ACÓRDÃO Nº 101/2021
Processo n.º 1238/17
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos vindos do Centro de Arbitragem Administrativa, vêm o Ministério Público e a Autoridade Tributária e Aduaneira interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), do acórdão arbitral de 9 de outubro de 2017, que julgou procedente o pedido de pronúncia arbitral apresentado por A., S.A., e decidiu anular parcialmente a liquidação adicional de IRC relativa ao exercício de 2013 e a subsequente demonstração de acerto de contas, na parte relativa à correção à matéria tributável no valor de € 469 739,44, condenando ainda a requerida, ora recorrente, Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar à ora recorrida, a quantia de € 147 967,92, acrescida de juros indemnizatórios (decisão acessível a partir da ligação https://caad.org.pt/tributario/decisoes, com referência ao Processo n.º 160/2017-T).
Em tal acórdão, o tribunal arbitral expressamente declarou recusar a aplicação da norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do disposto do n.º 3 do artigo 103.º da CRP.
Admitidos os recursos e subidos os autos, foi determinado prosseguimento do processo para alegações.
2. Ambos os recorrentes alegaram.
2.1. O Ministério Público formulou, a final, as seguintes conclusões:
1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e arts. 70.º, n.º 1, al. a), 72.º nº 1 a) e n.º 3, ambos da LOFPTC, “da decisão arbitral produzida no processo cima identificado [Processo Arbitral n.º 160/2017-T, em que é Requerente a A., S. A., e Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira] na qual foi recusada a aplicação da norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que atribui natureza interpretativa à nova redação que deu ao n.º 6 do CIRC, com fundamento na sua inconstitucionalidade por violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal consignado no art. 103.º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa”.
2.ª) O fundamento da lei interpretava radica na proteção das expetativas seguras e legítimas dos interessados, na medida em que “estes podiam contar com a com a solução fixada pela lei LN interpretativa” visto ela “consagrar um dos vários sentidos facilmente comportados pelo texto da LA”, que se manifesta em considerações de “justiça relativa”, “certeza” e “razoabilidade”, em ordem a um tratamento igual de casos iguais.
3.ª) A decisão da AT em apreço tem por fundamento expresso a aplicação do artigo 51.º, n.ºs 1 e 2, na redação vigente até à entrada em vigor do artigo 2.º da Lei n.º 2/2014, cit., reforçando este entendimento o art.º 133.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2016), que veio alterar o art.º 51.º do CIRC, cujo n.º 6 (que corresponde ao anterior n.º 2 do art.º 51.º do CIRC na legislação em vigor para o período em análise, passou a estabelecer que “O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade, à parte dos rendimentos de participações sociais que, estando afetas às provisões técnicas das sociedades de seguros e das mútuas de seguros, não sejam, direta ou indiretamente, imputáveis aos tomadores de seguros (…).”.
4.ª) No relatório em causa é realizada pormenorizada apreciação, financeira, contabilística e tributária dos seguros unit-linked, sobretudo do regime da distribuição de lucros das carteiras afetas a tais aplicações e das provisões técnicas que necessariamente devem ser constituídas para cobrir riscos nesse âmbito.
5.ª) Concluiu, assim, que os rendimentos das participações sociais não são incluídos na base tributável do IRC [o lucro tributável, art. 3.º, n.ºs 1, al. a), e n.º 2, do CIRC] e, portanto, “verifica-se a inexistência de rendimentos incluídos no lucro tributável - estando a tributação, não restam dúvidas, limitada a zero - não podendo, desta forma, os rendimentos em causa usufruir da eliminação da (inexistente) dupla tributação económica de lucros distribuídos prevista no art.º 51.º do CIRC” reforçando este entendimento o art.º 133.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2016).
6.ª) Esta interpretação opera no quadro das regras hermenêuticas prescritas na lei tributária, nomeadamente à luz de argumentos teológicos (eliminação da dupla tributação económica) e da substância económica dos factos em causa (efeitos das provisões técnicas em matéria de rendimentos das participações sociais das carteiras unit-linked) ali consagrados (LGT, art. 11.º, n.ºs 1 e 3).
7.ª) Portanto, este juízo interpretativo da decisão da AT em causa pode ser tomado como consagrando um dos vários sentidos passíveis – ainda que não, eventualmente, o mais “facilmente” comportado por ele – de serem comportados pelo texto da LA, ou seja, o mesmo perfilhou assim um sentido que confere à LN, na medida em que perfilha uma solução normativa que fazia parte do quadro da controvérsia pretérita, cariz interpretativo, em sentido próprio.
8.ª) Todavia, o critério para efeitos de apurar a substância de “lei interpretativa” da LN é o de uma “interpretação em abstrato”, admissível face ao texto da lei, e não já de uma “interpretação em concreto”, visando determinar, determinar qual o sentido, de entre aqueles abstratamente admissíveis, que deve concretamente prevalecer numa controvérsia judicial, como a interpretação “correta” das palavras da lei.
9.ª) Assim, esta “interpretação em abstrato” não prejudica o exame judicial do bem-fundado dessa operação hermenêutica, nomeadamente da constitucionalidade e legalidade material da mesma, em especial para apurar se no caso ocorreu, ou não, como propugna a fundamentação da decisão da AT, uma dupla tributação económica.
10.ª) Em conclusão, quanto à matéria de constitucionalidade, a decisão arbitral incorreu em erro de julgamento, por força de erro de interpretação quanto ao alcance, no caso em apreço, da “lei interpretativa” respeitante à incidência objetiva do imposto, tributários, nomeadamente à luz do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição».
2.2. A Autoridade Tributária e Aduaneira concluiu as suas alegações nos termos seguintes:
«A. Visa o presente recurso, interposto nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a fiscalização concreta da constitucionalidade da norma contida no artigo 51º nº 6 do Código do IRC, conjugada com a norma constante do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, que atribui natureza interpretativa à nova redação dada ao n.º 6 do artigo 51.º do Código do IRC pelo artigo 133.º daquela mesma Lei.
B. A questão da inconstitucionalidade foi suscitada pela Requerente nos autos em referência, como causa de pedir, e foi contraditada pela então Requerida, ora Recorrente, vindo a ser apreciada favoravelmente pelo Tribunal Arbitral, que julgou procedente o pedido de pronúncia arbitral por entender que as liquidações controvertidas se encontram feridas de ilegalidade, com fundamento em inconstitucionalidade.
C. Com efeito, o douto acórdão arbitral proferido julgou, designadamente:
«Por isso, o artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, ao atribuir natureza interpretação à nova redação que deu ao n.º 6 do artigo 51.º do C/RC, é materialmente retroativo, sendo incompaginável com a proibição constitucional da retroatividade lesiva dos impostos, que consta do n.º 3 do artigo 103.º do CRP. (…)
Aliás, mesmo que pudesse considerar-se verdadeiramente interpretativa, não poderia afastar-se a inconstitucionalidade numa situação em que a nova solução não era a perfilhada pelo Tribunal
[…]
Pelo exposto, não pode ser aplicada ao exercício de 2013 a inovadora solução adaptada no n.º 6 do artigo 51.º do CIRC, na redação dada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março.» - cfr. págs. 21 e 22.
D. A aplicação.do nº 2 do art. 51.º pressupõe o preenchimento da exigência contida no nº 1 do mesmo artigo, relativa à inclusão dos rendimentos na base tributável, porquanto o nº 2 apenas dispensa a verificação dos requisitos atinentes à percentagem de participação e ao prazo de detenção das partes sociais.
E. Ademais, o tratamento contabilístico dado aos contratos unit-linked reflecte melhor, agora, a sua natureza de investimento ou produto financeiro, ao contrário do que acontece com os tradicionais contratos de seguro.
F. Deste modo, os ativos subjacentes e os rendimentos associados não podem considerar-se como “rendimentos de participações sociais em que tenham sido aplicadas as reservas técnicas das sociedades de seguros”, nos termos previstos no nº 2 do art. 51º do CIRC.
G. Razão pela qual, atendendo à disposição pertinente da lei fiscal (art. 51º/2 do CIRC), bem como à regulamentação contabilística aplicável não se pode afirmar que a expressão legal - reservas técnicas - tem âmbito mais vasto que o conceito que a AT se sustenta.
H. A entender-se assim conduziria a que a AT discricionariamente construísse, para efeitos de aplicação do nº 2 do art. 51º do CIRC, um conceito próprio de “reservas técnicas”, diferente do constante da regulamentação contabilística aplicável, sem para isso ter qualquer fundamento legal.
I. Ademais, no que respeita à concessão aos contratos unit-linked de um tratamento dado aos contratos de investimentos comercializados por sociedades de investimento, é inegável que não subsiste qualquer motivo que justifique algum tipo de diferenciação no plano fiscal, tanto mais que o nº 2 do art. 51º do CIRC não dispensa o preenchimento da exigência de que os rendimentos provenientes de participações sociais estejam incluídos na base tributável, pelo que também deve ser satisfeita pelas sociedades de investimento.
J. Posto isto, fácil se torna perceber que o entendimento preconizado pela AT, aqui Recorrente, e que serviu de sustentação às correções levadas a cabo no procedimento inspetivo, decorre naturalmente da interpretação da norma, lida no seu conjunto e em articulação com outras relativas à mesma matéria.
K. O que, por si só, justifica a posterior consideração de que aquele era o entendimento pretendido pelo legislador, tendo acabado por lhe conferir natureza interpretativa.
L. Assim, a norma introduzida pela Lei do Orçamento de Estado para 2016, veio apenas clarificar o alcance da norma em causa, perante divergências interpretativas existentes, como, de resto, foi entendido pelo Supremo Tribunal Administrativo relativamente a outras normas ínsitas na mesma Lei, sobre as quais se colocava a mesma questão.
M. A norma interpretativa visa, pois, pôr fim à controvérsia que se instalou sobre o sentido que se devia dar a determinada lei, fixando ela própria o sentido que esta deve ter, a qual será vinculante.
N. Em suma, trata-se, assim, de uma interpretação autêntica que se destina a conferir uma maior certeza e igualdade na aplicação da lei.
O. Pois, no caso em apreço, se bem analisarmos o predito diploma legal, este mais não faz do que aclarar o sentido pré-existente, num raciocínio interpretativo, de integração sistemática e de coerência com o espírito da matéria em apreço, donde, a norma ora posta em causa, e sobretudo o efeito que lhe foi atribuído, se traduz numa mera evidência clarificadora do sentido possível da lei.
P. De facto, como decorre do itinerário cognoscitivo da ora Recorrente no procedimento inspetivo, explicitado nos autos arbitrais, é notório que o raciocínio evidenciado é pré existente à aprovação da norma interpretativa, o que refuta integralmente os argumentos quanto à alegada natureza retroativa da norma em causa.
Q. Em suma, a lei do Orçamento de Estado para 2016, em concreto os seus arts 133º e 135.º, veio apenas clarificar aquele que sempre foi o espírito da norma a propósito do âmbito de aplicação do artigo 51º do CIRC, em conformidade com o entendimento seguido pela AT, revelando-se assim como solução não-inovatória, a que o julgador ou o intérprete podem chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei.
R. Em consonância, de resto, com a doutrina e a jurisprudência».
3. A recorrida A., S.A., apesentou contra-alegações, que concluiu da seguinte forma:
«A) O presente Recurso vem interposto da Douta Decisão proferida pelo Tribunal Arbitral que decidiu julgar procedente o pedido de constituição de tribunal arbitral apresentado pela ora Recorrida e anular o ato de liquidação de IRC do exercício de 2013 ora sindicado, por vício de ilegalidade, neste caso por violação do disposto no artigo 51.º do CIRC, e por desconformidade constitucional, em concreto com o disposto no artigo 103º, n.º 3 da CRP, onde é consagrado o designado princípio da não-retroatividade da lei fiscal.
B) Recorre o Ministério Público contra o facto do Tribunal Arbitral ter recusado a aplicação da norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que atribuiu natureza interpretativa à nova redação do n.º 6 do artigo 51.º do CIRC.
C) Assim, a questão material controvertida no presente recurso prende-se exclusivamente em determinar se o caráter interpretativo atribuído ao atual artigo 51.º, n.º 6 do CIRC, por parte do artigo 135.º da Lei n.º 7.º-A/2016, de 30 de março, comportou efeitos meramente interpretativos - caso em que estaria em causa uma mera lei interpretativa - ou se, ao invés, estão em causa efeitos verdadeiramente inovadores, dado que versam sobre matéria de Direito já consolidada e inequívoca n doutrina e jurisprudência e sem qualquer conexão jurídica relevante ou possível face à nova solução consagrada - caso em que, por seu turno, estaria em causa uma verdadeira lei inovadora, como é entendimento da Recorrida e do próprio Tribunal Arbitral, que nesse mesmo sentido se pronunciou.
D) Sustenta o Recorrente, embora não o afirme de forma direta no seu recurso que seria importante “apurar se no caso ocorreu, ou não, como propugna a fundamentação da decisão da AT, uma dupla tributação económica.”
E) Ora, tal como a Recorrida já havia mencionado, na respetiva petição inicial, os seguros unit-linked implicaram desde sempre e ao abrigo do Plano de Contas para as Empresas de Seguros (aprovado pela Norma Regulamentar n.º 7/94, de 27 de Abril – “PCES 94”) a constituição de provisões técnicas, por forma a acautelar os pagamentos futuros a efetuar aos respetivos subscritores, sendo que a obrigatoriedade de constituição e manutenção de provisões técnicas resulta clara do diploma que regula as condições de acesso e de exercício da atividade seguradora (atual Decreto-Lei n.º 8-A/2002, de 11 de janeiro).
F) De tal modo, o facto de estas provisões corresponderem ao valor dos rendimentos gerados pela carteira de títulos detida pela Recorrida (dividendos recebidos, entenda-se) advém da circunstância de a valorização desses títulos se refletir na valorização das unidades de conta em conformidade com a estruturação do produto oferecido pela mesma Recorrida.
G) De resto, se não estivessem em causa rendimentos da Recorrida não poderiam os mesmos ser registados (corno foram) em contas próprias de proveitos, mas sim em contas de ativos segregadas e devidamente identificadas com os nomes dos diversos titulares das unidades de participação nos seguros unit-linked, funcionando, aí sim nesse cenário, a Recorrida como uma mera intermediária, gestora de carteiras, o que, contudo, não corresponde ao enquadramento legal e contabilístico aplicável.
H) Neste sentido, é por demais evidente que os lucros distribuídos por uma entidade que detém ativos financeiros à entidade titular da respetiva carteira dos títulos são incluídos na base tributável desta última, sendo assim plenamente aplicável a disciplina do artigo 51.º do CIRC.
I) Ora, o dictum que preside à questão material controvertida é precisamente determinar se, como é entendimento da Recorrida e do próprio Tribunal Arbitral, rendimentos associados a investimentos relativos a seguros em que o risco é suportado pelo tomador do seguro (seguros unit-linked) poderão beneficiar, sem qualquer reserva, do regime de eliminação da dupla tributação económica previsto no artigo 51.º do CIRC, na redação em vigor à data dos factos ou se a tal obsta a existência de uma hipotética lei interpretativa, introduzida pelo artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (“Lei Nova”) e respetiva projeção na interpretação do artigo 51.º, n.º 6, do CIRC a aplicar à data dos factos tributários.
J) De acordo com a posição da Recorrida, o mecanismo previsto no artigo 51.º do CIRC era inequivocamente aplicável aos rendimentos associados a investimentos relativos a seguros unit-linked, uma vez que as alterações entretanto introduzidas pelo artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março não têm caráter meramente interpretativo, mas sim uma dimensão totalmente inovadora, necessariamente incompatível com o princípio da não-retroatividade da lei fiscal, plasmado no artigo 103.º, n.º 3, da CRP.
K) De facto, o que é salientado pela generalidade da doutrina fiscal aponta para a necessidade de distinguir entre as verdadeiras leis interpretativas – que, como tal, se integram na lei interpretada – das “falsas” leis interpretativas, i.e., aquelas que apenas o são de nome, concretizando-se em efeitos total ou predominantemente inovadores.
L) Ora, por via da contraposição entre as duas redações relevantes nos presentes autos, facilmente se comprova que a redação à qual foram oferecidos efeitos interpretativos comporta um caráter totalmente inovador, porquanto passa a excluir parte dos rendimentos até então abrangidos no cômputo do regime de eliminação de dupla tributação económica previsto no artigo 51.º, n.º 1, do CIRC.
M) Com efeito, a Lei Nova restringe a sua aplicação “à parte dos rendimentos” – quando a Lei Antiga se aplicava a todos os rendimentos sem distinção – sendo que adicionalmente introduz como requisito de aplicação da norma tributária o facto dos rendimentos não serem direta ou indiretamente imputáveis aos tomadores de seguro – requisito totalmente omisso na redação anterior!
N) A este propósito, como bem refere o Professor Casalta Nabais, no parecer igualmente junto aos presentes autos (em sede do processo arbitral), “da mera reprodução e confronto das duas redações do nº 6 do art. 51.º do Código do IRC, parece resultar óbvio que a nova redação dada a esse n.º 6 do art. 51.º se apresenta como um preceito novo face à correspondente redação anterior, uma vez que o veio alterar, reduzindo o âmbito de aplicação do método da isenção na eliminação da dupla tributação económica, com a dispensa da verificação das condições relativas à percentagem de participação e ao prazo em que esta tenha permanecido na titularidade do sujeito passivo de IRC. Com efeito, enquanto antes se aplicava a todos os rendimentos, isto é, «aos rendimentos de participações sociais em que tenham sido aplicadas as reservas técnicas das sociedades de seguros e das mútuas de seguros», passou a aplicar-se apenas a parte dos rendimentos, isto é, «à parte dos rendimentos de participações sociais que, estando afetas às provisões técnicas das sociedades de seguros e das mútuas de seguros, não sejam, direta ou indiretamente, imputáveis aos tomadores de seguros.”
O) Assim, a aplicação do disposto no número 6 do artigo 51.º do CIRC às situações anteriores à data da entrada em vigor da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, configuraria uma violação do princípio constitucional da proibição da retroatividade da lei fiscal, tal como prescrito nos termos do artigo 103.º, n.º 3, da CRP.
P) De tudo o acima exposto nas presentes contra-alegações resulta que para qualificarmos uma lei nova como verdadeiramente interpretativa, é necessário que: i) a solução do direito anterior seja controvertida; e que ii) a solução adotada pela nova lei se situe dentro dos quadros da referida controvérsia. Concluindo, para haver uma lei interpretativa não basta que o legislador assim o determine, ao contrário do que parece pretender fazer crer o Recorrente.
Q) Ora, no caso concreto, o que a “Lei Nova” faz é precisamente restringir o aproveitamento do regime previsto no artigo 51.º, n.º 1, do CIRC à parte dos rendimentos que, pela negativa, não verifiquem as condições previstas no atual 51.º, n.º 6, do CIRC. E fá-lo quando, ao abrigo da “Lei Antiga”, poderiam beneficiar do referido regime todos os rendimentos aí enunciados e não apenas “parte” dos mesmos! - e é precisamente neste ponto que reside a fragilidade do recurso apresentado pelo Ministério Público, pois não resultava de modo algum da Lei Antiga tal distinção ou restrição.
R) Deste modo, é evidente que a interpretação conferida pela Lei Nova não era de modo algum admissível face ao texto da lei antiga, ao contrário do que sustenta o Recorrente (conclusão 8.ª), uma vez que a lei se aplicava a todos os rendimentos e bastava-se com a inclusão dos rendimentos na base tributável, não sendo em sentido algum relevante a imputação de parte ou da totalidade dos rendimentos aos respetivos tomadores do seguro.
S) Como tal, poderá concluir-se que a alteração promovida à norma em questão, ao limitar o seu âmbito aos rendimentos de participações sociais, que estando afetas às provisões técnicas, não sejam direta ou indiretamente imputáveis aos tomadores de seguros, não tem qualquer paralelo com a redação anterior da mesma, nomeadamente a que estava em vigor à data dos factos sindicados (2013).
T) E assim sucede justamente na medida em que o requisito da não imputabilidade dos rendimentos aos tomadores dos seguros, não estava de modo algum plasmado no texto legal, nem fora objeto de idêntica interpretação doutrinária ou jurisprudencial, o que nos leva a concluir, ao contrário do que invoca o Recorrente que nunca o sentido proposto pela Lei Nova poderia ser imputado de alguma forma à Lei Antiga.
U) O que leva precisamente o Professor Casalta Nabais a concluir que, “Mas ponhamos em evidência as razões porque é que entendemos que a mencionada alteração legal é inovadora. O que se prende com o facto de a solução legal constante da nova redação dada ao nº 6 do art. 51.º do Código do IRC pela LOE/2016 não poder ser reconduzida a nenhum dos sentidos que pudesse ser retirados da redação anterior desse preceito. Isto justamente porque os seguros unit linked são, sob quaisquer pontos de vista de que se parta para os perspetivar, seguros do ramo vida como quaisquer outros seguros do ramo vida, sendo, pois, totalmente arbitrário considerá-los objeto de um tratamento fiscal diferente dos demais seguros do ramo vida ao menos sem uma norma expressa e muito clara nesse sentido”.
V) Adicionalmente, conforme amplamente demonstrado, cumpre referir que, não existe até à data, qualquer controvérsia doutrinária ou jurisprudencial sobre o tema da aplicação do regime da eliminação da dupla tributação económica aos seguros unit-linked, que pudesse justificar o carácter interpretativo que se pretende atribuir à presente norma, pois que todas as instâncias judiciais e arbitrais sempre sufragaram a tese interpretativa propugnada pela ora Recorrida.
W) Não se invoque contra o acima exposto, como sustenta o Recorrente que “a lei interpretativa pode surgir antes ainda de se ter chegado a formar qualquer corrente de interpretação sobre a LA, porventura até pouco depois da entrada em vigor desta”, pois não só a norma já tinha pelo menos uma década de vigência, como na esfera da Recorrida já vêm sendo contestadas as correções da AT sobre o tema deste o exercício de 2000, sendo a pronúncia das instâncias judiciais envolvidas unânime sobre a questão material controvertida.
X) A admitir-se a bondade da posição sustentada pelo Recorrente, bastaria a Autoridade Tributária adotar uma interpretação ab-rogante e sem qualquer adesão por parte das instâncias judiciais para se evidenciar o caráter controverso da norma, abrindo-se por essa via uma janela à aplicação de normas tributárias de matriz materialmente retroativas que o legislador pretendera proibir por via do artigo 103º da Lei Fundamental, o que naturalmente não deixará de ser sindicado por este Venerando Tribunal.
Y) Sobre o conceito de lei interpretativa, cumpre ainda recordar a posição deste Tribunal Constitucional no acórdão n.º 267/2017, de 31.05.2017, proferido no processo n.º 466/16, a propósito de uma outra norma introduzida com a Lei do OE para 2016, bem como no processo n.º 449/2017, de 20 de fevereiro de 2018, em apelo à decisão proferida no processo n.º 644/2017, concluindo que, “É o que se verifica em relação à norma objeto do presente recurso: de acordo com a interpretação feita na decisão recorrida, a solução normativa resultante da conjugação dos n.ºs 1, alínea e), e 7, do artigo 7.º do CIS, consagrada na sequência do aditamento do citado n.º 7 pelo artigo 152.º da Lei n.º 7-A/2016 é inovadora e aumenta a coleta de Imposto do Selo devida, ou seja, agrava desfavoravelmente o modo de calcular o quantum devido a título daquele Imposto. A determinação da aplicação de tal solução a anos fiscais anteriores ao da entrada em vigor da referida Lei n.º 7-A/2016 prevista no seu artigo 154. º torna-a, por conseguinte, substancialmente retroativa e, nessa mesma medida, incompatível com a proibição da imposição de impostos retroativos do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.”
Z) De tudo o acima exposto, é claro que a nova redação do número 6 do artigo 51.º do CIRC é manifestamente uma norma de carácter inovador, pois restringe o âmbito de aplicação da norma quanto ao tipo de rendimentos abrangidos pelo regime da eliminação da dupla tributação económica, pelo que deverá o presente recurso ser julgado manifestamente improcedente, confirmando-se a decisão ora recorrida, concluindo-se pela anulação do ato tributário ora sindicado, por vício de inconstitucionalidade decorrente da aplicação do artigo 135.º da Lei n.º 7·º-A/2016, de 30 de março e respetiva desconformidade face ao artigo 103.º, n.º 3, da CRP, tudo com as devidas consequências legais.
4. Em virtude da cessação de funções do primitivo relator, foram os autos objeto de redistribuição.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. Os recursos interpostos pelo Ministério Público e pela Autoridade Tributária têm como objeto a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que atribui natureza interpretativa à nova redação dada ao n.º 6 do artigo 51.º do Código do IRC pelo artigo 133.º daquela mesma Lei.
O artigo 51.º do Código do IRC, na redação vigente em 2013, e no que ora particularmente releva, tinha o seguinte teor:
Artigo 51.º
Eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos
1 – Na determinação do lucro tributável das sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, cooperativas e empresas públicas, com sede ou direção efetiva em território português, são deduzidos os rendimentos, incluídos na base tributável, correspondentes a lucros distribuídos, desde que sejam verificados os seguintes requisitos:
a) A sociedade que distribui os lucros tenha a sede ou direção efetiva no mesmo território e esteja sujeita e não isenta de IRC ou esteja sujeita ao imposto referido no artigo 7.º;
b) A entidade beneficiária não seja abrangida pelo regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.º;
c) A entidade beneficiária detenha diretamente uma participação no capital da sociedade que distribui os lucros não inferior a 10 % e esta tenha permanecido na sua titularidade, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da colocação à disposição dos lucros ou, se detida há menos tempo, desde que a participação seja mantida durante o tempo necessário para completar aquele período.
2 – O disposto no número anterior é aplicável, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade, aos rendimentos de participações sociais em que tenham sido aplicadas as reservas técnicas das sociedades de seguros e das mútuas de seguros e, bem assim, aos rendimentos das seguintes sociedades:
a) Sociedades de desenvolvimento regional;
b) Sociedades de investimento;
c) Sociedades financeiras de corretagem.
[…]
Após as alterações introduzidas pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, ao n.º 2 do referido artigo 51.º passou a corresponder o n.º 6, com a seguinte redação:
Artigo 51.º
Eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos
1 - Os lucros e reservas distribuídos a sujeitos passivos de IRC com sede ou direção efetiva em território português não concorrem para a determinação do lucro tributável, desde que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:
a) O sujeito passivo detenha direta ou direta e indiretamente, nos termos do n.º 6 do artigo 69.º, uma participação não inferior a 5 % do capital social ou dos direitos de voto da entidade que distribui os lucros ou reservas;
b) A participação referida no número anterior tenha sido detida, de modo ininterrupto, durante os 24 meses anteriores à distribuição ou, se detida há menos tempo, seja mantida durante o tempo necessário para completar aquele período;
c) O sujeito passivo não seja abrangido pelo regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.º;
d) A entidade que distribui os lucros ou reservas esteja sujeita e não isenta de IRC, do imposto referido no artigo 7.º, de um imposto referido no artigo 2.º da Diretiva n.º 2011/96/UE, do Conselho, de 30 de novembro, ou de um imposto de natureza idêntica ou similar ao IRC e a taxa legal aplicável à entidade não seja inferior a 60 % da taxa do IRC prevista no n.º 1 do artigo 87.º;
e) A entidade que distribui os lucros ou reservas não tenha residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças.
[…]
6 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade, aos rendimentos de participações sociais em que tenham sido aplicadas as reservas técnicas das sociedades de seguros e das mútuas de seguros e, bem assim, aos rendimentos das seguintes sociedades:
a) Sociedades de desenvolvimento regional;
b) Sociedades de investimento;
c) Sociedades financeiras de corretagem.
[…]
Finalmente, após as alterações introduzidas pelo artigo 133.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, passou a ser a seguinte a redação do n.º 6 referido artigo 51.º:
Artigo 51.º
Eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos
1 - Os lucros e reservas distribuídos a sujeitos passivos de IRC com sede ou direção efetiva em território português não concorrem para a determinação do lucro tributável, desde que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:
a) O sujeito passivo detenha direta ou direta e indiretamente, nos termos do n.º 6 do artigo 69.º, uma participação não inferior a 10 % do capital social ou dos direitos de voto da entidade que distribui os lucros ou reservas;
b) A participação referida no número anterior tenha sido detida, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à distribuição ou, se detida há menos tempo, seja mantida durante o tempo necessário para completar aquele período;
c) O sujeito passivo não seja abrangido pelo regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.º;
d) A entidade que distribui os lucros ou reservas esteja sujeita e não isenta de IRC, do imposto referido no artigo 7.º, de um imposto referido no artigo 2.º da Diretiva n.º 2011/96/UE, do Conselho, de 30 de novembro, ou de um imposto de natureza idêntica ou similar ao IRC e a taxa legal aplicável à entidade não seja inferior a 60 % da taxa do IRC prevista no n.º 1 do artigo 87.º;
e) A entidade que distribui os lucros ou reservas não tenha residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças.
[…]
6 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade, à parte dos rendimentos de participações sociais que, estando afetas às provisões técnicas das sociedades de seguros e das mútuas de seguros, não sejam, direta ou indiretamente, imputáveis aos tomadores de seguros e, bem assim, aos rendimentos das seguintes sociedades:
a) Sociedades de desenvolvimento regional;
b) Sociedades de investimento;
c) Sociedades financeiras de corretagem.
[…]
O artigo 135.º Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, sob a epígrafe «Norma interpretativa», estabeleceu que «[a] redação dada pela presente lei ao n.º 6 do artigo 51.º, ao n.º 15 do artigo 83.º, ao n.º 1 do artigo 84.º, aos n.ºs 20 e 21 do artigo 88.º e ao n.º 8 do artigo 117.º do Código do IRC tem natureza interpretativa».
6. A decisão recorrida recusou a aplicação do referido artigo 135.º Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que atribui natureza interpretativa à redação dada pela mesma lei ao n.º 6 do artigo 51.º do Código do IRC, com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal consagrado no artigo 103.º, nº 3, da Constituição. Nessa decisão, alude-se, além do mais, à jurisprudência deste Tribunal (e desta Secção) sobre leis interpretativas em matéria fiscal constante do Acórdão n.º 267/2017 (disponível, assim como os demais adiante citados, a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
A mesma jurisprudência foi posteriormente reiterada nos Acórdãos n.ºs 644/2017 e 92/2018, igualmente desta 2.ª Secção.
Mais recentemente, no Acórdão n.º 751/2020, do Plenário, o Tribunal Constitucional, a propósito da generalização do juízo positivo de inconstitucionalidade objeto dos dois últimos arestos, voltou a reafirmar a sua jurisprudência neste domínio, fundamentando-a nos seguintes termos:
«10. A especificidade da lei interpretativa prende-se com a intenção e a força vinculante do próprio ato normativo: por contraposição à lei inovadora, aquela visa ou declara pretender fixar apenas o sentido correto de um ato normativo anterior. A mesma não pretende criar direito novo, antes tem como objetivo esclarecer o sentido “correto” do direito preexistente. «O órgão competente que cria uma lei (p. ex. a Assembleia da República) tem também a competência para a interpretar, modificar, suspender ou revogar» (cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, p. 176). Está em causa, afinal, uma manifestação da mesma competência legislativa que é fonte em sentido orgânico do ato interpretando (cfr. idem, ibidem). E, por ser de valor igual a este último, a lei interpretativa determina-lhe o sentido para todos os efeitos, independentemente da correção hermenêutica de tal interpretação. Por isso, a interpretação da lei fixada pelo próprio legislador – a chamada “interpretação autêntica” – «vale com a força inerente à nova manifestação de vontade» do respetivo autor (cfr. Autor cit., ibidem, p. 177). Daí a aludida consequência de a lei interpretativa se integrar na lei interpretada (cfr. o artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil).
Por isso mesmo, como se referiu no Acórdão n.º 267/2017, pode, de acordo com certa conceção, falar-se de uma retroatividade meramente formal inerente a toda a lei – tida por “verdadeiramente” ou “genuinamente” – interpretativa: há retroatividade, porque tal lei se aplica a factos e situações anteriores, e a mesma retroatividade é “formal”, visto que a lei, «vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da [lei anterior – cujo sentido e alcance não se podiam ter como certos –] com que os interessados podiam e deviam contar, não é suscetível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas» (cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, p. 246). Com efeito, «a retroação [das leis interpretativas] justifica-se, além do mais, por não envolver uma violação de quaisquer expectativas seguras e legítimas dos interessados. Estes podiam contar com a solução da [lei nova] interpretativa, visto ela corresponder a um dos vários sentidos atribuídos já pela doutrina e pela jurisprudência à [lei antiga]»: assim, é «de sua natureza interpretativa a lei que, sobre um ponto em que a regra de direito é incerta ou controvertida, vem consagrar uma solução que a jurisprudência, por si só, poderia ter adotado» (cfr. BAPTISTA MACHADO, Sobre a Aplicação no Tempo do novo Código Civil, Almedina, Coimbra, 1968, pp. 286-287).
Diferentemente, se a lei nova se pretende aplicar a factos e situações jurídicas anteriormente disciplinados por um direito certo, então este último é modificado, violando-se expectativas quanto à sua continuidade, e tal lei, na medida em que inove relativamente ao direito anterior – qualificando-se já não como lei interpretativa, mas sim como lei inovadora –, será substancial ou materialmente retroativa (cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito…, cit., p. 247).
Nesta perspetiva, e tendo em conta a ótica da tutela da confiança dos destinatários do direito, relevará, então, que a lei verdadeiramente interpretativa é apenas formalmente retroativa, uma vez que se limita a declarar o direito preexistente; ao passo que a lei autoqualificada como interpretativa mas que em boa verdade seja inovadora se deva considerar como material ou substancialmente retroativa, porquanto, ao modificar o direito preexistente, constitui direito novo.
Na verdade, pode suceder – e sucede com alguma frequência – que o legislador declare ou qualifique expressamente como “interpretativa” certa disposição de uma lei nova, mesmo quando essa disposição seja na realidade inovadora. Ora, uma lei que modifique o direito preexistente – o mesmo é dizer, que constitua direito novo – sob a capa de “lei interpretativa”, porque criadora de efeitos jurídicos novos para os respetivos destinatários, violará necessariamente uma eventual proibição de leis retroativas; porém, a lei genuinamente interpretativa, porque se limite a declarar o direito que já vigora e com o qual os respetivos destinatários podem contar, não violará tal proibição, do mesmo modo que toda e qualquer interpretação jurídica, incluindo a feita pelos tribunais, também não pode considerar-se como produtora de efeitos jurídicos novos que frustrem «expectativas seguras e legitimamente fundadas».
11. Sucede que, do ponto de vista do direito constitucional, e no que se refere à interpretação da lei, não pode abstrair-se das diferenças orgânicas e funcionais entre legislador e julgador. É a relevância das mesmas, já salientada nos mencionados Acórdãos n.ºs 267/2017 e 395/2017, que cumpre aqui recordar e reiterar.
A iurisdictio ou função de “dizer o direito” – de o declarar a partir das pertinentes fontes jurídico-formais – compete constitucionalmente aos tribunais (cfr. o artigo 202.º, n.º 1, da Constituição). Sendo certo que o tribunal não se identifica com o juiz, há, todavia, decisões e atos que só este último pode praticar (cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. I ao art. 202.º, p. 506). É nisto que se traduz a reserva de juiz relativamente ao exercício da função jurisdicional (reserva de jurisdição):
«Tribunal [tem neste artigo 202.º] um sentido jurídico-funcional – daí a epígrafe “função jurisdicional” – conexionada com um sentido inerente à função de jurisdictio e uma função jurídico-material (“jurisdictio” como atividade do juiz materialmente caracterizada). A atribuição da função jurisdicional aos tribunais, nos termos do n.º 1, radica no facto de as decisões dos tribunais serem imputadas, para efeitos externos, a um tribunal […] e não a um juiz. Isto não perturba o entendimento de que neste artigo (202.º-1) a Constituição estabelece uma reserva de jurisdição no sentido de que dentro dos tribunais só os juízes podem ser chamados a praticar atos materialmente jurisdicionais. O conceito constitucional de função jurisdicional pressupõe, portanto, a atribuição da função jurisdicional a determinadas entidades (magistrados) que atuam estritamente vinculados a certos princípios (independência, legalidade, imparcialidade).» (v. Autores cits., ibidem, anot. VI, p. 509).
Por outro lado, o n.º 2 do artigo 202.º identifica o conteúdo da função jurisdicional por referência a três diferentes áreas de intervenção: defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; repressão de violação da legalidade; dirimição de conflitos de interesses públicos e privados. Como se salientou por exemplo no Acórdão n.º 230/2013, «o entendimento comum é o de que a Constituição pretendeu, deste modo, instituir uma reserva de jurisdição, entendida como uma reserva de competência para o exercício da função jurisdicional em favor exclusivamente dos tribunais. Nesse sentido, poderá apenas discutir-se o âmbito de delimitação dessa reserva, quer por efeito das dificuldades que possa suscitar, em cada caso concreto, a distinção entre função administrativa e função jurisdicional, quer por via da maior ou menor latitude que se possa atribuir ao conceito […]».
Certo é que tal reserva não colide com o poder de o legislador, no exercício das suas competências próprias, alterar ou esclarecer o sentido de uma norma legal anterior e, por via disso, determinar uma eventual correção ou modificação da jurisprudência relativa a tal norma (assim, v. o Acórdão n.º 267/2017). O conceito de lei interpretativa acolhe precisamente tal possibilidade. Porém, ao fazê-lo, o legislador tem de agir no quadro da ordem constitucional, respeitando os limites constitucionais decorrentes do princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança legítima relativamente à retroatividade substancial. Mais: a lei que a si própria se qualifica como interpretativa não deixa de ser uma manifestação da mesma competência legislativa que é fonte em sentido orgânico da lei interpretada.
Por isso mesmo, a atividade hermenêutica do legislador e dos juízes é essencialmente diferente, tornando-se necessário distinguir a interpretação legislativa da interpretação judicial, quer quanto ao seu fundamento, quer quanto ao seu processo (v. o Acórdão n.º 395/2017):
«Quanto ao primeiro aspeto, importa notar que, ao passo que a interpretação judicial tem por fundamento a autoridade jurisdicional dos tribunais – ou seja, a idoneidade destes para «dizerem o direito» ou «descobrirem o direito», nomeadamente o direito vertido nas leis –, a interpretação legislativa baseia-se na autoridade política do legislador, o mesmo é dizer, no facto de caber ao poder legislativo determinar o que é mais justo, conveniente ou oportuno para a comunidade. Quando um tribunal interpreta uma lei, nomeadamente uma lei ambígua, num certo sentido, o fundamento da decisão é a correção jurídica desse juízo; o tribunal afirma que determinado sentido é o sentido verdadeiro e originário da lei, de tal modo que as posições jurídicas – os direitos, os poderes, os deveres ou os ónus – por ele implicadas já se encontravam definidas no momento em que a lei entrou em vigor.
É claro que os tribunais cometem necessariamente erros de interpretação e que a interpretação das leis é muitas vezes objeto de controvérsia; é ainda certo que, em muitas situações, os juízes têm dúvidas, por vezes insanáveis, sobre o sentido a dar às leis que interpretam. Mas ao decidir um caso em que se coloca um problema de interpretação difícil e controverso, o tribunal atua, por necessidade funcional, no exercício de um poder estritamente jurisdicional – o de decidir qual o direito consagrado na lei. Já o legislador, não tendo qualquer competência jurisdicional, atua sempre com base na sua autoridade política, ou seja, com fundamento no seu título constitucional para decidir o que é melhor para a comunidade. Significa isto que, ao interpretar a lei num certo sentido, o legislador não se arroga a idoneidade de descobrir o direito nela vertido, mas o de fixar o sentido com que ela deve valer por razões de justiça, utilidade ou oportunidade sobre as quais só ele tem autoridade constitucional para decidir; os critérios da sua decisão são, por necessidade funcional, de natureza política e não jurídica.
Esta divergência de fundamento entre interpretação legislativa e judicial traduz-se – e aqui reside o segundo aspeto da distinção – nos diversos processos através das quais uma e a outra são geradas. Na verdade, o processo judicial e o legislativo são estruturados em função da natureza do poder que através deles se exerce. Em virtude da sua natureza jurisdicional, a interpretação judicial é realizada por tribunais compostos por juízes independentes e com formação técnica específica, no âmbito de pedidos de pronúncia sobre questões concretas relativas às situações jurídicas das partes, e através de decisões fundamentadas proferidas a partir de uma posição de imparcialidade. Já a interpretação legislativa, cujo fundamento é a autoridade política do legislador, reveste a forma de ato legislativo aprovado por um órgão com legitimidade democrática para tomar decisões políticas; o titular por excelência desse poder é a Assembleia da República, em que as leis são elaboradas, discutidas e aprovadas pelos representantes eleitos pelo povo para decidirem os destinos da comunidade.»
Deste modo, a exclusão ou imposição de uma ou mais interpretações de certa norma legal já realizadas – ou claramente admissíveis – por determinação de uma lei posterior limita o alcance da primeira: entre as múltiplas declarações do direito de que tal lei era passível, algumas deixaram ex vi legis de ser admissíveis e, na medida de tal limitação, ocorre uma modificação do direito que os tribunais “podem dizer” (v. o Acórdão n.º 267/2017). Daí que a interpretação ou esclarecimento formalmente consagrados pela lei nova não possam deixar de revestir uma natureza constitutiva e a retroatividade inerente à mesma lei revista igualmente um caráter material ou substancial (v., de novo, os Acórdãos n.ºs 267/2017 e 395/2017)
Significa isto que a interpretação legislativa, por ter a natureza própria do poder de que emana, e independentemente da intenção declarada ou implícita na lei que a consagra, tem sempre subjacente um juízo formulado segundo critérios político-legislativos. Objetivamente, isto é, pela sua própria natureza, a lei interpretativa fixa o sentido que o legislador entende politicamente mais vantajoso (cfr. o Acórdão n.º 395/2017). A eventual coincidência entre o sentido fixado por tal lei e aquele que seja apurado por via da interpretação judicial da lei interpretada não é impossível, mas também não é necessária. Todavia, o que aqui releva é que os resultados da interpretação legal e da interpretação judicial são expressões de atividades constitucionalmente distintas e que, por conseguinte, também se regem por diferentes parâmetros constitucionais.
12. Segundo esta perspetiva, fundada na diferença constitucional entre a função legislativa e a função jurisdicional, não pode aceitar-se a ideia de que uma lei “genuinamente interpretativa” – porque se limita a consagrar um dos sentidos possíveis da lei interpretada – não seja lesiva das «expectativas seguras e legitimamente fundadas» dos seus destinatários e, por isso mesmo, caso trate de matéria fiscal, a respetiva retroatividade – tida como meramente “formal” – nem sequer esteja abrangida pela proibição do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Como se entendeu no Acórdão n.º 395/2017:
«Sem dúvida que os cidadãos destinatários das leis, designadamente de leis com uma vocação ablativa, não devem ter qualquer expectativa de que estas sejam, ou possam vir a ser, interpretadas no sentido que lhes é mais favorável; não existe, nem sequer nos domínios penal ou fiscal, um qualquer «princípio da interpretação mais favorável» ao cidadão. Mas têm a expectativa legítima, na qualidade de destinatários da lei, de formarem uma convicção sobre o direito nela vertido e de agirem com base nessa convicção jurídica – assim como, na eventualidade de se verificar um litígio, de recorrerem aos tribunais para que estes apreciem, no uso da autoridade jurisdicional que exclusivamente lhes cabe, e no âmbito de um processo de partes com igualdade de armas, o mérito jurídico do seu ponto de vista no caso concreto. Por outras palavras, os destinatários das leis têm a expectativa legítima de que estas sejam objeto de uma interpretação jurídica, porque é nesses exatos termos — enquanto sujeitos de direito – que aquelas se lhes dirigem. Ao consagrarem um sentido por razões de ordem política — constitutivas e não declarativas de direito –, as leis interpretativas frustram essa expectativa legítima dos cidadãos na juridicidade, adversariabilidade e justiciabilidade da sua relação com a lei.
Não é outro, segundo se crê, o alcance das seguintes palavras que constam do Acórdão n.º 172/2000:
“[A] vinculação interpretativa que [as] leis [interpretativas] comportam, ao tornar-se critério jurídico exclusivo da aplicação do texto anterior da lei, modifica a relação do Estado, emitente de normas, com os seus destinatários. A exclusão pela lei interpretativa de outras interpretações propugnadas e já aplicadas noutros casos […] leva a que o Estado possa a posteriori impedir que o Direito que criou funcione através da sua lógica intrínseca comunicável aos destinatários das normas, permitindo que interfira na interpretação jurídica um poder imperativo e imediato que altera o quadro dos elementos relevantes da interpretação jurídica.”»
Consequentemente, a retroatividade inerente às leis interpretativas é necessariamente material e, caso esteja em causa a interpretação legal de normas fiscais, não pode deixar de estar abrangida pela proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.».
7. Os fundamentos em que assentou esta jurisprudência são inteiramente transponíveis para a questão objeto dos presentes autos, pelo que, por remissão para a fundamentação, mais exaustiva, acima transcrita, resta concluir que a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que atribui natureza interpretativa à nova redação dada ao n.º 6 do artigo 51.° do Código do IRC pelo artigo 133.° daquela mesma Lei, é inconstitucional por violação da proibição de criação de impostos com natureza retroativa, estatuída no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação da proibição de criação de impostos com natureza retroativa, estatuída no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que atribui natureza interpretativa à nova redação dada ao n.º 6 do artigo 51.º do Código do IRC pelo artigo 133.° daquela mesma Lei; e, em consequência,
b) Negar provimento aos recursos interposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira e pelo Ministério Púbico.
Sem custas (artigo 84.º, n.ºs 1 e 2, da LTC).
A Conselheira Mariana Canotilho vota a decisão com uma declaração
Lisboa, 4 de fevereiro de 2021 - Pedro Machete - Mariana Canotilho - Assunção Raimundo - Fernando Vaz Ventura - Manuel da Costa Andrade
Declaração de Voto
Votei a decisão de inconstitucionalidade, porque creio que a norma em apreço, neste processo, não pode ser considerada realmente interpretativa, desde logo pela inexistência de verdadeira controvérsia jurisprudencial anterior.
Contudo, e à semelhança do que disse na declaração de voto aposta no Acórdão n.º 751/2020, e na senda da declaração de voto do Senhor Conselheiro Lino Ribeiro, nesse aresto, continuo a considerar que nem todas as leis interpretativas são sempre, necessária e inconstitucionalmente retroativas. Por esta razão, um juízo de inconstitucionalidade, nesta matéria, não pode, no meu entender, limitar-se a aplicar, sem mais, a declaração de inconstitucionalidade do Plenário, que tinha por objeto norma distinta, sendo necessário que se averigue, em cada caso concreto, se estão ou não reunidos os requisitos para que uma lei nova possa ser verdadeiramente interpretativa, situação em que poderá não ser fundado o juízo de não conformidade com a Lei Fundamental.
Mariana Canotilho