ACÓRDÃO N.º 352/2021
Processo n.º 397/2020
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro
Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), da sentença daquele Tribunal, de 5 de agosto de 2020.
2. O ora recorrido, na qualidade de arguido, foi acusado da prática de um crime de desobediência agravada, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, conjugado com os artigos 5.º e 43.º, n.º 1, alíneas c) e d) e n.º 6, todos do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, com o artigo 7.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, e com o artigo 6.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho; e de dois crimes de injúria agravada, prevista e punida pelos artigos 181.º, n.º 1 e 184.º do Código Penal, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do mesmo diploma.
Através de sentença proferida sob a forma oral e documentada nos termos dos artigos 363.º e 364.º do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 389.º-A do mesmo diploma – sentença transcrita a fls. 74-78 dos autos −, a juíza condenou o arguido pela prática de um crime de desobediência simples e de um crime de injúria agravada, tendo recusado, com fundamento na violação da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º e do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição, a aplicação da norma do n.º 6 do artigo 43.º do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, que manda agravar em um terço os limites mínimo e máximo da moldura penal do crime de desobediência previsto e punido pela alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal.
3. O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional.
4. O recorrente produziu alegações, que concluiu nos seguintes termos:
«V– Conclusões
39. O Ministério Público interpôs em 8 de Maio de 2020, a fls. 44 v.º dos autos supra-epigrafados, recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta decisão judicial de fls. 83 a 87 v.º, proferida pelo Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures – Juiz 2, do Tribunal judicial da Comarca de Lisboa Norte - Processo n.º 241/20.4PBLRS, “(…) nos termos do disposto nos artigos 3º n.º 1 al. f) e 2. do Estatuto do Ministério Público, 280º n.ºs 1 al. a) e 3 da Constituição da República Portuguesa e 70º n.º 1 al. a), 71º n.º 1, 72º n.º 1 e 3 e 75º-A n.º 1 da Lei nº 28/82, de 15.11 (…)”.
40. Este recurso “tem em vista a apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes nos artigos 43º, nº 6 do Decreto nº 2-B/2020 de 2 de abril, cuja aplicabilidade foi recusada no referido despacho (…)”.
41. Os parâmetros de constitucionalidade cuja violação se invoca são os constantes do “(…) artigo 165º, nº 1, al. c) e artigo 29º ambos da Constituição da República Portuguesa”.
42. A questão jurídico-constitucional suscitada pelo tribunal “a quo” na douta decisão recorrida, e que agora é trazida perante o Tribunal Constitucional, decorre da ponderação de uma das inúmeras vertentes do quadro normativo que emergiu da necessidade de combater a pandemia de COVID-19 causada pelo novo Coronavírus, SARS-CoV-2.
43. No cenário de tal combate, e face ao agravamento da ameaça pandémica, declarou o Exm.º Sr. Presidente da República, por via do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, o estado de emergência, declaração que veio a ser renovada através da emissão do Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril.
44. À semelhança do que ocorrera com o primeiro destes decretos do Presidente da República (com a publicação do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março) o Governo, por intermédio do seu Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, procedeu à regulamentação da referida prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República, no qual se encontra sediada a norma cuja aplicação foi recusada pelo douto tribunal “a quo”, a saber, a plasmada no n.º 6, do artigo 43.º.
45. Na verdade, a norma contestada agravou em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, na parte aqui relevante, o sancionamento da “desobediência (…) às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto”, tendo o Governo, consequentemente, criado ex novo sem autorização da Assembleia da República, uma distinta moldura penal para o crime de desobediência quando praticado nos termos nela previstos.
46. A matéria sobre a qual o Governo legislou no referido n.º 6, do artigo 43.º, do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, é, indubitavelmente, do domínio da definição de penas e dos respetivos pressupostos e, por isso mesmo e por força do previsto na alínea c), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição da República Portuguesa, matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
47. Ora, a Assembleia da República não autorizou, em qualquer momento relevante, o Governo a legislar sobre o agravamento da pena aplicável ao crime de desobediência, designadamente quando resultante da “desobediência (…) às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto”, ou seja, quando praticadas em violação de normas contidas no decreto de regulamentação da primeira prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República.
48. Assim, torna-se evidente ter o Governo legislado sobre matéria excluída da sua competência constitucional, em violação do disposto no já mencionado artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa, o que consubstancia, à partida, uma inconstitucionalidade orgânica porque violada uma norma de competência.
49. Dito isto, cumpre-nos apurar se, ainda assim, poderia o Governo ter legislado sobre a referida matéria sem ofender a Constituição, atento o contexto jurídico-constitucional conformado pelo Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril, que declarou o estado de emergência.
50. Acontece que, a Constituição da República Portuguesa é inequívoca ao prescrever no n.º 7 do seu artigo 19.º que “[a] declaração do estado de sítio ou do estado e emergência só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não podendo, nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania (…)”.
51. Para além disto, atendendo ao conteúdo da norma desaplicada ou, melhor dizendo, cuja aplicação foi recusada, devemos ainda concluir que a mesma tem carácter inovatório, uma vez que, apesar de estatuir que a agravação determinada ocorre “nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho” - a Lei de Bases da Proteção Civil -, o que é certo é que os pressupostos de que o legislador ordinário faz depender a agravação da moldura penal não se encontravam previstos, previamente, em qualquer outra norma aprovada pela Assembleia da República.
52. Consequentemente, não sendo aplicável às situações abrangidas pelo Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, nomeadamente as que constituem pressuposto do regulado pelo n.º 6 do seu artigo 43.º, e não se limitando a reproduzir uma norma que reitere uma outra validamente aprovada pela Assembleia da República, só poderemos inferir que a norma naquele contida apresenta carácter inovador.
53. Em suma, somos forçados a concluir que o Governo, ao legislar, inovatoriamente e sem autorização legislativa, sobre definição de penas e respetivos pressupostos, matéria da reserva relativa da competência da Assembleia da República, violou o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa.
54. Assim, atento o explanado, não podemos deixar de, perante o conteúdo normativo do disposto no artigo 43.º, n.º 6, do Decreto 2-B/2020, de 2 de abril, acolhido pela douta decisão impugnada e cuja aplicação foi recusada, sustentar a sua inconstitucionalidade orgânica por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa.
55. Por força do exposto, deverá ser tomada decisão no sentido de julgar organicamente inconstitucional a norma contida na disposição identificada - artigo 43.º, n.º 6, do Decreto 2-B/2020, de 2 de abril - negando-se, assim, provimento ao presente recurso.»
5. O recorrido não contra-alegou.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. O objeto do recurso é a norma do n.º 6 do artigo 43.º do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, segundo a qual «[a] desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticada em violação do disposto no presente decreto, são sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho.»
Na situação dos autos, tratou-se de desobediência a ordem de «recolhimento domiciliário», de acordo com o dever estabelecido no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, ordem esta emitida nos termos das alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 43.º do mesmo diploma. Esta última disposição remete expressamente para a alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, que preceitua o seguinte: «[q]uem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.» O juízo de inconstitucionalidade proferido na sentença recorrida incidiu exclusivamente sobre o agravamento em um terço dos limites mínimo e máximo da moldura penal do crime de desobediência, na modalidade aplicável nos autos, operado pela norma sindicada.
7. O raciocínio em que repousou o segmento pertinente da sentença recorrida é de extrema simplicidade. O Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, é um diploma regulamentar emitido pelo Governo no quadro da sua competência de execução do Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril, que renovou a declaração de estado de emergência constante do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março. Ora, a Constituição comete à Assembleia da República, salvo autorização legislativa, a definição das penas (alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º). Ao agravar, por intermédio de regulamento, a moldura penal do crime de desobediência no que respeita às ordens legítimas emanadas das entidades competentes para fiscalizar o cumprimento do dever geral de recolhimento domiciliário, o Governo invadiu a reserva de lei parlamentar.
É certo que norma sindicada remete para o n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho – a Lei de Bases de Proteção Civil −, segundo o qual a «desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em situação de alerta, contingência ou calamidade, são sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo.» Este preceito prevê um agravamento especial da moldura penal do crime de desobediência no âmbito de situação de alerta, contingência ou calamidade – os estados de exceção administrativa regulados no diploma em que se insere. Sucede que nos presentes autos está em causa uma norma constante de decreto aprovado no âmbito de um estado de emergência – uma das modalidades de estado de exceção constitucional previstas no artigo 19.º da Constituição e regulamentadas pela Lei n.º 44/86, de 30 de setembro (Lei Orgânica que estabelece o Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência − LOESEE). Este diploma não prevê nenhum agravamento especial da moldura penal do crime de desobediência; o seu artigo 7.º determina que a «violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência».
Assentes estas premissas, a conclusão parece inexorável. Ao prever em termos inovatórios o agravamento da moldura penal de um tipo de crime, a norma sindicada padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. Recusada a aplicação desta norma, com fundamento no artigo 204.º da Constituição, a punição agravada do arguido deixa de ser autorizada, em virtude do princípio nulla poena sine lege, consagrado no n.º 1 do artigo 21.º da Constituição, pelo que se impôs a aplicação de pena estritamente nos termos gerais previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal.
8. Esta argumentação, que seria irrepreensível em condições de normalidade constitucional, omite a questão fundamental que o Ministério Público suscita nas suas alegações. Trata-se de saber se «poderia o Governo ter legislado sobre a referida matéria sem ofender a Constituição, atento o contexto jurídico-constitucional conformado pelo Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril, que declarou o estado de emergência.» A esta questão fundamental o recorrente dá uma resposta categoricamente negativa, baseada no disposto no n.º 7 do artigo 19.º da Constituição (no essencial reiterado no n.º 2 do artigo 3.º da LOESEE), segundo o qual a «declaração do estado de sítio ou do estado e emergência só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não podendo nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania.» Conclui-se que a declaração do estado de emergência não pode autorizar o Governo a «legislar em matéria de reserva relativa de competência da Assembleia da República», de onde se segue que a norma é inconstitucional.
Este juízo comporta duas implicações perturbadoras.
A primeira é a de que no direito português vigente a sanção penal da desobediência a ordens legítimas emitidas pelas autoridades competentes no âmbito de um estado de exceção administrativa é mais severa do que a definida para a desobediência a ordens legítimas emitidas no âmbito de um estado de exceção constitucional, por natureza de gravidade superior, o que se traduz não apenas na sua declaração integrar a competência própria do Presidente da República (alínea d) artigo 134.º) e se encontrar sujeita a autorização parlamentar (n.º 1 do artigo 138.º), como sobretudo no seu efeito singular de suspensão do exercício de direitos, liberdades e garantias (n.ºs 1 e 5 do artigo 19.º). Ora, se o bem jurídico salvaguardado pela punição da desobediência a ordens legítimas é a autoridade pública, mormente a autoridade dos agentes policiais incumbidos de fiscalizar a observância da legalidade democrática, dificilmente se pode sustentar, sem se incorrer numa ostensiva contradição axiológica, a punição mais severa da desobediência a ordens administrativas orientadas a garantir a legalidade normal do que aquelas que se destinam a garantir uma legalidade excecional que, por circunstâncias e finalidades constitucionalmente reconhecidas, justifica sacrifícios extraordinários. É verdade que incoerências desta natureza ocorrem com maior ou menor frequência na legislação de qualquer democracia constitucional, tendo em conta as contingências da alternância política e da sucessão de leis no tempo. Em todo o caso, note-se que, apesar de a versão originária da LOESEE ter sido aprovada pela Lei n.º 44/86, de 30 de setembro – há mais de três décadas −, o diploma foi revisto duas vezes, a segunda das quais pela Lei Orgânica n.º 1/2012, de 11 de maio, vários anos após a aprovação da versão originária da Lei de Bases da Proteção Civil, da qual já constava o agravamento especial da moldura penal do crime de desobediência. O legislador parlamentar teve, assim, ampla oportunidade para fazer concordar as valorações penais subjacentes aos dois regimes, no pressuposto – a que o recorrente adere − de que só ele o poderia fazer.
A segunda implicação perturbadora prende-se com o modo como o recorrente interpreta o n.º 7 do artigo 19.º da Constituição e a disposição homóloga da LOESEE, no sentido de que a declaração do estado de emergência não autoriza o Governo a «legislar em matéria de reserva relativa de competência da Assembleia da República». É ponto assente que a declaração de estado de emergência não autoriza o Governo a legislar em matéria de reserva de lei parlamentar, se por essa expressão se pretender denotar uma competência legislativa normal, visto que os atos de execução da declaração revestem a forma de decretos executivos que caducam uma vez esgotado o prazo de vigência do decreto presidencial – no máximo, quinze dias (artigo 19.º, n.º 5). Antes se trata de uma competência normativa excecional, que não põe evidentemente em causa a «aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania» em condições de «normalidade constitucional». Só que o recorrente retira desta disposição constitucional uma consequência muito mais vasta: a inibição de competência do Governo, no uso do poder de execução da declaração do estado de emergência (artigo 17.º da LOESEE), de emitir quaisquer normas em matéria de competência legislativa reservada da Assembleia da República. A ser assim, é inevitável concluir que o regime do artigo 19.º da Constituição é inexequível, uma vez que a execução de uma declaração que suspende o exercício de direitos e confere «às autoridades competência para tomarem as providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional» (n.º 8 do artigo 19.º) implica necessariamente amplos poderes em matéria de direitos, liberdades e garantias, domínio por excelência da reserva de lei parlamentar (alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição). De resto, toda a experiência histórica de estados de exceção documenta o largo alcance do poder de emergência atribuído ao executivo, de todo incompatível com uma interpretação tão adstringente do n.º 7 do artigo 19.º da Constituição.
Como é bom de ver, para se compreender o alcance deste preceito, e se responder à questão fundamental de saber se «poderia o Governo ter legislado [emitido normas] sobre a referida matéria (…) atento o (…) estado de emergência», é indispensável situar o problema no contexto do regime constitucional do estado de emergência.
9. O estado de emergência é uma de duas situações − a outra é o estado de sítio − em que a Constituição admite a «suspensão do exercício de direitos» (artigo 19.º, n.º 1, da Constituição). A terminologia neste domínio é muito variável ao longo da história, entre tradições jurídicas e nas diferentes leis: no direito alemão, a designação comum é a de «estado de exceção» (Ausnahmezustand); as expressões «lei marcial» (martial law) e «poderes de emergência» (emergency powers) são tradicionais nos direitos anglo-saxónicos; nos direitos latinos, é habitual o uso do termo «estado de sítio» (état de siège), de origem francesa; já a denominação «estado de necessidade» ou «direito de necessidade», de origem romana, é moeda corrente no direito penal (artigo 34.º do Código Penal) e no direito civil (artigo 339.º do Código Civil), e mais recentemente no direito administrativo (artigo 3.º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo), sendo também usada no domínio constitucional nos direitos de maior influência germânica (Notstand). Ainda que castigada pela memória traumática da aplicação do artigo 48.º da Constituição de Weimar de 1919, a expressão estado de exceção é a mais extensa e sugestiva, compreendendo todo o fenómeno a que respeitam o estado de emergência e o estado de sítio tal como se encontram previstos no texto constitucional. Ambos os estados são formais, porque resultam de uma declaração solene emitida de acordo com determinadas regras, e causais, porque se fundam na verificação de determinados pressupostos comuns – agressão efetiva e iminente por forças estrangeiras; grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática; ou calamidade pública (artigo 19.º, n.º 2, da Constituição). O estado de emergência é menos severo do que o estado de sítio, o que se traduz em só a declaração deste poder determinar a suspensão de todos os direitos fundamentais disso suscetíveis – todos aqueles, quer isto dizer, que não constam do elenco de direitos cuja suspensão é proscrita (artigo 19.º, n.º 6).
A opção entre os estados é regulada por um critério de proporcionalidade, no sentido de que a gravidade da causa deve justificar a necessidade da forma mais severa. Na verdade, esta exigência aplica-se não apenas à opção pela declaração de um ou outro dos estados, mas à própria opção de declarar qualquer um deles: a situação deve ser de gravidade tal que torne indispensável a «suspensão do exercício de direitos». É o que decorre do n.º 4 do artigo 19.º da Constituição. Se for possível gerir eficazmente uma calamidade pública, uma agressão externa ou uma perturbação da ordem de um modo compatível com o pleno respeito pelos direitos fundamentais, é evidente que não se pode admitir – seria desproporcional − a suspensão do exercício destes. O que justifica a declaração do estado de exceção é o facto de se verificarem circunstâncias em que a aplicação regular das normas constitucionais colocaria em perigo a subsistência da ordem constitucional. Trata-se de circunstâncias excecionais no sentido de que constituem um desvio em relação a um estado de normalidade pressuposto pelo regime constitucional comum. Por isso, o estado de exceção implica uma derrogação global e transitória de normas constitucionais: global porque essas normas deixam de se aplicar na generalidade dos casos que integram o seu âmbito de aplicação, como se tivessem sido revogadas; transitória porque essas normas não se aplicam apenas enquanto durar o estado de exceção, ou seja, até que seja restaurada a situação de normalidade.
Se perguntarmos pela proveniência dos valores em razão dos quais operam os regimes de exceção ordinários – no direito civil, penal e administrativo −, chegaremos sem dificuldade à conclusão de que se trata de valores jurídicos gerais, em última análise com expressão constitucional. A suspensão da tutela de direitos patrimoniais, da punição de factos típicos ou da legalidade administrativa justifica-se em virtude da prevalência dos valores sacrificados pela aplicação regular das normas que integram o instituto jurídico ou sector do ordenamento que esteja em causa. Mas a suspensão do exercício de direitos prevista no artigo 19.º da Constituição não pode ser compreendida exatamente nestes termos, visto que implica a suspensão de normas fundamentais, aquelas mesmas que encerram os valores mais elevados ou radicais axiológicos da ordem jurídica. O problema é agravado pelo facto de, na vigência do estado de exceção constitucional, o poder executivo ser investido de prerrogativas extraordinárias, de modo que se pode falar em suspensão do exercício de direitos fundamentais e da separação regular de poderes. O estado de exceção parece, assim, encerrar o paradoxo de a ordem constitucional se defender através da obliteração da sua essência.
10. Para se compreender o modelo português de exceção constitucional e o modo como procura dissolver o paradoxo da suspensão tem interesse situá-lo entre os dois arquétipos polares do problema.
O primeiro corresponde ao modelo ancestral da ditadura romana, em que em situações de emergência, nomeadamente de ameaça externa ou insurreição, um cidadão comum era investido de imperium extraordinário pelo prazo máximo de seis meses, podendo suspender quaisquer leis, usar indiscriminadamente da força e decretar todas as medidas que reputasse indispensáveis ao restabelecimento da ordem (v. a exposição clássica de Theodor Mommsen, Römisches Staatsrecht, II-1, Verlag von S. Hirzel, 2.ª ed., 1877, pp. 133-64). Concluída a tarefa ou atingido o prazo da comissão, o ditador regressava à condição de cidadão comum e as instituições republicanas, designadamente o Senado e os Cônsules, retomavam o exercício regular dos seus poderes constitucionais. A ditadura implicava a suspensão total da ordem constitucional com o fito de assegurar a sua subsistência – um sacrifício temporário, mas integral, dos valores constitucionais.
O arquétipo oposto é representado pela ordem constitucional germânica. Na versão originária de 1949, a Lei Fundamental de Bona não previa nenhum regime de exceção, demarcando-se claramente do artigo 48.º da Constituição de Weimar de 1919, que atribuía ao Presidente do Reich amplos poderes de emergência que abriram caminho à implantação por via legal do regime nacional-socialista. Uma revisão constitucional em 1968 introduziu várias disposições destinadas a situações de emergência específicas, com a agilização de procedimentos e reforço de poderes, mas não previu nenhum regime unitário de exceção, nem autorizou a suspensão do exercício de direitos (v. a síntese de Konrad Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 20.ª ed., C. F. Müller, 1999, pp. 300-17). No quadro constitucional alemão, o regime normal da restrição de direitos fundamentais, mormente no que respeita aos denominados «limites aos limites» (Schranken-Schranken), comparável ao disposto no artigo 18.º da nossa Constituição, aplica-se sem exceções. Não há, assim, estado de exceção constitucional propriamente dito – trata-se de um modelo negacionista.
O regime consagrado no artigo 19.º da Constituição pode ser interpretado como uma via média entre o modelo da suspensão e o modelo negacionista – um modelo de suspensão regulada. A essência deste arquétipo exprime-se através de dois enunciados fundamentais: defesa proporcional da ordem constitucional e limites categóricos ao poder de emergência. Trata-se de um modelo de suspensão, porque determina a não aplicação do regime normal e prevê formas de atuação extraordinárias, as quais se traduzem essencialmente na suspensão do exercício de direitos e na concentração de poder executivo. Porém, ao contrário da ditadura romana, a suspensão da ordem constitucional não é integral nem anómica − antes se encontrando submetida a uma ideia reguladora de constitucionalidade material.
Em primeiro lugar, e segundo o disposto no n.º 4 do artigo 19.º, «[a] opção pelo estado de sítio ou pelo estado de emergência, bem como as respetivas declaração e execução, devem respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto às suas extensão e duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional.» A exigência de proporcionalidade intervém em todos os momentos da aplicação do regime do estado de exceção: declaração, modalidade, extensão, duração e execução. É o ponto nevrálgico do sistema, o canal de articulação entre o regime de exceção e a ordem constitucional, desempenhando três funções essenciais: uma função transcendental, que se traduz na noção de que a proporcionalidade das medidas de exceção é a condição da possibilidade da sua justificação racional; uma função autorreferencial, segundo a qual são os próprios valores da ordem constitucional, como a proteção da vida e da saúde ou a preservação da independência nacional, que fundamentam a suspensão de certas normas constitucionais; e uma função de garantia, como norma de controlo posterior – parlamentar e judicial – da execução do estado de exceção. É esta a forma através da qual regimes como nosso procuram dissolver o paradoxo da defesa da constituição através da sua suspensão: o princípio da proporcionalidade exerce uma força gravitacional sobre o estado de exceção que o integra no sistema axiológico de que participa a norma constitucional.
Em segundo lugar, o n.º 6 do artigo 19.º determina que, «[a] declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião.» Considera-se tão inverosímil a hipótese de a suspensão do exercício destes direitos poder respeitar o princípio da proporcionalidade que se exclui liminarmente que o juízo sobre a matéria seja realizado pelos poderes constituídos num cenário de crise potencialmente caracterizado por insuficiência epistémica e risco acrático – por outras palavras, num contexto de elevada probabilidade de erro e tentação de abuso. Por seu turno, o n.º 7 do artigo 19.º dispõe que o estado de exceção só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos, «não podendo nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e de governo próprio das regiões autónomas ou os direitos e imunidades dos respetivos titulares.» Trata-se agora de prevenir o desvio de poder consumado na adoção de providências que usurpam ou inibem o exercício das competências normais dos demais órgãos de soberania e dos órgãos do poder regional ou que lhes cometam competências excecionais não previstas nas disposições constitucionais e legais aplicáveis em estado de exceção. A preocupação subjacente a este preceito é a de impedir que o poder de emergência se transfigure por via legal em poder soberano – o risco latente no modelo da ditadura −, aquela mesma que informa ainda a cláusula dos limites circunstanciais de revisão constitucional constante do artigo 289.º («[n]ão pode ser praticado nenhum ato de revisão constitucional na vigência de estado de sítio ou estado de emergência»).
11. A declaração de um estado de exceção não autoriza apenas a compressão anormal de direitos fundamentais através da suspensão temporária do seu exercício – o que se pode designar como a sua vertente material. Promove ainda um alargamento anormal das competências do poder executivo – a sua vertente orgânica. Ao passo que as restrições de direitos, liberdades e garantias são matéria de reserva de lei parlamentar (artigos 18.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição), é ao executivo que cabe adotar as medidas de emergência que as circunstâncias venham a reclamar, nomeadamente as que comprimem severamente as liberdades fundamentais cujo exercício tenha sido declarado suspenso. Pode, por isso, dizer-se que a declaração do estado de exceção atinge a constituição dos direitos e a constituição dos poderes; e assim como a tutela jurídica daqueles é debilitada com vista a viabilizar a defesa proporcional da ordem constitucional, também estes são reorganizados com o fito de se criarem as condições e se mitigarem os perigos de um poder de emergência apto a desempenhar aquela missão.
O artigo 134.º, alínea d), da Constituição, comete ao Presidente da República a competência para declarar o estado de sítio ou o estado de emergência, remetendo depois para o disposto nos artigos 19.º e 138.º. Este último estabelece o regime da declaração, exigindo a audição do Governo e a autorização da Assembleia da República, matéria que é depois minuciosamente regulamentada nos artigos 10.º a 16.º da LOESEE.
Uma leitura superficial dos preceitos constitucionais pode sugerir que o poder de emergência é exclusivamente atribuído ao Presidente da República, ainda que o seu exercício dependa da autorização da Assembleia da República. Competir-lhe-ia não apenas declarar o estado de emergência ou o estado de sítio, indicar os direitos de exercício suspenso e definir o âmbito temporal e espacial da suspensão, mas uma larga margem para decidir das medidas a adotar pelas autoridades administrativas e para delegar poderes normativos no Governo, porventura através da definição − por analogia com o regime constante do n.º 2 do artigo 165.º − do objeto, o sentido e a extensão de eventuais autorizações para decretar medidas de exceção. Se assim fosse, o nosso regime orgânico seria próximo do definido no artigo 48.º da Constituição de Weimar de 1919 e no artigo 16.º da Constituição Francesa de 1958, que atribuem ao Chefe do Estado a autoridade de declarar o estado de exceção, suspender direitos fundamentais, adotar as medidas que entender convenientes e autorizar as demais autoridades a decretar outras.
Para além das dificuldades de compatibilização de um tal entendimento com o disposto no n.º 2 do artigo 111.º da Constituição – que desautoriza delegações de competência dos órgãos de soberania não expressamente previstas −, uma leitura integrada das normas constitucionais, largamente refletida na LOESEE, permite concluir que não é esse o modelo de organização do poder de emergência no direito constitucional português. Este repousa antes na separação tão estrita quanto possível entre o poder de declaração e o poder de execução do estado de exceção. O primeiro, cometido ao Presidente da República, sujeito a audição do Governo e a autorização da Assembleia da República, exerce-se através de um decreto (artigo 11.º da LOESEE) com o conteúdo fixado no artigo 14.º da LOESEE, do qual se destaca a caracterização (estado de sítio ou estado de emergência) e fundamentação (por referência a uma das causas constitucionalmente reconhecidas) do estado declarado, a fixação do âmbito territorial e da duração (não superior a quinze dias) do mesmo e a «[e]specificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso ou restringido». O segundo, cometido ao Governo (n.º 8 do artigo 19.º da Constituição e artigo 17.º da LOESEE), traduz-se na adoção das medidas adequadas, necessárias e proporcionais de execução da declaração, ou seja, todas as providências normativas e materiais que o «pronto restabelecimento da normalidade constitucional» reclamar (n.º 4 do artigo 19.º da Constituição) − medidas estas que caducam com a declaração presidencial e são sujeitas a fiscalização parlamentar posterior.
Esta cisão entre os poderes de declaração e execução permite realizar, no quadro próprio do regime de exceção, as duas principais dimensões do princípio da separação de poderes – como garantia de moderação política e imperativo de adequação funcional. Por um lado, trata-se de uma forma de evitar a concentração do poder de emergência num único órgão, um traço de regime sobre o qual já se disse constituir «o elemento crucial no processo» de garantia da vinculação jurídica do poder de emergência (Ernst-Wolfgang Böckenförde, “The Repressed State of Emergency”, Constitutional and Political Theory: Selected Essays [Mirjam Künkler e Tine Stein eds.], Oxford University Press, 2017, pp. 128-29) e integrar o património comum da «cultura jurídica continental europeia sobre o direito constitucional de exceção» (Javier Perez Royo e Manuel Carrasco Durán, Curso de Derecho Constitucional, Marcial Pons, 16.ª ed., 2018, p. 847). Por outro lado, a atribuição ao Presidente da República e ao Governo destas distintas funções adequa-se às características dos órgãos: ao primeiro, gozando de legitimidade democrática direta e cabendo-lhe uma função de garantia da independência nacional, da unidade do Estado e do regular funcionamento das instituições democráticas (artigo 120.º da Constituição), compete a decisão política de declarar o estado de exceção e suspender o exercício de direitos; ao segundo, como órgão de condução da política geral do país e órgão superior da Administração Pública (artigo 182.º), compete a atividade de execução num contexto de exceção, desde decretar todas as medidas que se revelem apropriadas nas circunstâncias concretas, até mobilizar os meios administrativos indispensáveis para as pôr em prática.
12. A caracterização do regime jurídico e a apreensão do sentido último dos estados de exceção constitucional torna agora possível uma resposta adequada à questão fundamental do presente recurso de constitucionalidade, qual seja a de saber se o Governo tem competência, no quadro da execução da declaração presidencial do estado de emergência, para decretar normas em matéria de crimes e penas, designadamente agravando os limites mínimo e máximo da moldura penal do crime de desobediência
A resposta é inequivocamente afirmativa.
No direito constitucional português, a execução da declaração do estado de emergência, compreendendo todas as «providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional», é uma competência diretamente fundada no n.º 8 do artigo 19.º da Constituição. O Governo não carece de autorização da Assembleia da República ou do Presidente da República para decretar as normas que entender necessárias em matérias que integram a reserva de lei parlamentar: uma vez declarado um estado de emergência ou um estado de sítio, o executivo passa a atuar no quadro de uma organização excecional do poder público, podendo não só estabelecer normas de conduta incompatíveis com exercício regular das liberdades fundamentais abrangidas pelo decreto presidencial – como ocorre com a imposição de um dever geral de recolhimento domiciliário −, como tomar providências em matéria de crimes e penas estreitamente relacionadas com a sua função de defesa da ordem constitucional. Com efeito, verifica-se uma simbiose funcional entre a competência para decretar normas primárias de conduta e normas secundárias que sancionam, se necessário sob a forma penal, a violação daquelas; trata-se de duas faces da mesma moeda, o exercício de um poder de emergência constitucional. Por outras palavras, as razões que justificam a autorização extraordinária para invadir a reserva parlamentar em matéria de direitos, liberdades e garantias – inerente ao poder de executar uma declaração que suspende parcialmente o exercício destes − estendem-se necessariamente ao domínio da definição dos crimes e das penas que participe da mesma finalidade e nela encontre justificação material suficiente.
Não se trata aqui de nenhuma afetação das «regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania», proibida pelo n.º 7 do artigo 19.º da Constituição, uma vez que este poder normativo é absolutamente excecional e não inibe o uso regular do poder legislativo normal. O seu exercício baseia-se num título extraordinário (a declaração do estado de exceção), reveste carácter temporário (a vigência do decreto presidencial) e é orientado a uma finalidade específica (a restauração da normalidade constitucional). O Governo não tem manifestamente competência, no uso do seu poder de emergência, para agravar a moldura penal do crime de desobediência em geral, ou seja, em todo o âmbito coberto pelo tipo de crime previsto no Código Penal, nem pode revogar ou alterar quaisquer disposições da lei penal, valendo-se do princípio de que lex posterior derogat priori; em suma, não pode aprovar quaisquer leges, no sentido estrito do termo, em matéria reservada. Mas pode decretar normas no âmbito específico da execução do decreto presidencial que declara o estado de emergência, estritamente pelo prazo de vigência daquele e com vista a garantir o cumprimento da legalidade excecional. Trata-se, em suma, de uma competência normativa alargada, cujo âmbito material é definido em função do necessário e adequado ao «pronto restabelecimento da normalidade constitucional».
Nunca é de mais enfatizar que este poder normativo de emergência cometido ao executivo na vigência de um estado de exceção constitucional está bem longe de ser arbitrário ou absoluto. No plano material, encontra-se vinculado ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo – compreendendo as exigências de adequação, necessidade e justa medida −, plenamente operativo no momento da execução do estado de exceção, sendo as normas e os atos do poder executivo decretados e praticados neste âmbito sindicáveis pelos tribunais nos termos gerais, nomeadamente para efeitos de tutela de pretensões indemnizatórias fundadas na privação ilegal ou injustificada da liberdade (n.º 3 do artigo 2.º da LOESEE). No plano institucional, o Governo responde perante o Presidente da República e a Assembleia da República (artigo 190.º), sendo a aplicação da declaração de estado de sítio ou de estado de emergência objeto específico de fiscalização parlamentar (alínea b) do artigo 162.º), procurando-se desta forma instituir um sistema de freios e contrapesos que compatibilize a necessidade de ação expedita e eficaz em circunstâncias de crise, para a qual o poder executivo se encontra vocacionado, com os mecanismos de deliberação, publicidade e controlo próprios de um regime democrático e representativo.
Ao regular e limitar os termos da sua suspensão parcial, integrando o estado de exceção no seu sistema de valores, a ordem constitucional procura domesticar o poder de emergência, recusando os extremos da ditadura comissarial e da negação da necessidade. Daí a competência do Governo para − nas circunstâncias, para as finalidades e nos limites previstos no artigo 19.º da Constituição − decretar normas em matéria normalmente sujeita a reserva de lei parlamentar; o executivo opera, neste quadro constitucional especialíssimo, como um legislador extraordinário ex ratione necessitatis. Ora, o agravamento em um terço dos limites mínimo e máximo do crime de desobediência a ordens legítimas das autoridades incumbidas de garantir o cumprimento do dever geral de recolhimento domiciliário, estabelecido no n.º 6 do artigo 43.º do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, situa-se nesse âmbito de competência extraordinária.
É certo que o artigo 7.º da LOESEE não define o agravamento dos limites da moldura penal do crime de desobediência. Mas note-se que esse preceito, ao contrário do n.º 4 do artigo 6.º da Lei de Bases da Proteção Civil, não remete para a punição da desobediência nos termos da lei penal, muito menos se destina a limitar o poder de modificar os termos dessa punição no exercício das prerrogativas conferidas pelo n.º 8 do artigo 19.º da Constituição. Ao determinar que a violação do disposto na «execução» da declaração de estado de sítio ou do estado de emergência «faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência», a norma em causa constitui unicamente uma «cominação legal» do crime de desobediência, mormente para efeitos da alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal. Isto sem entrarmos aqui na questão do universo de destinatários desta prescrição: se apenas os titulares de órgãos do poder público – como decorria expressamente da redação originária do preceito, que tinha por epígrafe «crime de responsabilidade» −, se estes e ainda todo o vasto universo dos cidadãos a que se destinam as medidas de execução.
Para efeitos do presente recurso, importa apenas assentar em que, mesmo na segunda de tais interpretações, não se trata aqui de nenhuma norma de preclusão de competência, que teria por efeito subtrair ao poder fundado no n.º 8 do artigo 19.º da Constituição a matéria da definição das consequências jurídicas da desobediência a ordens legítimas das autoridades incumbidas de garantir o cumprimento da legalidade de exceção. A comparação entre o teor do n.º 6 do artigo 4.º da Lei de Bases da Proteção Civil – que determina que «a desobediência e a resistência às ordens legítimas das autoridades competentes (…) são sancionadas nos termos da lei penal» – e o artigo 7.º da LOESEE – que dispõe que a «violação do disposto (…) [na] execução [da declaração do estado de emergência] faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência» − é elucidativo a respeito do alcance diverso das respetivas normas: no primeiro caso, trata-se de remeter para as disposições relevantes da lei penal, agravando-se a moldura penal; no segundo, trata-se apenas da cominação legal do crime, sem nenhuma indicação da fonte em que se definem os respetivos pressupostos ou consequências, nem preclusão da possibilidade de a moldura penal ser agravada através de decreto de execução do estado de emergência ou estado de sítio.
Esta diferença reflete, como é bom de ver, a descontinuidade radical entre o poder administrativo de exceção, que não pode de modo algum exceder os limites materiais e o quadro de competências próprios da normalidade constitucional – estando-lhe totalmente vedada a emissão de normas em toda a matéria de reserva de lei −, e o poder de emergência constitucional, que nasce exclusivamente com a declaração de um estado de exceção e que implica uma concentração extraordinária de poder executivo fundada no n.º 8 do artigo 19.º da Constituição. Ao abster-se de remeter para a lei penal, mantendo ou agravando os limites da pena nela prevista, a LOESEE reconhece implicitamente que a matéria, em condições normais reservada a lei da Assembleia da República ou a decreto-lei autorizado, inscreve-se na esfera de competência do poder de executar a declaração de um estado de emergência ou de um estado de sítio – a competência, quer isto de dizer, para adotar as «providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional». A definição dessas «providências», que compreendem normas primárias de conduta e normas secundárias que sancionam a violação daquelas, é domínio próprio do poder de emergência cometido ao executivo, devendo observar uma exigência de proporcionalidade que, em boa verdade, somente no contexto da execução da declaração de estado de exceção pode ser corretamente aferida. Deste modo, o artigo 7.º da LOESEE respeita a repartição de competências em estado de exceção que se pode extrair da Constituição como uma unidade de sentido que institui e regula os termos da sua própria suspensão parcial. Tanto basta para se concluir que a norma sindicada não merece censura constitucional.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 6 do artigo 43.º do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril.
b) Em consequência, conceder provimento ao recurso.
c) Ordenar a reforma da sentença recorrida, em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 27 de maio de 2021 – Gonçalo de Almeida Ribeiro – Joana Fernandes Costa (vencida, nos termos da declaração em anexo) –Maria José Rangel de Mesquita (vencida, nos termos da declaração que se junta) – João Pedro Caupers
Atesto o voto de conformidade do Conselheiro Lino Ribeiro, que participa ma sessão por videoconferência)
Gonçalo de Almeida Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencida.
1. Ao contrário da posição que fez vencimento, considero que a norma constante do n.º 6 do artigo 43.º do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, no segmento em que faz corresponder à violação do dever de recolhimento domiciliário imposto em execução da declaração do estado de emergência pena mais grave do que aquela que resulta do artigo 7.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, na redação conferida pela Lei Orgânica n.º 1/2012, de 11 de maio, é organicamente inconstitucional. A sua edição não se inclui, quanto a mim, no âmbito da competência normativa inerente aos poderes de execução da declaração do estado de emergência que a Constituição atribuí ao Governo, pelas razões que passarei sumariamente a expor.
2. Apesar de ter por certo que o estado de exceção constitucional que sobrevêm à declaração do estado de emergência se caracteriza pela atribuição ao Governo de uma competência normativa também ela excecional, que compreende a faculdade de emissão de normas em matéria sob reserva de competência legislativa da Assembleia da República em estado de normalidade constitucional, tenho igualmente por verdadeiro que esse poder excecional atribuído ao Governo, não sendo absoluto, se encontra delimitado tanto positiva como negativamente pelo direito pré-existente, sendo este constituído não apenas pela própria Constituição, como ainda pela Lei Orgânica que define o Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência (doravante, LRESEE), para a qual, ao afirmar que «[a] declaração do estado de sítio ou do estado de emergência só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei» (artigo 19.º, n.º 7), aquela expressamente remete.
A minha divergência relativamente à maioria reside justamente na delimitação negativa do âmbito do poder de emergência atribuído ao Governo, designadamente à face do que dispõe o artigo 7.º da LRESEE.
3. A construção de que parte o Acórdão não me suscita quaisquer reservas.
Do mesmo modo que a maioria, não tenho dúvidas que o n.º 7 do artigo 19.º da Constituição, no segmento em que determina que a declaração do estado de emergência não pode «afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania», tem em vista o quadro de repartição da competência legislativa normal entre o Governo e a Assembleia da República e não o propósito de a esse quadro submeter a competência normativa excecional inerente ao poder de executar aquela declaração - poder que, por força da Constituição (19.º, n.º 8) e da Lei que a concretiza (artigo 17.º da RESEE), se encontra atribuído ao primeiro. Tal como não tenho dúvidas de que, justamente por assim ser, o n.º 7 do artigo 19.º da Constituição não tem o significado de proscrever do âmbito do poder de execução da declaração do estado de emergência atribuído ao Governo a faculdade de emitir quaisquer normas em matéria de competência legislativa reservada da Assembleia da República; caso tivesse, como bem explica o Acórdão, tal neutralizaria, só por si, a competência das autoridades «para tomarem as providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional» (artigo 19.º, n.º 8) tendo em conta o que dispõe a alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. O que entendo - e talvez se inicie aqui o meu afastamento da maioria - é que de tal premissa se não retira, como lógica ou teleológica decorrência, que o poder do Governo para executar a declaração do estado de emergência, tal como a Constituição o perspetiva e conforma, haja de incluir a competência para emitir todas as normas em todas as matérias de competência legislativa reservada da Assembleia da República, desde que funcionalmente subordinadas à restauração da normalidade constitucional, independentemente do que dispõe a LRESEE.
4. Ao definir, logo em 1986, o Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência, as preocupações do Parlamento foram claras. Delas dá conta o Projeto de Lei n.º 58/IV, que esteve na génese da aprovação da Lei n.º 44/86, em cuja introdução se lê o seguinte:
«É claro que a urgência em normativizar o regime daqueles estados de exceção se reveste da relatividade de todas as exceções. O País disfruta de normalidade e não se configura o risco emergente de ter de ser decretada a suspensão do exercício de qualquer direito fundamental.
Mas, se a exceção raramente ocorre, reveste-se, quando ocorre, de particular gravidade. E seria de todo o ponto inconveniente que qualquer dos referidos remédios extremos, previstos na Constituição sem regras de aplicação, viesse a ser objeto de aplicação direta - e nessa medida arbitrária - por ausência de regulamentação.
A isto se destina o presente projeto que se projeto, que se propõe preencher uma lacuna institucional da maior gravidade.
[...]» (Diário da Assembleia da República, Série n.º 11/IV/1, 06.12.1985, p. 351-352).
Embora a referência expressa aos «termos previstos na Constituição e na lei» apenas tivesse resultado da revisão constitucional de 1989 - que aditou ao artigo 19.º da Constituição os seus atuais n.ºs 7 e 8 -, a ideia de que, num Estado de direito democrático, a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência apenas deveria poder alterar a normalidade constitucional dentro de um quadro normativo pré-existente conduziu a Assembleia da República a concretizar o regime que então constava dos n.ºs 1 a 6 do referido artigo 19.º através da aprovação da Lei n.º 14/86.
Entre as «necessárias garantias e cautelas» de que se procurou rodear tanto a «tomada» como a «execução» das medidas de exceção (idem) contava-se, já então, a definição dos termos em que a «violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei [LRESEE], nomeadamente quanto à execução daquela», poderia fazer incorrer os respetivos autores em responsabilidade criminal. Tal definição quedou-se, no entanto, pela previsão de um «crime de responsabilidade», que foi tipificado no artigo 7.º da Lei n.º 44/86: um crime específico próprio, relacionado com a legislação penal específica para os titulares de cargos políticos (Lei n.º 34/87, de 16 de julho) e, como tal, de comissão reservada aos «titulares de cargos políticos no exercício das suas funções» (artigo 2.º da referida Lei).
A Lei Orgânica n.º 1/2012, de 11 de maio - posterior, portanto, ao aditamento ao artigo 19.º da Constituição do seu atual n.º 7 - veio alterar esta previsão.
Ao fazer transitar a «violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na LRESEE, nomeadamente quanto à execução daquela», do anterior crime de responsabilidade para o atual crime de desobediência - que o Código Penal tipifica e sanciona no seu artigo 348.º -, a Lei Orgânica n.º 1/2012 converteu o ilícito que era, até à data, privativo dos titulares de cargos políticos num crime comum, passando desse modo a prever os termos em que a violação do disposto na declaração do estado de emergência, nomeadamente quanto à sua execução, pode fazer incorrer os próprios cidadãos em responsabilidade criminal (neste sentido, André Lamas Leite, ““Desobediência em tempos de cólera”: a configuração deste crime em estado de emergência e em situação de calamidade”, Revista do Ministério Público, Número Especial COVID-19: 2020, p. 169-170; em sentido contrário, v. Alexandre Au-Yong Oliveira, “O(s) crime(s) de desobediência no atual estado de emergência, em especial no domínio das restrições ao direito de deslocação e fixação – breves notas”, in: AA.VV., Estado de emergência – COVID 19. Implicações na Justiça, Lisboa: CEJ, 2020, disponível em http://www. cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/ eb_Covid19.pdf, p. 438-442).
Esta modificação tem, segundo creio, um significado e um alcance distintos daqueles que lhe atribui a maioria.
5. A predefinição, em norma editada pela Assembleia da República, das consequências penais em que os cidadãos podem incorrer pela violação dos deveres impostos pelo Governo no exercício do seu poder de executar a declaração do estado de emergência constitui um aspeto da maior relevância.
Ao contrário do que se afirma no Acórdão, a definição da relevância criminal das atuações contrárias aos deveres impostos no âmbito da execução da declaração do estado de emergência, assim como o estabelecimento da medida de privação de liberdade que lhes pode corresponder, nunca são apenas e só, relativamente à competência para a imposição daqueles deveres, a mera outra face da mesma moeda: ao contrário do que sucede, por exemplo, com o direito contraordenacional, na normação relativa às penas está sempre em causa mais do que o simples sancionamento da violação das normas primárias de conduta, pela simples razão de que está sempre em causa o valor da liberdade.
É isso - e talvez a provável convicção de que, em situações de extraordinário e excecional reforço do poder executivo do Estado, os excessos mais temidos são habitualmente aqueles que têm como resultado a privação da liberdade - que explica que a Assembleia da República, através das alterações levadas a cabo pela Lei Orgânica n.º 1/2012, tenha decidido integrar na lei que a Constituição encarrega de prever os termos em que a «declaração do estado de sítio ou do estado de emergência» «pode alterar a normalidade constitucional» (a LRESEE) a definição dos elementos essenciais da responsabilidade criminal que pode ser atribuída aos cidadãos pela violação dos deveres a que o Governo decida sujeitá-los no âmbito do exercício dos seu poderes de execução da declaração do estado de emergência. A remissão para o crime de desobediência, constante do artigo 7.º da LRESEE, traduz isso mesmo.
Ao socorrer-se de um tipo aberto como é o previsto no artigo 348.º do Código Penal, o legislador parlamentar, ao mesmo tempo que chamou a si a definição das consequências criminais da violação do disposto na declaração do estado de emergência e nas correspondentes normas de execução, manteve incólume a competência do Governo para, através da definição do conteúdo dos deveres de atuação impostos aos cidadãos, definir a norma de comportamento que integra a previsão típica.
6. À luz do que ficou dito, a cisão que o Acórdão faz entre a previsão e a estatuição correspondentes ao crime de desobediência tipificado no artigo 348.º do Código Penal torna-se difícil de aceitar.
Entende a maioria que, ao prescrever que a violação do disposto na declaração do estado de emergência ou nas suas normas de execução «faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência», o artigo 7.º da LRESEE - ao invés do que sucede com o n.º 6 do artigo 4.º da Lei de Bases da Proteção Civil -, se esgota na «cominação legal do crime, sem nenhuma indicação da fonte em que se definem os respetivos pressupostos ou consequências» (ponto 12).
Que assim não é, comprova-o, todavia, um vasto conjunto de disposições muito diversas, por via das quais o legislador «faz incorrer em crime de desobediência» - simples ou qualificada, consoante o caso - a prática das ações que interdita ou a omissão das ações que prescreve. É o que sucede, só a título de exemplo, na Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, que aprovou o regime jurídico das armas e suas munições (artigos 90.º, n.º 6, e 91.º, n.º 4), na Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no sector das comunicações eletrónicas (artigo 15.º-A, n.º 2) e na Lei n.º 1/99, de 13 de janeiro, que aprovou o Estatuto do jornalista (artigo 10.º, n.º 4), sem que alguma vez se tivesse duvidado de que, ao fazerem incorrer na prática do crime de desobediência os autores da violação do particular dever prescrito, aquelas normas estão não apenas a cominar essa violação com a prática daquele crime, como ainda a sujeitar os respetivos agentes à pena abstrata que para o mesmo se encontra prevista no Código Penal - pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias em caso de desobediência simples e pena de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias em caso de desobediência qualificada (artigo 348.º, n.ºs 1 e 2, respetivamente).
Ao definir o tipo de crime correspondente à violação dos deveres impostos nas normas que executam o estado de emergência e a pena que abstratamente lhe cabe, o artigo 7.º da LRESEE procede, a meu ver, a uma delimitação negativa da competência normativa do Governo no âmbito do exercício dos seus poderes de emergência, precludindo dessa forma a possibilidade de agravamento da moldura penal através do decreto de execução da declaração do estado de emergência.
É por isso que, ao editar a norma constante do n.º 6 do artigo 43.º do Decreto n.º 2-B/2020, que agrava um terço, nos seus limites mínimo e máximo, as penas previstas na lei penal para o crime de desobediência, o Governo fez uso de uma competência cuja atribuição, a meu ver, não se encontra compreendida nos termos em que a declaração do estado de emergência pode alterar a normalidade constitucional, de acordo com a Constituição e a lei (artigo 19.º, n.º 7).
7. Apenas uma observação final.
É certo que, a ser como se disse, a sanção penal da desobediência a ordens legítimas emitidas pelas autoridades competentes no âmbito de um estado de exceção administrativa permanecerá mais severa do que a definida para a desobediência a ordens legítimas emitidas no âmbito de um estado de exceção constitucional, pelo menos enquanto se mantiver inalterada a atual redação do artigo 7.º da LRESEE.
Simplesmente, se tal consequência, é, como se afirma no Acórdão, “perturbadora”, isso apenas pode significar que o ordenamento jurídico encerra, neste caso como em outros, uma contradição que só ao legislador cumpre solucionar. Dela não se retira qualquer argumento válido que possa ajudar a construir uma resposta afirmativa à questão de saber se, ao incluir no decreto de execução do estado de emergência a agravação das penas previstas para o crime desobediência, o Governo exerceu uma competência que a Constituição lhe atribui quando confere «às autoridades competência para tomarem as providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional».
Joana Fernandes Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencida quanto à decisão e fundamentação, pelas razões que, de modo sucinto, se explicitam.
Não se acompanha a fundamentação do acórdão nos termos da qual do disposto no n.º 8 do artigo 19.º da Constituição decorre diretamente, uma vez verificado o pressuposto aí previsto da declaração do estado de emergência (pelo Presidente da República, ao abrigo da alínea d) do artigo 134.º da Constituição), «um alargamento anormal das competência do poder executivo» (cf. II, 11 e 12), no quadro do exercício do poder de execução daquela declaração consagrado no artigo 17.º da Lei Orgânica n.º 1/2012, que abrange a competência para a adoção de “todas as providências normativas e materiais que o «pronto restabelecimento da normalidade constitucional» reclamar”, um «poder normativo» de «legislador extraordinário ex ratione necessitatis», ou «um poder de emergência constitucional (...) que implica uma concentração extraordinária de poder executivo» (cf. II, 12), ainda que «absolutamente excecional», não arbitrário ou absoluto, e vinculado ao princípio da proporcionalidade, ou seja, configurando uma verdadeira reserva do Governo – incluindo, como sucede no caso dos autos, a competência para decretar normas em matéria de crimes e penas, agravando os mínimo e máximo da moldura penal do crime de desobediência (agravamento esse previsto na norma recusada aplicar na decisão recorrida – o n.º 6 do artigo 43.º do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, aprovado, aliás, ao abrigo do referido artigo 17.º e também da alínea g) do artigo 199.º da Constituição que dispõe sobre a competência administrativa do Governo). Diversamente, entende-se que aquele n.º 8 do artigo 19.º não pode ser dissociado dos limites, consagrados no precedente número 7 do preceito, à alteração, pela declaração do estado de emergência, da «normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei», in casu, os limites atinentes às regras constitucionais relativas à competência da Assembleia da República, enquanto órgão de soberania (artigos 110.º, n.º 1 e 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição) – que por força desse preceito se aplicam, exatamente, também fora do quadro das «condições de normalidade constitucional» (cf. II, 8). A tal entendimento não obsta, por um lado, a competência específica de fiscalização da Assembleia da República quanto à apreciação da aplicação do estado de emergência (artigo 162.º, alínea b), da Constituição) – que não será, todavia, necessariamente excludente das demais, mesmo em estado de emergência com sucede no caso dos autos –, nem a invocada (prima facie como única) função do disposto do n.º 7 do artigo 19.º (cf. II, 10) de prevenção do desvio de poder e da transfiguração, por via legal, do poder de emergência em poder soberano.
Acresce que, nesta outra ótica de leitura conjunta dos números 7 e 8 do artigo 19.º, não se afigura necessária a explicitação do alcance do artigo 7.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, para demonstrar, por comparação com a norma do n.º 6 do artigo 4.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho (para a qual remete a norma recusada aplicar na decisão recorrida), que não se trata de uma norma de preclusão da competência – exclusiva, segundo a fundamentação do Acórdão – do Governo, fundada no n.º 8 do artigo 19.º da Constituição, em matéria de definição das consequências jurídicas da desobediência a ordens legítimas das autoridades incumbidas de garantir o cumprimento da legalidade de exceção, para determinar o agravamento da moldura penal através, in casu, de decreto de execução do estado de emergência (cf. II, 12.) – assim resolvendo a ab initio apontada incongruência sistémica em matéria de sanção penal da desobediência a ordens legítimas emitidas pelas autoridades competentes no âmbito de um estado de exceção administrativo (prevista no referido artigo 6.º, n.º 4, da Lei de Bases da Proteção Civil) e de um estado de exceção constitucional (prevista no referido artigo 7.º do Regime do estado de sítio e do estado de emergência) que, em qualquer caso, sempre poderá ser ultrapassada pelo legislador democrático nos termos do quadro competencial (e de reserva de competência legislativa) constitucionalmente previsto que se aplicará, também, fora do quadro da normalidade constitucional, na vigência do estado de emergência.
Pelo exposto, também não se acompanha a decisão no sentido da não inconstitucionalidade da norma sindicada.
Maria José Rangel de Mesquita