ACÓRDÃO Nº 197/2021
Processo n.º 1185/19
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Mariana Canotilho
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi pelo primeiro interposto recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), do acórdão proferido por aquele Tribunal (fls. 1211-1236), em 23 de outubro de 2019, pretendendo ver apreciada a dimensão normativa ínsita ao artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal como adotada pelo juízo a quo.
2. No curso do processo originário, o ora recorrente apresentou contestação contra a acusação deduzida pelo Ministério Público pela prática, entre outros, de um crime de lenocínio na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 30.º e 169.º, n.º 1, do Código Penal. Em primeira instância, o Juízo de Competência Genérica de Seia (Tribunal Judicial da Comarca da Guarda) julgou procedente a acusação, condenando o recorrente pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de lenocínio. Inconformado, o recorrente interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra. Com interesse para os autos, pode ler-se naquelas conclusões (fls. 1172, verso – 1190):
«1.a- Na contestação que apresentou na sequência da notificação do despacho que designou datas para o julgamento, para além do mais, o arguido invocou a inconstitucionalidade da norma do n.° l do artigo 169. ° do Cód. Penal com base na qual estava a ser acusado.
2.a-Ainda assim, indiferente aos seus argumentos, o Tribunal entendeu decidir pela constitucionalidade da norma - diga-se: de forma "simplista" e aligeirada, sem ponderar nem apreciar a maior parte dos argumentos ali expostos - condenando o arguido com base na mesma em função da matéria de facto dada como assente.
3.a-É precisamente com esta parte da decisão - com as inerentes consequências em sede de condenação pela prática do dito crime - que o arguido se não conforma e da qual vem recorrer.
4.a-O recorrente não vai por em causa a essencialidade matéria de facto dada como assente pelo Tribunal, ainda que tenha a perfeita noção que alguns dos factos ali foram consignado não têm qualquer suporte probatório à luz da prova produzida e analisada em audiência de julgamento.
5.a-Contudo, o arguido não se conforma nem pode admitir o segmento formal dos factos - psicológicos e do foro interior de cada dos arguidos - consignados na parte final do ponto 41 na parte onde se lê : "....bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal".
6.a-Com efeito, em momento algum o arguido - e a sua co-arguida - admitiu - ou admite - que os factos de que vêm acusados sejam contrários aos direito penal vigente e, como tal, suscetíveis de levar à comissão de um crime.
7.a-De resto, em audiência de julgamento não foi produzida ou analisada uma única prova que permita afirmar que os arguidos em algum momento tiveram (ou têm) essa convicção, e o Tribunal recorrido também não justifica onde formou a sua convicção acerca desse facto.
8.a-Antes pelo contrário, pelas razões que se irão aduzir infra, o recorrente tem a convicção de que as condutas descritas na matéria de facto dadas como provadas na sentença são licitas, e ao invés, a norma do n.°l do artigo 169.° do Cód. Penal, por desconforme com os parâmetros constitucionais, não pode ser-lhes aplicada.
9.a-Confrontado com a arguição da inconstitucionalidade da norma incriminadora, o Tribunal recorrido, arrimando-se na posição defendida pelo Tribunal da Relação de Coimbra no seu acórdão de 28.02.2018, concluiu pela improcedência daquela, por considerar que o bem jurídico por la tutelado não será tanto a liberdade de expressão sexual da pessoa, mas "...uma determinada conceção de vida inconciliável com a aceitação do exercício profissional ou com a aceitação do exercício profissional ou com a intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição".
10.a-Na nossa modesta opinião, sai reforçada a posição por nós defendida de que a norma em causa é inconstitucional por violação dos artigos 9o, alínea b), 13°, n°s 1 e 2, 16°, n°2, 18°, n°s 2 e 3, e 26°, n°l, da Constituição da República Portuguesa.
11 .a- Conforme resulta à evidencia da matéria de facto consignada na parte final dos pontos 4 e 24 dos "factos provados" da sentença recorrida, subjacente à conduta levada a cabo pelos arguidos estava um acordo de vontades - um mutuo consenso - formado entre aqueles e cada uma das mulheres que ali se prostituíam, com vista à obtenção de rendimentos para ambas as partes.
12.a- Acordo de vontade esses a que as mulheres havia chegado deforma voluntária para assumir um projeto que, logo que assim entendessem, poderiam abandonai-, o que a maior parte delas fazia passado pouco tempo para "rumarem a novas paragens...".
13.a- Ou seja, estamos perante uma situação em que mera prática de relações de natureza sexual entre maiores onde inexiste qualquer preterição da sua liberdade e autodeterminação sexual, tendo a mulher domínio pleno da sua atuação e ação e tratamento condigno e condizente com a sua condição humana, ao nível de cordialidade, simpatia, liberdade e autodeterminação sexual, inexistindo assim qualquer ofensa a algum bem jurídico ou mesmo vítima;
14.a-Estamos perante um acordo formado pelas partes sem violência ou ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, abuso de autoridade resultante de relação familiar, de tutela ou curatela, dependência hierárquica, económica ou de trabalho bem como aproveitamento de incapacidade psíquica ou especial vulnerabilidade, ocorrer a prática ou mera possibilidade de tal crime e existência de uma vítima!
15.a- Invocar "uma conceção de vida inconciliável com a aceitação do exercício profissional ou com a aceitação do exercício profissional ou com a intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição" para justificar a condenação em pena de prisão de um cidadão, é o mesmo que invocar "bons costumes".
16.a-Importa, assim, que o Tribunal aquilate da conformidade à Lei fundamental da consagração do que se entenda por "bons costumes" nesta matéria, numa era de modernidade e evolução social, em que aquilo que era imoral há anos atrás hoje já o não é. Ou continuando a sê-lo, haverá muito menor resistência da sociedade em razão da tolerância crescente e aceitação como quase normalidade.
17.a-Em função da sua atual redação e evolução histórica da norma do n.°l do artigo 169.° do Cód. Penal, entendemos que a incriminação da conduta típica não está preordenada à salvaguarda - menos ainda é para tanto necessária - de quaisquer "direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".
18.a - Ou dito em linguagem da doutrina penal, não é necessária à proteção de qualquer bem jurídico. Bem jurídico que não se descortina na pertinente área de tutela típica.
19.a-Noutra perspetiva, estamos perante uma manifestação concreta dos chamados "crimes sem vítima", no sentido criminológico do termo, na linha da E. SHUR (victimless crimes ou crimes without victims. Cf. EDWIN SCHUR, Crimes Without Victims: Deviant Behavior and Public Policy, Prentice Hall inc. 1965).
20.a-É seguramente assim a partir da reforma de 1998. Que inter alia eliminou o inciso exploração de situação de abandono ou de necessidade económica''' - constante da versão originária (de 1982/1995).
21.a-E deste modo abriu deliberadamente mão do momento da factualidade típica que associava a infração à ofensa à liberdade sexual e deixou atrás de si uma incriminação exclusivamente votada à punição de "quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar" uma prática em si mesma irrelevante e indiferente para o direito penal - a prostituição.
22.a-Assim, o afastamento da liberdade sexual da área de proteção da norma deixa apenas em campo a prevenção ou repressão do "pecado", um "exercício de moralismo atávico" travestido de uma "...uma determinada conceção de vida inconciliável com a aceitação do exercício profissional ou com a aceitação do exercício profissional ou com a intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição ", com a qual o direito penal do Estado de Direito da sociedade secularizada e democrática dos nossos dias nada pode ter a ver.
23.a-Uma consideração das coisas contra a qual não pode pertinentemente invocar- se a ideia de obviar a perigos contra a dignidade ou a autonomia das pessoas - homens ou mulheres - envolvidas na prostituição.
24.a-Na certeza de que a incriminação é que pode, ela própria, configurar um atentado perverso à dignidade ou autonomia das pessoas. Que sendo adultas, esclarecidas e livres - no fundo a situação típica pressuposta pela incriminação - devem poder legitimamente escolher conduzir a sua vida tanto à sombra da "virtude" como do "pecado".
25.a-Uma escolha insindicável, que devem poder levar à prática, inteiramente resguardados contra a intromissão do direito penal.
26.a-De outro modo e acolhendo-nos à síntese de FIGUEIREDO DIAS, "teríamos uma situação absolutamente anormal e incompreensível: a de o direito penal, pretendendo tutelar o bem jurídico da eminente dignidade (sexual) da pessoa, sacrificá-lo ou violá-lo justamente em nome daquela dignidade.
27.a-O que colocaria o Estado (detentor do jus puniendi) na mais contraditória e perversa das situações: a de sacrificar a integridade pessoal invocando como legitimação o propósito de a tutelar!" (FIGUEIREDO DIAS, "O 'direito penal do bem jurídico' como princípio jurídico-constitucional implícito", RLJ, ano 145.°, maio-junho de 2016, p. 261).
28.a-Não se discute, como o não faz o legislador ordinário, a legitimidade de uma "(...) comunidade politicamente organizada elevar determinados valores à categoria de bens jurídico-penais (...). Mas "(...) nem todos os interesses coletivos são penalmente tutelados, nem todas as condutas socialmente danosas são criminalmente sancionadas. É por isso que fundadamente se fala do carácter necessariamente fragmentário do direito penal (...) " - Código Penal, Introdução, ponto 18.
29.a-Quer o exposto significar que é de todo impensável poder conceber a legitimação material do direito penal na vontade exclusiva do legislador (perspetiva positivista- legalista). A vinculação jurídica da legislação, para além da sua positivação perante a material e a processual normatividade constitucional, obedece, transpositivamente, como interpretação e concretização do princípio axiológico- normativo do direito enquanto direito (cfr. A. Castanheira Neves, Metodologia Jurídica, BFD, Coimbra Editora, pág.17 a 18).
30.a-Qualquer limitação feita por lei no âmbito específico das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias deve ser "(...) adequada (apropriada), necessária (exigível) e proporcional (com justa medida) (...)" - cit. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7a edição, pág.457).
31.a-A problemática ora apontada diz respeito ao designado direito penal do bem jurídico como princípio constitucional. O bem jurídico ("expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso": cit. Figueiredo Dias, DP, Parte Geral, Tomo I, 2a edição, pág.114) será político-criminalmente tutelável quando e onde encontre reflexo "(...) num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social e que, deste modo, se pode afirmar que "preexiste" ao ordenamento jurídico-penal(...)" - autor e obra cit., pág. 120).
32.a-Por tal motivo, a definição do bem jurídico-penal desempenha, também, o papel de critério da decisão legislativa criminalizadora. Tal definição terá se ser efetuado com o recurso a uma conceção ético-social mediatizada pela constituição democrática (cfr. A. Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, 3a edição, U.C.P. Porto, pág.60 a 66, cujo trajeto argumentativo seguiremos infra de perto).
33.a-Será, em primeiro lugar, na consciência ético-social de uma comunidade temporal e espacialmente localizada procurada, os valores por ela considerados como essenciais ou indispensáveis para a realização pessoal de cada um dos seus membros (a designada dimensão axiológica fundamental do bem jurídico-penal também entendida por dignidade penal do bem jurídico).
34.a-Após, será necessário que o recurso às penas criminais seja considerado indispensável e adequado à proteção daqueles bens jurídicos fundamentais (a designada dimensão pragmática e entendida como necessidade penal) numa dupla vertente: Ia qualquer outro tipo de sanção jurídica (do direito penal secundário, administrativo ou mesmo civil) seria ineficaz ou insuficiente para uma proteção (maior ou menor) do bem jurídico; 2o mesmo na hipótese de ineficácia de outro tipo de sanção jurídica não penal, a sanção criminal revela-se absolutamente ineficaz para tutelar o bem jurídico.
35.a-Tal dimensão encontra o seu fundamento no principio da subsidiariedade do direito penal, princípio da intervenção mínima do direito penal, princípio politico- criminal da pena como ultima ratio da política social e da politica jurídica.
36.a-A materialização do referido critério ético-social terá de ser encontrada na Constituição da República Portuguesa, expressão jurídica fundamental da conceção ético-social da comunidade em relação aos princípios estruturantes do sistema social. A mesma expressa o conceito material de crime (a definição do bem jurídico-penal) e o critério material de criminalização das condutas suscetíveis de serem objeto de decisão legislativa ordinária nesse sentido.
37.a-O artigo 1° da Constituição da República Portuguesa desenha o quadro referencial (critério jurídico-constitucional que vincula o legislador) para a definição dos bens jurídico-penais: os direitos inerentes à dignidade da pessoa humana e os deveres essenciais à funcionalidade e justiça do sistema social.
38.a-O respeito da dignidade da pessoa justifica a criminalização da ofensa de bens jurídicos subjacentes aos direitos fundamentais "(•••) de acordo com a consciência jurídica geral e um princípio de proporcionalidade, e requer a proteção da vítima (...)" — cit. Jorge Miranda, Direitos Fundamentais, 2017, pág.244).
39.a-Por outro lado, os artigos 17° e 18°, n°2, da Constituição da República Portuguesa, consagram os pressupostos legais de qualificação dos bens como jurídico- penais.
40.a-Por força do artigo 17° ("O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga") o regime do artigo 18o, n°2 ("A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos) aplica-se aos direitos-deveres pessoais (protegidos pelo direito penal primário, abarcado globalmente no Código Penal) e aos direito-deveres sociais, previstos no titulo III da Ia parte e na 2° parte da CRP (protegidos pelo direito penal secundário).
41.a-É exatamente este artigo 18°, n°2, da Constituição da República Portuguesa que constitui o critério jurídico-constitucional da definição material do bem jurídico-penal que vincula o legislador ordinário consagrando os pressupostos: 1º da dignidade penal do bem jurídico (condicionando a restrição de direitos à salvaguarda de outros); 2o da necessidade penal (condicionando tal restrição à sua necessidade para a referida salvaguarda) em três dimensões: a) a inexistência ou insuficiência de outras reações sociais para uma proteção eficaz do bem jurídicos com dignidade penal; b) a adequação da sanção criminal a uma tutela relativamente eficaz do bem; c) a proporcionalidade entre a gravidade da sanção criminal e a relevância pessoal e/ou social dos bens jurídicos protegidos ( e lesados ou postos em perigo).
42.a-Será, por isso, inconstitucional a incriminação, de acordo com a perspetiva que expomos, por decisão do legislador ordinário, de um comportamento do qual se não possa com razoável segurança afirmar-se que se destina a proteger um bem jurídico- penal (neste sentido Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2a edição, pág.126).
43.a-Pelas razões expostas, consideramos que o artigo 169.°, n.°l do Cód. Penal é disforme com os artigos 9o, alínea b), 13°, n°s 1 e 2, 16°, n°2, 18°, n°s 2 e 3, e 26°, n°l, da Constituição da República Portuguesa, na sua dimensão normativa e interpretação no sentido de consubstanciar crime de lenocínio: qualquer favorecimento da prática de relações de natureza sexual entre maiores quando inexista qualquer preterição da sua liberdade e autodeterminação sexual, sem violência ou ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, abuso de autoridade resultante de relação familiar, de tutela ou curatela, dependência hierárquica, económica ou de trabalho bem como aproveitamento de incapacidade psíquica ou especial vulnerabilidade, tendo a mulher domínio pleno da sua atuação e ação e tratamento condigno e condizente com a sua condição humana, ao nível de cordialidade, simpatia, liberdade e autodeterminação sexual, inexistindo assim qualquer ofensa a algum bem jurídico ou mesmo vítima;
44.a- A declaração da inconstitucionalidade material da norma de incriminação e punição constante do artigo 169°, n°l, do Código Penal, por violação do disposto nos artigos 9°, alínea b), 13°, n°s 1 e 2, 16°, n°2, 18°, n°s 2 e 3, e 26°, n°l, da Constituição da República Portuguesa, conduzirá necessariamente à recusa da aplicação da norma, e determinará a absolvição dos arguidos pela prática do referido crime».
3. Por meio do acórdão aqui atacado, o Tribunal da Relação de Coimbra julgou improcedente o recurso, asseverando, no essencial, que (fls. 1211-1236):
«A primeira questão que cumpre apreciar é a de saber se se encontra corretamente julgado o segmento final dos factos - psicológicos e do foro interior do arguido recorrente vertidos no ponto 41 da factualidade provada, na parte onde se lê: "... bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal".
Relembra-se que o referido facto provado tem a seguinte redação: "os arguidos A. e Luzia de Oliveira Lima atuaram sempre de forma livre, voluntária e consciente, em conjugação de esforços e de vontades, na execução de plano previamente acordado e em proveito próprio, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas punidas por lei penal".
É, pois, a consciência da ilicitude dos factos por parte do arguido que está em causa. São elementos subjetivos, factos interiores do agente do crime, que não ressaltam, a maioria das vezes, de prova direta mas se inferem de outros factos.
No entanto, no presente caso, resultou provado que "reconhecendo, em abstrato, a ilicitude dos comportamentos em causa, o arguido discorda da acusação que impende sobre si ..." - cfr. ponto 45 da factualidade provada.
Na motivação da sentença recorrida, consta que, quanto aos elementos subjetivos dos ilícitos, os mesmos inferem-se da conjugação da demais factualidade objetiva dada como provada, com as regras da experiência comum, não se duvidando, pois, da intencionalidade e voluntariedade da conduta dos arguidos, tanto mais que, à data da prática dos factos já pendia contra os arguidos um processo-crime por factos semelhantes.
De facto, resultou provado que o arguido já tinha sido condenado, em 21.2.2017, por acórdão, ainda não transitado em julgado, por um crime de lenocínio, previsto e punido pelo artigo 169°, n° 1 do Código Penal.
Nesse outro Acórdão resultou provado que "os arguidos A. e Luzia, tendo em vista o exercício de tal atividade e previamente ao inicio da mesma, tomaram a resolução de viverem profissionalmente também à custa da exploração sexual de mulheres naquele estabelecimento comercial, atividade que apenas cessou com as detenções dos arguidos A. e José Fonseca, ocorridas no dia 9 de Fevereiro de 2016, no âmbito dos presentes autos".
Os factos sub judice decorreram até Maio de 2018, altura em que o arguido foi detido neste processo. Ora, sendo assim, não convence agora o arguido quando afirma que não tinha consciência da ilicitude dos factos de que vinha acusado e por que foi condenado.
O facto do anterior acórdão ainda não ter transitado não infirma o que acaba de dizer-se. Mesmo que viesse a ser dada razão ao arguido em sede de recurso, pelo menos, ele teve conhecimento da posição do tribunal de Ia instância, não podendo ignorar que determinados factos podem constituir crime. Contudo, continuou com a mesma atividade.
O que fica dito é bastante para se concluir que bem andou o tribunal a quo ao dar como provado os factos vertidos no ponto 41, mormente os da parte final relativos á consciência da ilicitude.
Acresce que a Sra Juiz a quo foi quem beneficiou da imediação e oralidade na recolha da prova, sempre valiosas na formação da convicção do tribunal.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2010, proferido no processo n° 11/04.7 GCABT.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, "sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova".
Por sua vez, o Ac. da RC de 28.1.2015, in www.dgsi.pt refere que "o julgamento da matéria de facto é feito pelo tribunal de Ia instância. É na audiência de julgamento que o facto é revelado, de forma e em circunstâncias que não mais poderão ser repetidas, e é este tribunal o único que beneficia plenamente da imediação e oralidade da prova. O recurso da matéria de facto é sempre um remédio para sarar o que é tido por excecional naquele julgamento, o cometimento de erro na definição do facto, não podendo nem devendo ser perspetivado como um novo julgamento, tudo se passando como se o realizado na 1.a instância pura e simplesmente não tivesse existido".
Também o Ac. da RE de 19.5.2015, in www.dgsi.pt, afirma que "o recurso da matéria de facto fundado em erro de julgamento não visa a realização, pelo tribunal ad quem, de um segundo julgamento, mas apenas a correção de erros clamorosos (evidentes e óbvios) na apreciação/aquisição da prova produzida em primeira instância. Se, perante determinada situação, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis, e o Juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente, ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efetuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que opte por ela".
Ora, não se verifica que tenha sido cometido qualquer erro de julgamento na primeira instância, muito menos qualquer erro clamoroso, evidente e/ou óbvio, na apreciação dos factos em causa.
Assim, improcede esta questão colocada pelo arguido.
A segunda questão que cumpre apreciar é a de saber se o artigo 169°, n° 1 do Código Penal é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 9o, alínea b) , 13°, n°s 1 e 2, 16°, n°2, 18°, n°s 2 e 3, e 26°, n°l, da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado no sentido de consubstanciar crime de lenocínio: qualquer favorecimento da prática de relações de natureza sexual entre maiores quando inexista qualquer preterição da sua liberdade e autodeterminação sexual, sem violência ou ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, abuso de autoridade resultante de relação familiar, de tutela ou curatela, dependência hierárquica, económica ou de trabalho bem como aproveitamento de incapacidade psíquica ou especial vulnerabilidade, tendo a mulher domínio pleno da sua atuação e ação e tratamento condigno e condizente com a sua condição humana, ao nível de cordialidade, simpatia, liberdade e autodeterminação sexual, inexistindo assim qualquer ofensa a algum bem jurídico ou mesmo vítima.
Vejamos.
Estipula o artigo 169°, n° 1 do Código Penal que "quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos".
São elementos constitutivos do tipo do crime de lenocínio que o agente fomente, favoreça ou facilite o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de atos sexuais de relevo; que o agente pratique tais condutas profissionalmente ou com intenção lucrativa; quanto ao dolo o conhecimento e vontade de praticar o facto, abarcando, naturalmente, todos os elementos do tipo objetivo.
A atividade profissional a que alude o tipo objetivo está diretamente relacionada com uma perspetiva de habitualidade da conduta, com uma atividade permanente, enquanto a intenção lucrativa igualmente prevista no tipo, pode já verificar-se através de uma atividade pontual ou esporádicas (cfr. Cons. Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, II Vol. 1996, 281).
O que está em causa neste crime, com a redação
que lhe foi dada pela Lei n° 59/2007 de 4.9, é o aproveitamento/exploração de
quem dispõe do seu corpo, para dai retirar vantagens patrimoniais, o que
conflitua com o principio da dignidade humana, e já não a liberdade de
determinação sexual.
Bem diferente da primeira versão do artigo 170°, n° 1 do Código Penal, que
estipulava que "Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa,
fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição
ou a prática de atos sexuais de relevo, explorando situações de abandono ou de
necessidade económica, é punido com pena de prisão de 6 meses a5 anos".
Desapareceu a referência aos atos sexuais de relevo mas também à exploração de situações de abandono ou de necessidade económica.
Assim, sofreu alteração o bem jurídico protegido pela norma. Deixou de ser a liberdade de determinação sexual para passar a ser a dignidade da pessoa humana, valor constitucional, vertido, desde logo, no artigo 1o da nossa Lei Fundamental.
O bem jurídico, como o define Figueiredo Dias em Direito Penal - Parte Geral, tomo I, 2aed., "é a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso".
Ora, a exploração de quem se prostitui é indigna e ofende grandemente a dignidade da pessoa humana, dignidade esta protegida constitucionalmente.
"A atual redação do artigo 169°, n° 1 do Código, ao delimitar o tipo, recortando-o apenas em função da ação de fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição, com intenção lucrativa, eliminando a exigência da exploração de uma situação de abandono ou de necessidade económica, assim como a referência à prática de atos sexuais de relevo, não pune a ingerência na formação da vontade de quem se prostitui mas apenas o aproveitamento que alguém faz de uma prática que, apesar de não ser punida criminalmente, não é reconhecida como plenamente licita" - cfr. Ac. da RC de 10.7.2013.
De facto, como se afirma no Ac. do TC n° 144/2004/T.Const, in www.dre.pt, está em causa, "inevitavelmente uma perspetiva fundamentada na história, na cultura e nas análises sobre a sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída ... Tal perspetiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma ordem jurídica orientada por valores de justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de ação, situações e atividades cujo "princípio" seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1.° da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana".
Vejamos agora as normas constitucionais alegadamente violadas na questão suscitada pelo arguido.
O artigo 9o da CRP, com a epigrafe Tarefas fundamentais do Estado, na alínea b) , dispõe que é tarefa fundamental do Estado, garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático.
Dispõe o artigo 13°, n°s 1 e 2 da CRP que:
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções politicas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
Por sua vez, o n° 2 do artigo 16° da CRP estipula que "os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem".
Nos termos do artigo 18°, n° 1 e 2 da CRP, "os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas (n° 1) e a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (n° 2.)
O n° 3 da mesma norma dispõe que "as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais".
Por último, nos termos do artigo 26°, n° 1 da CRP, "a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação".
Ora, não se vê como o disposto no artigo 169°, n° 1 do Código Penal pode ofender qualquer um dos ditames constitucionais supra enunciados, esclarecendo-se que não se trata aqui de nenhuma situação de intimidade da vida privada, já que esta visa proteger a privacidade da pessoa, tanto na vida doméstica, familiar, sexual ou afetiva. Aliás, ser explorada quando se prostitui é precisamente um ataque a essa privacidade e não uma defesa desse direito.
Como se refere no já citado Ac. do TC n° 144/2004/T.Const, in dre.pt, "a intervenção do direito penal neste domínio tem um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspetiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do direito e com as suas finalidades específicas num Estado de direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da proteção da liberdade e de uma "autonomia para a dignidade" das pessoas que se prostituem ... ainda, que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando-o em perigo) , na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente intima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros".
Também neste sentido, veja-se o Ac. da RC de 28.2.2018, in www.dgsi.pt, segundo o qual "não padece de inconstitucionalidade material a norma constante do artigo 16.9°, n° 1, do CP, na redação conferida pela Lei n.° 59/2007, de 04-09. Hodiernamente, o tipo de lenocínio simples tutela uma determinada conceção de vida inconciliável com a aceitação do exercício profissional ou com intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição".
No mesmo sentido encontra-se igualmente o Ac. da RC de 11.11.2015, in www.dgsi.pt, nos termos do qual "se a prostituta ou o prostituto, de maior idade e no perfeito estado das suas faculdades, pretende exercer a prostituição, o favorecimento que outro fizer dessa atividade, com intuito lucrativo, não tem a ver com a sua liberdade de determinação sexual. Daí que a atual redação do artigo 169°, n° 1 do Código Penal, ao delimitar o tipo, recortando-o apenas em função da ação de fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição, com intenção lucrativa, eliminando a exigência da exploração de uma situação de abandono ou de necessidade económica, assim como a referência à prática de atos sexuais de relevo, não esteja a querer punir a ingerência na formação da vontade de quem se prostitui mas apenas o aproveitamento que alguém faz de uma prática que, apesar de não ser punida criminalmente, não é reconhecida como plenamente licita. Ao punir todo e qualquer aproveitamento do lucro obtido à custa da prostituição de outros, o legislador pune essencialmente uma atividade, uma profissão e não uma corrupção da vontade livre".
Não se ignora que existe doutrina e alguma jurisprudência em sentido contrário, como por exemplo o Ac. da RP de 8.2.2017, in www.dgsi.pt, que defende a inconstitucionalidade do artigo 169°, n° 1, do Código Penal, por violação do artigo 18°, n° 2 da CRP, uma vez que se considera que o bem jurídico visado é a autonomia e liberdade da pessoa que se prostitui e as condutas descritas no tipo de ilícito em causa não traduzem em si uma perigosidade típica de lesão de tal bem jurídico.
Discorda-se deste aresto, por se entender que, na redação atual do artigo 169°, n° 1 do Código Penal, não é esse o bem jurídico que está em causa, como já se disse supra.
No entanto, logo a 28.6.2017, o Tribunal da Relação do Porto proferiu Acórdão defendendo que "a punição do lenocínio simples, nos termos do artigo 169.°, n.° 1, do Código Penal não é inconstitucional".
No que respeita ao Tribunal Constitucional, os Acórdãos têm sido todos no sentido aqui defendido, da inexistência de inconstitucionalidade do artigo 169°, n° 1 do Código Penal, não ignorando que já existiram votos de vencido. Veja-se a título de exemplo o Ac. do TC n° 141/2010, a decisão sumária do TC n° 57/2010 e ainda o Ac. da RE de 20.1.2011, in www.dgsi.pt, com os quais se concorda.
Pelo que fica dito, não é inconstitucional o artigo 169°, n° 1 do Código Penal, por violação das disposições legais supra enunciadas, quando interpretado com o sentido que o arguido refere na questão que coloca.
Em jeito de conclusão cita-se Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2a ed., 120, quando refere que "os bens jurídicos protegidos pelo direito penal devem considerar-se concretizações dos valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais e a ordenação social, política e económica" (sublinhado nosso).
"A Constituição de 1976, a despeito do seu carácter compromissório, confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais. E ela repousa na dignidade da pessoa humana, proclamada no artigo 1o, ou seja, na conceção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado. Pelo menos, de modo direto e evidente, os direitos, liberdades e garantias pessoais e os direitos económicos sociais e culturais comuns têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas" - Jorge Miranda, in "A Constituição e a dignidade da pessoa humana", https://repositorio.ucp.pt., a 3.10.2019.
Ainda Figueiredo Dias, na obra supra citada, 127, refere que "como se escreveu no Ac. do TC 211/95, "o que justifica a inclusão de certas situações no direito penal é a subordinação a uma lógica de estrita necessidade das restrições de direitos e interesses que decorrem da aplicação de penas públicas (artigo 18°, n° 2, da Constituição). E é também ainda a censurabilidade imanente de certas condutas, isto é, prévia á normativização jurídica, que as torna aptas a um juízo de censura pessoal. Em suma, é, desde logo, a exigência de dignidade punitiva prévia das condutas enquanto expressão de uma elevada gravidade ética e merecimento de culpa (artigo 1o da Constituição, do qual de corre a proteção da essencial dignidade da pessoa humana) que se exprime no princípio constitucional da necessidade das penas. Vemos aqui contida uma adesão essencial ao modelo (jurídico-constitucional) do direito penal do bem jurídico ...".
Assim, o princípio da dignidade humana está subjacente a todos os direitos e deveres fundamentais, conferindo-lhe uma unidade de sentido, reafirmando-se, por isso, a constitucionalidade do artigo 169°, n° 1 do Código Penal».
Perante esta decisão, o recorrente veio apresentar requerimento de interposição de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade (fls. 1241-1258). Nesta sequência, admitido tal requerimento, as partes foram notificadas para apresentar as suas alegações (fls. 1264).
4. Atendendo a tal despacho, o recorrente afirmou que do requerimento de interposição constavam as suas razões no sentido da inconstitucionalidade da norma-objeto em questão, concretamente extraída do número 1 do artigo 169.º, do Código Penal, e, por isso, dava as mesmas por reproduzidas, nesta fase, cuja síntese é:
«1.a- Confrontado com a arguição da inconstitucionalidade da norma incriminadora, o Tribunal recorrido, arrimando-se na posição defendida pelo Tribunal da Relação de Coimbra no seu acórdão de 28.02.2018, concluiu pela improcedência daquela, por considerar que o bem jurídico por ela tutelado não será tanto a liberdade de expressão sexual da pessoa, mas "...uma determinada conceção de vida inconciliável com a aceitação do exercício profissional ou com a aceitação do exercício profissional ou com a intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição".
2.a- Por sua vez o Tribunal da Relação assentou a sua decisão na concessão, segundo a qual a norma do n.° l do artigo 169.° do Cód. Penal tem em vista a proteção da Dignidade da Pessoa Humana, o que implica que a referida norma, quando interpretada nos termos por nós indicados, não seja inconstitucional.
3.a- Na nossa modesta opinião, sai reforçada a posição por nós defendida de que a norma em causa é inconstitucional por violação dos artigos 9°, alínea b), 13°, n°s 1 e 2, 16°, n°2, 18°, n°s 2 e 3, e 26°, n°l, da Constituição da República Portuguesa.
4.a- Conforme resulta à evidencia da matéria de facto consignada na parte final dos pontos 4 e 24 dos "factos provados" da sentença recorrida, subjacente à conduta levada a cabo pelos arguidos estava um acordo de vontades - um mútuo consenso - formado entre aqueles e cada uma das mulheres que ali se prostituíam, com vista à obtenção de rendimentos para ambas as partes.
5.a-Acordo de vontade esses a que as mulheres haviam chegado deforma voluntária para assumir um projeto que, logo que assim entendessem, poderiam abandonar, o que a maior parte delas fazia passado pouco tempo para "rumarem a novas paragens.
6.a-Ou seja, estamos perante uma situação em que mera prática de relações de natureza sexual entre maiores onde inexiste qualquer preterição da sua liberdade e autodeterminação sexual, tendo a mulher domínio pleno da sua atuação e ação e tratamento condigno e condizente com a sua condição humana, ao nível de cordialidade, simpatia, liberdade e autodeterminação sexual, inexistindo assim qualquer ofensa a algum bem jurídico ou mesmo vítima;
7.a-Estamos perante um acordo formado pelas partes sem violência ou ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, abuso de autoridade resultante de relação familiar, de tutela ou curatela, dependência hierárquica, económica ou de trabalho bem como aproveitamento de incapacidade psíquica ou especial vulnerabilidade, ocorrer a prática ou mera possibilidade de tal crime e existência de uma vítima!
8.a- Invocar "uma conceção de vida inconciliável com a aceitação do exercício profissional ou com a aceitação do exercício profissional ou com a intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição" para justificar a condenação em pena de prisão de um cidadão, é o mesmo que invocar "bons costumes".
9.a-Importa, assim, que o Tribunal aquilate da conformidade à Lei fundamental da consagração do que se entenda por "bons costumes" nesta matéria, numa era de modernidade e evolução social, em que aquilo que era imoral há anos atrás hoje já o não é. Ou continuando a sê-lo, haverá muito menor resistência da sociedade em razão da tolerância crescente e aceitação como quase normalidade.
10.a-Em função da sua atual redação e evolução histórica da norma do n.°l do artigo 169.° do Cód. Penal, entendemos que a incriminação da conduta típica não está preordenada à salvaguarda - menos ainda é para tanto necessária - de quaisquer "direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".
11.a-Ou dito em linguagem da doutrina penal, não é necessária à proteção de qualquer bem jurídico. Bem jurídico que não se descortina na pertinente área de tutela típica.
12.a-Noutra perspetiva, estamos perante uma manifestação concreta dos chamados "crimes sem vítima", no sentido criminológico do termo, na linha da E. SHUR (victimless crimes ou crimes without victims. Cf. EDWIN SCHUR, Crimes Without Victims: Deviant Behavior and Public Policy, Prentice Hall inc. 1965).
13.a-É seguramente assim a partir da reforma de 1998. Que inter alia eliminou o inciso —"exploração de situação de abandono ou de necessidade económica" - constante da versão originária (de 1982/1995).
14.a-E deste modo abriu deliberadamente mão do momento da factualidade típica que associava a inffação à ofensa à liberdade sexual e deixou atrás de si uma incriminação exclusivamente votada à punição de "quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar" uma prática em si mesma irrelevante e indiferente para o direito penal - a prostituição.
15.a-Assim, o afastamento da liberdade sexual da área de proteção da norma deixa apenas em campo a prevenção ou repressão do "pecado", um "exercício de moralismo atávico" travestido de uma "...uma determinada conceção de vida inconciliável com a aceitação do exercício profissional ou com a aceitação do exercício profissional ou com a intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição com a qual o direito penal do Estado de Direito da sociedade secularizada e democrática dos nossos dias nada pode ter a ver.
16.a-Uma consideração das coisas contra a qual não pode pertinentemente invocar- se a ideia de obviar a perigos contra a dignidade ou a autonomia das pessoas - homens ou mulheres - envolvidas na prostituição.
17.a-Na certeza de que a incriminação é que pode, ela própria, configurar um atentado perverso à dignidade ou autonomia das pessoas. Que sendo adultas, esclarecidas e livres - no fundo a situação típica pressuposta pela incriminação - devem poder legitimamente escolher conduzir a sua vida tanto à sombra da "virtude" como do "pecado".
18. a-Uma escolha insindicável, que devem poder levar à prática, inteiramente resguardados contra a intromissão do direito penal.
19.a-De outro modo e acolhendo-nos à síntese de FIGUEIREDO DIAS, "teríamos uma situação absolutamente anormal e incompreensível: a de o direito penal, pretendendo tutelar o bem jurídico da eminente dignidade (sexual) da pessoa, sacrificá-lo ou violá-lo justamente em nome daquela dignidade.
20.a-O que colocaria o Estado (detentor do jus puniendi) na mais contraditória e perversa das situações: a de sacrificar a integridade pessoal invocando como legitimação o propósito de a tutelar!" (FIGUEIREDO DIAS, "O 'direito penal do bem jurídico' como princípio jurídico-constitucional implícito", RLJ, ano 145, maio-junho de 2016, p. 261).
21.a-Não se discute, como o não faz o legislador ordinário, a legitimidade de uma "(...) comunidade politicamente organizada elevar determinados valores à categoria de bens jurídico-penais (...). Mas "(...) nem todos os interesses coletivos são penalmente tutelados, nem todas as condutas socialmente danosas são criminalmente sancionadas. É por isso que fundadamente se fala do carácter necessariamente fragmentário do direito penal (...)" — Código Penal, Introdução, ponto 18.
22.a-Quer o exposto significar que é de todo impensável poder conceber a legitimação material do direito penal na vontade exclusiva do legislador (perspetiva positivista- legalista). A vinculação jurídica da legislação, para além da sua positivação perante a material e a processual normatividade constitucional, obedece, transpositivamente, como interpretação e concretização do princípio axiológico- normativo do direito enquanto direito (cfr. A. Castanheira Neves, Metodologia Jurídica, BFD, Coimbra Editora, pág.17 a 18).
23.a-Qualquer limitação feita por lei no âmbito específico das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias deve ser "(…) adequada (apropriada), necessária (exigível) e proporcional (com justa medida) (...)" - cit. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7a edição, pág.457).
24.a-A problemática ora apontada diz respeito ao designado direito penal do bem jurídico como princípio constitucional. O bem jurídico ("expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso": cit. Figueiredo Dias, DP, Parte Geral, Tomo I, 2a edição, pág.114) será político-criminalmente tutelável quando e onde encontre reflexo "(...) num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social e que, deste modo, se pode afirmar que "preexiste" ao ordenamento jurídico-penal(...)" - autor e obra cit., pág. 120).
25.a-Por tal motivo, a definição do bem jurídico-penal desempenha, também, o papel de critério da decisão legislativa criminalizadora. Tal definição terá se ser efetuado com o recurso a uma conceção ético-social mediatizada pela constituição democrática (cfr. A. Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, 3a edição, U.C.P. Porto, pág.60 a 66, cujo trajeto argumentativo seguiremos infra de perto).
26.a-Será, em primeiro lugar, na consciência ético-social de uma comunidade temporal e espacialmente localizada procurada, os valores por ela considerados como essenciais ou indispensáveis para a realização pessoal de cada um dos seus membros (a designada dimensão axiológica fundamental do bem jurídico-penal também entendida por dignidade penal do bem jurídico).
27.a-Após, será necessário que o recurso às penas criminais seja considerado indispensável e adequado à proteção daqueles bens jurídicos fundamentais (a designada dimensão pragmática e entendida como necessidade penal) numa dupla vertente: Ia qualquer outro tipo de sanção jurídica (do direito penal secundário, administrativo ou mesmo civil) seria ineficaz ou insuficiente para uma proteção (maior ou menor) do bem jurídico; 2o mesmo na hipótese de ineficácia de outro tipo de sanção jurídica não penal, a sanção criminal revela-se absolutamente ineficaz para tutelar o bem jurídico.
28.a-Tal dimensão encontra o seu fundamento no principio da subsidiariedade do direito penal, princípio da intervenção mínima do direito penal, princípio politico- criminal da pena como ultima ratio da política social e da politica jurídica.
29.a-A materialização do referido critério ético-social terá de ser encontrada na Constituição da República Portuguesa, expressão jurídica fundamental da conceção ético-social da comunidade em relação aos princípios estruturantes do sistema social. A mesma expressa o conceito material de crime (a definição do bem jurídico-penal) e o critério material de criminalização das condutas suscetíveis de serem objeto de decisão legislativa ordinária nesse sentido.
30.a-O artigo Io da Constituição da República Portuguesa desenha o quadro referencial (critério jurídico-constitucional que vincula o legislador) para a definição dos bens jurídico-penais: os direitos inerentes à dignidade da pessoa humana e os deveres essenciais à funcionalidade e justiça do sistema social.
31.a-O respeito da dignidade da pessoa justifica a criminalização da ofensa de bens jurídicos subjacentes aos direitos fundamentais "(…) de acordo com a consciência jurídica geral e um princípio de proporcionalidade, e requer a proteção da vítima (...)" - cit. Jorge Miranda, Direitos Fundamentais, 2017, pág.244).
32.a-Por outro lado, os artigos 17° e 18°, n°2, da Constituição da República Portuguesa, consagram os pressupostos legais de qualificação dos bens como jurídico- penais.
33.a-Por força do artigo 17° ("O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga") o regime do artigo 18°, n°2 ("A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos) aplica-se aos direitos-deveres pessoais (protegidos pelo direito penal primário, abarcado globalmente no Código Penal) e aos direito-deveres sociais, previstos no titulo III da Ia parte e na 2° parte da CRP (protegidos pelo direito penal secundário).
34.a-E exatamente este artigo 18°, n°2, da Constituição da República Portuguesa que constitui o critério iurídico-constitueional da definição material do bem iurídico-penal que vincula o legislador ordinário consagrando os pressupostos: 1o da dignidade penal do bem jurídico (condicionando a restrição de direitos à salvaguarda de outros); 2o da necessidade penal (condicionando tal restrição à sua necessidade para a referida salvaguarda) em três dimensões: a) a inexistência ou insuficiência de outras reações sociais para uma proteção eficaz do bem jurídicos com dignidade penal; b) a adequação da sanção criminal a uma tutela relativamente eficaz do bem; c) a proporcionalidade entre a gravidade da sanção criminal e a relevância pessoal e/ou social dos bens jurídicos protegidos ( e lesados ou postos em perigo).
35.a-Será, por isso, inconstitucional a incriminação, de acordo com a perspetiva que expomos, por decisão do legislador ordinário, de um comportamento do qual se não possa com razoável segurança afirmar-se que se destina a proteger um bem jurídico- penal (neste sentido Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2a edição, pág.126).
36.a-Pelas razões expostas, consideramos que o artigo 169.°, n.°l do Cód. Penal é disforme com os artigos 9°, alínea b), 13°, n°s 1 e 2, 16°, n°2, 18°, n°s 2 e 3, e 26°, n°l, da Constituição da República Portuguesa, na sua dimensão normativa e interpretação no sentido de consubstanciar crime de lenocínio: qualquer favorecimento da prática de relações de natureza sexual entre maiores quando inexista qualquer preterição da sua liberdade e autodeterminação sexual, sem violência ou ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, abuso de autoridade resultante de relação familiar, de tutela ou curatela, dependência hierárquica, económica ou de trabalho bem como aproveitamento de incapacidade psíquica ou especial vulnerabilidade, tendo a mulher domínio pleno da sua atuação e ação e tratamento condigno e condizente com a sua condição humana, ao nível de cordialidade, simpatia, liberdade e autodeterminação sexual, inexistindo assim qualquer ofensa a algum bem jurídico ou mesmo vítima;
37.a-A declaração da inconstitucionalidade material da norma de incriminação e punição constante do artigo 169°, n°l, do Código Penal, por violação do disposto nos artigos 9º, alínea b), 13°, n°s 1 e 2, 16°, n°2, 18°, n°s 2 e 3, e 26°, n°l, da Constituição da República Portuguesa, conduzirá necessariamente à recusa da aplicação da norma, e determinará a absolvição dos arguidos pela prática do referido crime».
5. O Ministério Público apresentou contra-alegações (fls. 1269-1275), em que aludiu à diversa jurisprudência do Tribunal Constitucional nesta matéria, designadamente os Acórdãos n.º 641/16, 421/17, 694/17, 90/18 e 178/18, de forma a pugnar pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, entendendo dever ser negado provimento ao recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. A questão de constitucionalidade colocada nos presentes autos – a da conformidade com a Constituição da República Portuguesa da norma de incriminação e punição do lenocínio presente no artigo 169.º, número 1, do Código Penal – foi recentemente apreciada e decidida pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 72/2021. Neste Acórdão, o Tribunal resolveu, em Plenário, a divergência de julgados verificada na sequência do Acórdão n.º 134/2020 em face, nomeadamente, dos anteriores Acórdãos n.º 641/2016, 421/2017, 694/2017, 90/2018 e 178/2018, e decidiu não julgar inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal.
Lê-se nesse aresto:
«Em suma, as posições no sentido da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal têm assentado na afirmação da perda de conexão com um bem jurídico suficientemente definido, a partir das alterações introduzidas na norma incriminadora pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro. Ao eliminar-se o elemento típico de exploração duma situação de abandono ou necessidade, já não estaria em causa a proteção da liberdade sexual e, por outro lado, a dignidade da pessoa humana seria mobilizável em termos vagos, não oferecendo suporte bastante à incriminação. Não se afigurando viável considerar uma interpretação do preceito mais restritiva do que a sua letra consente, restaria apenas, então, a injustificada criminalização da mera atividade de proxenetismo, a tutela por via penal de interesses morais ou de bons costumes, a evitação “do pecado”, que poderia manifestar-se até com sinal contrário ao da liberdade individual das pessoas que a norma visou proteger. Os possíveis comportamentos atentatórios da dignidade humana estariam fora do tipo, sem poderem considerar-se necessária ou mesmo razoavelmente pressupostos na ação expressamente proibida, o que, especialmente estando em causa um comportamento passível de acordo, não consentiria uma construção constitucionalmente conforme de um crime de perigo abstrato, já de si particularmente exigente.
Não é esta, todavia, a única perspetiva a partir da qual pode ser olhada a norma sub judice.
2.3. Como é sabido, outras decisões do Tribunal Constitucional, em expressiva maioria, têm adotado uma orientação no sentido da não inconstitucionalidade da norma sub judice. Atravessa este entendimento uma ideia – a sua ideia fulcral – de que “[…] a ofensividade que legitima a intervenção penal assenta numa perspetiva fundada de que as situações de prostituição, relativamente às quais existe promoção e aproveitamento económico por terceiros, comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social, interferindo com – colocando em perigo – a autonomia e liberdade do agente que se prostitui” [Acórdão n.º 641/2016, sublinhado acrescentado; esta decisão viria a ser referida pelo Tribunal Constitucional italiano na Sentenza 141/2019, de 06/03/2019, enquanto abonação da conformidade constitucional da criminalização, nesse caso decorrente da chamada legge Merlim, das condutas de facilitação e de intermediação (construídas em torno dos conceitos de recrutamento e de favorecimento) ao exercício da prostituição, empreendidas por terceiro (cfr., quanto às referências ao Acórdão n.º 641/2016, os pontos 4.5. e 6.2. das Considerações de Direito da Sentenza)].
Existe, em tais casos – e corresponde ao entendimento deste Tribunal desde a decisão de 2004 –, uma genérica e preponderante apetência da ação descrita no tipo para o desencadear de eventos ou criar situações cujo desvalor (cuja danosidade), causalmente conexionado, imediata ou mediatamente, com o exercício da prostituição, o legislador quis antagonizar, através do instrumento de atuação do Estado correspondente à perseguição criminal, sendo certo que a opção por essa via ocorre num quadro racionalmente compreensível de valoração das potencialidades desvaliosas da realidade social envolvida (precursora, desencadeada ou propiciada) no conjunto de situações correspondentes ao fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição, por parte de alguém, que não o próprio agente do crime, num quadro de atividade profissional ou de um exercício com intenção lucrativa.
E vale esta opção na intencionalidade que lhe subjaz, independentemente do tratamento legal conferido na nossa Ordem Jurídica aos atos de prostituição, em si mesmos considerados, concretamente à subtração destes a qualquer tipo de perseguição sancionatória, através de uma política usualmente qualificada – e que corresponde à realidade portuguesa – como abolicionista, por oposição a uma política proibicionista ou a um enquadramento legal de tolerância regulamentadora (v. a caraterização destas opções legais, nas suas diversas gradações, em Peter Marneffe, Liberalism and Prostitution, Oxford University Press, Oxford, 2010, pp. 28/30).
Com efeito, o abolicionismo, referido à prática da prostituição, caracteriza um conjunto de políticas públicas que excluem a criminalização da venda de serviços sexuais, em si mesma considerada, e das atividades, exercidas pelo próprio agente da venda, diretamente relacionadas com esta, como seja a solicitação ou a oferta em si mesma. Essa opção não descarta, todavia – conforme demonstra a prática assumidamente abolicionista de diversos países (ibidem) –, sancionar (mesmo até criminalizar) a compra de serviços sexuais ou os comportamentos de terceiros (dos “clientes”) comummente utilizados para a obtenção desses serviços. É o que sucede, por exemplo, com a lei britânica sancionando o chamado kerb crawling [v. https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/kerb-crawling] e, na Suécia, desde 1999, com a aprovação da designada Lei Kvinnofrid [v. a entrada prostitution in Sweden, na Wikipedia, https://en.wikipedia.org/wiki/Prostitution_in_Sweden, consultada em 19/01/2021], que não proíbe a oferta de serviços sexuais mediante contrapartida remunerada, criminalizando, porém, o cliente e toda a atividade de gestão de um negócio de aproveitamento económico da prostituição (que envolva o contributo de qualquer pessoa diversa daquela que se prostitui), e a atividade remunerada de agenciação para o exercício da prostituição [a opção de criminalização do cliente e das condutas paralelas de facilitação ou aproveitamento por terceiros, foi considerada pelo Conseil Constitutionnel francês (Decisão n.º 2018-761, de 01/02/2019) conforme à Constituição].
No contexto geral da opção abolicionista, emprega-se o expressão abolição permissiva (permissive abolition, em contraposição a impermissive abolition, que sinaliza a perseguição sancionatória do cliente, Peter Marneffe, Liberalism and Prostitution, cit, p. 29) para referenciar, no quadro geral de uma política abolicionista, a opção por políticas públicas de não repressão sancionatória ou criminalização, tanto da oferta como da aquisição e procura de serviços sexuais (a prostituição que só envolve o par individualizado formado pelo agente da oferta e o agente da procura), criminalizando-se, todavia, no conjunto de políticas designadas como abolição permissiva, as atividades intimamente relacionadas com o aproveitamento económico por terceiros do negócio da prostituição, como paradigmaticamente o são a gestão de bordéis, os negócios do tipo clubes ou bares de alterne, que comportem ligação à atividade de prostituição, e mesmo a simples intermediação, com o objetivo de lucro, no negócio da prostituição travada entre os polos originários (quem se prostitui e o cliente).
2.3.1. Não estando, manifestamente, em causa “[…] saber se a incriminação do lenocínio, nos moldes em que se se encontra prevista, traduz a melhor opção ao nível da política criminal” (disse-se no Acórdão n.º 421/2017, retomando uma asserção já presente no Acórdão n.º 144/2004, cfr. o respetivo item 8) – constitui tal incriminação uma opção de quem está democraticamente legitimado para efeito da tomada dessas opções –, importa notar que “[…] o critério da necessidade de tutela penal, enquanto decorrência do princípio da proporcionalidade, na dimensão acolhida no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, foi sempre apreciado pela jurisprudência constitucional proferida sobre a incriminação do lenocínio”, o que não impediu que se concluísse pela “[…] legitimação material da norma incriminadora constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na redação conferida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, à luz do princípio da proporcionalidade” (Acórdão n.º 694/2017).
Este entendimento foi reiterado, por último, nos Acórdãos n.os 90/2018 e 178/2018, para além de diversas decisões sumárias (v., designadamente, as Decisões Sumárias n.os 375/2016, 359/2017, 737/2017, 129/2018 e 519/2018) e “não espelha o imobilismo” que, por vezes, se pretende assinar-lhe em algumas decisões de recusa indutoras de muitos dos recursos apreciados (v. o Acórdão n.º 160/2020). Pelo contrário, resulta esse entendimento de viva discussão de argumentos de sinal contrário, atrás referida, a qual, simplesmente, não conduziu a uma alteração do sentido das decisões, que se reforçaram com novos fundamentos.
[…]
De onde resulta, em suma, uma liberdade, com amplitude muito considerável, do legislador – desde sempre sublinhada, neste exato contexto, pelo Tribunal (de novo remetemos para o item 8 do Acórdão n.º 144/2004) – em punir ou não punir os comportamentos, neste âmbito, com o que nisso vai implicado em termos de não proibição constitucional da solução adotada. Por outras palavras, “[d]ecidir se o risco implicado para a autonomia do agente que se prostitui deve ser considerado como um perigo a prevenir pela via da incriminação da exploração profissional ou com fins lucrativos da pessoa que se prostitui, é […] uma opção que cabe dentro do poder de definição da política criminal que pertence ao legislador” (Acórdão n.º 421/2017).
2.4. É que existe uma diferença substancial entre a mera atividade de prostituição (não punida), e a (outra) atividade que a fomenta, favorece ou facilita, deslocando a segunda do campo da mera liberdade individual para uma constelação de relações sociais muito mais complexas, e desligadas das circunstâncias referenciáveis à individualização do ato de prostituição, que é inevitavelmente próxima – demasiado próxima – de movimentos, nacional e internacionalmente organizados, cujo resultado (aqui referimo-nos ao resultado da atividade dos referidos movimentos organizados num plano superior ao de cada “empresário”), quase invariavelmente, corresponde à perpetuação de situações de diminuição da liberdade e de sujeição a um poder de facto que, as mais das vezes, escapa a qualquer controlo, visto que se exerce fora de relações formalizadas ou declaradas, as quais, uma vez iniciadas, são difíceis de quebrar ou interromper, tendendo a perpetuar-se enquanto se mantiver a respetiva “utilidade comercial”.
Com tal proximidade se gera um risco socialmente inaceitável, que não exorbita o âmbito de proteção da norma, nem dele é sequer periférico, porque se trata de um risco conatural ao proxenetismo, cujo empresário – como o de qualquer outro negócio – tende a organizar-se de modo a potenciar o lucro (criando redes ou procurando redes já estabelecidas, que lhe propiciem economias de escala, maximizando o controlo da atividade – insiste-se – fora de mecanismos de controlo efetivo, que pura e simplesmente não existem no nosso país), objetivo ao qual, mais tarde ou mais cedo, dificilmente escapará (o dano d)a vontade e (d)a liberdade das pessoas que se prostituem.
Mesmo que a expressão exploração esteja fora do tipo – e, como tal, não seja facto a provar in concreto – o risco da sua materialização é suficientemente forte para conter a norma dentro dos limites da proporcionalidade e, em particular, da necessidade da intervenção penal.
2.5. É o sentido da linha decisória a este respeito assumida, e diversas vezes reiterada, pelo Tribunal Constitucional desde 2004, num entendimento geral desta questão que ora cumpre, em oposição ao Acórdão recorrido, afirmar de novo.»
7. Mantendo-se válida, esta orientação jurisprudencial é plenamente transponível para o caso dos autos, sem que se afigurem quaisquer motivos para a alterar. Pelo contrário, razões de segurança jurídica e igualdade de tratamento dos destinatários das decisões dos tribunais superiores, bem como de viabilidade e economia processual, impõem que aqui se respeite o juízo de não inconstitucionalidade proferido no citado Acórdão n.º 72/2021, para cujos fundamentos, destacados supra, se remete.
Em razão do exposto, não é inconstitucional a norma contida no n.º 1 do artigo 169.º, do Código Penal, na qual se prevê e pune o crime de lenocínio.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal;
b) Negar provimento ao recurso interposto.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UC, ponderados os critérios estabelecidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 8 de abril de 2021 – Mariana Canotilho – Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete
Tem voto de vencido da Sra. Conselheira Assunção Raimundo, nos termos do Acórdão n.º 72/2021.
Mariana Canotilho