Processo n.º 1458/2017
Plenário
Relator: Conselheiro José António Teles Pereira
(Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro)
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I – A Causa
1. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, representante do Ministério Público junto deste Tribunal (doravante referido como o recorrente), interpôs a fls. 2046/2047 o presente recurso para o Plenário, nos termos do artigo 79.º-D, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), na sequência da prolação pela 3.ª Secção do Acórdão n.º 134/2020 (fls. 2007/2041). Este aresto, com efeito, divergindo de múltiplos pronunciamentos decisórios anteriores do Tribunal [designadamente dos Acórdãos n.os 641/2016, 421/2017, 694/2017, 90/2018 e 178/2018 (referimos aqui os indicados pelo recorrente no requerimento de interposição)] “[julgou] inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal [lenocínio], por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição, conjugadamente […]”.
1.1. Admitido o recurso a fls. 2048, foi este motivado pelo recorrente a fls. 2050/2051, remetendo para o teor das contra-alegações que havia apresentado, neste mesmo processo, na fase que antecedeu a prolação do Acórdão n.º 134/2020 (tratou-se, nesse enquadramento processual, de recurso interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, decorrente de uma decisão de não acolhimento da questão de inconstitucionalidade suscitada pelo ora recorrido).
O Ministério Público, nessas contra-alegações, recordando jurisprudência reiteradamente proferida pelo Tribunal Constitucional nos últimos 16 anos, na sequência do Acórdão n.º 144/2004, concluíra que “[a] norma do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na redação da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, na qual se prevê e pune o crime de lenocínio, não viola o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional”.
O ora recorrido não respondeu à motivação do recurso do Ministério Público.
1.2. O relator originário do processo apresentou memorando propondo a decisão do recurso no sentido afirmado no Acórdão recorrido. Todavia, na discussão travada no plenário, apurou-se um sentido decisório contrário ao Acórdão n.º 134/2020, transferindo-se o relato da posição do Tribunal para o primeiro juiz integrante da maioria de decisão formada no plenário, seguindo a ordem de precedências para o presente ano (artigo 79.º-D, n.º 5, da LTC).
Cumpre, pois, apreciar e decidir o recurso.
II – Fundamentação
2. Está em causa, nos presentes autos, a questão da inconstitucionalidade da norma incriminatória do lenocínio contida no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal (“[q]uem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer, ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.”). No Acórdão recorrido, foi proferida decisão no sentido da sua inconstitucionalidade, por oposição a outras decisões do Tribunal Constitucional (Acórdãos n.os 694/2017, 90/2018, 178/2018, entre muitos outros, adiante referidos), nos quais a mesma norma não foi julgada desconforme à Constituição.
A questão da inconstitucionalidade da referida norma penal (e, anteriormente, da norma correspondente do artigo 170.º, n.º 1, do mesmo Código, na numeração anterior à Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro; estando em causa, fundamentalmente, a descrição típica do lenocínio introduzida pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro) foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional, num número particularmente expressivo de arestos, numa linha decisória iniciada com a prolação do Acórdão n.º 144/2004 – posteriormente a este, v., designadamente, os Acórdãos n.os 196/2004, 303/2004, 170/2006, 396/2007, 522/2007, 591/2007, 141/2010, 559/2011, 605/2011, 654/2011, 203/2012, 149/2014, 641/2016, 421/2017, 694/2017, 90/2018, 178/2018, 160/2020 e 589/2020 –, sendo todas essas decisões no sentido da não inconstitucionalidade e, recentemente, no Acórdão n.º 134/2020 (trata-se da decisão aqui recorrida), no sentido da inconstitucionalidade.
Destina-se o presente recurso, precisamente, a superar a apontada divergência, sendo o recorrente, pois, face aos termos do artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC, parte legítima.
2.1. No Acórdão n.º 144/2004 – verdadeiramente a decisão matriz desta problemática na jurisprudência constitucional (que podemos definir como a constitucionalidade da incriminação do lenocínio, na descrição típica introduzida pela Lei n.º 65/98) –, o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional a norma (ao tempo) constante do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal [“[q]uem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de atos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos” (a autonomização da prática de atos sexuais de relevo, “caiu” do tipo do lenocínio com a reforma do Código Penal corporizada na Lei n.º 59/2007, sendo intuitivo que a materialidade subjacente ao trecho suprimido não deixava de estar contida no conceito de prostituição)].
Importa recordar, nos seus traços mais expressivos, os fundamentos dessa decisão do Tribunal de há 16 anos:
“[…]
5. O ponto de vista que a recorrente apresenta ao Tribunal Constitucional consubstancia‑se no seguinte:
– os bens jurídicos protegidos pela norma em crise são, em primeira linha, ‘sentimentalismos transpessoais’, valores de ordem moral e não bens pessoais como a liberdade e autodeterminação sexual;
– não sendo a prostituição em si punível, incriminar‑se a atividade comercial ou lucrativa que tem por base a prostituição ou ‘atos similares’ corresponde a privar os cidadãos de exercer uma atividade profissional por imposição de regras morais.
A pergunta a que importa responder é, portanto, a de saber se fere alguma norma ou princípio constitucional a incriminação das condutas que constituem a factualidade típica do artigo 170.º.
6. Não se terá, aqui, de responder à questão geral sobre se o Direito Penal pode, constitucionalmente, tutelar bens meramente morais, questão que não pode ser resolvida sem o esclarecimento prévio do que se entende por bens puramente morais e que não pode deixar de tomar em consideração que há valores e bens tidos como morais e que relevam, inequivocamente, no campo do Direito. A relação entre o Direito e a Moral ou o Ethos tem sido objeto de uma controvérsia muito importante, sendo uma das questões fundamentais da Filosofia do Direito. Com efeito, desde a tradição liberal radicada em Stuart Mill (On liberty, 1859) ou mesmo do pensamento de Kant (Metaphysik der Sitten, 1797), em que o Direito se situa apenas no plano do dano ou do prejuízo dos interesses ou da violação dos deveres (externos) para com os outros até às conceções de uma total fusão entre o Direito e a Moral, em que se reconhece que o Direito tem legitimidade para impor coletivamente valores morais (assim, por exemplo, no pensamento anglo‑saxónico, Patrick Devlin, em The Enforcement of Morals, 1965, em nome da manutenção da identidade da sociedade), tem‑se mantido acesa a discussão. Apesar das duas posições extremas – a da separação absoluta entre o Direito e a Moral e a da total coincidência entre Direito e Moral – é amplamente aceite que o Direito e a Moral, embora a partir de perspetivas diferentes, fazem parte de uma unidade mais vasta (assim, Arthur Kaufmann, Recht und Sittlichkeit, 1964, p. 9, e, de modo introdutório à questão, J. Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1990, p. 59 e ss.).
Assim, tanto quem procure em valores morais a legitimação do Direito, como quem acentue a distinção entre Moral e Direito, reconhecerá, inevitavelmente, que existem bens e valores que participam das duas ordens normativas [partindo de conceções diversas sobre o Direito, mas coincidindo neste último ponto, cf. Radbruch, Filosofia do Direito […]; e Kelsen, Teoria Pura do Direito […] – este último, apesar da separação radical entre Direito e Moral, não deixa de reconhecer que o Direito pode tutelar valores morais, sem que, por isso, Direito e Moral se confundam; também Hart o reconhece em “Positivism and the Separation of Law and Morals”, Harvard Law Review, 1958; ver ainda, do mesmo autor, Conceito de Direito […]]. Mesmo as posições mais favoráveis à autonomia do Direito não negam que possam existir valores morais tutelados também pelo Direito, segundo a lógica deste e, por força dos seus critérios (sobre toda a problemática da relação entre a Moral e o Direito, veja‑se, por exemplo, Arthur Kaufmann, Rechtsphilosophie, 2ª ed., 1997, Kurt Seelmann, Rechtsphilosophie, 1994). Porém, questão prévia a tal problemática e decisiva no presente caso, é a de saber se a norma do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal apenas protege valores que nada tenham a ver com direitos e bens consagrados constitucionalmente, não suscetíveis de proteção pelo Direito, segundo a Constituição portuguesa.
Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que subjacente à norma do artigo 170º, nº 1, está inevitavelmente uma perspetiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída (cf., sobre a prostituição, nas suas várias dimensões, mas caracterizando‑o como ‘fenómeno social total’ e, depreende‑se, um fenómeno de exclusão, José Martins Bravo da Costa, ‘O crime de lenocínio. Harmonizar o Direito, compatibilizar a Constituição’, em Revista de Ciência Criminal, ano 12, n.º 3, 2002, p. 211 e ss.; do mesmo autor e Lurdes Barata Alves, Prostituição 2001 – O Masculino e o Feminino de Rua, 2001). Tal perspetiva não resulta de preconceitos morais, mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de ação, situações e atividades cujo ‘princípio’ seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1.º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei n.º 23/80, em D.R., I Série, de 26 de julho de 1980), bem como, em 1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de outubro de 1991).
É claro que a esta perspetiva preside uma certa ideia cultural e histórica da pessoa e uma certa ideia do valor da sexualidade, bem como o reconhecimento do valor científico das análises empíricas que retratam o ‘mundo da prostituição’ (e note‑se que neste terreno tem sido longo o percurso que conduziu o pensamento sociológico desde a caracterização da prostituição como anormalidade ou doença – assim, C. Lombroso e G. Ferro, La femme criminelle et la prostituée, 1896, e, no caso português, os estudos de Tovar de Lemos, A prostituição. Estudo anthropologico da prostituta portuguesa, 1908, e, sobre as conceções da ciência acerca da prostituição no início do século, cf. Maria Rita Lino Garnel, ‘A loucura da prostituição’, em Themis, ano III, n.º 5, 2002, p. 295 e ss. – até ao reconhecimento de que as prostitutas são vítimas de exploração e produto de uma certa exclusão social). Mas tal horizonte de compreensão dos bens relevantes é sempre associado a ideias de autonomia e liberdade, valores da pessoa que estão diretamente em causa nas condutas que favorecem, organizam ou meramente se aproveitam da prostituição.
Não se concebe, assim, uma mera proteção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional particular ou mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspetos de uma convivência social orientada por deveres de proteção para com pessoas em estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspetiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da proteção da liberdade e de uma ‘autonomia para a dignidade’ das pessoas que se prostituem. Não está, consequentemente, em causa qualquer aspeto de liberdade de consciência que seja tutelado pelo artigo 41.º, n.º 1, da Constituição, pois a liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por outro lado, nesta perspetiva, é irrelevante que a prostituição não seja proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando‑o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao suicídio (artigo 135.º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de pornografia infantil [artigo 172.º, n.º 3, alínea e), do Código Penal], sempre com fundamento na perspetiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados atos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao relacionamento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que derivam do princípio da dignidade da pessoa humana.
7. Por outro lado, que uma certa “atividade profissional” que tenha por objeto a específica negação deste tipo de valores seja proibida (neste caso, incriminada) não ofende, de modo algum, a Constituição. A liberdade de exercício de profissão ou de atividade económica tem obviamente, como limites e enquadramento, valores e direitos diretamente associados à proteção da autonomia e da dignidade de outro ser humano (artigos 471.º, n.º 1, e 61.º, n.º 1, da Constituição). Por isso estão particularmente condicionadas, como objeto de trabalho ou de empresa, atividades que possam afetar a vida, a saúde e a integridade moral dos cidadãos [artigo 59.º, n.º 1, alíneas b) e c), ou n.º 2, alínea c), da Constituição]. Não está assim, de todo em causa a violação do artigo 47.º, n.º 1, da Constituição. Nem também tem relevância impeditiva desta conclusão a aceitação de perspetivas como a que aflora no pronunciamento do Tribunal de Justiça das Comunidades (sentença de 20 de novembro de 2001, Processo n.º [C-268/99]), segundo a qual a prostituição pode ser encarada como atividade económica na qualidade de trabalho autónomo (cf., em sentido crítico, aliás, Massimo Luciani, ‘Il lavoro autonomo de la prostituta’, em Quaderni Costituzionali, anno XXII, n.º 2, Giugno 2002, p. 398 e ss.). Com efeito, aí apenas se considerou que a permissão de atividade das pessoas que se prostituem nos Estados membros da Comunidade impede uma discriminação quanto à autorização de permanência num Estado da União Europeia, daí não decorrendo qualquer consequência para a licitude das atividades de favorecimento à prostituição.
8. As considerações antecedentes não implicam, obviamente, que haja um dever constitucional de incriminar as condutas previstas no artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal. Corresponde, porém, a citada incriminação a uma opção de política criminal (note‑se que tal opção, quanto às suas fronteiras, é passível de discussão no plano de opções de política criminal – veja‑se Anabela Rodrigues, Comentário Conimbricense, I, 1999, p. 518 e ss.), justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social, das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência. O facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social.
Tal opção tem o sentido de evitar já o risco de tais situações de exploração, risco considerado elevado e não aceitável, e é justificada pela prevenção dessas situações, concluindo‑se pelos estudos empíricos que tal risco é elevado e existe, efetivamente, no nosso país, na medida em que as situações de prostituição estão associadas a carências sociais elevadas (sobre a realidade sociológica da prostituição cf., por exemplo, Almiro Simões Rodrigues, ‘Prostituição: – Que conceito? – Que realidade?’, em Infância e Juventude, […] n.º 2, 1984, p. 7 e ss., e José Martins Barra da Costa e Lurdes Barata Alves, Prostituição 2001..., ob.cit., supra) não é tal opção inadequada ou desproporcional ao fim de proteger bens jurídicos pessoais relacionados com a autonomia e a liberdade. Ancora‑se esta solução legal num ponto de vista que tem ainda amparo num princípio de ofensividade, à luz de um entendimento compatível com o Estado de Direito democrático, nos termos do qual se verificaria uma opção de política criminal baseada numa certa perceção do dano ou do perigo de certo dano associada à violação de deveres para com outrem – deveres de não aproveitamento e exploração económica de pessoas em estado de carência social [cf., com interesse para a questão da construção do conceito de dano nesta área e independentemente da posição sobre a pornografia aí defendida, matéria que não tem relevância no contexto do presente acórdão, Catherine Mackinnen, Pornography: On Morality in and Politics, em Toward a Feminist Theory of State, 1989, que defende a incriminação da pornografia em face da sua ofensividade contra a imagem da mulher e a construção da respetiva identidade como pessoa. Também sobre tal lógica de construção do dano, cf. Sandra E. Marshall, ‘Feminism, Pornography and the Civil Law’, em Recht und Moral (org. Heike Jung e outros), 1991, p. 383 e ss., defendendo a autora que, na pornografia, o dano consistiria na negação da humanidade da mulher, sendo relevante para o tema do presente Acórdão a perspetiva de que ‘a perda da autonomia não é um assunto meramente subjetivo ... a autonomia é negada mesmo que não se reconheça. Aqui pode ser traçado um paralelo com a escravatura ... A própria condição da escravatura requer que o escravo não se veja a si próprio como alguém que possui ou a quem falta autonomia ... Isto pode ser formulado dizendo que uma tal pessoa não se pode ver a si própria completamente. Como item da propriedade não possui um em si mesma’]. O entendimento subjacente à lei penal radica, em suma, na proteção por meios penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência, proteção diretamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana. Questão diversa que não está suscitada nos presentes autos é a que se relaciona com a possibilidade processual de contraprova do perigo que serve de fundamento à incriminação em casos como o presente ou ainda, naturalmente, com a prova associada à aplicação dos critérios de censura de culpa do agente e da atenuação ou eventual exclusão de culpabilidade, em face das circunstâncias concretas do caso.
9. Em face do exposto, não se pode considerar que estejam violados pela norma em crise quaisquer normas ou princípios constitucionais.
[…]” (sublinhados acrescentados).
2.1.1. Em texto doutrinário posterior à prolação desta decisão (que ocorreu em 10/03/2004), a sua relatora, Conselheira Maria Fernanda Palma, em expressa alusão ao Acórdão n.º 144/2004 – adiantando um debate que, quanto a este, ganharia expressão na jurisprudência do Tribunal (a partir de um voto divergente constante do Acórdão n.º 396/2007, cfr. item 2.2.1., infra) –, referiu o seguinte:
“[…]
A discussão sobre se a defesa de uma certa moralidade pode, em nome da coesão social inspirada na moralidade dominante, justificar a intervenção do Direito Penal ou, pelo contrário, não a pode justificar em função do pluralismo ideológico e da liberdade de opção tem de ser travada, porém, tomando em conta a repercussão de certas condutas contrárias à moralidade dominante na interação social e o próprio conceito de bem jurídico. Na análise desta questão devem considerar-se, para além das perspetivas ideológicas que tradicionalmente contrapõem os pontos de vista mais liberais aos conservadores, todas as perspetivas científicas acerca do condicionamento da autonomia de pessoas sem maturidade física e emocional através [, designadamente,] da imposição de estereótipos. Se radicalizássemos o ponto de vista liberal, teríamos de rejeitar que o Direito Penal pudesse intervir em toda a área da sexualidade entre adultos e, provavelmente, excluiríamos qualquer proteção penal de pessoas que são submetidas a enormes condicionamentos na sua autonomia sexual, apesar de persistir o livre consentimento formal, como sucede, por exemplo, no crime de lenocínio entre adultos.
[…]” (Maria Fernanda Palma, Direito Constitucional Penal, Coimbra, 2006, pp. 77/78).
E, em nota de rodapé a este trecho (nota 69, pp. 77/78), aludindo à obra de John Stuart Mill, On Liberty, “como paradigma do pensamento liberal”, acrescentava a Autora a seguinte observação:
“[…]
Stuart Mill infere da liberdade individual a liberdade de procurar e de dar conselho, mas não já a licitude da conduta de quem, profissionalmente ou com finalidade lucrativa, contribua para condutas autolesivas (abrindo casas de jogo, traficando drogas ou explorando a prostituição…). Neste ponto, Stuart Mill concebe argumentos a favor de posições opostas: se o jogo, o consumo de drogas e a prostituição são lícitos, parece não ter sentido, em certa perspetiva, passarem a ser ilícitos só por causa da dedicação profissional ou da atividade lucrativa (é esta, afinal, a tese derrotada, a propósito do lenocínio, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 144/2004); no entanto, o facto de o Estado permitir condutas autolesivas em nome de um princípio da liberdade individual não significa que deixe de ter opinião sobre elas e que deva estimulá-las – deixando abrir casas de jogo, permitindo o tráfico de drogas ou admitindo o lenocínio. No fundo, é esta diferenciação, reconhecida por Stuart Mill, que explica, por exemplo, a descriminalização do consumo (Lei 30/2000, de 29 de novembro), em contraste com a severa punição do tráfico de droga (Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro) na Ordem Jurídica portuguesa.
[…]” (sublinhado acrescentado).
2.2. Como antes dissemos, diversos acórdãos, no seguimento do Acórdão n.º 144/2004, se pronunciaram sobre idêntica questão, nem sempre por unanimidade. Assim, se o juízo de não inconstitucionalidade foi (tal como no Acórdão n.º 144/2004) unânime nos acórdãos n.os 196/2004, 303/2004, 170/2006, 591/2007, 141/2010, 559/2011, 605/2011, 203/2012, 149/2014, 178/2018, 160/2020 e 589/2020, o mesmo já foi maioritário nos acórdãos n.os 396/2007, 522/2007, 654/2011, 641/2016, 421/2017, 694/2017 e 90/2018 e, como vimos, no Acórdão ora recorrido afirmou-se, por maioria, o juízo inverso: o de desconformidade à Constituição.
Importa, pois, indicar as razões das divergências que foram emergindo nas decisões do Tribunal Constitucional sobre a questão da inconstitucionalidade da norma incriminadora do lenocínio, divergências essas que podemos situar em quatro momentos principais: no Acórdão n.º 396/2007 (com declaração de voto retomada, por remissão, no Acórdão n.º 522/2007); no Acórdão n.º 654/2011; no Acórdão n.º 641/2016 (com declarações de voto retomadas, por remissão, nos Acórdãos n.os 421/2017, 694/2017 e 90/2018); e, por fim, no Acórdão n.º 134/2020, que constitui objeto do presente recurso.
2.2.1. No Acórdão n.º 396/2007, divergiu a Senhora Conselheira Maria João Antunes, opondo à posição da maioria a seguinte declaração de voto (que retomou no Acórdão n.º 522/2007):
“[…]
Votei vencida por entender que o artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro, é inconstitucional, por violação do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
A Lei n.º 65/98 alterou a estrutura típica do crime de lenocínio, previsto no artigo 170.º do Código Penal, eliminando a exigência típica da ‘exploração duma situação de abandono ou necessidade’, ao arrepio de uma evolução legislativa, em matéria de crimes sexuais, que se inscreve num paradigma de intervenção mínima do direito penal, o ramo do direito que afeta, mais diretamente, o direito à liberdade (artigo 27.º, nºs 1 e 2, da CRP). Num paradigma em que a intervenção é apenas a necessária para a tutela de bens jurídicos (não da moral), que não obtêm proteção suficiente e adequada através de outros meios de política social.
Com eliminação daquela exigência típica, o legislador incrimina comportamentos para além dos que ofendem o bem jurídico da liberdade sexual, relativamente aos quais não pode ser afirmada a necessidade de restrição do direito à liberdade, enquanto direito necessariamente implicado na punição (artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.ºs 1 e 2, da CRP).
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 211/95 […] ‘o que justifica a inclusão de certas situações no direito penal é a subordinação a uma lógica de estrita necessidade das restrições de direitos e interesses que decorrem da aplicação de penas públicas (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição). E é também ainda a censurabilidade imanente de certas condutas, isto é, prévia à normativação jurídica, que as torna aptas a um juízo de censura pessoal.
Em suma, é, desde logo, a exigência de dignidade punitiva prévia das condutas, enquanto expressão de uma elevada gravidade ética e merecimento de culpa (artigo 1.º da Constituição, do qual decorre a proteção da essencial dignidade da pessoa humana), que se exprime no princípio constitucional da necessidade das penas (e não só da subsidiariedade do direito penal e da máxima restrição das penas que pressupõem apenas, em sentido estrito, a ineficácia de outro meio jurídico’ (cf., ainda, no sentido de o artigo 18.º, n.º 2, ser critério para aferir da legitimidade constitucional das incriminações, os Acórdãos n.ºs 634/93, 650/93, […], e 958/96, […]).
[…]” (sublinhados acrescentados).
2.2.2. No Acórdão n.º 654/2011, divergiu da afirmação de não inconstitucionalidade o Senhor Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro, através da seguinte declaração de voto:
“[…]
1. Por confronto com a versão original do Código Penal de 1982, a incriminação do lenocínio, no que releva para a questão de constitucionalidade em juízo, resultou ampliada pela alteração introduzida com a Lei n.º 65/98, de 2 de setembro. Na referida versão de 1982, constava (artigo 215.º, n.º 1, alínea b)), como elemento do tipo, a exploração, pelo agente, de uma ‘situação de abandono ou de extrema necessidade económica’ das pessoas dedicadas ao exercício da prostituição. A reforma de 1995 (Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março) já alargou um pouco essa previsão, na medida em que se contentou com a exploração de ‘situações de abandono ou de necessidade económica’ (artigo 170.º, n.º 1). O legislador de 1998 abandonou, pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro, qualquer exigência quanto ao aproveitamento de uma situação de vulnerabilidade daquelas pessoas, suprimindo, pura e simplesmente, o segmento que a exprimia.
2. Como é orientação constante deste Tribunal – cfr., entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 426/91, 634/93, 650/93 e 311/95 – a incriminação de certas condutas, na medida em que implica uma restrição dos direitos fundamentais à liberdade e/ou de propriedade, tem que ser justificada perante o princípio da proporcionalidade expresso naquela norma. Por força da sua repercussão negativa no âmbito de proteção destes direitos, a imposição de uma pena fica imediatamente sujeita à ‘restrição das restrições’ enunciada no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, devendo «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
É, pois, como refração direta do princípio da proporcionalidade que o princípio da necessidade das penas, consensualmente apontado pela moderna penalística, corresponde a uma ineliminável exigência constitucional.
Este princípio postula, não apenas uma intervenção mínima ou de ultima ratio do direito penal, só atuante, pressuposta a sua adequação, na falta ou ineficácia de instrumentos de proteção de outro tipo – cfr., por último, o Acórdão n.º 75/2010 −, mas, antes do mais, a suficiente dignidade do bem jurídico tutelado, capaz de justificar o merecimento de punição, em caso de afetação.
De forma que, neste contexto valorativo, o primeiro passo a dar, para aferir da legitimidade constitucional da incriminação do lenocínio, é o da identificação precisa de bem jurídico-penal que ela visa tutelar.
3. O tratamento jurídico-penal dos crimes na esfera sexual evoluiu fortemente nas últimas décadas, como reflexo de alterações significativas nos padrões de conduta e nas conceções ético-sociais, neste domínio.
Pode dizer-se que o elemento polarizador dessa evolução foi o franco acolhimento, também neste campo, da ideia valorativa da autonomia individual e do livre desenvolvimento da personalidade, em medida sem paralelo no passado. Essa mudança – porventura uma verdadeira ‘mudança de paradigma’ – traduziu-se, por um lado, num recuo na criminalização de condutas livremente assumidas por pessoas com maturidade e autonomia decisórias, e, por outro, num alargamento de incriminações, em resultado de uma consciência mais afinada dos deveres de respeito pela integridade moral e pela autodeterminação dos outros.
A nível da nossa legislação, e para além de reestruturações e reconfigurações de alguns tipos, sobressai, como manifestação impressiva da orientação atual, um novo enquadramento sistemático. Na versão inicial do Código Penal de 1982, estes crimes figuravam no Título III (‘Dos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade’), Capítulo I (‘Dos crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida em sociedade’). Em 1995, os crimes sexuais foram transferidos para o título respeitante aos crimes contra as pessoas, sendo aí objeto de um capítulo autónomo. É neste capítulo que se insere a norma incriminadora do lenocínio, na secção respeitante aos ‘crimes contra a liberdade sexual’.
Em face desta localização, dir-se-ia que é este o bem jurídico protegido pelo artigo 170.º, n.º 1, do CP. Mas esta conclusão revela-se algo apressada, pois não tem qualquer respaldo na estrutura tipológica da norma incriminadora. De facto, com a eliminação, na revisão de 1998, do segmento que estabelecia, como elemento do tipo, a exploração da vulnerabilidade situacional, em razão de abandono ou necessidade económica, da pessoa que se prostitui, desapareceu qualquer conexão com a proteção da vontade livre dessa pessoa. Essa conexão consta apenas do n.º 2 (de modo diversificado, consoante as previsões), como elemento de uma forma qualificada de crime de lenocínio, sujeita a uma moldura penal agravada.
E, nisso, a norma do n.º 1 do artigo 170.º contrasta fortemente com todas as outras disposições de tutela da liberdade sexual. Em todas elas está presente, como elemento definidor do tipo legal de crime, o exercício de violência, coação, ou, pelo menos constrangimento sobre a vontade da vítima, ou então, no caso da fraude sexual, de indução em erro, também ela obstativa de genuína expressão volitiva, por parte de quem é enganado.
Atendendo à configuração tipológica, ganha fundamento a ideia de que criminalizada é a atividade profissional ou com fins lucrativos de proxenetismo, em si mesma, em quaisquer circunstâncias, sem se exigir um encaminhamento para a prostituição imputável ao aproveitamento de condições situacionais tipicamente geradoras de défices de autonomia da vontade.
A valoração, pela doutrina, deste novo dado legislativo foi, de uma forma geral, fortemente crítica – cfr., por todos, Figueiredo Dias, ‘O ‘direito penal do bem jurídico’ como princípio constitucional…’, XXV anos de jurisprudência constitucional portuguesa, Coimbra, 2009, 31 s,, 39, para quem, «tendo o legislador ordinário eliminado a exigência de que o favorecimento da prostituição se ligasse à ‘exploração de situações de abandono ou de necessidade económica’, eliminou a referência do comportamento ao bem jurídico da liberdade e da autodeterminação sexual e tornou-se infiel ao princípio do direito penal do bem jurídico», «surgindo a incriminação − pode ler-se em Direito penal. Parte geral, I, 2.ª ed., Coimbra, 2007. p. 124 − referida à tutela de puras situações tidas pelo legislador como imorais»; Anabela Rodrigues, ‘Anotação ao art. 170.º’, Comentário conimbricense do Código Penal. Parte especial, I, Coimbra, 1999, p. 519, para quem a incriminação do lenocínio visa «proteger bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista por via do direito penal – o que se tem hoje por ilegítimo».
4. Na jurisprudência constitucional, tem vingado uma posição eclética, que procura conjugar, como razão da incriminação, o interesse geral da sociedade e a tutela de um bem pessoal.
[…]
Para justificar que faz parte da teleologia da norma a tutela da ‘autonomia para a dignidade’, [o Acórdão n.º 144/2004] invoca a ‘normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social das pessoas que se dedicam à prostituição’. A carência de tutela penal estaria, de certo modo, in re ipsa, na ‘necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência’, necessidade que, segundo padrões de tipicidade e de normalidade social, é explorada por aqueles que fomentam, favorecem ou facilitam o exercício da prostituição. Daí o concluir-se que «o facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir da qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social».
Mas, sem contestar esses índices de normalidade, a verdade é que, não sendo a prostituição um fenómeno de expressão uniforme, com a eliminação daquela exigência o legislador não evita consequências de sobreinclusão, do ponto de vista da necessidade de tutela da liberdade sexual da pessoa que se prostitui. Não excluindo do âmbito da incriminação os casos em que não se comprove o aproveitamento de uma especial situação de fragilidade, quanto às condições de uma real autonomia decisória, de alguém que possa ser considerado ‘vítima’ dessa conduta, ‘o legislador incrimina comportamentos para além dos que ofendem o bem jurídico da liberdade sexual’, como se sustenta na declaração de voto da Conselheira Maria João Antunes, anexa ao Acórdão n.º 396/2007.
Compreende-se cabalmente que, estando em causa a disponibilização, mediante uma contrapartida monetária, de uma dimensão íntima da personalidade, para satisfação sexual de outro e com obtenção de ganhos (também) por um terceiro, o legislador penal seja aqui particularmente exigente quanto às garantias de uma decisão livre, não requerendo, no âmbito do n.º 1 do artigo 170.º, as formas qualificadas de perturbação da autonomia presentes nos outros tipos de crimes sexuais. Ainda se compreenderá que o aproveitamento objetivo de situações de desamparo seja o bastante, sem exigência de formas individualizadas de ‘pressão’ sobre a vontade da vítima (contra, Anabela Rodrigues, ob. cit., p. 519-520). Mas já fica por explicar, à luz da necessidade de tutela da liberdade sexual, porque é que é dispensável a comprovação de qualquer ofensa, ainda que apenas situativamente indiciada, desse bem jurídico.
Essa constatação torna ineliminável, de acordo com o princípio da necessidade da intervenção penal, a busca de um outro bem jurídico-penal, para justificar a incriminação.
O Acórdão n.º 144/2004 […] faz apelo direto à dignidade da pessoa humana, para validar jurídico-constitucionalmente (e não como ‘mera proteção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional’) a incriminação do lenocínio.
A dignidade da pessoa humana é a mais basilar ideia regulativa de toda a ordem jurídica. No plano constitucional, é-lhe reconhecida a natureza de um dos dois fundamentos do Estado português (artigo 1.º da CRP). Nessa qualidade, é fonte primária da disciplina da atuação dos poderes públicos para com as pessoas, nela radicando, não só como limite, mas também como tarefa, valorações constitutivas de princípios constitucionais, de direitos fundamentais de defesa, bem como de pretensões a prestações, no quadro dos direitos económicos, sociais e culturais.
Em todas estas irradiações normativas, consensualmente admitidas, a ideia da dignidade da pessoa humana tem operado normalmente como produtora de sentido fundante e de conteúdos para direitos expressamente consagrados.
Mas não se exclui que, em veste integrativa, dela possa resultar o reconhecimento de direitos não especificamente previstos. Assim aconteceu com o direito a um mínimo de existência, na sua vertente positiva de direito a prestações públicas garantidoras da sobrevivência, em situações de necessidade, o qual, pelo Acórdão n.º 509/2002, foi imediatamente fundado na dignidade da pessoa humana.
Em todas estas projeções, a dignidade da pessoa humana tem um alcance prescritivo que leva ao reconhecimento de posições jurídico-subjetivas constitucionalmente tuteladas. E ainda que não constituindo um sistema fechado, do extenso e diversificado catálogo de direitos fundamentais é possível inferir uma unidade de sentido, como consagração de um conjunto articulado de valores constitucionais atinentes à pessoa humana. Daí que a excecional fundamentação direta e exclusiva de certa solução tuteladora de uma pretensão subjetiva em exigências postuladas pela dignidade da pessoa humana, sem passar pela mediação concretizadora de uma regra de proteção de um concreto bem jurídico, se possa ainda mover estritamente dentro do universo axiológico-normativo da Constituição.
É em direção de certo modo oposta a esta que a ideia foi mobilizada pelo Acórdão n.º 144/2004, não como fundamento de um direito contra o Estado, mas como fundamento do exercício do poder punitivo do Estado, em compressão de direitos fundamentais. O que logo suscita a questão de saber se da dignidade da pessoa humana são inferíveis, para os particulares, imposições de conduta penalmente sancionáveis, mesmo quando o incumprimento não ofende qualquer bem específico. O que, noutras palavras, se interroga é se tem acolhimento constitucional um padrão objetivo de dignidade não conexionado com a liberdade e a integridade da personalidade de outrem, em termos tais que leve a conferir-lhe valor legitimante da incriminação de uma conduta lesiva, no relacionamento interpessoal.
Esta última nota é indispensável para uma definição rigorosa daquilo que está em questão. Na verdade, não se trata apenas de negar garantia jurídica à atividade de lenocínio, o que a coloca fora do âmbito de proteção constitucional da liberdade de profissão e da liberdade de iniciativa económica privada. Para além da ineficácia vinculativa de contratos, neste âmbito, por essa via facilmente se justificam, prima facie (sem necessidade de ponderações, em concreto), medidas restritivas da liberdade de ação, como, por exemplo, certas medidas de polícia ou a proibição de publicidade.
Para justificar soluções deste tipo, basta considerar (corretamente) que a atividade de proxenetismo não é abrangida pelo âmbito de proteção de nenhuma das normas constitucionais garantidoras da liberdade de ação. Mas, mais do que isso, do que aqui se trata é de saber se ela preenche o conceito material de crime, com as restrições daí decorrentes para direitos fundamentais do agente. Não se questiona se essa atividade merece ou não proteção constitucional; o que se questiona é se ela é causa legítima de afetação, através da ação punitiva do Estado, de bens protegidos.
Por isso mesmo, não se revela conclusiva a ideia, em si mesma de justeza inatacável, de que ‘a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados atos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento’ (Acórdão n.º 144/2004). É bem verdade que a tolerância perante o próprio que desenvolve uma conduta vista pelo Estado e pela sociedade como um mal, em função do respeito pela liberdade individual, não tem necessariamente que se estender ao terceiro que promove essa conduta, retirando daí ganhos pecuniários. ‘Tal como, em geral, as ações que afetam outros’, essa intervenção de um terceiro deve estar sujeita a ‘controlo social’ (Stuart Mill, On Liberty, ed. de 1978, Indianapolis/Cambridge, p. 97). Mas este entendimento deixa intocada a questão posta, no ponto decisivo de saber se é constitucionalmente legítimo que esse controlo se exerça (também) por meios penais.
No caso, já argumentativamente apontado (Maria Fernanda Palma, Direito constitucional penal, Coimbra, 2006, p. 78, n. 69), da ‘severa punição do tráfico de droga’, por contraste com a descriminalização do consumo, a legitimidade daquela punição é incontroversa, justamente porque é certo que o tráfico possibilita e potencia a afetação de bens pessoais dos consumidores, com proteção constitucional.
[…]
Ora, não parece sustentável que a ideia geral e abstrata de dignidade da pessoa, desvinculada de qualquer dimensão garantística da autodeterminação de quem se prostitui, conserve ainda um conteúdo constitucionalmente determinado, capaz de validar a restrição a direitos fundamentais que a criminalização representa.
Como vimos, a densificação e concretização jurídico-positiva dessa ideia, na ordem constitucional, são levadas a cabo pela consagração de direitos de defesa e de direitos sociais, cobrindo a dupla dimensão negativa e positiva da dignidade da pessoa. Por esse todo normativo é possível dar substância à posição constitucional de igual reconhecimento e respeito de que cada pessoa, individualmente considerada, como ser único e diferenciado, goza.
Mas falham de todo indicações normativas precisas, no plano constitucional, para fazer decorrer da dignidade da pessoa humana obrigações negativas de conduta, criminalmente sancionáveis, não impostas pela tutela de bens pessoais de outra pessoa.
[…]
Deste modo, a paradoxal objetivação, no plano das relações intersubjetivas, do atributo pessoal da dignidade, impositiva de deveres não correlacionados com o necessário respeito pela concreta autoconformação da personalidade do outro, não é feita a partir de dados da própria Constituição, mas de uma ideia prévia e exógena a ela, com base na moral comum.
Não se afigura, assim, que a intervenção do direito penal, neste domínio, vise ‘salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos’, como exige o n.º 2 do artigo 18.º da CRP. Ela decorre, antes, da tutela dos ‘bons costumes’, conceito que, embora radique noutros complexos normativos e não se mostre concretizável por inferências retiradas da Constituição portuguesa – que, aliás, ao invés de outras leis fundamentais, não lhe faz qualquer referência −, é elevado a padrão constitucional, como fator de legitimação de uma incriminação e, logo, de restrições a direitos fundamentais do agente do crime.
[…]
Está fora de qualquer dúvida de que a proteção da liberdade sexual das pessoas está entre os fundamentos, não só ‘ético-sociais’, como também jurídico-constitucionais, da ‘vida em sociedade’ (para utilizarmos a epígrafe da versão inicial do Código Penal de 1982). O que se contesta é que uma certa conceção de ordem moral (ainda que generalizadamente aceite no meio social) constitua, em si mesma, uma dimensão da garantia constitucional da dignidade da pessoa humana, justificando a sua aplicação autónoma no âmbito criminal, sem conexão com a tutela de um bem constitucionalmente definido e protegido.
Há que concluir que a caracterização legal do crime de lenocínio, ao dispensar, após a revisão de 1998, como elemento estrutural do tipo, o aproveitamento pelo agente de uma situação de abandono social ou de carência económica da vítima, ultrapassa, com ofensa ao princípio da proporcionalidade, o que seria justificado pela função tutelar de um específico bem jurídico-penal.
[…]” (sublinhados acrescentados).
2.2.3. No Acórdão n.º 641/2016, divergiram o Senhor Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro e o Senhor Conselheiro Presidente Manuel da Costa Andrade. O primeiro fê-lo apondo à decisão a seguinte declaração de voto (que retomou, por remissão, no Acórdão n.º 694/2017):
“[…]
Votei vencido por entender que a norma do n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal, na redação dada pela Lei nºs 65/98, de 2 de setembro, é inconstitucional, por violação do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
A Reforma de 1998 – Lei n.º 65/98 –, ao suprimir do elemento do tipo legal de lenocínio a «exploração de situações de abandono ou de necessidade económica» tornou indefinido o bem jurídico por ele tutelado: a liberdade sexual da pessoa que se prostitui?; a moral sexual?; uma determinada conceção de vida?; a paz social?
A questão da identificação do bem jurídico que a norma visa proteger suscitou na doutrina e na jurisprudência divergências interpretativas que não deixarão de persistir enquanto não houver uma reformulação do preceito. É que a supressão daquela exigência típica também eliminou a ligação do comportamento ao bem jurídico da liberdade e da autodeterminação sexual, com a consequente incriminação de comportamentos que vão além dos que ofendem esse bem jurídico e relativamente aos quais não se pode afirmar a necessidade de restrição do direito à liberdade (cfr. votos de vencido nos Acórdãos n.º 396/2007 e 654/2011, cuja fundamentação acompanho).
De modo que só fazendo uma interpretação restritiva da norma, no sentido de se aplicar apenas aos casos em que a vítima se encontra numa situação de necessidade económica e social, é possível afirmar que o tipo legal vida proteger o bem jurídico da liberdade sexual. Simplesmente, não pode considerar-se que a letra da lei é mais ampla que o seu espírito quando foi o próprio legislador que quis eliminar do texto da lei aquela exigência. Se o fez para proteção de outros bens jurídicos, não o deveria deixar inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.
E não é no valor da dignidade da pessoa humana que se pode encontrar o bem jurídico-constitucional digno de proteção penal. Como refere Figueiredo Dias, não é «essa a natureza do princípio, como não é essa a função de que surge investido em matéria penal; antes sim a de se erguer como veto inultrapassável a qualquer atividade do Estado que não respeite aquela dignidade essencial e, deste modo, antes que como fundamento, como limite de toda a intervenção estadual» (O ‘direito penal do bem jurídico como princípio jurídico-constitucional implícito’, in, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 145, pág. 260).
Portanto, admitindo que a conduta de quem, profissionalmente, ou com intenção lucrativa, fomenta, favorece ou facilita o exercício de prostituição por pessoa que se encontra numa situação de necessidade económica e social necessita de tutela penal, com entendo, então só a introdução desse último elemento no tipo legal colocará o preceito em conformidade com a Constituição.
[…]” (sublinhados acrescentados).
Por sua vez, o Senhor Conselheiro Presidente Manuel da Costa Andrade divergiu da maioria formada no Acórdão n.º 641/2016 mediante a declaração de voto que ora se transcreve (que retomou, por remissão, nos Acórdãos n.os 421/2017, 694/2017 e 90/2018):
“[…]
Votei vencido por estar convencido de que a norma de incriminação e punição do lenocínio constante do n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal é contrária à Constituição, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República. E é assim porquanto a incriminação da conduta típica não está preordenada à salvaguarda – menos ainda é para tanto necessária – de quaisquer ‘direitos ou interesses constitucionalmente protegidos’. Ou dito em linguagem da doutrina penal, não é necessária à proteção de qualquer bem jurídico. Bem jurídico que não se descortina na pertinente área de tutela típica. Noutra perspetiva, estamos perante uma manifestação concreta dos chamados ‘crimes sem vítima’, no sentido criminológico do termo, na linha da E. Shur (victimless crimes ou crimes without victims. Cf. Edwin Schur, Crimes Without Victims: Deviant Behavior and Public Policy, Prentice Hall inc.1965).
É seguramente assim a partir da reforma de 1998. Que inter alia eliminou o inciso –‘exploração de situação de abandono ou de necessidade económica’ – constante da versão originária (de 1982/1995). E deste modo abriu deliberadamente mão do momento da factualidade típica que associava a infração à ofensa à liberdade sexual e deixou atrás de si uma incriminação exclusivamente votada à punição de ‘quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar’ uma prática em si mesma irrelevante e indiferente para o direito penal – a prostituição. Assim, o afastamento da liberdade sexual da área de proteção da norma deixa apenas em campo a prevenção ou repressão do pecado, um exercício de moralismo atávico, com que o direito penal do Estado de Direito da sociedade secularizada e democrática dos nossos dias nada pode ter a ver.
Uma consideração das coisas contra a qual não pode pertinentemente invocar-se a ideia de obviar a perigos contra a dignidade ou a autonomia das pessoas – homens ou mulheres – envolvidas na prostituição. Na certeza de que a incriminação é que pode, ela própria, configurar um atentado perverso à dignidade ou autonomia das pessoas. Que sendo adultas, esclarecidas e livres – no fundo a situação típica pressuposta pela incriminação – devem poder legitimamente escolher conduzir a sua vida tanto à sombra da ‘virtude’ como do ‘pecado’. Uma escolha insindicável, que devem poder levar à prática, inteiramente resguardados contra a intromissão do direito penal. De outro modo e acolhendo-nos à síntese de Figueiredo Dias, ‘teríamos uma situação absolutamente anormal e incompreensível: a de o direito penal, pretendendo tutelar o bem jurídico da eminente dignidade (sexual) da pessoa, sacrificá-lo ou violá-lo justamente em nome daquela dignidade. Pois é claro que pertence à liberdade da vontade da pessoa dedicar-se ou não ao exercício da prostituição. O que colocaria o Estado (detentor do jus puniendi) na mais contraditória e perversa das situações: a de sacrificar a integridade pessoal invocando como legitimação o propósito de a tutelar!’ (Figueiredo Dias, ‘O ‘direito penal do bem jurídico’ como princípio jurídico-constitucional implícito’, RLJ, ano 145.º, maio-junho de 2016, p. 261). Nesta linha não podemos acompanhar o entendimento que a este propósito vem sendo sistematicamente sufragado pelo TC. Que tem procurado apoiar a legitimação material da incriminação na sua relação ‘com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem’, como se sustenta, entre outros, no Acórdão n.º 144/2004 (no mesmo sentido, Acórdãos n.ºs 170/2006, 396/2007, 141/2010, 559/2011, 203/2012, 149/2014). Explicitando que a ‘intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspetiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da proteção da liberdade e de uma ‘autonomia para a dignidade’ das pessoas que se prostituem’. Uma consideração das coisas que é posta em crise quando confrontada com o recorte típico da incriminação. Que pune os factos mesmo nas constelações fácticas em que as pessoas que se prostituem, sendo maiores, o fazem com toda a liberdade e autonomia. O que obriga o TC a acolher-se a uma insustentável razão de paternalismo. Argumentando que “ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão de livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para fins dele próprio, mas para fins de terceiro” (id. ibid). Para além desta (suposta) tutela da autonomia e da liberdade – contra o (efetivo) sacrifício da autonomia e da liberdade –, sobra ainda a ideia de prevenção do risco de exploração. Assim e ainda nos termos do mesmo acórdão: ‘o facto de a exploração legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social’ (ibid). Em vez de uma incriminação preordenada à tutela da autonomia e da liberdade sexual, teríamos então uma infração, concebida como crime de perigo abstrato e apostada em obviar ao perigo de um ‘modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social’. Bem podendo, por isso, acontecer que a prevenção do perigo abstrato de uma forma desviante de comportamento ou de condução da vida se faça à custa do sacrifício da liberdade e da autonomia sexual. Afinal de contas, à custa do sacrifício do único bem jurídico em nome do qual o legislador pode incriminar comportamentos humanos relacionados com a vida sexual das pessoas.
É por isso que não posso acompanhar o entendimento de que a norma constante do artigo 169.º do Código Penal na versão vigente satisfaz as exigências de que a Constituição da República faz depender a legitimação material da criminalização.
[…]” (sublinhados acrescentados).
2.2.4. As apontadas divergências atingiram, por fim, um último desenvolvimento na decisão ora recorrida – Acórdão n.º 134/2020 –, que se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade da norma incriminadora do lenocínio, ali se afirmando o seguinte:
“[…]
6. Num Estado de direito democrático, o legislador ordinário dispõe inerentemente de uma grande liberdade para a definição das normas jurídicas que disciplinam a vida social. Em razão da legitimidade que para esse efeito lhe é atribuída pela comunidade, é inequivocamente a si que compete definir, entre tantas outras matérias, as condutas cuja prática atrai uma sanção penal e o exato recorte dessas condutas. No entanto, esta intervenção criminalizante está sujeita a certas limitações constitucionais, encontrando no princípio do direito penal do bem jurídico (à semelhança do que, embora com variações, se verifica em vários outros ordenamentos jurídicos) um primeiro e fundamental constrangimento. Manifestação específica do imperativo de proporcionalidade a que transversalmente se subordina a restrição de direitos fundamentais, este princípio perfila-se como uma barreira ao excesso – seja ele arbitrário ou apenas inadvertido – na restrição do direito à liberdade pela via penal, proibindo toda a criminalização que não possa ser justificada em nome de outros direitos ou interesses constitucionalmente consagrados.
Ainda que, considerada a representatividade de que a atuação do legislador ordinário se reveste – em especial quando ela se exprima, como aqui necessariamente acontece, através de lei formal (lex stricta) –, a criminalização de uma conduta possa sempre supor-se exprimir o que em determinado momento constitua um sentimento de censura ético-jurídica dominante na sua comunidade, é indispensável que essa conduta se mostre ofensiva – e suficientemente ofensiva – para um bem jurídico com dignidade constitucional. De facto, se à criminalização de uma conduta é inerente a restrição de um direito consagrado na Constituição (o direito à liberdade, consagrado no seu artigo 27.º) e se, consequentemente, a lei só pode restringir esse direito na medida necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses consagrados na Constituição (nos termos do seu artigo 18.º, n.º 2), a conclusão que se impõe é a de que a lei só pode criminalizar uma conduta na medida necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses consagrados na Constituição.
Por outro lado, constituindo a restrição do direito à liberdade a consequência jurídica mais drástica de entre as que o ordenamento jurídico português admite, justifica-se que os limites da atuação legislativa que se traduza em sancionar uma dada conduta com essa consequência sejam entendidos como manifestações especialmente intensas do princípio da proporcionalidade. Não porque envolvam qualquer variação estrutural desse princípio: trata-se, ainda aqui, essencialmente de procurar as linhas a partir das quais o parâmetro constitucional se opõe e impõe à vontade da maioria democraticamente organizada. Antes porque permitem que logo à partida se assuma que os juízos de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito em que o mesmo se desdobra só serão positivos quando a favor dessa restrição militem nítidas exigências de proteção de outros direitos fundamentais, podendo neste sentido considerar-se que a margem de liberdade do legislador ordinário na criminalização de condutas é menos ampla do que o é na generalidade da sua atuação.
Daí que se justifique uma designação própria – ‘princípio do direito penal do bem jurídico’ (vd. sobretudo Jorge de Figueiredo Dias, ‘O «direito penal do bem jurídico» como princípio jurídico-constitucional – Da doutrina penal, da jurisprudência constitucional portuguesa e das suas relações’, XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, 2009, p. 31 ss.) –, designação essa cujo alcance, portanto, não será apenas o de operar uma especificação temática do princípio da proporcionalidade para as matérias penais (e, mais particularmente, para a criminalização de condutas), mas o de denotar desde logo que essa especificação se funda no reconhecimento de uma suficiente autonomia taxonómica ao princípio do direito penal do bem jurídico, que o individualiza dentro do reino da proporcionalidade a que pertence. É essa autonomia que explica a utilização de conceitos também próprios no contexto do juízo de proporcionalidade que este princípio requer: fala-se aí de ‘dignidade de tutela penal’ para significar a exigência de que exista um bem jurídico-constitucional que a norma incriminatória seja adequada a tutelar; de ‘carência de tutela penal’, ou de ‘subsidiariedade da intervenção penal’, para exprimir a exigência de que essa norma seja necessária para realizar essa tutela. Continua em qualquer caso geralmente a falar-se aí de ‘proporcionalidade em sentido estrito’ para significar o exercício de ponderação dos direitos ou conjuntos de direitos que, vencidos os dois testes anteriores, se vejam em conflito. Mas também aqui, ou talvez até sobretudo aqui, avultam as especificidades desta matéria, porque, conforme referido, um daqueles conjuntos integra necessariamente o direito à liberdade.
Por fim, importa notar que, se a prática de certas condutas, de que é exemplo paradigmático a conduta de homicídio, não corresponde ao exercício de qualquer direito fundamental – caso em que a restrição do direito à liberdade, além de inerente à criminalização, tende a constituir o seu único efeito –, muitos (ou mesmo uma grande parte dos) tipos legais de crime previstos no nosso ordenamento jurídico-penal coenvolvem, pelo menos prima facie, uma restrição de outros direitos fundamentais. É disso exemplo o crime de difamação previsto no artigo 180.º do Código Penal, de que decorrem limites ao exercício das liberdades de expressão e de imprensa. Nestes casos, um juízo positivo de proporcionalidade tenderá a ser mais difícil do que em geral, na medida em que aí estejam de facto em causa, ao lado do direito à liberdade e no mesmo prato da balança que ele, outros direitos fundamentais ainda. No outro prato de balança terá de estar, não apenas um direito ou interesse constitucionalmente protegido, mas, nas palavras do Acórdão n.º 99/2002, «um direito ou bem constitucional de primeira importância».
O princípio do direito penal do bem jurídico constitui – pode dizer-se com segurança – um elemento sólido da jurisprudência deste Tribunal Constitucional (cf., por exemplo, e embora nem todos prolatados no sentido da inconstitucionalidade, os Acórdãos n.ºs 25/84, 85/88, 426/91, 527/95, 288/98, 604/99, 312/2000, 516/2000, 99/2002, 337/2002, 617/2006, 75/2010, 377/2015). Não se divisam, nem aí nem na doutrina nacional, sintomas consideráveis de uma tendência para a preterição do princípio do bem jurídico como referência matricial do conceito material de crime em favor de outros como o da proteção do ordenamento jurídico ou o da proteção da vigência da norma (cf. novamente Jorge de Figueiredo Dias, op. cit., p. 40), nem razões bastantes para que as críticas que lhe podem plausivelmente ser apontadas sejam vistas como insuperáveis (cf. e.g. Maria João Antunes, Constituição, Lei Penal e Controlo de Constitucionalidade, Almedina, 2019, p. 43 ss.; José de Faria Costa, ‘Sobre o objeto de proteção do direito penal: o lugar do bem jurídico na doutrina de um direito não iliberal’, Revista de Legislação e de Jurisprudência, 142, n.º 3978 (2013), p. 158 ss.). Contudo, naturalmente, a existência de consenso em torno deste princípio não impede a existência de dissenso quanto à questão de saber se uma dada conduta se mostra ou não ofensiva – e suficientemente ofensiva – para algum bem jurídico com dignidade constitucional. É o que se verifica em relação à conduta criminalizada no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, cuja fiscalização é solicitada nos presentes autos.
7. O Tribunal Constitucional tem respondido a essa questão afirmativamente – ou seja, no sentido de que a conduta atualmente prevista no n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal se mostra suficientemente ofensiva para direitos e interesses constitucionalmente consagrados para que se não exponha a inconstitucionalidade no confronto com o parâmetro do artigo 18.º, n.º 2, da Lei Fundamental. Foi sempre assim desde a primeira vez em que sobre aquela norma foi chamado a pronunciar-se, no Acórdão n.º 144/2004 […].
[…]
8. O entendimento foi reiterado pelo Tribunal Constitucional v.g. nos Acórdãos n.ºs 196/2004, 303/2004, 170/2006, 396/2007, 522/2007, 591/2007, 141/2010, 559/2011, 605/2011, 654/2011, 203/2012, 149/2014, 641/2016, 421/2017, 694/2017, 90/2018 e 178/2018. Se nestas decisões se reiterou o sentido decisório acolhido no Acórdão n.º 144/2004, é aí também discernível um certo desígnio de reconciliação desse veredito de não inconstitucionalidade com o princípio do direito penal do bem jurídico, que na fundamentação daquele Acórdão desempenhara um papel discreto. Não que aí tenha sido exatamente renegado: a consideração dispensada ao princípio é visível na parte da fundamentação onde se procura afastar a ideia de que este tipo legal de crime mais não faz do que tutelar «sentimentalismos» ou «uma ordem moral convencional particular» e se procura antes atribuir-lhe a tutela de valores mais concretos, como a «liberdade» e «uma ‘autonomia para a dignidade’ das pessoas que se prostituem». No entanto, ao concluir-se que o «significado que é assumido pelo legislador penal» com este tipo legal de crime é o da «proteção por meios penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência», proteção essa que seria «diretamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana», acaba por admitir-se ao princípio do direito penal do bem jurídico uma maleabilidade tal que dificilmente poderia deixar de conduzir a um considerável esvaziamento – ou, pelo menos, a uma problemática indefinição – do seu conteúdo prescritivo: qualquer norma incriminatória poderia justificar-se, praticamente sem ulterior especificação normativa, em nome da proteção da dignidade da pessoa humana ínsita no artigo 1.º da Constituição.
A ideia de que pode ver-se no princípio da dignidade da pessoa humana um bem jurídico capaz de assegurar a proporcionalidade da restrição da liberdade inerente à criminalização de uma conduta, ou de que esse princípio pode de algum outro modo autónomo suster a criminalização de uma conduta, é, porém, uma ideia que suscita sérias reservas. Desde logo, de um ponto de vista sistemático, porque ele surge consagrado na nossa Constituição enquanto princípio fundamental, e não – como noutras Constituições – enquanto direito fundamental. Depois, nos planos literal e teleológico, porque o elevado grau de abstração que o caracteriza tende a impedi-lo de desempenhar adequadamente funções prescritivas concretas. Na síntese constante do Relatório da Delegação Portuguesa à 9.ª Conferência Trilateral (Itália, Espanha e Portugal), ‘O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Jurisprudência Constitucional’, 2007, in www.tribunalconstitucional.pt, p. 2 –, «com o alcance que lhe é dado pela Constituição – de critério último de legitimidade do poder político estadual – o princípio da dignidade da pessoa humana acaba por ter um conteúdo de tal modo amplo (idêntico afinal de contas a um dos elementos constantes da tradição do Estado de direito) que não chega a ter densidade suficiente para ser fundamento direto de posições jurídicas subjetivas». Conclui-se aí: «O que nele se contém é por isso, e ao mesmo tempo, algo mais e algo menos do que um direito. Quando muito o princípio confere ao sistema constitucional de direitos fundamentais unidade e coerência de sentido, ajudando as tarefas práticas da sua interpretação e integração. O que se lhe não pode pedir é que ele seja tomado, em si mesmo, como fonte de um outro e autónomo direito (fundamental).» Esta perspetiva – como ali igualmente se expõe – reúne consenso doutrinário e tem recebido acolhimento reiterado na nossa jurisprudência constitucional desde os seus primórdios (vd. logo o Acórdão n.º 6/84), ainda que com alguns desvios, em todo o caso bem circunscritos.
Se o princípio da dignidade da pessoa humana não pode geralmente fundamentar direitos subjetivos de modo direto e autónomo, mais dificilmente ainda poderá fundamentar, desse modo direto e autónomo, restrições a esses mesmos direitos. O seu elevado grau de abstração prejudica a sua utilização tanto para um efeito como para o outro, mas a segunda apresenta-se ainda como uma utilização contra libertate, o que por si só suscita fundadas dúvidas teleológicas e axiológicas. Pode então dizer-se que a abstração do princípio da dignidade da pessoa humana o impede, em via de regra, de ser visto como fonte de prescrições precisas – de «soluções jurídicas concretas», nas palavras do Acórdão n.º 105/90 –, sejam elas favoráveis ou desfavoráveis de um prisma individual, mas especialmente as segundas. Decerto que a criminalização de uma conduta almeja ela própria a produzir efeitos benignos, mas a beneficiária destes efeitos, mesmo quando se trate da proteção de direitos e interesses de natureza eminentemente pessoal, é a comunidade como um todo. Não tem o princípio da dignidade da pessoa humana como desígnio fundamental, justamente, impedir a instrumentalização do indivíduo para a consecução de finalidades comunitárias, ainda que presumivelmente louváveis? Isto mesmo faz com que o princípio da dignidade da pessoa humana «não deva constituir fundamento de validade constitucionalidade de uma incriminação como a constante do atual art. 169.º, mas possa pelo contrário, ao menos em certas circunstâncias, ser legitimamente invocado como fundamento da sua inconstitucionalidade» (Jorge de Figueiredo Dias, op. cit., p. 41).
Mesmo deixando de parte esse e outros relevantes problemas (por exemplo, de legalidade criminal) suscitados por uma criminalização autonomamente filiada num princípio tão abstrato como o da dignidade da pessoa humana – paradigmático, na verdade, da categoria dos ‘conceitos essencialmente contestados’ –, e mantendo-nos antes num estrito horizonte de proporcionalidade, como poderá, pois, fazer-se decorrer diretamente de um tal princípio, que não de alguma sua concretização tangível, uma concreta e garantida restrição de direitos fundamentais? Como afirma Manuel da Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, p. 13, se «a dignidade humana é a verdadeira realidade numenal protegida pelo direito penal», ela é-o forçosamente «sob a forma e sub nomine dos bens jurídico-penais de índole pessoal», as únicas «mostrações ou cintilações fenomenológicas acessíveis à racionalidade jurídica». Sem a referência de um direito ou interesse específico, é a própria avaliação da proporcionalidade que fica inviabilizada, por nada haver num dos pratos da balança que seja minimamente mensurável.
[…]
9. [O] Acórdão n.º 178/2018, confirmando a Decisão Sumária n.º 129/2018, acrescentou aos argumentos acima expostos alguns dados empíricos relevantes:
«(...) Neste sentido, corroborando as conclusões dos Acórdãos citados, estudos sobre prostituição (...) demonstram que cerca de 75% a 90% das mulheres prostituídas foram vítimas de agressões físicas ou abuso sexual na infância, no seio da sua própria família e a maioria das pessoas prostituídas, de ambos os sexos, foi iniciada na prostituição por terceiros quando era menor de idade, havendo prova empírica suficiente de que a vitimação por abuso sexual na infância ou na adolescência contribuiu, de forma significativa, para a sua entrada na prostituição. Aproximadamente 90% das mulheres inquiridas indicou que gostava de deixar a prostituição, mas que tinha medo de ser rejeitada e de não ter emprego (…). Um outro estudo revelou que 62% das mulheres na prostituição relataram terem sido vítimas de violação e 68% apresentam sintomas de stress pós-traumático tal como as vítimas de tortura (...), sendo consensual entre os estudos feitos o elevado risco de violência e de morte das mulheres prostituídas (...).
Por outro lado, o fenómeno da prostituição, nas últimas décadas, passou a estar ligado ao tráfico de mulheres e de meninas para exploração sexual, um dos negócios mais rentáveis do mundo e que criou a chamada “escravatura” dos tempos modernos, sendo a linha de fronteira entre serviços sexuais prestados com consentimento e prostituição forçada ténue e muito difícil de provar. A prostituição é hoje considerada uma forma de violência contra as mulheres integrada no conceito de violência de género, que atinge de forma desproporcionada as mulheres só pelo facto de o serem (Lobby Europeu de Mulheres, Resolução do Parlamento Europeu, de 5 de abril de 2011). Para além destas considerações, a prostituição é uma instituição patriarcal que promove na sociedade a ideia de que o dinheiro permite aos homens o uso do corpo das mulheres como objeto sexual, propriedade dos homens, constituindo uma violação da dignidade humana de todas as mulheres e um obstáculo à construção de uma sociedade baseada na igualdade de género, tarefa fundamental do Estado imposta constitucionalmente no artigo 9.º, alínea h), da CRP.
A incriminação das condutas previstas no artigo 169.º, n.º 1, da CRP corresponde, neste contexto, a uma opção de política criminal justificada pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social das pessoas prostituídas, que dependem desta atividade para sobreviverem, surgindo a prostituição, em regra, não como uma escolha sua baseada na liberdade e na autonomia, mas como a continuidade do seu percurso de abandono, pobreza e vitimação por abuso sexual na infância.
(…)
[E]sta norma visa combater um fenómeno invisível na sociedade e que se traduz na exploração das pessoas prostituídas, que prestam um consentimento meramente formal à atividade da prostituição, mas que não vivem em estruturas económico-sociais que lhes permitam tomar decisões em liberdade, por pobreza, desemprego e percursos de vida marcados pela violência e pelo abandono desde uma idade muito jovem. Por outro lado, o fenómeno da prostituição, nos últimos trinta anos, mudou muito, verificando-se uma estrita ligação entre a prostituição e o tráfico de pessoas, o qual atinge dimensões crescentes, inimagináveis há algumas décadas atrás. Verificou-se também que o sistema não tem instrumentos para distinguir, na prática, a ténue linha que separa o consentimento da pessoa para a prática de atos de prostituição das situações de tráfico e prostituição forçada. As leis que criminalizam o uso do serviço sem o consentimento da vítima enfrentam dificuldades sérias na sua implementação e o sistema não consegue aplicá-las efetivamente (...). Neste contexto de política criminal, o desaparecimento do requisito da «exploração de um estado de necessidade ou de abandono» situa-se dentro da margem de liberdade de conformação do legislador democrático e visa, não a tutela de qualquer moral, mas a proteção de direitos fundamentais das pessoas à autonomia, à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade e à dignidade (artigos 1.º, 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da CRP).
A prostituição é uma questão que preocupa os Estados, por estar associada ao tráfico de pessoas e implicar uma violação de direitos humanos de um número cada vez mais elevado de pessoas, na sua maioria mulheres e crianças migrantes (traficadas de países subdesenvolvidos para países desenvolvidos), impedindo a estas pessoas o acesso à cidadania, à liberdade, à igualdade de direitos, e à autonomia na condução da sua vida. As pessoas são utilizadas como fonte de lucro para outrem, através de uma atividade que é hoje designada como a escravatura dos tempos modernos, tratando-se a prostituição de um dos negócios mais rentáveis do mundo, movimentando cerca de $186.00 biliões por ano e envolvendo cerca de 40-42 milhões de pessoas, 90% das quais dependentes de outrem e 75% das quais têm idades compreendidas entre 13 e 25 anos (...). Segundo estatísticas dos Estados membros da EU, cerca de 60% a 90% das pessoas prostituídas são vítimas de crimes de tráfico (...).
(...)
Existe consenso entre os Estados membros da UE de que o tráfico de pessoas e a exploração sexual devem ser erradicados, [existindo dados estatísticos] segundo os quais, em 2008, 90% das pessoas prostituídas eram mulheres e a maioria das mulheres prostituídas eram migrantes, principalmente da Europa de Leste). Segundo o mesmo estudo do Parlamento Europeu, está a «ganhar apoio crescente a conceção que entende que o negócio da prostituição não pode ser legitimado, por violar os princípios ínsitos na Carta dos Direitos Fundamentais, entre os quais se encontra o princípio da igualdade» (...).
No quadro social e jurídico descrito, dada a complexidade da definição dos instrumentos legais adequados à proteção das pessoas prostituídas e ao combate ao tráfico, não pode deixar de se entender que está dentro da margem de liberdade do legislador democrático consagrar o modelo de criminalização do lenocínio, nos moldes em que o faz o artigo 169.º, n.º 1, do CP, que não padece assim de qualquer vício de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.»
10. Todavia, nem os argumentos de natureza normativa nem os de natureza empírica acima apresentados são capazes de afastar a circunstância de que, na sua configuração atual, o tipo legal de crime do lenocínio simples abrange mais hipóteses do que aquelas que, à luz daqueles mesmos argumentos, se justificaria que abrangesse. Naturalmente, a linha de entendimento segundo a qual este tipo legal de crime é inconstitucional não questiona que «a liberdade, designadamente a liberdade sexual» (Acórdão n.º 421/2017) constitua um direito constitucionalmente protegido para os efeitos do princípio da proporcionalidade decorrente do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, nem que possa existir uma «normal associação», empiricamente comprovável, «entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social, das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência» (Acórdão n.º 144/2004, reiterado v.g. pelo Acórdão n.º 178/2018). O ponto essencial para a linha que afirma a inconstitucionalidade – ou, pelo menos, o mínimo denominador comum aos vários entendimentos que nela se inscrevem – é o de que é ilegítimo, em nome dessa tendencial associação e a fim de garantir a punição de todos os casos em que ela efetivamente se materialize, criminalizar hipóteses em que isso manifestamente não ocorre.
Mais longe vão Anabela Miranda Rodrigues / Sónia Fidalgo, ‘Artigo 169.º’, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed. (CCCP-I), p. 798 s., para quem «[n]em mesmo a exigência que se fazia na versão do CP de 1995 quanto à verificação do elemento típico ‘exploração de situações de abandono ou de necessidade económica’ justificava [a] incriminação», pois «de vontade deficiente na decisão não se pode falar logo, só pelo facto de a pessoa estar em situação de abandono ou de necessidade económica». Procurando novamente um denominador comum mínimo, terá pelo menos de concordar-se que o papel que era desempenhado pela exigência típica de que haja exploração de uma situação de abandono ou necessidade económica da pessoa que se prostitui não foi substituído pelo que é agora desempenhado pela exigência típica de que a pessoa que favorece, fomenta ou facilita a prostituição o faça profissionalmente ou motivado pelo lucro. Esta exigência, que antes surgia prevista como elemento qualificativo do tipo legal de base e agora faz parte dele, não tem a virtualidade de cingir o âmbito desta norma incriminatória a hipóteses em que existe uma exploração da pessoa que se prostitui, o elemento mínimo para que possa falar-se de um perigo para a liberdade sexual. Na verdade, essa exigência nada diz sobre a pessoa que se prostitui, senão sobre aquela que contribui para que a mesma se prostitua, não se afigurando de todo evidente a existência de um nexo entre o caráter profissional ou lucrativo desta atuação e a debilidade de quem se prostitui. Além disso, a natureza profissional ou o intuito lucrativo da atuação da pessoa que favorece a prostituição não impede o estabelecimento de relações sinalagmáticas com a pessoa que se prostitui. O/A proprietário/a do alojamento que o explora a fim de que aí tenha lugar a prática de prostituição tanto poderá estar, desse passo, a facilitar, fomentar ou favorecer a prostituição de uma pessoa que se encontre numa situação de vulnerabilidade como a de uma pessoa que não se encontre numa tal situação e que tenha, antes e ainda assim, decidido prostituir-se, por exemplo por ver nisso um modo de obter um nível mais satisfatório de rendimento financeiro. Em nenhum de tais casos poderá também dar-se como adquirido ou sequer como significativamente mais provável, a partir do caráter profissional e/ou da intenção lucrativa do/a dono/a da pensão, que a sua ação tenha caráter exploratório, desde logo quando o valor cobrado for um valor normal, idêntico ao que é cobrado a qualquer cliente (na mesma linha, vd. o exemplo formulado por Carlota Pizarro de Almeida, ‘O crime de lenocínio no artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal (Anotação ao Acórdão TC n.º 144/04)’, Jurisprudência Constitucional n.º 7 (2005), p. 34).
Importa notar que a liberdade sexual de uma pessoa inclui a decisão de praticar atos sexuais com outra em razão de se encontrar (objetivamente) ou sentir (subjetivamente) ameaçada por um mal importante não imputável a esta segunda pessoa, cuja conduta, por conseguinte, mesmo que praticada com consciência daquela circunstância, não merece censura penal. Como afirma Pedro Caeiro, ‘Observações sobre a projetada reforma do regime dos crimes sexuais e do crime de violência doméstica (em apreciação no Grupo de Trabalho – Alterações Legislativas – Crimes de Perseguição e Violência Doméstica da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias)’, 2019, in www.parlamento.pt, neste ponto acompanhando Tatjana Hörnle, ‘The new German law on sexual assault and sexual harassment’, German Law Journal 18, n.º 6 (2017), p. 1323 ss.: «Aí, é crucial distinguir o que deve ser incriminado e aquilo que pertence ainda à auto-organização (ainda que condicionada) da vida sexual. Como bem discorre Tatjana Hörnle, “it is a part of positive sexual freedom to use sexuality not only for pleasure or love, but also in an instrumental way as a means to avert an expected disadvantage”». Daí, no fundo, que seja hoje relativamente incontroversa, entre nós, a falta de dignidade penal da prostituição propriamente dita, assim como do recurso à prostituição, independentemente de a pessoa que se prostitui o fazer em virtude de uma situação de vulnerabilidade em que se encontre ou de qualquer outra razão, como aquela, já referida, de esta pessoa procurar nisso um rendimento financeiro suplementar relativamente àquele que seria já suficiente para que de uma situação de necessidade económica se não pudesse falar.
[…]
12. Na doutrina, mesmo quem se pronuncia pela não inconstitucionalidade tende a basear essa conclusão numa interpretação restritiva do tipo legal de crime de lenocínio simples, de modo a considerá-lo aplicável apenas a situações em que exista exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui. É disso exemplo Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 3.ª ed., 2015, p. 673. É também o caso de Inês Ferreira Leite, ‘A Tutela Penal da Liberdade Sexual’, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 21, n.º 1 (2011), p. 82, para quem, «mais importante do que construir o bem jurídico tutelado em torno de uma interpretação acrítica do tipo penal, será reconstruir o tipo penal em função de uma interpretação valorativa da incriminação, tendo como farol a verificação da lesão ou da colocação em perigo da liberdade sexual».
Porém, não se afigura possível, quer em face da sua letra, quer da sua história, quer, ainda, de considerações de índole sistemática, interpretar este tipo legal de crime no sentido de o mesmo exigir que tenha havido exploração de uma situação de vulnerabilidade da pessoa que se prostitui: essa exigência não só não consta do n.º 1 do artigo 169.º como foi assumidamente retirada dele pelo legislador e deslocada para a alínea d) do n.º 2 do mesmo preceito – ainda que em termos algo reconfigurados, visto bastar agora que tenha havido aproveitamento (não sendo já necessário que tenha havido exploração) de uma circunstância de especial vulnerabilidade da vítima –, passando portanto a constituir elemento qualificativo de um tipo legal de base que se pretendeu subsistisse sem ele. Pela impossibilidade de interpretar o tipo legal daquele modo restritivo conclui também, v.g., Augusto Silva Dias, op. cit., p. 124 s. Deste modo, não poderia acolher-se uma interpretação dessa natureza sem que isso representasse uma denegação da intencionalidade normativa imprimida a esse tipo legal de crime pelo legislador, aqui sim em iminente ingerência na sua liberdade de conformação. A jurisprudência deste Tribunal, de resto, tem sempre suposto uma interpretação deste tipo legal de crime no sentido de o seu âmbito não estar cingido a hipóteses em que haja exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui, tendo inclusivamente explicitado já que o mesmo abrange casos de exercício de prostituição por «pessoa auto determinada» (Acórdão n.º 294/2004). Simplesmente, tem concluído pela não inconstitucionalidade do tipo legal assim interpretado.
13. Se o Tribunal Constitucional tem entendido ser esse o único sentido normativo possível de extrair do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, e se tem entendido que esse tipo legal de crime visa ainda a proteção do bem jurídico «liberdade sexual», então é forçoso concluir que o Tribunal o concebe como um crime de perigo abstrato, técnica criminalizadora que, no entender também já expresso pelo Tribunal, apesar de envolver uma significativa antecipação da tutela de bens jurídicos, não se expõe necessariamente a inconstitucionalidade, na medida em que, inter alia, efetivamente se ligue ainda à proteção de bens jurídicos (vd. por exemplo os Acórdãos n.ºs 426/91, 246/96, 7/99 e 95/2001). O tipo legal de crime de lenocínio simples abrange situações em que não existe perigo concreto de lesão da liberdade sexual de quem se prostitui, mas isso seria ainda justificável pelo facto de à conduta típica ser inerente um perigo abstrato de lesão desse bem jurídico: a já referida «normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social». É este, pois, atualmente, o ponto essencial do debate.
Contudo, o entendimento aqui acolhido é o de que nem mesmo entendido nesses termos este tipo legal de crime deixa de expor-se a um juízo de inconstitucionalidade, pelas razões que em seguida se apresentam.
Em primeiro lugar pode questionar-se a solidez daquela premissa, bem como a necessidade de recurso à via da criminalização no confronto com outras medidas aptas a alcançar o mesmo objetivo com menor restrição de direitos fundamentais, designadamente a pura descriminalização do lenocínio e a regulamentação da prostituição, no plausível pressuposto de que «os riscos que [com o crime de lenocínio] se querem esconjurar (em todo o caso sempre existentes em algum grau) resultam mais da incriminação da atividade em causa (e assim da natureza ‘subterrânea’, clandestina, para que é remetida) do que dela mesma» (Pedro Soares de Albergaria/Pedro Mendes Lima, op. cit., p. 238; já Anabela Miranda Rodrigues/Sónia Fidalgo, op. cit., p. 799).
Admitindo que aquela «normal associação» existe, deve em qualquer caso questionar-se se ela permite sustentar um tipo legal de crime com uma estrutura de perigo abstrato. Conforme expõe a este respeito Carlota Pizarro de Almeida, op. cit., p. 31 ss.: «A mera associação (incidindo sobre regularidades estatísticas) pode servir de fundamento a uma presunção, mas não é suficiente para a criação de crimes de perigo. (...) Há uma diferença de fundo entre esta situação e os crimes de perigo abstrato: nestes últimos, o agente só é punível se realizar (efetiva e dolosamente) a atividade de que cuida a incriminação – a qual consiste num início do iter criminis que levará (ou levaria) presumivelmente (com base na experiência) à concretização do perigo e eventualmente da lesão (numa relação vertical, de causalidade); no primeiro caso, induz-se, a partir de certos indícios, a verificação (concomitante, mas numa relação apenas horizontal, de coincidência) da conduta proibida e que não se logra provar. Ora em direito penal, como é para todos evidente, não pode haver lugar a presunções sobre a prática do facto proibido (e menos ainda inelidíveis, como seria o caso), pois tal hipótese colide frontalmente com o princípio da presunção de inocência.» É esta, de resto, a única visão consentânea com o fundamento da admissibilidade genérica do recurso aos crimes de perigo abstrato: o de constituir uma técnica criminalizadora necessária a um direito penal «adequado à sociedade do risco» (Jorge de Figueiredo Dias, op. cit., p. 38). Baseada numa mera associação, que não num autêntico nexo causal de perigosidade, a norma incriminatória perde o seu referente teleológico, expondo-se à crítica de que «pune o que não consegue provar por não conseguir provar o que quer punir» (Pedro Soares de Albergaria / Pedro Mendes Lima, op. cit., p. 209). Desse modo – pode acrescentar-se –, a norma conforma-se com a eventualidade de punir também, pelo menos em parte, o que não quer sequer punir, razão pela qual pode duvidar-se que um tipo legal de crime com estas características traduza sequer uma vontade da maioria.
Por outro lado, a configuração de uma norma como crime de perigo abstrato traz consigo particulares exigências no plano da tipicidade – é dizer, da determinabilidade da conduta proibida. Como o Tribunal Constitucional já em várias ocasiões sustentou (e.g., nos Acórdãos n.ºs 20/91 e 426/91), é crucial que o bem jurídico tutelado possa ser claramente identificado e que a conduta típica seja descrita de forma especialmente precisa. Relativamente à norma em apreço, até poderia considerar-se que a mesma satisfaz ambas as exigências: quanto à primeira, embora o bem jurídico pretensamente tutelado não seja absolutamente consensual, é de conceder que existem elementos suficientes para se concluir estar em causa a liberdade sexual; quanto à segunda, embora o tipo legal faça uso de elementos subjetivos e normativos, é relativamente indiscutível o seu âmbito de incidência. O que falha redondamente na norma é o facto de dela não emergir uma possibilidade de conjugação suficientemente robusta entre a primeira e a segunda exigências. Nas palavras de Jorge de Figueiredo Dias/Maria João Antunes, ‘Da inconstitucionalidade da tipificação do lenocínio como crime de perigo abstrato’, in Estudos em Homenagem ao Senhor Conselheiro Presidente Joaquim de Sousa Ribeiro – Vol. I, Almedina, 2019, p. 157: «Por um lado, a conduta que tem aptidão para colocar em perigo os bens jurídicos dignos de pena – a conduta de exploração de uma situação de carência e desproteção social – não está tipicamente formulada; por outro, a conduta típica descrita não tem aptidão para colocar em perigo os bens jurídicos identificados pela jurisprudência constitucional.» De facto, como os autores notam, é a própria jurisprudência constitucional que tem reconhecido que o perigo pressuposto por este tipo legal de crime não é verdadeiramente o perigo de lesão da liberdade sexual, ou de qualquer outro direito titulado pela pessoa que se prostitui (à autonomia, à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade), mas o perigo de exploração de uma situação de especial vulnerabilidade em que a mesma se encontra. Ou seja, o perigo de verificação do elemento típico que o legislador retirou do tipo legal. Dá disto exemplo o Acórdão n.º 641/2016, quando aí se afirma que «a ofensividade que legitima a intervenção penal assenta numa perspetiva fundada de que as situações de prostituição, relativamente às quais existe promoção e aproveitamento económico por terceiros, comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social», acompanhado pelo Acórdão n.º 90/2018, onde se afirma: «não se pressupõe que as situações de prostituição estejam necessariamente associadas a carências sociais elevadas e que qualquer comportamento de fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição comporta uma exploração da necessidade económica ou social do agente que se prostitui, mas antes que tais situações comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social» […].
É certo que ambos os arestos referem que essa exploração «interfer[e] com – colocando em perigo – a autonomia e liberdade do agente que se prostitui». O facto é que essa exploração não faz parte do tipo legal e está já, portanto, ela própria, a ser pressuposta. A feição que o problema afinal assume é, então, a seguinte: a única linha de entendimento capaz de ainda relacionar este tipo legal de crime com a tutela de bens jurídicos (sc., aquela segundo a qual ele constitui um crime de perigo abstrato destinado a tutelar a liberdade sexual de quem se prostitui) assenta, em última análise, num perigo de verificação de um elemento que não consta desse tipo legal de crime (sc., a exploração de uma situação de vulnerabilidade dessas pessoas). Portanto, assim interpretado, o tipo legal de crime envolve duas presunções (não deve tentar evitar-se o termo, pois nos crimes de perigo abstrato é de presunções que se trata: cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I, 3.ª ed., 2019, Gestlegal, p. 360), uma das quais, além de frágil (cf. supra, o ponto 10), se suporta ainda na outra, podendo neste sentido dizer-se estarmos perante um crime de perigo duplamente abstrato. Talvez mais exatamente: de um crime de perigo abstrato elevado ao quadrado, em que: (i) a base é a presunção de que a exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem prostitui encerra tipicamente um perigo para a sua liberdade sexual; e (ii) o expoente é a presunção de que a conduta de quem, profissionalmente ou com intuito lucrativo, fomente, favoreça ou facilite a exercício de prostituição encerra tipicamente um perigo de exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui. Em resultado desse processo de exponenciação, o âmbito da proibição é muito mais extenso do que aquele que, considerado o bem jurídico que se procura tutelar, seria o seu âmbito natural. Entre este âmbito natural e aquele âmbito exponenciado está um conjunto indiferenciado de condutas que decerto incluirá situações em que há perigo concreto de lesão ou até dano do bem jurídico, mas isto constituirá uma pura contingência, pois nada há no tipo legal de crime que cuide realmente de direcioná-lo para a punição desses casos. É um dos aspetos que o separa de tipos legais como o da condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292.º do Código Penal, em que o perigo de lesão é imanente a toda e qualquer das condutas abrangidas pela norma incriminatória e, por isso, resguarda o tipo legal de crime do argumento de que não é necessária uma intervenção penal tão antecipada.
14. Nos tipos legais de crime que almejam a tutela da liberdade sexual, o assentimento – mais especificamente, o acordo – do portador concreto do bem jurídico não se limita a traçar uma fronteira entre comportamentos ofensivos e comportamentos inócuos para o bem jurídico, nem uma fronteira entre ofensas intoleráveis e ofensas transigíveis ao bem jurídico, mas uma fronteira entre comportamentos ofensivos do bem jurídico e comportamentos potencialmente necessários à satisfação do bem jurídico (vd. Manuel da Costa Andrade, Consentimento e Acordo em Direito Penal (Contributo para a Fundamentação de um Paradigma Dualista), Coimbra Editora, 1991, p. 362 ss. et passim). Por isso que a prática de atos sexuais entre adultos sem o acordo de um deles constitua uma conduta que indiscutivelmente reclama a intervenção do direito penal, mas que a prática de tais atos de forma consensual seja, mais do que lícita, uma expressão igualmente indiscutível desse mesmo bem jurídico.
Isso significa que esses tipos legais envolvem, que têm sempre latente, um potencial efeito restritivo sobre o próprio bem jurídico que justifica a sua existência. Esta conceção dualista do assentimento ou da concordância do portador concreto do bem jurídico – conceção que se mantém incontrovertida – pode, aliás, ser invocada em abono da interpretação restritiva acima referida (no ponto 12), segundo a qual o tipo legal de crime do lenocínio simples continua a pressupor a exploração de uma situação de especial vulnerabilidade de quem se prostitui. Contudo, as mesmas razões então indicadas permanecem aqui válidas: essa afigura-se uma interpretação contra legem, sendo antes forçoso concluir que o legislador pretendeu de facto criminalizar, quando praticada profissionalmente ou com intuito lucrativo, a conduta de fomentar, facilitar ou favorecer a prostituição independentemente de a pessoa que se prostitui ter oferecido o seu acordo à prática dos atos sexuais em que a mesma se traduz. De resto, como já se referiu, a própria exigência de que haja exploração de uma situação de vulnerabilidade da pessoa que se prostitui continua a não pressupor o acordo dessa pessoa à prática de tais atos, pelo que, neste específico ponto, não há diferença sensível entre a vigente redação deste tipo legal de crime e aquela que a precedeu, a qual estabelecia já um crime de perigo abstrato. A diferença é, essa sim, que a redação precedente procurava estabelecer um nexo causal entre a conduta típica e a ofensa ao bem jurídico – se ele era ou não suficiente para assegurar a sua constitucionalidade é questão que aqui não releva, pois não é essa a norma sob fiscalização –, enquanto a redação atual resiste a qualquer tentativa de identificação de um nexo dessa natureza (nos termos explanados supra, no ponto 13).
Já se disse que o recurso à técnica do perigo abstrato na criminalização de comportamentos não está, por princípio, constitucionalmente vedado. O ponto que se procura agora fazer é o de que os crimes de perigo abstrato, já de si adstritos a especiais condições constitucionais quando comparados com os crimes de dano e os crimes de perigo concreto – onde a ofensa ao bem jurídico é, respetivamente, certa ou mais próxima – são ainda mais difíceis de sustentar quando estejam em causa bens jurídicos suscetíveis de acordo, como a liberdade sexual. Se o acordo do portador, mais do que tornar lícita a conduta do terceiro, a convoca à realização do bem jurídico, o legislador, ao criminalizar um comportamento em nome de um bem jurídico dessa natureza através de uma presunção, está a conformar-se com uma dada probabilidade de restringir o direito à liberdade do terceiro em nome de um direito que não sofreu perigo concreto e, além disso, com uma equivalente probabilidade de restringir o exercício desse mesmo direito por parte do seu portador. Conforme afirma Augusto Silva Dias, op. cit., p. 123, em termos que ajudam a ilustrar esta perspetiva: «Descrições típicas abrangentes que não explicitam suficientemente de que modo as condutas provocam a perda ou redução do valor da integridade pessoal para o seu titular (…), acabam por misturar casos de coisificação com casos de objetivação voluntária do próprio ser humano, isto é, casos de negação da identidade pessoal com situações de exercício normal dessa liberdade.»
Importa notar que o lenocínio apresenta, neste ponto, uma relevante particularidade em relação a outros crimes destinados a tutelar a liberdade sexual: o seu objeto direto ou imediato não é a própria prática dos atos sexuais em que se traduz a prostituição, mas o ato de fomentar, facilitar ou favorecer essa prática. Por essa razão, não se afigura necessariamente de concluir que este tipo legal de crime comporte uma restrição desproporcional da liberdade sexual de quem se prostitui: o tipo legal não veda essa prática, embora limite as condições em que a mesma pode ser desenvolvida, designadamente a possibilidade de associação de quem se prostitui a uma pessoa ou organização de pessoas que fomente, facilite ou favoreça essa prática. Porém, se não se perder de vista que o único desígnio constitucionalmente legítimo deste tipo legal de crime seria o de tutelar a liberdade sexual de quem se prostitui, e que a sua estrutura é a de uma presunção (melhor, de uma cadeia de presunções) segundo a qual essa pessoa não prestou o seu acordo àquela prática, a perspetiva exposta não deixa de se lhe aplicar: o fundamento último do tipo legal não deixa de ser a tutela de um direito que, em face da conduta tipicamente descrita, pode plausivelmente ter sido exercido pelo seu portador.
A criação de crimes de perigo abstrato em nome da tutela da liberdade sexual, ou de outro bem jurídico suscetível de acordo, não está terminantemente excluída em termos constitucionais. Contudo, quando o nexo entre a factualidade típica e o bem jurídico tutelado ou pretensamente tutelado for débil, como se concluiu ser aqui o caso (supra, ponto 13), então, a circunstância de esse bem jurídico ser um bem jurídico suscetível de acordo empresta ainda força suplementar à conclusão – já decorrente, sem mais, daquela debilidade – de que o tipo legal de crime comporta uma restrição desproporcional do direito à liberdade (consagrado no artigo 27.º da Constituição) de quem, ainda que profissionalmente ou com intuito lucrativo, facilite, fomente ou favoreça a prática da prostituição por outra pessoa. Desenvolvendo-se aquela conduta dentro de um espaço em que, perante o recorte típico da norma incriminatória, a livre disposição do bem jurídico por parte de quem se prostitui se mostra plausível, a sua criminalização não pode deixar de considerar-se desproporcional.
Pode conceder-se que esta norma incriminatória seja adequada a tutelar a liberdade sexual, no sentido de que esta constitui um bem jurídico digno de pena e de que a conduta tipicamente descrita é objetivamente apta a abranger situações em que essa liberdade foi exposta a um perigo concreto de lesão. No entanto, a norma não resiste ao teste da necessidade: a extrema fragilidade do nexo entre a conduta que aí é descrita e o único bem jurídico que a norma poderia tutelar, acrescida do facto de a mesma abranger situações em que há até um exercício da liberdade sexual por parte de quem se prostitui, não permitem a conclusão de que tal norma seja necessária para tutelar esse direito. Mesmo persistindo na via da criminalização, o legislador poderia empreender essa tutela com significativamente menor restrição do direito à liberdade, através de um recorte típico que, podendo porventura ainda configurar-se como crime de perigo abstrato, apresente um autêntico nexo de perigosidade típica entre conduta e bem jurídico. Poderia então ainda discutir-se a proporcionalidade em sentido estrito da norma, mas pelo menos estar-se-ia já num contexto de verdadeiro conflito de direitos e interesses constitucionais. Pelo contrário, a vigente norma incriminatória restringe um direito (à liberdade) em nome de um outro (à liberdade sexual) que pode plausivelmente não ter sido colocado em perigo concreto e ter até sido livremente exercido pelo seu titular, circunstância em que não há, portanto, carência de tutela penal.
Importa apenas acrescentar que esta conclusão não aproveita diretamente a outros tipos legais de crime configurados como crimes de perigo abstrato e destinados a tutelar a liberdade e a autodeterminação sexuais, como a divulgação, ou a detenção com vista à divulgação, de material pornográfico em que sejam utilizados menores, previstas e punidas no artigo 176.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Código Penal. Sem encetar um exercício de comparação mais exaustivo e, novamente, sem exprimir qualquer consideração sobre a constitucionalidade de tais normas, pois não são elas as normas sob fiscalização, bastará notar que, ali, a utilização dos menores nos materiais em causa é criminalmente proibida (cf. a alínea b) do mesmo preceito), ao contrário do que acontece com a prostituição; depois, e porque de menores se trata, que essa utilização nunca poderia considerar-se resultante de um exercício de liberdade sexual, razão pela qual, desde logo, se está aqui antes no domínio dos crimes contra a autodeterminação sexual.
[…]” (sublinhados acrescentados).
2.2.5. Em suma, as posições no sentido da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal têm assentado na afirmação da perda de conexão com um bem jurídico suficientemente definido, a partir das alterações introduzidas na norma incriminadora pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro. Ao eliminar-se o elemento típico de exploração duma situação de abandono ou necessidade, já não estaria em causa a proteção da liberdade sexual e, por outro lado, a dignidade da pessoa humana seria mobilizável em termos vagos, não oferecendo suporte bastante à incriminação. Não se afigurando viável considerar uma interpretação do preceito mais restritiva do que a sua letra consente, restaria apenas, então, a injustificada criminalização da mera atividade de proxenetismo, a tutela por via penal de interesses morais ou de bons costumes, a evitação “do pecado”, que poderia manifestar-se até com sinal contrário ao da liberdade individual das pessoas que a norma visou proteger. Os possíveis comportamentos atentatórios da dignidade humana estariam fora do tipo, sem poderem considerar-se necessária ou mesmo razoavelmente pressupostos na ação expressamente proibida, o que, especialmente estando em causa um comportamento passível de acordo, não consentiria uma construção constitucionalmente conforme de um crime de perigo abstrato, já de si particularmente exigente.
Não é esta, todavia, a única perspetiva a partir da qual pode ser olhada a norma sub judice.
2.3. Como é sabido, outras decisões do Tribunal Constitucional, em expressiva maioria, têm adotado uma orientação no sentido da não inconstitucionalidade da norma sub judice. Atravessa este entendimento uma ideia – a sua ideia fulcral – de que “[…] a ofensividade que legitima a intervenção penal assenta numa perspetiva fundada de que as situações de prostituição, relativamente às quais existe promoção e aproveitamento económico por terceiros, comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social, interferindo com – colocando em perigo – a autonomia e liberdade do agente que se prostitui” [Acórdão n.º 641/2016, sublinhado acrescentado; esta decisão viria a ser referida pelo Tribunal Constitucional italiano na Sentenza 141/2019, de 06/03/2019, enquanto abonação da conformidade constitucional da criminalização, nesse caso decorrente da chamada legge Merlim, das condutas de facilitação e de intermediação (construídas em torno dos conceitos de recrutamento e de favorecimento) ao exercício da prostituição, empreendidas por terceiro (cfr., quanto às referências ao Acórdão n.º 641/2016, os pontos 4.5. e 6.2. das Considerações de Direito da Sentenza)].
Existe, em tais casos – e corresponde ao entendimento deste Tribunal desde a decisão de 2004 –, uma genérica e preponderante apetência da ação descrita no tipo para o desencadear de eventos ou criar situações cujo desvalor (cuja danosidade), causalmente conexionado, imediata ou mediatamente, com o exercício da prostituição, o legislador quis antagonizar, através do instrumento de atuação do Estado correspondente à perseguição criminal, sendo certo que a opção por essa via ocorre num quadro racionalmente compreensível de valoração das potencialidades desvaliosas da realidade social envolvida (precursora, desencadeada ou propiciada) no conjunto de situações correspondentes ao fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição, por parte de alguém, que não o próprio agente do crime, num quadro de atividade profissional ou de um exercício com intenção lucrativa.
E vale esta opção na intencionalidade que lhe subjaz, independentemente do tratamento legal conferido na nossa Ordem Jurídica aos atos de prostituição, em si mesmos considerados, concretamente à subtração destes a qualquer tipo de perseguição sancionatória, através de uma política usualmente qualificada – e que corresponde à realidade portuguesa – como abolicionista, por oposição a uma política proibicionista ou a um enquadramento legal de tolerância regulamentadora (v. a caraterização destas opções legais, nas suas diversas gradações, em Peter Marneffe, Liberalism and Prostitution, Oxford University Press, Oxford, 2010, pp. 28/30).
Com efeito, o abolicionismo, referido à prática da prostituição, caracteriza um conjunto de políticas públicas que excluem a criminalização da venda de serviços sexuais, em si mesma considerada, e das atividades, exercidas pelo próprio agente da venda, diretamente relacionadas com esta, como seja a solicitação ou a oferta em si mesma. Essa opção não descarta, todavia – conforme demonstra a prática assumidamente abolicionista de diversos países (ibidem) –, sancionar (mesmo até criminalizar) a compra de serviços sexuais ou os comportamentos de terceiros (dos “clientes”) comummente utilizados para a obtenção desses serviços. É o que sucede, por exemplo, com a lei britânica sancionando o chamado kerb crawling [v. https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/kerb-crawling] e, na Suécia, desde 1999, com a aprovação da designada Lei Kvinnofrid [v. a entrada prostitution in Sweden, na Wikipedia, https://en.wikipedia.org/wiki/Prostitution_in_Sweden, consultada em 19/01/2021], que não proíbe a oferta de serviços sexuais mediante contrapartida remunerada, criminalizando, porém, o cliente e toda a atividade de gestão de um negócio de aproveitamento económico da prostituição (que envolva o contributo de qualquer pessoa diversa daquela que se prostitui), e a atividade remunerada de agenciação para o exercício da prostituição [a opção de criminalização do cliente e das condutas paralelas de facilitação ou aproveitamento por terceiros, foi considerada pelo Conseil Constitutionnel francês (Decisão n.º 2018-761, de 01/02/2019) conforme à Constituição].
No contexto geral da opção abolicionista, emprega-se o expressão abolição permissiva (permissive abolition, em contraposição a impermissive abolition, que sinaliza a perseguição sancionatória do cliente, Peter Marneffe, Liberalism and Prostitution, cit, p. 29) para referenciar, no quadro geral de uma política abolicionista, a opção por políticas públicas de não repressão sancionatória ou criminalização, tanto da oferta como da aquisição e procura de serviços sexuais (a prostituição que só envolve o par individualizado formado pelo agente da oferta e o agente da procura), criminalizando-se, todavia, no conjunto de políticas designadas como abolição permissiva, as atividades intimamente relacionadas com o aproveitamento económico por terceiros do negócio da prostituição, como paradigmaticamente o são a gestão de bordéis, os negócios do tipo clubes ou bares de alterne, que comportem ligação à atividade de prostituição, e mesmo a simples intermediação, com o objetivo de lucro, no negócio da prostituição travada entre os polos originários (quem se prostitui e o cliente).
2.3.1. Não estando, manifestamente, em causa “[…] saber se a incriminação do lenocínio, nos moldes em que se se encontra prevista, traduz a melhor opção ao nível da política criminal” (disse-se no Acórdão n.º 421/2017, retomando uma asserção já presente no Acórdão n.º 144/2004, cfr. o respetivo item 8) – constitui tal incriminação uma opção de quem está democraticamente legitimado para efeito da tomada dessas opções –, importa notar que “[…] o critério da necessidade de tutela penal, enquanto decorrência do princípio da proporcionalidade, na dimensão acolhida no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, foi sempre apreciado pela jurisprudência constitucional proferida sobre a incriminação do lenocínio”, o que não impediu que se concluísse pela “[…] legitimação material da norma incriminadora constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na redação conferida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, à luz do princípio da proporcionalidade” (Acórdão n.º 694/2017).
Este entendimento foi reiterado, por último, nos Acórdãos n.os 90/2018 e 178/2018, para além de diversas decisões sumárias (v., designadamente, as Decisões Sumárias n.os 375/2016, 359/2017, 737/2017, 129/2018 e 519/2018) e “não espelha o imobilismo” que, por vezes, se pretende assinar-lhe em algumas decisões de recusa indutoras de muitos dos recursos apreciados (v. o Acórdão n.º 160/2020). Pelo contrário, resulta esse entendimento de viva discussão de argumentos de sinal contrário, atrás referida, a qual, simplesmente, não conduziu a uma alteração do sentido das decisões, que se reforçaram com novos fundamentos.
Com efeito, no Acórdão n.º 178/2018, pode ler-se:
“[…]
Em relação à constitucionalidade da norma constante do artigo 169.º, n.º 1, do CP, nos termos da qual «Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição», alega uma vez mais o recorrente que o facto de a norma não exigir como requisito da incriminação «a exploração de situações de abandono ou de necessidade económica», implicaria uma violação, na sua perspetiva, do princípio da proporcionalidade, ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, por não estar o legislador a tutelar a liberdade sexual das pessoas prostituídas, mas sim uma determinada moral social, que não competiria ao direito penal proteger, de acordo com o princípio da intervenção mínima ou da ultima ratio, invocando a seu favor os argumentos aduzidos nos votos de vencido à jurisprudência dominante neste Tribunal, que tem proferido um juízo negativo de inconstitucionalidade em relação à norma impugnada.
Os argumentos referidos nos votos de vencido incidem sobre a ausência de um bem jurídico com dignidade penal, que se traduzisse na proteção de direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, e no entendimento, segundo o qual a norma prevê um crime sem vítima, que visaria apenas a prevenção ou a repressão do moralismo ou de sentimentos religiosos, e que traduziria um paternalismo do legislador, que seria até suscetível de ofender a liberdade das pessoas que, de livre vontade, se quisessem prostituir.
Contudo, como tem sido reafirmado pela jurisprudência dominante no Tribunal Constitucional, esta norma visa combater um fenómeno invisível na sociedade e que se traduz na exploração das pessoas prostituídas, que prestam um consentimento meramente formal à atividade da prostituição, mas que não vivem em estruturas económico-sociais que lhes permitam tomar decisões em liberdade, por pobreza, desemprego e percursos de vida marcados pela violência e pelo abandono desde uma idade muito jovem. Por outro lado, o fenómeno da prostituição, nos últimos trinta anos, mudou muito, verificando-se uma estrita ligação entre a prostituição e o tráfico de pessoas, o qual atinge dimensões crescentes, inimagináveis há algumas décadas. Verificou-se também que o sistema não tem instrumentos para distinguir, na prática, a ténue linha que separa o consentimento da pessoa para a prática de atos de prostituição das situações de tráfico e prostituição forçada. As leis que criminalizam o uso do serviço sem o consentimento da vítima enfrentam dificuldades sérias na sua implementação e o sistema não consegue aplicá-las efetivamente (cf. Sexual exploitation and its impact on gender equality, European Parliament, 2014, http://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/etudes/join/2014/493040/IPOLFEMM_ET(2014)493040_EN.pdf). Neste contexto de política criminal, o desaparecimento do requisito da «exploração de um estado de necessidade ou de abandono» situa-se dentro da margem de liberdade de conformação do legislador democrático e visa, não a tutela de qualquer moral, mas a proteção de direitos fundamentais das pessoas à autonomia, à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade e à dignidade (artigos 1.º, 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da CRP).
A prostituição é uma questão que preocupa os Estados, por estar associada ao tráfico de pessoas e implicar uma violação de direitos humanos de um número cada vez mais elevado de pessoas, na sua maioria mulheres e crianças migrantes (traficadas de países subdesenvolvidos para países desenvolvidos), impedindo a estas pessoas o acesso à cidadania, à liberdade, à igualdade de direitos, e à autonomia na condução da sua vida. As pessoas são utilizadas como fonte de lucro para outrem, através de uma atividade que é hoje designada como a escravatura dos tempos modernos, tratando-se a prostituição de um dos negócios mais rentáveis do mundo, movimentando cerca de $186.00 biliões por ano e envolvendo cerca de 40-42 milhões de pessoas, 90% das quais dependentes de outrem e 75% das quais têm idades compreendidas entre 13 e 25 anos (cf. Sexual exploitation and its impact on gender equality, European Parliament, 2014 – um estudo pedido ou encomendado pela Comissão do PE relativa aos Direitos das Mulheres e à Igualdade de Género). Segundo estatísticas dos Estados membros da EU, cerca de 60% a 90% das pessoas prostituídas são vítimas de crimes de tráfico (Ibidem).
Desde 1979, que as Nações Unidas têm por objetivo combater todas as formas de tráfico das mulheres e de exploração da prostituição das mulheres, conforme consta do artigo 6.º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW).
A regulação jurídica e penal desta matéria encontra-se em evolução nos países da UE, visando a definição de políticas fortes de combate à exploração sexual e a elaboração de convenções e diretivas dirigidas ao alargamento da incriminação e ao aumento das penas quando a pessoa prostituída é menor de idade (Diretiva 2011/93/UE) ou vítima de tráfico (Convenção do Conselho da Europa contra o tráfico de seres humanos, de 2005, e as Diretivas 2011/36/UE e 2012/29/UE).
Os legisladores europeus aderiram a modelos diversos em matéria de prostituição: o modelo liberal da regulação da atividade como trabalho sexual (em vigor na Alemanha e na Holanda, mas ineficaz no combate ao tráfico, tendo provocado o aumento do mesmo, com indivíduos condenados por tráfico a pedirem licenciamento para o negócio da prostituição, sem qualquer melhoria das condições de trabalho das pessoas prostituídas e descida dos níveis de violência); o modelo abolicionista, em vigor na Suécia, na Noruega, na Islândia, na França e na Irlanda do Norte, que criminaliza todas as atividades relacionadas com a prostituição, inclusive o comprador de sexo, mas não as pessoas prostituídas (recomendado pelo Parlamento Europeu, na “Resolução de 26 de fevereiro de 2014, sobre a exploração sexual e a prostituição e o seu impacto na igualdade dos géneros”, por ter contribuído para a diminuição do tráfico de pessoas e da prostituição, bem como para uma alteração de mentalidades, normas e valores da população em relação à prostituição), e o modelo em vigor em Portugal, e noutros países europeus, que pune o lenocínio, de uma forma mais ou menos alargada, encontrando-se Portugal entre os países que prescindem, na definição do âmbito da incriminação, do requisito típico da exploração de um estado de necessidade e que pune, no artigo 160.º, n.º 6, do CP, quem, tendo conhecimento do crime de tráfico, utiliza, mediante pagamento ou outra contrapartida, os serviços da vítima.
Existe consenso entre os Estados membros da UE de que o tráfico de pessoas e a exploração sexual devem ser erradicados, afirmando-se no estudo «Sexual exploitation and prostitution and its impact on gender equality», de 2014, atrás citado, p. 9, que «A prostituição e a exploração sexual são assuntos altamente genderizados, com mulheres e meninas, na maioria dos casos, a vender o seu corpo, por coação ou com consentimento, e homens e rapazes a pagar por este serviço» (sobre dados estatísticos, na Holanda, vide TAMPEP, 2009, Netherlands Country Report, citado no estudo do Parlamento Europeu, p. 37, segundo os quais, em 2008, 90% das pessoas prostituídas eram mulheres e a maioria das mulheres prostituídas eram migrantes, principalmente da Europa de Leste). Segundo o mesmo estudo do Parlamento Europeu, está a «ganhar apoio crescente a conceção que entende que o negócio da prostituição não pode ser legitimado, por violar os princípios ínsitos na Carta dos Direitos Fundamentais, entre os quais se encontra o princípio da igualdade» (Ibidem, p. 9).
No quadro social e jurídico descrito, dada a complexidade da definição dos instrumentos legais adequados à proteção das pessoas prostituídas e ao combate ao tráfico, não pode deixar de se entender que está dentro da margem de liberdade do legislador democrático consagrar o modelo de criminalização do lenocínio, nos moldes em que o faz o artigo 169.º, n.º 1, do CP, que não padece assim de qualquer vício de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
[…]” (sublinhados acrescentados).
Sendo certo que os fundamentos transcritos assentam em determinadas pressuposições, não é menos certo que, como se faz notar no Acórdão n.º 90/2018:
“[…]
[N]ão se pressupõe que as situações de prostituição estejam necessariamente associadas a carências sociais elevadas e que qualquer comportamento de fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição comport[e] uma exploração da necessidade económica ou social do agente que se prostitui, mas antes que tais situações comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social, colocando em perigo a autonomia e liberdade do agente que se prostitui.
[…]
Por outro lado, […] a jurisprudência constitucional acima referida […] apreciou o critério da necessidade de tutela penal, enquanto decorrência do princípio da proporcionalidade, na dimensão acolhida no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.
No entanto, e conforme se salienta no Acórdão n.º 694/2017, em que o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre esta matéria, tal apreciação não se «deve confundir, porém, com o controlo da bondade das opções que o legislador democrático, no âmbito da sua margem de conformação, tome na concretização do respetivo programa político criminal, mormente quanto à inadequação ou insuficiência para a tutela do bem jurídico em proteção de meios não penais de controlo social a constituir – a decisão recorrida, pressupondo a manutenção da proibição do lenocínio, aponta a ‘via contraordenacional mínima em sede de regulação administrativa da atividade’ –, questão que não incumbe a este Tribunal apreciar».
[…]” (sublinhados acrescentados).
De onde resulta, em suma, uma liberdade, com amplitude muito considerável, do legislador – desde sempre sublinhada, neste exato contexto, pelo Tribunal (de novo remetemos para o item 8 do Acórdão n.º 144/2004) – em punir ou não punir os comportamentos, neste âmbito, com o que nisso vai implicado em termos de não proibição constitucional da solução adotada. Por outras palavras, “[d]ecidir se o risco implicado para a autonomia do agente que se prostitui deve ser considerado como um perigo a prevenir pela via da incriminação da exploração profissional ou com fins lucrativos da pessoa que se prostitui, é […] uma opção que cabe dentro do poder de definição da política criminal que pertence ao legislador” (Acórdão n.º 421/2017).
2.4. É que existe uma diferença substancial entre a mera atividade de prostituição (não punida), e a (outra) atividade que a fomenta, favorece ou facilita, deslocando a segunda do campo da mera liberdade individual para uma constelação de relações sociais muito mais complexas, e desligadas das circunstâncias referenciáveis à individualização do ato de prostituição, que é inevitavelmente próxima – demasiado próxima – de movimentos, nacional e internacionalmente organizados, cujo resultado (aqui referimo-nos ao resultado da atividade dos referidos movimentos organizados num plano superior ao de cada “empresário”), quase invariavelmente, corresponde à perpetuação de situações de diminuição da liberdade e de sujeição a um poder de facto que, as mais das vezes, escapa a qualquer controlo, visto que se exerce fora de relações formalizadas ou declaradas, as quais, uma vez iniciadas, são difíceis de quebrar ou interromper, tendendo a perpetuar-se enquanto se mantiver a respetiva “utilidade comercial”.
Com tal proximidade se gera um risco socialmente inaceitável, que não exorbita o âmbito de proteção da norma, nem dele é sequer periférico, porque se trata de um risco conatural ao proxenetismo, cujo empresário – como o de qualquer outro negócio – tende a organizar-se de modo a potenciar o lucro (criando redes ou procurando redes já estabelecidas, que lhe propiciem economias de escala, maximizando o controlo da atividade – insiste-se – fora de mecanismos de controlo efetivo, que pura e simplesmente não existem no nosso país), objetivo ao qual, mais tarde ou mais cedo, dificilmente escapará (o dano d)a vontade e (d)a liberdade das pessoas que se prostituem.
Mesmo que a expressão exploração esteja fora do tipo – e, como tal, não seja facto a provar in concreto – o risco da sua materialização é suficientemente forte para conter a norma dentro dos limites da proporcionalidade e, em particular, da necessidade da intervenção penal.
2.5. É o sentido da linha decisória a este respeito assumida, e diversas vezes reiterada, pelo Tribunal Constitucional desde 2004, num entendimento geral desta questão que ora cumpre, em oposição ao Acórdão recorrido, afirmar de novo.
III – Decisão
3. Em face do exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal;
b) Revogar o Acórdão n.º 134/2020, proferido nos presentes autos; e, consequentemente,
c) Julgar improcedente o recurso originariamente interposto.
3.1. Custas pelo recorrente nessa impugnação inicial (o recorrido no recurso para o Plenário), por ter decaído globalmente neste processo, em função do resultado do presente recurso, na pretensão impugnatória que dirigiu ao Tribunal Constitucional (artigo 84.º, n.º 2, da LTC), fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios estabelecidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 27 de janeiro de 2021 – José António Teles Pereira – Maria José Rangel de Mesquita – Assunção Raimundo (vencida: junto declaração de voto) – João Pedro Caupers – Pedro Machete – Joana Fernandes Costa (vencida nos termos da fundamentação constante do acórdão recorrido, que subscrevi) – Gonçalo de Almeida Ribeiro (vencido, nos termos da fundamentação do acórdão n.º 134/2020 – o acórdão recorrido -, que subscrevi).
O relator atesta os votos de conformidade ao presente Acórdão do Conselheiro Fernando Vaz Ventura, da Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros e da Conselheira Mariana Canotilho, atestando igualmente o voto de vencido do Senhor Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro – cujos termos são os seguintes: “vencido nos termos da fundamentação do Acórdão recorrido” – e o voto de vencido do Senhor Conselheiro Presidente, Manuel da Costa Andrade – cujos termos são os seguintes: “vencido nos termos da declaração de voto junta ao Acórdão n.º 641/2016”.
O relator atesta igualmente o voto de conformidade do Conselheiro José João Abrantes.
José Teles Pereira
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida o presente acórdão, por entender que a reforma de 1998, ao deixar cair do respetivo tipo legal o elemento “explorando situações de abandono ou de necessidade económica”, elimina o inciso que, claramente, enquadrava o lenocínio como um crime de ofensa à liberdade sexual e autodeterminação da pessoa, nesse caso, vítima da conduta de aproveitamento económico da prostituição. Na versão até então vigente, esse aproveitamento económico quando a vítima se encontrava em estado de necessidade, constituía um comportamento lesivo e ofensivo por colocar em perigo a autonomia e liberdade do agente que se prostitui.
Enquanto opção de política criminal, a atual redação assume que as situações de prostituição, relativamente às quais existe promoção e aproveitamento económico por terceiros, comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social, interferindo – colocando em perigo – a autonomia e liberdade de agente que se prostitui. Foi essa posição que este Tribunal tem sufragado e que o acórdão mais uma vez assimilou.
No entanto, muito embora se compreenda a preocupação que subjaz a essa posição, entendo que o crime, tal como hoje se encontra desenhado, enquanto crime de perigo abstrato, se afasta dos critérios legitimadores da incriminação.
A conceção que hoje subjaz à norma, limitada que estaria por força do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição e, em especial, do princípio da dignidade penal do bem jurídico e da necessidade penal, parte de uma premissa não demonstrada e que o legislador expressamente afastou do respetivo tipo legal – o risco ou perigo de lesão da autonomia de vontade do agente que se prostitui e da sua liberdade sexual –, ou, mais concretamente, a situação de especial vulnerabilidade em que a “vítima” se encontra.
Porém, e como chama a atenção o acórdão fundamento, “quando o nexo entre a factualidade típica e o bem jurídico tutelado ou pretensamente tutelado for débil, (…) a circunstância de esse bem jurídico ser um bem jurídico suscetível de acordo empresta força suplementar à conclusão de que o tipo legal de crime comporta uma restrição desproporcional do direito à liberdade (consagrado no artigo 27.º da Constituição) de quem, ainda que profissionalmente ou com intuito lucrativo, facilite, fomente ou favoreça a prática da prostituição por outra pessoa”. O mesmo sucederá, porventura, em todas as situações em que se não verifique essa exploração da necessidade económica (ou de vulnerabilidade) do agente que se prostitui.
Nesta linha de raciocínio, entendo que a conduta tipicamente descrita não resiste ao teste da necessidade, dada a fragilidade do nexo entre a conduta que é descrita e o bem jurídico que a norma pretende tutelar. Por outro lado, neste contexto, o apelo direto à dignidade da pessoa humana, enquanto princípio prescritivo, tanto impõe uma especial atenção para a necessidade de tutela de situações de especial vulnerabilidade, como impõe uma especial consideração pela própria liberdade e autodeterminação sexual do agente que se prostitui. E, nesse sentido, a norma de incriminação afetará, de forma desproporcional, o direito ao exercício dessa liberdade, em violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição, o que legitima um juízo de inconstitucionalidade do artigo 169.º, n.º 1 do Código Penal.
Maria Assunção Raimundo