ACÓRDÃO N.º 659/2020
Processo n.º 1135/2019
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro
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Acordam na 3ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco – Juízo do Trabalho da Covilhã, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., S.A., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), da sentença daquele Tribunal, de 18 de outubro de 2019.
2. A ora recorrida impugnou judicialmente a decisão da Autoridade para as Condições do Trabalho (referida adiante pela sigla «ACT»), que a condenou no pagamento de uma coima única no montante de €20.400,00, pela prática de três contraordenações laborais.
Através da sentença ora recorrida, o recurso de impugnação judicial foi julgado parcialmente procedente, tendo a impugnante, ora recorrida, sido absolvida da prática da contraordenação prevista no n.º 2 do artigo 9.º, por referência ao n.º 1, do Decreto-Lei n.º 324/95, de 29 de novembro, norma cuja aplicação o juiz recusou, com fundamento em inconstitucionalidade.
Com interesse para os presentes autos, pode ler-se na sentença:
«Vem, por último, imputada à arguida a prática da contraordenação prevista e punível pelo n.º 2 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 324/95, de 29 de Novembro, que transpõe para a ordem jurídica interna as Diretivas n.ºs 92/91/CEE, de 3 de Novembro, e 92/104/CEE, de 3 de dezembro, relativas às prescrições mínimas de saúde e segurança a aplicar nas indústrias extrativas por perfuração a céu aberto ou subterrâneas, em virtude de esta não ter suspendido os trabalhos suscetíveis de destruírem ou alterarem os vestígios deixados na sequência do acidente de trabalho ocorrido com o trabalhador B..
A infração em causa é qualificada como contraordenação Muito Grave, nos termos do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 324/95 de 29 de novembro.
Dispõe o art. 9º do DL nº 324/95 de 29 de novembro que dispõe que; “Sem prejuízo de outras notificações previstas em legislação especial, o empregador deve comunicar ao Instituto de Desenvolvimento e Inspeção das Condições de Trabalho, no prago de vinte e quatro horas, os acidentes de que resultem a morte ou lesão grave de trabalhadores, ou que, independentemente da produção de tais danos pessoais, evidenciem ima situação particularmente grave para a segurança ou a saúde dos trabalhadores”
E no nº 2 do mesmo artigo 19º dispõe-se que “O participante do acidente deve suspender todos os trabalhos suscetíveis de destruírem ou alterarem os vestígios deixados, sem prejuízo da assistência aprestar às vítimas.”
Antes de nos pronunciarmos acerca do preenchimento do tipo de contraordenação crê-se que se nos impõe, questionarmo-nos acerca da suficiente determinação pelo tipo “incriminador”, das condutas típicas suscetíveis de configurar a prática da presente infração.
Da articulação das normas transcritas resulta que o empregador, no caso de ocorrer acidente de que resulte a morte ou lesão grave de trabalhador/es (no segmento que ora nos importa), deve comunicar o facto à Autoridade para as Condições do Trabalho, nas 24 horas seguintes à ocorrência e deve suspender todos os trabalhos suscetíveis de destruírem ou alterarem os vestígios deixados.
No caso, a arguida alega não ter tido noção da gravidade do acidente no momento da sua ocorrência, uma vez que o sinistrado permanecia consciente e comunicante.
Antes de nos pronunciarmos sobre se a conduta sob escrutínio, consubstancia, ou não, a violação do dever de cuidado exigível e de que arguida era capaz, segundo os conhecimentos que detinha à data da ocorrência do sinistro, importa definir, em que termos poderá ser densificada a conduta típica, qual seja, a não suspensão de todos os trabalhos suscetíveis de destruírem ou alterarem os vestígios deixados em caso de acidente de que resulte a morte ou lesão grave de trabalhador ou em que, independentemente da produção de tais danos pessoais, evidenciem uma situação particularmente grave para a segurança ou a saúde dos trabalhadores.
Importa então aferir se nos encontramos perante uma descrição “demasiado vaga” da conduta, insuficiente para permitir uma determinação minimamente aceitável de uma infração de mera ordenação social, constituída que é por conceitos indeterminados que não permitem ao empregador saber se deve ou não comunicar o acidente de trabalho.
E de facto, se a fórmula «acidentes mortais» constitui um enunciado facilmente determinável em sede interpretativa, já que é possível fixar objetivamente o conceito de «morte» com recurso à experiência comum, o mesmo não ocorre com as expressões «lesão grave» e «situação particularmente grave», que são insuscetíveis como tal de exprimir com suficiente determinação os acidentes de trabalho que, no contexto das atividades mineiras, devem ser comunicados às autoridades fiscalizadoras das condições de segurança no trabalho e, consequentemente, determinar as suspensão dos trabalhos, para a preservação dos indícios.
Realmente, as expressões em causa revestem-se de um elevado grau de indeterminação no seu conteúdo normativo, para além da sua significação semântica, isto é, o sentido nelas pressuposto não pode ser objetivamente determinável em toda a sua extensão.
Sabe-se que nem todos os acidentes de trabalho devem ser comunicados às autoridades, mas de entre aqueles que devem ser participados há uma zona de indefinição e de insegurança que, sem um desenvolvimento complementar, não é compatível com o mínimo de determinação exigível ao tipo contraordenacional.
Se o recurso à experiência comum ou a conhecimentos científicos e técnicos do ramo da medicina permite conhecer os casos que seguramente estão abrangidos ou excluídos do conceito de «lesão grave» e «situação particularmente grave», há um número indefinido de situações relativamente às quais pode não haver um entendimento unívoco quanto à valoração da gravidade do acidente para efeitos de comunicação às autoridades do trabalho.
Decerto que um acidente que evidencie a perda de um membro importante do corpo, da visão, da audição ou a invalidez é um acidente que objetivamente está incluído no conceito de «lesão grave»; de igual modo, um acidente de que resulte uma ligeira laceração ou dor muscular que não determine a incapacidade para o trabalho é uma hipótese que objetivamente não está coberta pelo mesmo conceito.
Mas pode haver alterações na integridade psicofísica do trabalhador que nem o recurso às regras da experiência e da ciência permite determinar com segurança se o acidente deve ou não ser comunicado às autoridades: um acidente de que resulte um entorse ou luxação com incapacidade para o trabalho por oito dias deve justificar aquela comunicação, poderá considerar-se lesão grave?
A resposta só pode ficar à mercê da avaliação subjetiva-individual de cada empregador, pois aí deixa de haver lugar para uma opção objetivamente fundada. De facto, não é a perícia médica, a experiência comum ou as convicções éticas e culturais da comunidade que ditam se aquela lesão é ou não especialmente grave para os efeitos intencionados pelo dever de comunicação. Há aqui um espaço em branco, um vazio normativo, que apenas a subjetividade do empregador poderá preencher (...).
Para além dos fins que determinaram a imposição do dever de comunicação, a norma do artigo 9o do DL n.º 324/95, quer no seu n.º 1 quer no seu n.º 2, não fornece pois um ponto de orientação suficientemente determinado para que o empregador possa conhecer com rigor quais os acidentes de trabalho que determinam a respetiva comunicação e suspensão dos trabalhos, nem sequer vem acompanhado de uma enumeração casuística de exemplos de lesões graves ou de «situação particularmente grave», que permita uma objetivação adequada e suficiente ou de uma remissão para outras fontes normativas que complementem e determinem aqueles casos.
Sabe-se que estes métodos e técnicas legislativas, desde que permitam de forma suficientemente autónoma formular o facto ilícito, não põem em causa o sentido fundamental do princípio nullum crimen (...). Mas na ausência dessa regulamentação típica, fica-se por uma indeterminação normativa demasiado excessiva quanto à indicação dos acidentes de trabalho que o empregador deve comunicar à ACT e que determinam a suspensão dos trabalhos, de forma a preservar os indícios.
Decerto que o legislador ao impor o dever de suspensão dos trabalhos não o fez para permitir manifestações meramente subjetivas dos empregadores, mas sim para que se realizassem os fins que o determinaram a estabelecer tal obrigação – de suspensão. Tal obrigação está diretamente relacionada com a norma do n.º 2 do artigo 279.º do Código do Trabalho, na versão então vigente, que atribui à ACT a competência para «realizar inquéritos em caso de acidente de trabalho mortal ou que evidencie uma situação particularmente grave». Por conseguinte, o dever de comunicação do acidente tem por finalidade permitir à ACT conhecer os casos que justificam a realização de um inquérito às condições de segurança em que o trabalho estava a ser prestado.
O emprego do adjetivo «grave» e da expressão «particularmente grave» subtraem a aplicação do normativo em causa a um entendimento unívoco, já que a sua aplicação ao caso concreto pode envolver juízos de valor que inevitavelmente contêm elementos subjetivos, muitos deles integrados numa prognose.
Quanto às normas que proíbem ações ou impõem omissões, cuja prática é cominada com uma sanção, a legalidade tem uma função de garantia, exigida pelo princípio do Estado de Direito, que só é cumprida se houver um mínimo de determinabilidade dos comportamentos proibidos.
Ou seja, a norma deve ser minimamente clara e precisa para que o agente possa saber, a partir do texto legal, quais os atos ou omissões que acarretam a sua responsabilidade.
Ora, é esse mínimo de objetivação que falha na formulação legal do dever de comunicação dos acidentes de trabalho e suspensão dos trabalhos às autoridades administrativas que é imposto aos empregadores.
Para exprimir esse dever de suspensão dos trabalhos, cremos que não se mostra adequado e suficiente usar o enunciado «lesão grave», dado o elevado grau de indeterminação nele implicado, podendo, em certos casos, os empregadores ficar numa situação de dúvida e incerteza quanto à identificação das lesões graves, cuja ocorrência, como consequência de acidente de trabalho, devem determinar a suspensão dos trabalhos, para a preservação dos indícios, para que a ACT possa levar a cabo a sua atividade investigatória (fratura do membro? Rutura de ligamento? Luxação? Entorse? Corte superficial na zona da cabeça e face?...).
Deve considerar-se, por isso, excluído que devam determinar a suspensão dos trabalhos, sob pena de se incorrer em contraordenação, acidentes de que decorram lesões que só posteriormente, e em resultado da evolução clínica do sinistrado, venham a determinar sequelas que, inicialmente, em função da natureza e da gravidade da lesão, não eram previsíveis?...
O subjetivismo aumenta se nos reportarmos ao segundo segmento do n.º1 do artigo 9º referido, isto é, ao dever de suspensão de trabalhos, em caso de acidentes em que, independentemente da produção de tais danos pessoais, evidenciem uma situação particularmente grave para a. segurança ou a saúde dos trabalhadores.
A densificação do conceito de «situação particularmente grave para a segurança ou a saúde dos trabalhadores», tem contornos ainda menos precisos e aberto a subjetivismo, aumentando o grau de incerteza jurídica quanto ao conteúdo da conduta típica, afrontando o princípio da segurança jurídica.
A opção legislativa pela fórmula «situação particularmente grave», abre-se a uma pluralidade de escolhas, tantas quantas as subjetividades que as constituem, gerando assim dúvidas e incertezas quanto ao tipo de acidentes de trabalho que devem ser comunicados à ACT e determinar a suspensão dos trabalhos. E não são as autoridades do trabalho, na sua função sancionadora, ou as autoridades judiciais, na sua função de controlo, quem vão dizer qual é a única solução válida, pois o grau de abertura do conceito indeterminado «particularmente grave» não deixa de possibilitar a intervenção das suas opções pessoais.
Ora, ao abrir-se as portas à mera subjetividade, o agente não encontra no texto da lei a objetivação necessária e adequada que garanta a segurança e confiança jurídicas.
Assim, conclui-se que a norma do artigo o n.º 2 do artigo 9.º, por referencia ao n.º 1, do Decreto-Lei n.º 324/95, de 29 de novembro revela um tal grau de indeterminação na definição da conduta contraordenacional que não satisfaz as exigências dos princípios do Estado de direito democrático, da segurança jurídica e da confiança, pelo é inconstitucional, por violação do artigo 2.º da Constituição, recusando-se, por conseguinte, a sua aplicação.»
3. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório de constitucionalidade, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, enunciando o respetivo objeto da seguinte forma: «apreciação da constitucionalidade da norma legal prevista no n.º 2 do art. 9.º[,] por referência ao n.º 1 do mesmo preceito[,] do Decreto-Lei n.º 324/95[,] de 29/11, que impõe ao participante do acidente a obrigação de suspensão dos trabalhos suscetíveis de destruírem ou alterarem vestígios, no caso de acidentes de que resultem a morte ou lesão grave dos trabalhadores, por violação do disposto no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.»
Notificado pelo relator no Tribunal Constitucional para indicar a exata base legal da norma sindicada, o recorrente respondeu da seguinte forma: «na sua estrutura e formulação perfeitas (com previsão e estatuição), e em conformidade com o teor da decisão recorrida, o enunciado da norma jurídica recorrida é o previsto no artigo 9.º, n.º 2, com referência ao n.º 1 do mesmo preceito, e punido como “contraordenação” no artigo 11.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei [n.º] 324/95 de 29 de Novembro (Transpõe para a ordem jurídica interna as Directivas nºs 92/91/CEE, de 3 de Novembro, e 92/104/CEE, de 3 de Dezembro, relativas às prescrições mínimas de saúde e segurança a aplicar nas indústrias extractivas por perfuração a céu aberto ou subterrâneas).»
As partes foram então convidadas a produzir alegações.
4. O Ministério Público apresentou alegações de que importa extrair o seguinte:
«26º
Os factos são, com efeito, claros nos presentes autos, como se viu: o esmagamento de um trabalhador, com mais de 10 anos de experiência, numa mina gerida pela empresa arguida, devido à utilização de uma locomotiva por quem não tinha habilitação legal para o efeito, com sinais visíveis de sangue no sinistrado, em acidente devidamente inscrito no plano de segurança e saúde da mesma empresa.
Que dúvida legítima se poderá, pois, ter sobre o carácter grave do acidente, acidente, esse, que a própria magistrada judicial reconhece e pune com coima adequada?
27º
A argumentação da digna magistrada judicial é, a este respeito, pelo menos no entendimento do signatário, contraditória com o que havia justamente defendido em momento anterior da sua decisão, como acima se procurou destacar.
Esquecendo-se, aliás, ou, pelo menos, não valorando devidamente, a mesma magistrada, o facto de o Decreto-Lei 324/95, de 29 de Novembro, ter vindo transpor, para a ordem jurídica interna, as Directivas nºs 92/91/CEE, de 3 de Novembro, e 92/104/CEE, de 3 de Dezembro, relativas às prescrições mínimas de saúde e segurança a aplicar nas indústrias extractivas por perfuração a céu aberto ou subterrâneas.
O que significa que a não transposição das mesmas Directivas (cfr. artigo 12º da primeira Directiva e artigo 13º da segunda Directiva), ou a eventual constatação, agora, da inconstitucionalidade material do Decreto-Lei 324/95, acarretará a responsabilidade internacional do Estado português, por incumprimento das suas obrigações de Estado membro da União Europeia.
28º
Com efeito, o artigo 3º (“Obrigações gerais”), nº 4, da Directiva nº 92/91/CEE, de 3 de novembro, refere expressamente:
“4. A entidade patronal fará sem demora relatório às autoridades competentes sobre todos os acidentes de trabalho graves e/ou mortais, bem como sobre qualquer situação de perigo grave. Se necessário, a entidade patronal procederá à actualização do documento de segurança e saúde, indicando as medidas tomadas para evitar que a situação se repita.”
Por outro lado, o artigo 3º (“Obrigações gerais”), nº 4, da Directiva nº 92/104/CEE, de 3 de dezembro, refere também expressamente:
“4. O mais cedo possível, a entidade patronal apresentará às autoridades competentes um relatório sobre todos os acidentes de trabalho graves e/ou mortais, bem como sobre quaisquer outras situações de perigo grave.”
Ora, a redacção utilizada nestas duas Directivas é sensivelmente idêntica à utilizada no artigo 9º, nº 1, do Decreto-Lei 324/95, cuja redacção, constante da sentença recorrida (cfr. fls. 452 verso dos autos), é a seguinte:
“1 - Sem prejuízo de outras notificações previstas em legislação especial, o empregador deve comunicar ao Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho, no prazo de vinte e quatro horas, os acidentes de que resultem a morte ou lesão grave de trabalhadores, ou que, independentemente da produção de tais danos pessoais, evidenciem uma situação particularmente grave para a segurança ou a saúde dos trabalhadores.
É certo que o nº 2 desta mesma disposição veio acrescentar:
“2 - O participante do acidente deve suspender todos os trabalhos susceptíveis de destruírem ou alterarem os vestígios deixados, sem prejuízo da assistência a prestar às vítimas.”
No entanto, um tal complemento parece decorrer da parte final do artigo 3º, nº 4, da Directiva nº 92/91/CEE, de 3 de novembro, que refere:
“Se necessário, a entidade patronal procederá à actualização do documento de segurança e saúde, indicando as medidas tomadas para evitar que a situação se repita.”
Ora, será que ao determinar o prosseguimento da sua normal actividade, a empresa arguida terá acautelado esta preocupação?
Sobretudo quando foi ela própria, por sua iniciativa, que comunicou os factos à ACT, nos termos do artigo 9º, nº 1, do Decreto-Lei 324/95, nessa medida aceitando, implicitamente, o carácter grave do acidente verificado?
29º
Acresce, que a digna magistrada judicial parece ter esquecido, enquanto magistrada da jurisdição laboral, os objectivos prosseguidos, pelas Directivas nºs 92/91/CEE, de 3 de novembro e 92/104/CEE, de 3 de dezembro, bem como pelo Decreto-Lei 324/95, ou seja, assegurar as prescrições mínimas para a protecção da segurança e da saúde dos trabalhadores das indústrias extractivas por perfuração, a céu aberto ou subterrâneas.
Sendo certo que a comunicação de acidentes de particular gravidade à ACT, a que a empresa arguida, aliás, procedeu, tem, justamente, por preocupação, a necessidade de evitar o desaparecimento de vestígios de condutas não conformes com a legislação em vigor, em relação a casos em que a segurança e a saúde dos trabalhadores estejam em maior risco.
30º
Assim, em vez de recorrer à experiência comum ou a conhecimentos científicos e técnicos do ramo, ou à ponderação dos riscos próprios da actividade da empresa arguida, como muito bem refere a magistrada recorrida, que, no caso sub judice, levou ao esmagamento de um trabalhador, a mesma magistrada, para decidir a questão que lhe foi colocada, preferiu a originalidade, legítima, aliás, de recusa de uma norma por inconstitucionalidade material, no seguimento da jurisprudência deste Tribunal Constitucional a propósito, porém, de norma bastante diferente, objecto do Acórdão 76/16, de 3 de Fevereiro (Relator: Conselheiro Lino Ribeiro).
O mesmo Acórdão concluiu, com efeito, pela inconstitucionalidade material da norma do artigo 257.º, nº 1, da Lei n.º 35/2004, de 29 de julho, que aprovou a Regulamentação do Código do Trabalho e cuja redacção era a seguinte:
“1. Sem prejuízo de outras notificações previstas em legislação especial, o empregador deve comunicar à Inspeção-Geral do Trabalho os acidentes mortais ou que evidenciem uma situação particularmente grave, nas vinte e quatro horas seguintes à ocorrência.”
Ora, é coisa substancialmente diferente a existência de uma tal norma num Regulamento do Código do Trabalho, que é de âmbito genérico e se aplica, por esse motivo, a qualquer actividade profissional, e o Decreto-Lei 324/95, que se aplica exclusivamente às prescrições mínimas de segurança e saúde no trabalho a aplicar nas indústrias extractivas por perfuração a céu aberto e subterrâneas, de âmbito muito mais restrito.
Sublinhe-se, aliás, para melhor clarificação da posição defendida pelo signatário nos presentes autos, que no processo que levou à prolação do referido Acórdão 76/16, o Ministério Público se pronunciou também no sentido da não inconstitucionalidade da referida norma.
31º
Por seu lado, o Acórdão 825/17, de 12 de dezembro (Relatora: Conselheira Fátima Mata-Mouros), veio considerar, na esteira do Acórdão 76/16, inconstitucional a norma que estabelece que constitui contraordenação grave a violação do dever do empregador comunicar, à Autoridade para as Condições do Trabalho, os acidentes que “evidenciem uma situação particularmente grave, nas vinte e quatro horas a seguir à ocorrência”, decorrente da interpretação do artigo 111.º, n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro, na redação original.
Ora, também nos referidos autos, o Ministério Público apresentou alegações em sentido diferente do então decidido pelo Tribunal Constitucional, tendo referido, nas respectivas conclusões (destaques do signatário):
“1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos artigos 69.º, 70.º, n.º 1, al. a), 71º, 72.º, n.º 3, 75.º e 78.º, da LOFPTC, “da decisão de referência 73776602” dos autos de proc. n.º 1275/16.9T8TMR, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém / Instância Central - 2.ª secção do Trabalho - J1 (Recurso de Contraordenação, Lei 107/2009), fls. 357 a 373, em que é recorrente A., S. A. e recorrido o Ministério Público, na medida em que na mesma se “recusou a aplicação do disposto no art. 111.º, n.º 1 e 3 da Lei 102/2009 de 10/09, na redação original, quando determina que o empregador deve comunicar à Autoridade para as Condições do Trabalho [doravante, ACT] os acidentes que “evidenciem uma situação particularmente grave nas vinte e quatro horas a seguir à ocorrência” com fundamento na sua Inconstitucionalidade por violação dos princípios da legalidade e da tipicidade previstos no art.º 29.º da Constituição da República Portuguesa”.
2.ª) Só em primeira análise a fórmula legal dos sinistros de trabalho “(…) que evidenciem uma situação particularmente grave” contante do artigo 111.º, n.º 1, cit., descreve um “conceito indeterminado”, pois ulteriormente a administração do trabalho se encarregou, através da “circular interpretativa” intitulada “A Inspeção do Trabalho e os Inquéritos de Acidente de Trabalho e Doença Profissional”, que é de conhecimento público, de o concretizar enumerando as hipóteses típicas da respetiva aplicação aos casos da vida ou, em última análise, o mesmo é passível de ser concretizado através de procedimentos médicos ou em sede da colaboração da administração do trabalho com os empregadores, assim vencendo a inicial imprecisão conceitual e, a final, surtindo o comportamento ilícito determinado e inteligível, do ponto de vista dos seus destinatários típicos.
4.ª) Em última instância, por simples cautela, o empregador deverá proceder à comunicação, pois tal dever notoriamente não é de reputar como excessivo, uma vez que os módicos custos do respetivo cumprimento são, em grandíssima medida, compensados pelo potencial benefício humano, social e económico associado e decorrente da coleta de informação em causa pela administração do trabalho (maior acerto na sua ação no domínio fundamental da promoção da segurança, da saúde e do bem-estar no trabalho) para os trabalhadores e para os próprios empregadores (conhecer melhor as necessidades de correção das medidas de controlo de riscos aplicadas nos locais de trabalho).
5.ª) Em conclusão, não concorre inconstitucionalidade material da hipótese legal do n.º 1 do artigo 111.º, n.º 1, na parte em que faz uso do “conceito indeterminado” de acidentes de trabalho “que evidenciem uma situação particularmente grave”, como fonte do dever de comunicar ali estabelecido, seja por violação do princípio constitucional da “segurança jurídica”, seja do princípio constitucional da “tipicidade”, no sentido, respetivamente, dos artigos 2.º e 29.º, n.º 1, ambos da Constituição.
Nestes termos, concedendo provimento ao presente recurso, por concorrer erro de julgamento, na modalidade de erro de interpretação da norma jurídica cuja aplicação foi recusada, deverá ser revogada a decisão recorrida, baixando então os autos ao tribunal recorrido, a fim de que este a reforme em conformidade com o julgamento de inconstitucionalidade (LOFPTC, art. 80.º, n.º 2).”
32º
Ora, não se vê razão para alterar a posição anteriormente defendida pelo Ministério Público em casos semelhantes ao dos presentes autos.
Nos presentes autos, estamos perante uma norma constante de um diploma relativo a uma área específica de actividade (indústrias extractivas por perfuração a céu aberto e subterrâneas) e que, por esse motivo, envolve menor dificuldade no recurso à experiência comum ou a conhecimentos científicos e técnicos do ramo, ou à ponderação dos riscos próprios da actividade da empresa arguida.
Julga-se, ainda, que um dever de elementar cautela e prudência deveria ter levado a entidade patronal, no seguimento da comunicação à ACT de uma ocorrência com a gravidade do esmagamento de um trabalhador - o que parece ter como implícito o reconhecimento da gravidade de um tal acidente -, a suspender a laboração na área sinistrada, para evitar o desaparecimento dos vestígios a ele relativos.
Para além do mais, quando este tipo de sinistros se encontra previsto no seu plano de segurança e saúde.
Tal dever de comunicação e de suspensão dos trabalhos na área sinistrada, não se poderão considerar ónus excessivos, tanto mais que a empresa arguida poderia perfeitamente ter utilizado o seu pessoal noutras áreas da mina, a cuja exploração procede.
Por outro lado, só o bom e tempestivo cumprimento deste dever de comunicação permitirá a efetiva prossecução e garantia, pela administração do trabalho, dos bens e interesses de eminente relevância, humana, social e económica, consagrados como imperativos constitucionais, seja a título objetivo, como “tarefas fundamentais do Estado”, seja a título subjetivo, como de “direitos fundamentais dos trabalhadores”, da segurança, saúde e do bem-estar no trabalho.
33º
Acresce, que se salvaguarda também, desta forma, a responsabilidade internacional do Estado português pela adequada transposição das Directivas nºs 92/91/CEE, de 3 de novembro e 92/104/CEE, de 3 de dezembro, relativas às prescrições mínimas de saúde e segurança a aplicar nas indústrias extractivas por perfuração a céu aberto ou subterrâneas.
34º
Assim, por todas as razões invocadas ao longo das presentes alegações, julga-se que este Tribunal Constitucional deverá:
a) conceder provimento ao recurso obrigatório de constitucionalidade interposto, nos presentes autos, pelo Ministério Público, por concorrer erro de julgamento, na modalidade de erro de interpretação da norma jurídica cuja aplicação foi recusada;
b) julgar constitucionalmente conforme o art. 9º, nº 2, com referência ao nº 1 do mesmo preceito e punido como “contraordenação” no artigo 11º, nº 1, ambos do Decreto-Lei 324/95, de 29 de novembro, que transpôs para a ordem jurídica interna as Directivas nºs 92/91/CEE, de 3 de novembro e 92/104/CEE, de 3 de dezembro, relativas às prescrições mínimas de saúde e segurança a aplicar nas indústrias extractivas por perfuração a céu aberto ou subterrâneas;
c) revogar, nessa medida, a sentença recorrida de 18 de outubro de 2019, da digna magistrada judicial do Juízo do Trabalho da Covilhã, Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco.»
5. A recorrida contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
«III. Conclusões
A. O artigo 9.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 324/95, de 29 de novembro, é inconstitucional, por violação do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
B. A Lei não consagra, de forma expressa, nem através de remissão para outras fontes normativa, o que deve considerar-se a “lesão grave” ou a “situação particularmente grave” que obriga o empregador a proceder à comunicação do acidente à ACT e a suspender os trabalhos.
C. Violando, nessa medida, os princípios da legalidade e da tipicidade consagrados na Constituição da República Portuguesa, aplicáveis ao direito contraordenacional, enquanto direito sancionatório público, que restringe direitos fundamentais relevantes.
D. Segundo estes princípios, as normas que preveem tipos contraordenacionais devem garantir um mínimo de determinabilidade e definir o núcleo essencial da proibição contraordenacional, não podendo conter conceitos indeterminados e vagos (cfr. acórdãos 76/2016 e 825/17 do Tribunal Constitucional).
E. Essa determinabilidade não ocorre no caso da norma em causa, pois que, do texto da lei, o empregador, cidadão comum sem conhecimentos médicos (que não resultem da experiência comum,) não consegue identificar, em todos os casos, a necessidade de proceder à comunicação do acidente e à suspensão dos trabalhos.
F. Não se tratando de um caso em que é possível identificar, com segurança, dadas circunstâncias óbvias, que está abrangido ou excluído dos conceitos de “gravidade” consagrados, como é o caso, o empregador entrará numa zona de indefinição e de insegurança, incompatível com as exigências constitucionais.
G. Existindo na norma do artigo 9.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 324/95, de 29 de novembro, um vazio normativo, esta é, efetivamente, inconstitucional, por violação dos princípios do Estado de direito democrático, da segurança jurídica e da confiança, pelo que assiste razão ao Tribunal recorrido.
Face ao exposto, deverá ser julgada inconstitucional a norma do artigo 9.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 324/95, de 29 de novembro, por violação do disposto no artigo 2.º da Constituição, jugando-se, consequentemente, improcedente, o recurso interposto pelo Ministério Público, só assim se fazendo Justiça!»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. No presente recurso está em causa a questão de saber se o tipo contraordenacional previsto em norma que resulta da conjugação do n.º 2 do artigo 9.º, por referência a determinados segmentos do n.º 1, com o n.º 1 do artigo 11.º, todos do Decreto-Lei n.º 324/95, de 29 de novembro − diploma que «transpõe para o direito interno as prescrições mínimas de segurança e de saúde a aplicar nas indústrias extractivas por perfuração a céu aberto ou subterrâneas» −, infringe o princípio da determinabilidade das leis, concretamente da tipicidade das leis punitivas, contido no princípio mais amplo da segurança jurídica, por seu turno ínsito no artigo 2.º da Constituição.
A conjugação dos citados preceitos pode ser rigorosamente enunciada nos seguintes termos: «É contraordenação a violação pelo empregador do dever de suspender todos os trabalhos suscetíveis de destruírem ou alterarem os vestígios deixados por acidente de que resulte morte ou lesão grave de trabalhadores ou que, independentemente da produção de tais danos pessoais, evidencie uma situação particularmente grave para a segurança ou a saúde dos trabalhadores.» Como é bom dever, este enunciado contém três segmentos normativos autónomos, referentes aos casos de acidente de que resulte morte de trabalhadores, lesão grave de trabalhadores ou que evidencie uma situação particularmente grave para a saúde e segurança dos trabalhadores.
Coloca-se a questão de saber qual destas normas foi julgada aplicável – e, nessa sequência, cuja aplicação foi efetivamente recusada – nos presentes autos. É evidente que não se tratou do segmento do n.º 1 do artigo 9.º que respeita aos casos de acidente de que resulte «morte de trabalhadores», visto que na situação dos autos o acidente de trabalho não resultou na morte do sinistrado; de resto, este segmento normativo constitui – segundo a decisão recorrida – um «enunciado facilmente determinável».
Não é evidente qual dos dois outros segmentos normativos foi julgado aplicável nos autos. Muito do discurso da decisão recorrida se estende indistintamente a ambos, por exemplo quando se refere que, «as expressões em causa [lesão grave e situação particularmente grave] revestem-se de um elevado grau de indeterminação no seu conteúdo normativo, para além da sua significação semântica, isto é, o sentido nelas pressuposto não pode ser objetivamente determinável em toda a sua extensão». Esta e outras passagens podem dar a entender que a decisão recorrida não subsumiu o caso dos autos em nenhum dos dois segmentos, tendo tomado todos os casos em que não se verifica morte de trabalhadores como um único conjunto em que a incidência do dever se baseia na fórmula disjuntiva «lesão grave ou situação particularmente grave». Só que essa interpretação é incompatível com a própria estrutura do preceito, que delimita inequivocamente três classes de casos através de três conceitos distintos.
A noção de que na decisão recorrida se julgaram aplicáveis ambos os segmentos normativos – e que, assim, se verificou nos autos uma dupla recusa de aplicação de normas − é igualmente inaceitável. Se a situação dos autos se subsume no conceito de «lesão grave», não pode o Tribunal a quo ter recusado efetivamente a aplicação do segmento relativo a «acidente de trabalho que evidencie uma situação particularmente grave»; o que a respeito deste último consta na decisão recorrida será, nesse caso, mero obter dicta. Se, pelo contrário, o Tribunal a quo recusou efetivamente a aplicação do segmento que respeita a acidente que «evidencie uma situação particularmente grave», só o pode ter feito no pressuposto de que esse segmento, e não o que diz respeito a lesão grave, é aplicável nos autos. Em suma, é aplicável no caso vertente uma ou a outra das duas normas – tertium non datur. É claro que o Tribunal recorrido pode ter tido dúvidas sobre se a situação dos autos se subsume no conceito de lesão grave; porém, não podendo os tribunais abster-se de julgar com fundamento na dificuldade da questão ou na obscuridade da lei, era indispensável que tomasse uma decisão sobre a norma aplicável.
Por fim, não se pode aceitar a ideia de que a decisão recorrida apreciou a constitucionalidade de ambos os segmentos antes de determinar qual dos dois era aplicável ao caso dos autos. E isto pelo facto de que o recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC pressupõe a utilidade da pronúncia do Tribunal Constitucional sobre a conformidade constitucional de cada uma das normas que integra o respetivo objeto, consubstanciada no dever de o tribunal recorrido, em caso de provimento do recurso quanto a determinada norma, reformar a decisão de acordo com o julgamento sobre a questão de constitucionalidade. Por outras palavras, a jurisdição constitucional não se pronuncia sobre questões hipotéticas, designadamente a respeito da constitucionalidade de normas que o tribunal a quo entende serem eventualmente aplicáveis nos autos. Daí o requisito de que, nos casos de recusa de aplicação, a mesma tenha sido efetiva.
Ora, tendo em conta que a decisão recorrida progrediu para a apreciação da constitucionalidade do segmento normativo cuja aplicabilidade é residual ou subsidiária – aquele que respeita a «acidente que evidencie uma situação particularmente grave para a saúde e segurança dos trabalhadores» −, não pode deixar de presumir-se que julgou inaplicável, não apenas a norma que respeita aos casos de morte, mas ainda aqueloutra que incide sobre os casos de lesão grave de trabalhadores. Só assim se torna plenamente inteligível, no contexto de uma decisão judicial, a afirmação segundo a qual, «o subjetivismo aumenta se nos reportarmos ao segundo segmento (…) de acidentes [que] evidenciem uma situação particularmente grave para a. segurança ou a saúde dos trabalhadores. A densificação do conceito de “situação particularmente grave” para a segurança ou a saúde dos trabalhadores», tem contornos ainda menos precisos e aberto a subjetivismo, aumentando o grau de incerteza jurídica quanto ao conteúdo da conduta típica, afrontando o princípio da segurança jurídica. (…). Ao abrir-se as portas à mera subjetividade, o agente não encontra no texto da lei a objetivação necessária e adequada que garanta a segurança e confiança jurídicas.»
É este segmento normativo, pois, o objeto do presente recurso.
7. Como reconhece o Ministério Público, a norma cuja constitucionalidade é apreciada no presente recurso tem evidentes afinidades com aquela sobre a qual incidiu o Acórdão n.º 76/2016, que se apoia num acervo consolidado de jurisprudência constitucional. Nessa decisão, julgou-se inconstitucional, por violação do artigo 2.º da Constituição, norma contida no diploma regulamentador do Código do Trabalho que cominava como contraordenação a violação do dever de comunicar à Autoridade para as Condições do Trabalho, nas vinte e quatro horas posteriores à ocorrência, «os acidentes que evidenciem uma situação particularmente grave». Sem prejuízo da consideração ulterior de putativas diferenças relevantes entre a norma então julgada inconstitucional e aquela que constitui o objeto do presente recurso, algumas das quais expressamente referidas pelo recorrente, importa reconstituir o essencial da fundamentação de que se valeu o referido aresto.
8. O Tribunal começou por considerar o alcance do princípio da tipicidade, expressamente consagrado para os crimes no artigo 29.º da Constituição, no domínio das infrações contraordenacionais.
Fê-lo nos seguintes termos:
«Tratando-se de uma coima aplicada em processo de contraordenação laboral a primeiro dúvida que se levanta consiste em saber se os princípios constitucionais básicos em matéria de punição criminal constantes do artigo 29.º da CRP se aplicam também aos tipos de ilícitos contraordenacionais.
A Constituição faz referência ao direito contraordenacional (i) na alínea d), do n.º 1, do artigo 165.º, que inclui o regime geral do ilícito de mera ordenação social na reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República; (ii) na alínea q), do n.º 1, do artigo 227.º, que atribui às regiões autónomas o poder de definir ilícitos contraordenacionais; (iii) no n.º 3 do artigo 283.º, que define o regime dos efeitos repristinatórios da declaração de inconstitucionalidade, permitindo a revisão do caso julgado inconstitucional; (iv) e no n.º 10 do artigo 32.º, que assegura ao arguido em processo de contraordenação o direito de audiência e defesa.
Não obstante a previsão do ilícito contraordenacional nesses pontos concretos, a Constituição não indica expressamente que outros princípios constitucionais são aplicáveis ao direito de mera ordenação social, o que provoca a discussão sobre a aplicabilidade, e em que termos, das normas e princípios constitucionais em matéria penal a esse domínio. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao artigo 29.º da CRP, «é problemático saber em que medida é que os princípios consagrados neste artigo são extensivos a outros domínios sancionatórios. A epígrafe «aplicação da lei criminal» e o teor textual do preceito restringem a sua aplicação direta apenas ao direito criminal propriamente dito (crimes e respetivas sanções)» - (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª ed. pág. 498).
Mas o facto de as contraordenações fazerem parte do poder punitivo estadual, cuja expressão máxima se encontra no direito penal, justifica que o seu regime jurídico seja influenciado pelos princípios e regras comuns a todo o direito sancionatório público. O direito de mera ordenação social é um direito sancionador, que permite à Administração participar no exercício do poder punitivo estadual, aplicando penalidades aos administrados, o que significa que esse direito e esse poder, enquanto emanação do jus puniendi, estão matizados pelos princípios e pelas regras “penais”. Por isso, há de admitir-se que os princípios constitucionais do direito penal possam influenciar os direitos sancionadores que derivam da mesma matriz. (…).
O que não significa, é evidente, que não deixe de haver diferenciações na extensão desses princípios ao domínio contraordenacional. É que a autonomia material do ilícito de mera ordenação social em relação ao ilícito penal, que dá origem a um sistema punitivo próprio, com espécies de sanção, com procedimentos punitivos e agentes sancionadores distintos, obsta a que se proceda a uma transposição automática e imponderada para o direito de mera ordenação social dos princípios constitucionais que regem a legislação penal. (…).
6. Assim acontece com a extensão dos princípios da legalidade e da tipicidade ao domínio contraordenacional.
(…)
A exigência de determinabilidade do conteúdo das normas penais, uma dimensão do denominado princípio da tipicidade, é avessa a que o legislador formule normas penais recorrendo a cláusulas gerais na definição dos crimes, a conceitos que obstem à determinação objetiva das condutas proibidas ou que remeta a sua concretização para fontes normativas inferiores, as chamadas normas penais em branco. A exclusão de fórmulas vagas na descrição dos tipos legais, de normas excessivamente indeterminadas e de normas em branco, leva em conta os valores da segurança e confiança jurídicas postulados pelo princípio da legalidade criminal. Com efeito, a exigência de clareza e densidade suficiente das normas restritivas, como é o caso das normas penais, é um fator de garantia da confiança e da segurança jurídica, «uma vez que o cidadão só pode conformar autonomamente os próprios planos de vida se souber com o que pode contar, qual a margem de ação que lhe está garantida, o que pode legitimamente esperar das eventuais intervenções do Estado na sua esfera pessoal» (Jorge Reis Novais, As restrições aos Direitos Fundamentais, não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, 2ª ed. pág. 770).
Deve reconhecer-se, porém, que a exigência de lex certa, como corolário do princípio da legalidade criminal, não veda em absoluto a formulação dos pressupostos jurídico-constitutivos da incriminação através de elementos normativos, conceitos indeterminados, cláusulas gerais e fórmulas gerais de valor. Seria inviável, até pela natureza da própria linguagem jurídica, uma determinação absoluta do tipo legal de ilícito. (…)
Em princípio, a modelação do tipo legal de crime com recurso a conceitos indeterminados não afronta os princípios da legalidade e da tipicidade. Como reconhece o Tribunal Constitucional, após se interrogar sobre o grau admissível de indeterminação ou flexibilidade normativa em matéria de ilícitos penais, «uma relativa indeterminação dos tipos legais pode mostrar-se justificada, sem que isso signifique violação dos princípios da legalidade e da tipicidade» (Acórdão n.º 93/01).
Mas se é impossível uma total determinação dos elementos compósitos da ação punível, há de exigir-se um grau de determinação suficiente que não ponha em causa os fundamentos do princípio da legalidade. É que o princípio nullum crimen só pode cumprir a sua função de garantia se a regulamentação típica, ainda que indeterminada e aberta, for materialmente adequada e suficiente para dar a conhecer quais as ações ou omissões que o cidadão deve evitar. Como se escreve no Acórdão n.º 168/99, «averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima.
7. Nos demais domínios sancionatórios, como no direito de mera ordenação social e no direito disciplinar, a exigência de tipicidade não se faz sentir com a intensidade que tem no direito criminal. Com maior frequência os enunciados legislativos exprimem-se aí através de cláusulas gerais, conceitos indeterminados e enumerações exemplificativas. (…)
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a sublinhar que a exigência de determinabilidade do tipo que predomina no direito criminal não tem que ter a mesma rigidez e a mesma densidade no domínio contraordenacional. Diz-se no Acórdão n.º 41/2004 que a «Constituição não requer para o ilícito de mera ordenação social o mesmo grau de exigência que requer para os crimes. Nem o artigo 29.º da Constituição se aplica imediatamente ao ilícito de mera ordenação social nem o artigo 165.º confere a este ilícito o mesmo grau de controlo parlamentar que atribui aos crimes»; e nos Acórdãos nºs 397/2012 e 466/12 conclui-se que «não se pode afirmar que as exigências de tipicidade valham no direito de mera ordenação social com o mesmo rigor que no direito criminal».
Todavia, a maior abertura dos tipos contraordenacionais causada pela utilização de cláusulas gerais e conceitos indeterminados não significa uma total ausência de determinação normativa. A norma ou conjunto das normas tipificadoras não podem deixar de descrever com suficiente clareza os elementos objetivos e subjetivos do núcleo essencial do ilícito, sob pena de violação dos princípios da legalidade e da tipicidade e sobretudo da sua teleologia garantística. Daí que só seja admissível uma “relativa indeterminação tipológica” que não saia da “órbitra daquilo que razoavelmente pode exigir-se em rigor descritivo ou limitativo, de modo a não esvaziar de conteúdo a garantia consubstanciada naqueles princípios” (Acórdão n.º 338/03). Exige-se pois um “mínimo de determinabilidade” das condutas ilícitas, de molde a que as decisões sancionatórias associadas sejam previsíveis e objetivas e não arbitrárias para os seus destinatários, que haja segurança na sua identificação e, consequentemente, quanto à sanção aplicável. A exigência de um mínimo de determinabilidade que permita identificar os comportamentos descritos em tipos contraordenacionais (e também em alguns tipos disciplinares) tem sido constante na jurisprudência constitucional, desde a Comissão Constitucional (parecer n.º 32/80, publicado in Pareceres da Comissão Constitucional, 14.º vol. pág. 51 e segs.) até à jurisprudência mais recente (Acórdãos nºs. 282/86, 666/94, 169/99, 93/01, 358/05, 635/2011, 85/2012, 397/12 e 466/12).
Analisando a anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a extensão dos princípios da legalidade e da tipicidade ao domínio contraordenacional, no Acórdão n.º 201/2014 conclui-se que «(i) embora tais princípios não valham “com o mesmo rigor” ou “com o mesmo grau de exigência” para o ilícito de mera ordenação social, eles valem “na sua ideia essencial”; (ii) aquilo em que consiste a sua ideia essencial outra coisa não é do que a garantia de proteção da confiança e da segurança jurídica que se extrai, desde logo, do princípio do Estado de direito; (iii) assim, a Constituição impõe “exigências mínimas de determinabilidade no ilícito contraordenacional” que só se cumprem se do regime legal for possível aos destinatários saber quais são as condutas proibidas como ainda antecipar com segurança a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito».
Deverá, pois, dizer-se que nos tipos contraordenacionais, a exigência de lex certa não será prejudicada com a identificação dos ilícitos mediante conceitos jurídicos indeterminados ou cláusulas gerais se for razoavelmente possível a sua concretização através de critérios lógicos, técnicos ou da experiência que permitam prever, com segurança suficiente, a natureza e as características essenciais das condutas constitutivas da infração tipificada.»
9. Assentes estas premissas, o Tribunal partiu para a sua aplicação ao caso:
«8. A norma sub iudicio, extraída do n.º 1 do artigo 257.º da Regulamentação do Código do Trabalho aprovada pela referida Lei n.º 35/2004, impõe ao empregador o deve de comunicar à Autoridade para as Condições do Trabalho, nas 24 horas seguintes à ocorrência, «os acidentes mortais ou que evidenciem uma situação particularmente grave». Pelo n.º 2 do artigo 482.º do mesmo diploma, a violação desse dever constitui uma contraordenação grave, que é punida nos termos do n.º 2 do artigo 620.º do Código de Trabalho então vigente.
A decisão recorrida recusou aplicar ao caso dos autos o referido preceito, por considerar que contém uma descrição “demasiado vaga” da conduta, insuficiente para permitir uma determinação minimamente aceitável de uma infração de mera ordenação social, constituída que é por conceitos indeterminados que não permitem ao empregador saber se deve ou não comunicar o acidente de trabalho.
E de facto, se a fórmula «acidentes mortais» constitui um enunciado facilmente determinável em sede interpretativa, já que é possível fixar objetivamente o conceito de «morte» com recurso à experiência comum, o mesmo não ocorre com a expressão «evidenciem uma situação particularmente grave», que é insuscetível como tal de exprimir com suficiente determinação os acidentes de trabalho que devem ser comunicados às autoridades fiscalizadoras das condições de segurança no trabalho. Realmente, a expressão reveste-se de um elevado grau de indeterminação no seu conteúdo normativo. Para além da significação semântica da expressão, o sentido nela pressuposto não pode ser objetivamente determinável em toda a sua extensão. Sabe-se que nem todos os acidentes de trabalho devem ser comunicados às autoridades, mas de entre aqueles que devem ser comunicados há uma zona de indefinição e de insegurança que, sem um desenvolvimento complementar, não é compatível com o mínimo de determinação exigível ao tipo contraordenacional. Se o recurso à experiência comum ou a conhecimentos científicos e técnicos do ramo da medicina permite conhecer os casos que seguramente estão abrangidos ou excluídos do conceito de «acidente particularmente grave», há um número indefinido de situações relativamente às quais pode não haver um entendimento unívoco quanto à valoração da gravidade do acidente para efeitos de comunicação às autoridades do trabalho. Decerto que um acidente que evidencie a perda de um membro importante do corpo, da visão, da audição ou a invalidez é um acidente que objetivamente está incluído naquele conceito; de igual modo, um acidente de que resulte uma ligeira laceração ou dor muscular que não determine a incapacidade para o trabalho é uma hipótese que objetivamente não está coberta pelo mesmo conceito. Mas pode haver alterações na integridade psicofísica do trabalhador que nem o recurso às regras da experiência e da ciência permite determinar com segurança se o acidente deve ou não ser comunicado às autoridades: um acidente de que resulte um entorse ou luxação com incapacidade para o trabalho por oito dias é particularmente grave para justificar aquela comunicação? A resposta só pode ficar à mercê da avaliação subjetiva-individual de cada empregador, pois aí deixa de haver lugar para uma opção objetivamente fundada. De facto, não é a perícia médica, a experiência comum ou as convicções éticas e culturais da comunidade que ditam se aquela lesão é ou não especialmente grave para os efeitos intencionados pelo dever de comunicação. Há aqui um espaço em branco, um vazio normativo, que apenas a subjetividade do empregador poderá preencher.
De modo que através da fórmula «evidenciem uma situação particularmente grave» não é possível deduzir ou determinar todos os acidentes de trabalho que o empregador está obrigado a comunicar à ACT. E a dificuldade em conceitualizar os acidentes de trabalho que devem ser comunicados não foi ultrapassada através da indicação de um critério capaz de assegurar ao empregador a imediata cognoscibilidade daqueles acidentes. O conteúdo significativo daquela expressão legal não é imediatamente compreendido ou facilmente interpretado no contexto em que é convocado: o sentido intencional do termo «situação» tanto pode ser a lesão sofrida pelo trabalhador como o tipo de evento e o estado de segurança em que ocorreu o acidente; e o conceito «particularmente grave» é demasiado aberto para que possa ser preenchido com um elevado grau de objetividade, sendo certo que o advérbio «particularmente» ainda mais acentua a dificuldade em pré-determinar dentro dos acidentes graves os que são especialmente graves.
Para além dos fins que determinaram a imposição do dever de comunicação, a norma não fornece pois um ponto de orientação suficientemente determinado para que o empregador possa conhecer com rigor quais os acidentes de trabalho que está obrigado a comunicar. O artigo 257.º objeto de fiscalização nem sequer vem acompanhado de uma enumeração casuística de exemplos de acidentes particularmente graves, que permita uma objetivação adequada e suficiente do que deve ser comunicado às autoridades, ou de uma remissão para outras fontes normativas que complementem e determinem aqueles casos. Sabe-se que estes métodos e técnicas legislativas, desde que permitam de forma suficientemente autónoma formular o facto ilícito, não põem em causa o sentido fundamental do princípio nullum crimen (Acórdãos nºs 559/01, 41/04, 102/08, 115/08, 635/2011). Mas na ausência dessa regulamentação típica, fica-se por uma indeterminação normativa demasiado excessiva quanto à indicação dos acidentes de trabalho que o empregador deve comunicar à ACT.
Decerto que o legislador ao impor o dever de comunicação não o fez para permitir manifestações meramente subjetivas dos empregadores, mas sim para que se realizassem os fins que o determinaram a estabelecer tal obrigação. A imposição aos empregadores da obrigação de comunicarem às autoridades do trabalho certo tipo de acidentes tem em vista a proteção das condições de segurança que devem ser asseguradas aos trabalhadores no local e no tempo de trabalho. Tal obrigação está diretamente relacionada com a norma do n.º 2 do artigo 279.º do Código do Trabalho, na versão então vigente, que atribui à ACT a competência para «realizar inquéritos em caso de acidente de trabalho mortal ou que evidencie uma situação particularmente grave». Por conseguinte, o dever de comunicação do acidente tem por finalidade permitir à ACT conhecer os casos que justificam a realização de um inquérito às condições de segurança em que o trabalho estava a ser prestado. Ora, enquanto pressupostos de atuação da ACT, o conceito indeterminado «situação particularmente grave» convive bem com o princípio da legalidade administrativa. Não obstante o emprego do adjetivo «grave» subtrair a aplicação do artigo 257.º a um entendimento unívoco de uma situação objetiva causadora de danos corporais ao trabalhador, já que a sua aplicação ao caso concreto pode envolver juízos de valor que inevitavelmente contêm elementos subjetivos, muitos deles integrados numa prognose, a sujeição da Administração ao princípio da juridicidade consente uma normatividade indeterminada e aberta como aquela. O espaço de autonomia concedido por aquele conceito permite à Administração criar diretivas internas de execução a determinar quais os acidentes de trabalho que são objeto de inquérito, mas que naturalmente só a ela vinculam.
Diferentemente acontece com as normas que proíbem ações ou impõem omissões cuja prática é cominada com uma sanção. Aí a legalidade tem uma função de garantia, exigida pelo princípio do Estado de Direito, que só é cumprida se houver um mínimo de determinabilidade dos comportamentos proibidos. Ou seja, a norma deve ser minimamente clara e precisa para que o agente possa saber, a partir do texto legal, quais os atos ou omissões que acarretam a sua responsabilidade. Ora, é esse mínimo de objetivação que falha na formulação legal do dever de comunicação dos acidentes de trabalho às autoridades administrativas que é imposto aos empregadores no artigo 257.º da Lei n.º 35/2004, de 29 de julho. Para exprimir esse dever de comunicação não se mostra adequado e suficiente usar o enunciado «situação particularmente grave», dado o elevado grau de indeterminação nele implicado. Em certos casos, os empregadores podem ficar numa situação de dúvida e incerteza quanto à identificação dos acidentes especialmente graves que devem ser comunicados à ACT. A primitiva legislação – e o que parece resultar da Diretiva 89/391/CE – impunha a obrigação de comunicar apenas os acidentes de trabalho que acarretassem mais de três dias de incapacidade total, um enunciado de conteúdo objetivamente determinável. Já a opção legislativa pela fórmula «situação particularmente grave», que já vem da Decreto-Lei n.º 441/91, de 14 de novembro, abre-se a uma pluralidade de escolhas, tantas quantas as subjetividades que as constituem, gerando assim dúvidas e incertezas quanto ao tipo de acidentes de trabalho que devem ser comunicados à ACT. E não são as autoridades do trabalho, na sua função sancionadora, ou as autoridades judiciais, na sua função de controlo, quem vão dizer qual é a única solução válida, pois o grau de abertura do conceito indeterminado «particularmente grave» não deixa de possibilitar a intervenção das suas opções pessoais. Ora, ao abrir-se as portas à mera subjetividade, o agente não encontra no texto da lei a objetivação necessária e adequada que garanta a segurança e confiança jurídicas.
Assim, a norma do n.º 1 do artigo 257.º da Lei n.º 35/2004, de 29 de julho, revela um tal grau de indeterminação na definição da conduta contraordenacional que não satisfaz as exigências dos princípios do Estado de direito democrático, da segurança jurídica e da confiança, pelo é inconstitucional, por violação do artigo 2.º da Constituição.»
10. Trata-se de argumentação cogente, que merece adesão integral.
A única questão que resta considerar é a de saber se as razões em que se fundou o juízo de inconstitucionalidade no Acórdão n.º 76/2016 se estendem, sem reservas significativas, ao caso vertente. Há duas diferenças aparentes entre as normas, para além do facto − manifestamente irrelevante – de estar agora em causa, não a violação do dever de comunicação do acidente à ACT, mas de suspensão dos trabalhos.
A primeira diferença – referida nas alegações do Ministério Público – prende-se com o facto de a norma anteriormente julgada inconstitucional, constante do diploma que aprovou a regulamentação do Código do Trabalho, ser de âmbito de aplicação genérico ao trabalho subordinado, ao passo que a norma sindicada nos presentes autos se insere no regime das prescrições mínimas de segurança e saúde no trabalho a aplicar nas indústrias extrativas por perfuração a céu aberto ou subterrâneas. O facto de um enunciado normativo ter um âmbito de aplicação relativamente restrito pode ser pertinente, do ponto de vista da sua determinabilidade, se a atividade a que diga respeito constituir um contexto que concorre de modo decisivo para a determinação do respetivo sentido. Trata-se da distinção linguística entre significado semântico e pragmático: aquele diz respeito ao significado convencional das expressões, ou seja, o que resulta das convenções lexicais e gramaticais de uma determinada língua; este é relativo ao significado contextual das expressões, ou seja, o que resulta do seu uso num determinado contexto comunicativo. Uma expressão indeterminada no plano semântico – pela insuficiência dos parâmetros lexicais e gramaticais para determinar o seu sentido – pode ser perfeitamente determinada no plano pragmático. Apesar de a expressão «o suspeito dirige-se para o banco» poder referir-se tanto a um banco de jardim como a uma agência bancária, refere-se claramente a um banco de jardim no contexto de uma ação encoberta de investigação de tráfico de estupefacientes que tem lugar num parque. Ora, o recorrente parece entender que a expressão «acidente que evidencie uma situação particularmente grave» tem um significado decisivamente mais determinado no contexto das atividades extrativas por perfuração a céu aberto ou subterrâneas do que no âmbito genérico do trabalho subordinado. A verdade, porém, é que não dá nenhum dado concreto para fundamentar tal afirmação, para além de alusões genéricas às categorias da «experiência comum», dos «conhecimentos científicos e técnicos do ramo» e da «ponderação dos riscos próprios da atividade». Não havendo nenhuma evidência de que a expressão «situação particularmente grave» é pragmaticamente determinada no seu contexto aplicativo, em termos que se possam considerar satisfatórios do ponto de vista da exigência de tipicidade no direito contraordenacional, o argumento de que há aqui uma diferença decisiva entre a norma anteriormente julgada inconstitucional e a sindicada nos presentes autos não pode ser acolhido.
A segunda diferença – igualmente mencionada nas alegações – respeita à circunstância de o diploma em que se insere a norma sob apreciação transpor para o direito interno as Diretivas n.ºs 92/91/CEE, de 3 de novembro, do Conselho e 92/104/CEE, de 3 de dezembro, do Conselho, relativas às prescrições mínimas de saúde e segurança a aplicar nas indústrias extrativas por perfuração a céu aberto ou subterrâneas. Em rigor, e porque a atividade da entidade empregadora nos presentes autos é de extração subterrânea, trata-se aqui apenas do segundo dos referidos instrumentos de direito da UE, relativo às indústrias extrativas a céu aberto ou subterrâneas (artigo 1.º, n.º 1). Em alguns passos das alegações (v. o ponto 28.º), parece o Ministério Público sugerir que a norma sindicada nos presentes autos se limita, no essencial, a reproduzir o que consta da Diretiva, caso em que o juízo de inconstitucionalidade sobre a mesma remeteria para a questão da relevância constitucional do princípio do primado do direito da UE, matéria sobre a qual incidiu o recente Acórdão n.º 422/2020. Percorrendo as várias disposições da Diretiva, porém, não só se torna evidente que a mesma não faz qualquer referência a um dever de suspensão dos trabalhos em caso de acidente, como ainda que, mesmo no que diz respeito ao dever de comunicação de acidentes de trabalho «graves e/ou mortais» − constante do n.º 4 do artigo 3.º −, não estabelece nenhum dever de sancionamento contraordenacional do respetivo incumprimento, e menos ainda determina a forma que uma eventual sanção dessa natureza deverá revestir. Assim, improcede o argumento segundo o qual «a eventual constatação, agora, da inconstitucionalidade material do Decreto-Lei 324/95, acarretará a responsabilidade internacional do Estado português, por incumprimento das suas obrigações de Estado membro da União Europeia.» Para além de o juízo de inconstitucionalidade proferido nos presentes autos carecer de força obrigatória geral – efeito que no nosso sistema se encontra reservado às declarações de inconstitucionalidade proferidas em processos de fiscalização abstrata sucessiva −, cabe sublinhar que a inconstitucionalidade é integralmente imputável ao legislador nacional.
Resta concluir que a norma que constitui o objeto do presente recurso é inconstitucional, pelos razões expostas no Acórdão n.º 76/2016.
11. Tratando-se de recurso ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, não há lugar ao pagamento de custas.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica ínsito no artigo 2.º da Constituição, a norma que resulta da conjugação do n.º 2 do artigo 9.º, por referência a determinados segmentos do n.º 1, com o n.º 1 do artigo 11.º, todos do Decreto-Lei n.º 324/95, de 29 de novembro, com o sentido de que é contraordenação a violação pelo empregador do dever de suspender todos os trabalhos suscetíveis de destruírem ou alterarem os vestígios deixados por acidente que evidencie uma situação particularmente grave para a segurança ou a saúde dos trabalhadores.
b) Em consequência, negar provimento ao recurso.
Não são devidas custas.
Lisboa, 16 de novembro de 2020 - Gonçalo Almeida Ribeiro - Joana Fernandes Costa - Maria José Rangel de Mesquita - João Pedro Caupers
Atesto o voto de conformidade do Senhor Conselheiro Lino Ribeiro.
Gonçalo Almeida Ribeiro