelo menos inequívoco, na jurisprudência constitucional.
É verdade que no Acórdão n.º 183/2008, que declarou, com força obrigatória geral, «a inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição, da norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ambos na redação originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia», o Tribunal parece ter atribuído à «natureza substantiva», «pelo menos em parte», da prescrição um relevo decisivo para afirmar o efeito correspondente à subordinação das respetivas causas de suspensão à exigência de lei estrita (artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição), com consequente proibição do recurso à analogia. Mas esse não foi o caminho seguido no numeroso conjunto de acórdãos que, precedendo aquela declaração, se ocuparam previamente do problema relativo ao estabelecimento das causas de suspensão e de interrupção da prescrição do procedimento criminal originado pela desconformidade entre os regimes previstos na lei penal e na lei processual penal no período que mediou entre a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987 e a revisão do Código Penal de 1995.
Logo no Acórdão n.º 205/1999 — o primeiro dessa série —, o Tribunal, apesar de ter reconhecido que «a sujeição da prescrição às decorrências do princípio da legalidade tem sido problematizada em função da sua qualificação como instituto de Direito Penal substantivo ou adjetivo, persistindo a primeira qualificação», optou por enfrentar a questão respeitante à possibilidade do recurso à analogia em matéria de causas de interrupção a partir, não do «tratamento das relações entre a prescrição e o princípio da legalidade num plano classificatório», mas antes de «uma construção dogmática implantada nos fundamentos específicos da prescrição independentemente da sua natureza penal ou processual penal» (itálico aditado); isto é, da ideia de que a justificação do instituto reside na «desnecessidade da pena que o decurso do tempo implica, quando o facto já foi assimilado ou esquecido pela sociedade, mas também [na] responsabilização do Estado pela inércia ou incapacidade para realizar a aplicação do Direito no caso concreto». Na medida em que tal fundamentação se repercuta no elemento legal a considerar — como se entendeu suceder na hipótese de estabelecimento de novas causas de interrupção da prescrição «em resultado de uma interpretação atualista da lei baseada em raciocínios analógicos» —, a «proibição da analogia das normas relativas à prescrição partilha[rá] dos fundamentos da proibição da analogia relativamente aos fundamentos da incriminação», constante do artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição, justificando-se nos mesmos termos.
A fundamentação com base na qual o Acórdão n.º 205/1999 concluiu pela violação do princípio da legalidade penal, na dimensão correspondente à exigência de lei estrita, foi reafirmada nos Acórdãos n.º 285/1999, 122/2000, 317/2000, 557/2000, 585/2000 e 412/2003, relativos também à ampliação por via jurisprudencial do elenco das causas de interrupção e de suspensão da prescrição (em termos de interpretação extensiva ou analógica) no sentido de adequar as normas do Código Penal de 1982 à (nova) estrutura do processo penal que emergiu do Código de 1987.
26. Ao contrário dos arestos acima mencionados, que trataram da relação do instituto da prescrição com o princípio da legalidade apenas na dimensão de lei estrita, o Acórdão n.º 449/2002, proferido no mesmo contexto, ocupou-se diretamente do problema da vinculação daquele instituto às exigências de lei prévia e lei certa, tendo-o feito justamente a propósito da tipificação das causas de suspensão da prescrição do procedimento criminal. Por ser aquele que mais diretamente releva para a questão a apreciar no âmbito do presente recurso, é especialmente importante atentar nos fundamentos invocados neste aresto.
As questões então colocadas ao Tribunal Constitucional foram as seguintes: em primeiro lugar, tratava-se de saber se a opção por um elenco não taxativo das causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, expressa na ressalva dos demais casos especialmente previstos na lei (artigo 120.º, n.º 1, do Código Penal), é compatível com a exigência de lei certa decorrente do princípio da legalidade; em segundo lugar, tratava-se de determinar se uma causa de suspensão da prescrição que viesse a constar de lei especial, na medida em que pretendesse aplicar-se a «factos criminosos praticados antes da sua consagração», violaria o princípio da legalidade, agora na dimensão de lei prévia, expressa na proibição da retroatividade in pejus.
O Tribunal considerou ambas as possibilidades compatíveis com o artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição.
Quanto à primeira, não teve dúvidas em afirmar que «o princípio da legalidade – e, em concreto, a exigência de tipicidade – não requer que todas as causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal estejam previstas na mesma norma legal. Apenas pode postular que a norma que preveja cada uma (ou várias) daquelas causas seja suficientemente precisa e seja emitida pela Assembleia da República ou pelo Governo, no uso da indispensável autorização legislativa [artigo 198º, n.º 1, alínea b), da Constituição]». Conclusão que - afirmou-o também - «não é invalidada pela circunstância de a norma que consagra a causa de suspensão do prazo prescricional [...] ser posterior. Na verdade, a cláusula "geral" ou de "remissão" dirige-se a todas as normas que vigoravam à data da sua entrada em vigor ou hajam entrado em vigor posteriormente (mas, claro está, na sua vigência)».
Quanto à segunda, considerou expressamente que a aplicação imediata da nova causa de suspensão da prescrição do procedimento não configura um caso de retroatividade proibida pelos n.ºs 1 e 3 da Constituição: ao aplicar-se imediatamente, a nova causa de suspensão «aplica-se para o futuro a processos crimes ainda pendentes, embora resultantes de crimes cometidos no passado» (itálico aditado).
Tal afirmação - que não deixa de evidenciar uma certa aproximação à orientação defendida na doutrina italiana e germânica, sufragada pelo Tribunal recorrido (supra, n.º 21) -, foi explicitada do seguinte modo:
«11. O caso de "retroatividade" com que nos confrontamos, nos presentes autos, constitui uma situação de retroatividade de segundo grau (artigo 12º, n.º 2, segunda parte, do Código Civil), "retroatividade inautêntica" ou "retrospetividade". A norma do artigo 336º, n.º 1, do Código de Processo Penal não se aplica retractivamente – aplica-se para o futuro a processos crimes ainda pendentes, embora resultantes de crimes cometidos no passado.
Esta solução normativa só poderia ser julgada inconstitucional se ofendesse de modo arbitrário, inesperado ou desproporcionado, expectativas do agente do crime contemporâneas da prática do facto (artigo 2º e 29º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição). Ora, não se pode inferir do princípio da confiança, que constitui corolário do Estado de direito democrático, a exata cognoscibilidade de todas as causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal no momento da prática do facto.
Por isso, a interpretação e consequente aplicação temporal que o tribunal a quo fez do artigo 119º, n.º 1, do Código Penal de 1982 não viola o princípio da legalidade, na sua exigência de não retroatividade in pejus.»
27. Percorridos os dados mais relevantes da doutrina, da jurisprudência dos tribunais comuns, da jurisprudência do TEDH e do TJUE e, mais importante ainda, da jurisprudência constitucional, crê-se ser nesta altura possível traçar o quadro de relacionamento do instituto da prescrição com o princípio da legalidade penal à luz do qual deverá ser encarada a questão da compatibilidade do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, interpretado no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, com a exigência de lei prévia, na dimensão correspondente à proibição da retroatividade in pejus.
Ao estatuir que «[n]inguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão» (n.º 1), nem sofrer «penas que não estejam expressamente cominadas em lei anterior» (n.º 3) ou «mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos» (n.º 4), o artigo 29.º da Constituição consagra o princípio da legalidade penal em termos equivalentes à sua formulação latina nullum crimen sine lege, nulla poena sine praevia lege poenali, da autoria de Anselm von Feuerbach, que corresponde, ainda hoje, ao modo de enunciação universal daquele princípio.
O princípio encontra-se estabelecido para as leis que determinam os pressupostos da relevância criminal das condutas ativas e omissivas - o complexo do facto punível - e para as leis que estabelecem as respetivas consequências jurídicas - as penas. Na dimensão correspondente à exigência de lei prévia, dele resulta que o legislador não pode atribuir relevância criminal a factos passados, nem punir mais severamente crimes praticados em momento anterior.
As normas relativas à prescrição do procedimento criminal não se encontram incluídas, de modo literal, na proibição da retroatividade in pejus fixada para as normas incriminadoras (neste sentido, quanto à proibição da analogia, v. Acórdão n.º 205/1999). A sua recondução ao âmbito de aplicação do artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4.º, da Constituição, só poderá fazer-se, por isso, com apoio em argumentos jurídico-constitucionais, os quais, por sua vez, haverão de extrair-se, não da classificação das normas atinentes ao instituto da prescrição segundo os critérios desenvolvidos no plano infraconstitucional, mas antes da ratio da proibição da retroatividade in pejus e, por conseguinte, dos próprios fundamentos do princípio da legalidade penal. Ainda que para justificar uma leitura maximizadora das garantias inerentes àquela proibição, não deixa de ser esse o sentido em que adverte Pedro Caeiro: a distinção entre normas processuais formais e normas processuais materiais não deve constituir um «prius relativamente à questão da (não) sujeição das normas» — ou de certa norma — «àquela proibição da retroatividade, mas sim um resultado da correta delimitação do âmbito de aplicação da retroatividade desfavorável» (“Aplicação da lei penal no tempo e prazos de suspensão da prescrição do procedimento criminal: um caso prático”, Separata de Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, 2001, Coimbra Editora, p. 243). O que vale por dizer que, quando se trata de determinar o estatuto constitucional de certo elemento legal à face do artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição, importa ter em definitivo presente, «não tanto a integração deste ou daquele instituto no direito penal ou processual, quanto a função atribuída pela Constituição ao princípio da irretroatividade» (Giorgio Marinucci e Emilio Dolcini, ob. cit., p. 59).
28. É sabido que o princípio da legalidade penal tem como fundamento a ideia de que um Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição) deve proteger o indivíduo não apenas através do direito penal, mas também do direito penal (cf. Claus Roxin, ob. cit., p. 137). Trata-se, portanto, de um princípio defensivo, que atribui aos cidadãos posições de defesa perante o Estado, enquanto titular oficial do poder punitivo. Em sintonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, onde foi pela primeira vez consagrado, o princípio da legalidade penal continua a ter como função proteger o indivíduo perante o direito penal, colocando-o a salvo de uma intervenção estadual excessiva ou arbitrária.
A proibição da retroatividade in pejus explica-se inteiramente a esta luz: ao contrário do que sucede com a imposição da retroatividade in mellius, «que possui uma génese e um fundamento especificamente político-criminal», ligado à «ausência de exigências de prevenção que justifiquem a persistência da aplicação ao caso da lei (mais severa) que vigorava no momento da prática do facto», a proibição da retroatividade in pejus tem uma génese e um fundamento «marcadamente político-jurídico», diretamente associado à «defesa da liberdade e da segurança dos cidadãos contra o arbítrio do Estado» (Pedro Caeiro, loc. cit., p. 235-236, itálico aditado). É justamente isso que explica que, não obstante «ser questionável a existência de um verdadeiro direito do agente a que a inércia do Estado na prossecução penal o beneficie» (Acórdão n.º 205/1999), as normas relativas à prescrição, designadamente as que estabelecem as causas de interrupção e de suspensão do prazo respetivo, se encontrem, prima facie, subordinadas à proibição da retroatividade in pejus.
Apontam para essa conclusão dois dados essenciais.
Em primeiro lugar, importa levar em conta que tanto as causas de interrupção como as causas de suspensão da prescrição se destinam a tornar «efetiva a possibilidade de se vir a aplicar o Direito Penal no caso concreto» (cf., uma vez mais quanto à proibição da analogia relativamente à interrupção da prescrição, Acórdão n.º 205/1999): as primeiras porque têm por efeito a inutilização do tempo de prescrição já decorrido (artigo 121.º, n.º 2, do Código Penal); as segundas porque originam a paralisação do decurso do prazo de prescrição pelo tempo em que perdurar o evento suspensivo, observados os limites máximos fixados na lei (artigo 120.º, n.º 6). Assim, a exigência de que umas e outras se encontrem fixadas em lei prévia tenderá a considerar-se justificada a partir da ideia de controlo do exercício do poder punitivo do Estado através do Direito que previamente criou: as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus, na medida em que se destinam a proteger o indivíduo contra possíveis abusos por parte do legislador, opõem-se à possibilidade de o Estado, através da ampliação retroativa do elenco das causas de interrupção ou suspensão da prescrição, mitigar ou até mesmo reverter a débito do arguido os efeitos da «sua inércia ou incapacidade para realizar a aplicação do Direito no caso concreto» (cf., uma vez mais quanto à proibição da analogia em matéria de interrupção da prescrição, Acórdão n.º 205/1999). Neste sentido, a proibição da aplicação retroativa das normas que estabelecem as causas de interrupção e de suspensão da prescrição do procedimento criminal partilhará dos fundamentos da proibição da aplicação retroativa das normas que estabelecem os pressupostos da responsabilidade: tal como esta, também aquela será imposta em nome da defesa do cidadão contra a discricionariedade e o arbítrio ex post facto.
Em segundo lugar, importa não perder de vista que a ratio da proibição da retroatividade in pejus se liga igualmente ao princípio da confiança. Como se escreveu no Acórdão n.º 261/2020, as garantias inerentes àquela proibição assentam «numa ideia de previsibilidade (por sua vez enraizada no princípio da confiança) das normas, no sentido em que qualquer cidadão, para além de não poder ser surpreendido pela incriminação de um comportamento anteriormente adotado (n.º 1 do artigo 29.º da Constituição), também não pode ser surpreendido pela aplicação de uma sanção mais grave ou por normas processuais materiais de efeitos mais gravosos do que aqueles com que podia contar à data em que praticou os factos (n.º 4 do artigo 29.º da Constituição)» (Acórdão n.º 261/2020). Na síntese do Tribunal Constitucional italiano, formulada em jurisprudência posterior à chamada “saga Taricco”, a «proibição em causa visa garantir ao destinatário da norma uma previsibilidade razoável das consequências com que se deparará ao violar o preceito penal» (Acórdão n.º 32 de 2020, ponto 4.3.1.), previsibilidade que é, em regra, afetada quando se alteram para o passado as condições em que o facto criminoso pode ser sancionado.
Pois bem.
Mesmo não pondo em causa que, em matéria de prescrição, o conceito de retroatividade é dado tempus deliti e não pelo terminus do prazo - o que, conforme se viu, não corresponde sequer à orientação sufragada no Acórdão n.º 449/2002 -, não restam dúvidas de que a causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, pela sua singularidade, escapa totalmente a ambas as rationes com base nas quais é possível justificar o alargamento às normas sobre prescrição das garantias inerentes à proibição da retroatividade.
29. A medida constante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 — já o notámos — insere-se no âmbito de legislação temporária e de emergência, aprovada pela Assembleia da República para dar resposta à crise sanitária originada pela pandemia associada ao coronavírus SARS-CoV-2 e à doença COVID-19.
No cumprimento do seu dever de proteção da vida e da integridade física dos cidadãos (artigos 24.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, da Constituição, respetivamente), o Estado adotou um conjunto de medidas destinadas a conter o risco de contágio e de disseminação da doença, baseado na implementação de um novo modelo de interação social, caracterizado pelo distanciamento físico e pela diminuição dos contactos presenciais.
No âmbito da administração da justiça — vimo-lo também —, o cumprimento desse dever de proteção conduziu à excecional contração da atividade dos tribunais, concretizada através da sujeição dos atos e diligências processuais ao regime das férias judiciais referido no n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, e, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 4-A/2020, à regra da suspensão, pura e simples, de todos os prazos processuais previstos para aquele efeito. Para os processos urgentes, começou por estabelecer-se um regime especial de suspensão dos prazos para a prática de atos, ainda que com exceções (artigo 7.º, n.º 5, da Lei n.º 1-A/2020), que a Lei n.º 4-A/2020 acabou por modificar, impondo a sua normal tramitação desde que fosse possível assegurar a prática de atos ou a realização de diligências com observância das regras de distanciamento físico.
Por força desta paralisação da atividade judiciária, que se estendeu à justiça penal, os atos processuais interruptivos e suspensivos da prescrição deixaram de poder praticar-se no âmbito dos procedimentos em curso, pelo menos nas condições em que antes o podiam ser. Relativamente aos procedimentos criminais, assim sucedeu com a dedução da acusação, a prolação da decisão instrutória e a apresentação do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo (artigos 120.º, n.º 1, alínea b), e 121.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal), a declaração de contumácia (artigos 120.º, n.º 1, alínea c), e 121.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal) e a constituição de arguido (121.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal). Já no âmbito dos procedimentos contraordenacionais, o mesmo se verificou, pelo menos, com a prolação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima (artigo 27.º-A, n.º 1, alínea c), e 28.º do RGCO), a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomadas ou qualquer notificação (artigo 28.º, n.º 1, alínea a), do RGCO), a realização de quaisquer diligências de prova (artigo 28.º, n.º 1, alínea b), do RGCO) e a prolação da decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima (artigo 28.º, n.º 1, alínea d), do RGCO).
É este particular e especialíssimo contexto que está subjacente à fixação, por lei parlamentar, de uma causa de suspensão da prescrição que não somente é transitória, como se destinou a vigorar apenas e só durante o período em que se mantivesse — se manteve — o condicionamento à atividade dos tribunais determinado pela situação excecional de emergência sanitária e pelo concomitante imperativo de proteção da vida e da saúde dos operadores e utentes do sistema judiciário: suspendeu-se o decurso do prazo de prescrição porque se suspenderam os prazos previstos para a prática dos atos suscetíveis de obstar à sua verificação; suspenderam-se os prazos previstos para a prática desses (e de outros) atos processuais porque se suspendeu a atividade normal dos tribunais de modo a prevenir e conter o risco de infeção dos intervenientes no sistema de administração da justiça, incluindo dos próprios arguidos.
Como bem notou o Tribunal recorrido, encontramo-nos, pois, diante de um «mecanismo normativo […] instrumental», destinado a fazer face a uma «situação de rutura e anormalidade», em estreita e indissociável relação com o já designado «“lockdown” da justiça penal» (Gian Luigi Gatta, “Lockdown da justiça penal, suspensão da prescrição do crime e princípio da irretroatividade: um curto-circuito”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 30, n.º 2, maio-agosto de 2020, p. 297 e ss.) originado pela crise sanitária, que afetou em intensa medida — ou mesmo eliminou — a possibilidade de serem praticados os atos processuais suscetíveis de interromper e de suspender a prescrição.
Não é demais sublinhar que se trata de uma suspensão, e não de uma interrupção, do prazo prescricional: o tempo de prescrição já decorrido desde a data da consumação do ilícito típico não é inutilizado; apenas o seu decurso é paralisado pelo tempo correspondente à paralisação do normal processamento dos termos ulteriores dos processos em curso.
Neste contexto, é evidente que a causa de suspensão da prescrição estabelecida no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 apenas se encontraria apta a cumprir aquela função se pudesse aplicar-se aos procedimentos pendentes por factos anteriores ao início da sua vigência. Como refere Gian Luigi Gatta a propósito de norma congénere aprovada em Itália (artigo 83.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 18, de 17 de março de 2020), «[t]rata-se de uma disposição temporária pensada precisamente para os processos em curso e, como tal, para ter eficácia retroativa. Suspende-se uma atividade em curso por força da impossibilidade do seu prosseguimento, determinando-se um prazo para o seu reatamento, congelando-se o intervalo de tempo entretanto volvido. A suspensão é forçada: não é imputável a ninguém e não há razão para que beneficie quem quer que seja» (loc. cit., p. 303).
Esta última afirmação é especialmente relevante: conforme se verá em seguida, ela sintetiza, na verdade, as duas razões que explicam a impossibilidade de reconduzir a causa de suspensão prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, à ratio da proibição da retroatividade in pejus, consagrada no artigo 29. º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição.
30. Dizer-se que a suspensão «não é imputável a ninguém» é o mesmo que dizer-se que a suspensão não é imputável ao Estado.
Tendo em conta os fundamentos inerentes ao princípio da legalidade penal, tal constatação, para além de correta, é particularmente esclarecedora.
A suspensão do decurso do prazo de prescrição dos procedimentos sancionatórios pendentes durante o período em que vigoraram as medidas de emergência adotadas na Lei n.º 1-A/2020 não se destinou a permitir que o Estado corrigisse ou reparasse os efeitos da sua inércia pretérita no âmbito do exercício do poder punitivo de que é titular. Destinou-se apenas e tão só a responder aos efeitos de uma superveniente e não evitável paralisação do sistema de administração da justiça penal, imposta pela necessidade de controlar e conter a disseminação de um vírus potencialmente letal. Tratando-se de uma causa de suspensão e não de interrupção do prazo de prescrição, cuja vigência não excedeu o lapso temporal durante o qual se verificou a afetação ou condicionamento da atividade dos tribunais, nem conduziu — reticus, não tinha sequer a virtualidade de conduzir — à reabertura dos prazos prescricionais já integralmente decorridos, a sua aplicação aos procedimentos pendentes não exprime qualquer excesso, arbítrio ou abuso por parte do Estado contra o qual faça sentido invocar as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus: ao determinar a aplicação a procedimentos pendentes da suspensão da prescrição em razão da pandemia então em curso, a solução adotada limita-se, na verdade, a assegurar «a produção do efeito útil da norma de emergência» (idem, p. 313), não ingressando no âmbito da esfera defensiva que é assegurada pelo princípio da legalidade.
Não é diferente a conclusão a que se chega se encararmos a proibição da retroatividade in pejus a partir da proteção da confiança, como fez o Tribunal recorrido.
Se tal proibição visa garantir ao destinatário uma previsibilidade razoável das consequências com que se deparará ao violar o preceito penal, é relativamente evidente, quando se trate de estender o respetivo âmbito de incidência para além dos limites traçados pela letra dos n.ºs 1, 3 e 4, do artigo 29.º, que a sua invocação deixará de ter fundamento se o evento em causa se situar no mais elevado grau daquilo que não é por natureza antecipável, como sucede com a paralisação do sistema de administração da justiça penal ditada pelo súbito e inesperado surgimento de uma pandemia à escala global.
Contra o que acaba de dizer-se, pode argumentar-se, é certo, que a antecipação em lei contemporânea da prática dos factos da causa de suspensão da prescrição que veio a constar do conjunto de medidas de emergência aprovadas pelo Parlamento teria sido, em rigor, possível. Bastaria que o legislador português tivesse integrado no elenco das causas de suspensão da prescrição previstas no artigo 120.º, n.º 1, do Código Penal, uma disposição idêntica à que consta do artigo 159.º do Código Penal italiano, que prevê a suspensão do decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal nos «casos em que a suspensão do procedimento ou do processo penal é imposta por uma disposição especial da lei».
Do ponto de vista da invocabilidade das garantias inerentes à proibição da retroatividade, a diferença entre o ordenamento jurídico português e o Direito italiano não é, porém, determinante: apesar de ter conhecimento de que o decurso do prazo de prescrição se suspenderá se e quando vier a ser determinada em lei posterior a suspensão do processo ou do procedimento, o agente que deva ser punido segundo o direito italiano não sabe, no momento em que decide praticar o ilícito-típico, se essa suspensão virá efetivamente a ocorrer, nem sobre durante quanto tempo vigorará na hipótese de vir a ser determinada, nem sobre as caraterísticas do facto ou do acontecimento que venham a ditar essa eventual opção.
Perante a causa de suspensão que veio a constar do artigo 83.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 18, de 17 de março de 2020, a posição do agente italiano não é, por isso, muito diferente daquela em que se encontra o agente português em face da causa de suspensão da prescrição constante do n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020: tal como este não podia saber, no momento em que praticou o facto criminoso, que a suspensão da prescrição do procedimento instaurado viria a ser imposta pela Assembleia da República em consequência do lockdown da justiça penal originado pelo súbito avanço da pandemia, também aquele não podia ter conhecimento, quando tomou a decisão de praticar o crime, de que a suspensão do processo — e, com ela, a suspensão do prazo de prescrição — viria a ser determinada em norma posterior, editada no mesmo exato contexto.
É por isso que, apesar de o Tribunal Constitucional italiano ter atribuído relevância à existência de uma norma de intermediação como a constante do proémio do artigo 159.º do respetivo Código Penal para concluir pela compatibilidade da norma constante do artigo 83.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 18, de 17 de março de 2020, com a proibição da retroatividade (Acórdão n.º 278 de 2020), não existe entre uma e outra solução qualquer diferença que possa ser considerada decisiva ou determinante do ponto vista da proteção da confiança: em ambos os casos, a causa da suspensão do prazo de prescrição é integralmente determinada em lei ulterior ao momento da prática do ilícito-típico, sem que possa dizer-se, tendo em conta o carácter totalmente imprevisível dos acontecimentos que a determinaram, que a sua aplicação aos procedimentos pendentes frustre aquela exigência de previsibilidade das consequências da violação da norma penal a que responde a proibição da retroatividade in pejus.
Em suma: para além de absolutamente congruente com o mais amplo critério seguido na jurisprudência do TEDH e do TJUE, a norma extraída dos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, interpretados no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, não se encontra abrangida, nem pela letra, nem pela ratio da proibição da retroatividade in pejus a que a Constituição, no seu artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, sujeita a aplicação das leis que definem as ações e omissões puníveis e fixam as penas correspondentes.
31. Tudo o que se disse até agora assentou na consideração da causa de suspensão da prescrição estabelecida nos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, independentemente da natureza criminal ou contraordenacional dos procedimentos em curso.
A circunstância de a interpretação sindicada se cingir aos procedimentos contraordenacionais pendentes por factos anteriores ao início da vigência da Lei n.º 1-A/2020 apenas serve para tornar mais evidente a conclusão que acima se alcançou. Com efeito, apesar de o direito das contraordenações, enquanto direito sancionatório público, ser influenciado ou “matizado” pelos princípios constitucionais do direito penal, a autonomia material do ilícito de mera ordenação social em relação ao ilícito penal obsta a que tais princípios possam ser transpostos deste para aquele de forma automática ou imponderada ou que possam aí valer com na mesma exata extensão ou com o mesmo grau de intensidade (cf. Acórdão n.º 76/2016; no mesmo sentido, a propósito da liberdade de conformação do legislador na modelação do instituto da prescrição, v. Acórdão n.º 297/2016). No que diz respeito à proibição constitucional da retroatividade in pejus, isso significa que ela se estenderá ao direito contraordenacional somente enquanto manifestação nuclear da função de garantia do princípio legalidade, exigida pela ideia de Estado de Direito e oponível ao arbítrio ex post facto.
Resta concluir, assim, que, ao proibir que qualquer cidadão seja «sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão» ou sofra pena que não esteja expressamente cominada «em lei anterior» ou mais grave do que a prevista «no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos», o artigo 29.º da Constituição, respetivamente nos seus n.ºs 1, 3 e 4, não se opõe à aplicação de uma causa de suspensão da prescrição com a função e o recorte daquela que foi prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2000, a procedimentos contraordenacionais pendentes por factos praticados antes do início da respetiva vigência.
32. Uma vez aqui chegados, uma nota final se impõe ainda, tendo em conta a invocação do parâmetro extraído princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição.
Alega o recorrente que os preceitos acima referidos, «ao determinarem a suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional relativo a um processo que continua a correr seus termos e relativamente a cujos prazos os arguidos continuam adstritos, como se denota pela tramitação dos presentes autos, gera uma situação de desigualdade, em favor da pretensão punitiva do Estado e contra o direito dos arguidos».
O argumento não é de fácil compreensão.
Em primeiro lugar, cumpre recordar o processo que deu origem ao presente recurso apenas passou a revestir natureza urgente a partir de 18 de agosto de 2020, data em que foi proferido o despacho que lha atribuiu. Significa isto que, no período que mediou entre o início da vigência do regime estabelecido no artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2000 e o momento da sua revogação pela Lei n.º 16/2020, tal processo se encontrou sujeito, primeiro ao regime das férias judiciais, e, após as alterações levadas a cabo pela Lei n.º 4-A/2020, ao regime da suspensão pura e simples de todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devessem ser praticados (supra, n.ºs 16.2 e 16.3.).
Em segundo lugar, a invocação do princípio da igualdade, em si mesma, é manifestamente inadequada.
Para além de fundar-se na ideia da igual dignidade social de todos os cidadãos - e não da igual dignidade dos cidadãos e do Estado -, o princípio da igualdade postula, enquanto norma de controlo judicial, um processo de comparação entre as situações ou categorias postadas, tendo em conta a qualidade ou característica que é comum às situações ou objetos a comparar.
A pretensão punitiva do Estado e os direitos dos arguidos não se prestam a esse processo comparativo, não constituindo grandezas que possam colocar-se em cada um dos dois pratos da balança quando o tipo de controlo que se tem em vista é baseado no princípio da igualdade.
Não tendo ficado por apreciar qualquer um dos parâmetros invocados, resta concluir pela integral improcedência do recurso.
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 7.º, 388.º, n.º 1, alínea a), e 389.º, n.º 1, alínea c), todos do Código de Valores Mobiliários, ao prever que a prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita ou a omissão dessa prestação gera uma contraordenação muito grave, punível com coima até ao limite máximo de cinco milhões de euros;
b) Não julgar inconstitucional o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência; e, em consequência,
c) Julgar o presente recurso totalmente improcedente.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro, ponderados os fatores referidos no n.º 1 do respetivo artigo 9.º.
Lisboa, 9 de junho de 2021 – Joana Fernandes Costa –Maria José Rangel de Mesquita –Gonçalo de Almeida Ribeiro (com declaração) – João Pedro Caupers
Atesto o voto de conformidade do Juiz Conselheiro Lino Ribeiro, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio)
Joana Fernandes Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Acompanho o juízo de não inconstitucionalidade proferido pelo Tribunal quanto ao «segundo complexo normativo» e subscrevo uma grande parte da fundamentação sobre a qual repousou. Concordo, em primeiro lugar, que a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, nomeadamente no que respeita à suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional, constitui um exercício da competência legislativa normal da Assembleia da República, pelo que a questão que se coloca no presente recurso não diz respeito ao regime constitucional dos poderes de emergência. Concordo ainda que a matéria da prescrição em toda a sua extensão – a fixação do prazo de prescrição do procedimento e a previsão de causas interruptivas ou suspensivas do mesmo – se encontra, em princípio, abrangida pela proibição da retroatividade penal in pejus. Creio, finalmente, que a singularidade do contexto que informou esta medida, o seu carácter estritamente transitório e sobretudo o facto de a mesma se destinar a compensar os efeitos, não da inércia das autoridades judiciárias ou mesmo da verificação de causas fortuitas, mas de uma inibição autoimposta de administração da justiça determinada por deveres de proteção de direitos fundamentais, nomeadamente da vida e da saúde dos próprios arguidos, constituem razões suficientes para ajuizá-la constitucionalmente conforme.
O único aspeto de substância que me separa da fundamentação diz respeito à ideia segundo a qual a aplicação desta causa de suspensão singular e transitória aos procedimentos pendentes à data da entrada em vigor da lei não constitui nenhuma lesão de confiança legítima dos arguidos, daí se inferindo que «escapa totalmente» ao âmbito de incidência da proibição da retroatividade penal in pejus. Claro que a confiança de que o regime da prescrição vigente no momento da prática do facto é merecedor não é a que se traduz na possibilidade de o agente, com base em cálculos mais ou menos esdrúxulos, estimar a probabilidade de evitar a punição. A confiança legítima traduz-se na definição antecipada do horizonte temporal máximo em que o agente pode gozar de um estado de absoluta paz jurídica, consumada na condenação, na absolvição ou na prescrição do procedimento. No direito português, em traço grosseiro, esse horizonte é determinado pela conjugação entre os prazos de prescrição fixados na lei, as regras que limitam a operação das causas de interrupção a certo acréscimo sobre o prazo de prescrição e o facto de a esmagadora maioria das causas de suspensão vigorarem por um prazo certo ou estarem limitadas a um prazo máximo. Há exceções a este quadro geral, como as que constam das alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal, mas que pelo seu carácter anómalo não põem em causa a proposição segundo a qual o regime da prescrição constitui um marco temporal, ainda que meramente aproximado, para a decisão definitiva sobre a responsabilidade. É o investimento emocional e material do agente na duração limitada de uma existência ensombrada pela possibilidade da punição, investimento esse que o regime da prescrição pode e deve alavancar dentro de certos limites, que merece a tutela da ordem constitucional.
Vistas as coisas sob esta perspetiva, toda e qualquer alteração retrospetiva do regime da prescrição em sentido desfavorável ao agente constitui uma lesão da confiança legítima. A lesão é ainda mais ostensiva e intensa quando se trate da aplicação de uma causa de suspensão, como a prevista nas normas impugnadas nos presentes autos, sem limite temporal definido. Com efeito, ao determinar a suspensão dos prazos de prescrição «até à cessação da situação excecional», o legislador criou um regime transitório, mas não temporário: não era certo o se, muito menos o quando, da cessação da situação excecional. Ao aplicar-se a procedimentos pendentes no momento da sua entrada em vigor, o regime substituiu, desta forma, o estado de relativa certeza do arguido quanto ao horizonte da definição da sua responsabilidade por um estado de absoluta incerteza, em virtude da duração indefinida da causa de suspensão. Não creio ser exagerado afirmar que isto constitui, não apenas uma lesão da confiança legítima, como uma lesão de considerável gravidade, razão pela qual – ao contrário do que se argumenta na decisão – me parece que o regime constitui um caso de manifesta retroatividade penal in pejus.
O facto de defender que as normas sindicadas não são inconstitucionais, apesar de reconhecer que estão longe de serem inócuas no plano dos valores relevantes, coloca-me na posição aparentemente odiosa de ter de defender que a proibição da retroatividade penal não é absoluta ou, o que é dizer o mesmo, que admite ponderação com valores ou princípios de sentido contrário. Mas creio bem que isto, se for devidamente compreendido, não é nenhum drama, nenhuma negação de um adquirido civilizacional ou repúdio da humanidade no exercício do poder público. É necessário distinguir, no âmbito da proibição da retroatividade penal, a região em que esta é absoluta – a definição de crimes e penas – daquela em que, relevando exclusivamente de considerações de segurança jurídica e proteção da confiança, admite ponderação nos termos gerais. A proibição da retroatividade no primeiro domínio tem um estatuto especialíssimo na ordem constitucional em virtude da sua conexão necessária com o carácter orientador de comportamentos da lei penal e com o princípio da culpa como limite absoluto da punição. Sendo impossível orientar comportamentos passados e absurdo censurar um agente por não ter observado uma norma que não vigorava no momento em que os factos ocorreram, a punição ex novo ou agravada de factos passados é com toda a certeza o paradigma do arbítrio.
Este raciocínio não se estende, como é bom de ver, a outro tipo de normas que agravam a posição do arguido, como as que modificam o regime da prescrição em sentido desfavorável ou ampliam o elenco de meios de prova admissíveis. São em princípio censuráveis com base numa compreensão ampla da proibição da retroatividade penal in pejus, mas sem que se exclua a sua conformidade constitucional por razões extraordinariamente ponderosas. Assim o impõe o respeito pelos princípios da unidade axiológica, da concordância prática e do pluralismo democrático que devem orientar a interpretação constitucional. De resto, a insistência no carácter absoluto da proibição da retroatividade penal, sem que se reconheça a licitude de quaisquer distinções na matéria, redunda quase invariavelmente numa de duas posições deficitárias no plano das garantias do cidadão e da integridade do poder: a exclusão de tudo o que não diga respeito aos pressupostos substanciais da responsabilidade penal do âmbito de incidência daquela – reduzindo-se a proibição ao domínio em que o seu carácter absoluto é incontestável − ou a adesão nominal a uma conceção ampla do princípio acompanhada por juízos de exclusão proferidos em tom categórico – uma forma dissimulada e irrefletida de se ponderar o que se afirma ser imponderável. Não vejo nenhuma boa razão para que a justiça constitucional continue a alimentar este equívoco.
Gonçalo de Almeida Ribeiro.