ACÓRDÃO Nº 566/2020
Processo n.º 6/2019
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. O A., S.A. requereu a constituição do tribunal arbitral no âmbito do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) pretendendo a declaração de ilegalidade do ato tributário praticado pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) consubstanciado na liquidação adicional do Imposto do Selo, de 12 de janeiro de 2017 e respetivas liquidações de juros compensatórios, da mesma data, todas referentes ao exercício de 2014, e, bem assim, da decisão de indeferimento que recaiu sobre a respetiva reclamação graciosa, pedindo ainda indemnização pela prestação de garantia indevida.
Constituído o Tribunal, o mesmo proferiu o acórdão ora recorrido, no dia 13 de novembro de 2018, através do qual julgou parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando a liquidação de Imposto do Selo de 12 de janeiro de 2017 e respetivas liquidações de juros compensatórios, em determinados montantes, concretamente, para o que aqui releva, no valor de € 6.361,76, correspondente ao Imposto do Selo relativo às “taxas de serviço ao comerciante” (TSC) cobradas a entidades isentas, e no valor de € 1.418.351,65 correspondente ao Imposto do Selo relativo à “taxa multilateral de intercâmbio” (TMI) e às comissões interbancárias cobradas pela utilização de caixas automáticas (ATM’s), absolvendo a AT do pedido de anulação na parte restante. Mais julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização por garantia indevida, condenando a AT a pagar ao requerente a indemnização a liquidar em execução daquele acórdão.
2. É deste acórdão de 13 de novembro de 2018 que vêm interpostos dois recursos de constitucionalidade:
i) Um recurso interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro [LTC]), incidindo sobre a recusa de aplicação pela decisão recorrida da norma do artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, (Orçamento do Estado para o ano de 2016) que atribui carácter interpretativo à redação dada pelo artigo 153.º da mesma Lei à verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), anexa ao Código do Imposto do Selo; e
ii) Um recurso interposto pelo A., S.A., ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tendo por objeto a interpretação normativa acolhida pela decisão recorrida no que respeita à verba 17.3.4 da TGIS.
3. Tendo os autos prosseguido para alegações, o Ministério Público apresentou a correspondente peça processual, em que sustenta que deve ser dado provimento ao recurso por si interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC devendo, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:
«1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e arts. 70.º, n.º 1, al. a), 72.º, n.º 1, a), e n.º 3, ambos da LOFPTC, “da decisão arbitral exarada no proc. n.º 103/2018-T, da norma com aplicação recusada, art. 154.º Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, nova redação da verba 17.3.4/ Imposto de Selo TGIS”
2.ª) O fundamento da lei interpretava radica na proteção das expetativas seguras e legítimas dos interessados, na medida em que “estes podiam contar com a solução fixada pela lei LN interpretativa” visto ela “consagrar um dos vários sentidos facilmente comportados pelo texto da LA”, e por tal via serão tuteladas considerações de “justiça relativa”, “certeza” e “razoabilidade”, tudo em ordem a um tratamento igual de casos iguais.
3.ª) Assim, na medida em que os seus destinatários “podiam contar com a solução fixada pela lei LN interpretativa”, visto ela “consagrar um dos vários sentidos facilmente comportados pelo texto da LA”, a LN deverá ser reputada como “lei interpretativa, no sentido e para os efeitos do artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil.
4.ª) O que será o caso, em particular, quando a “lei interpretativa” sufraga uma interpretação “declarativa” (ainda que “lata”) do texto da LA.
5.ª) Ora, na expressão legal “Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros” poderão ser subsumidas, justamente por o serem, as TMI e as comissões cobradas sobre as operações efetuadas com cartões em caixas automáticas.
6.ª) Por outra parte, as “instituições de crédito, sociedades ou outras instituições financeiras”, emitentes dos cartões em causa, ao fazerem uso do serviço financeiro assim prestado pelas instituições de crédito, sociedades ou outras instituições financeiras” que são detentores do ponto ATM, são das mesmas “clientes”, nomeadamente para os presentes efeitos de incidência subjetiva e objetiva do imposto do selo.
7.ª) A solução jurídica perfilhada na LN opera no quadro das regras hermenêuticas prescritas na lei tributária, nomeadamente à luz de argumentos literais (“comissões por operações financeiras” e “clientes”) e da substância económica dos factos em causa (serviços financeiros prestados pelos titulares dos pontos ATM) ali consagrados (LGT, art. 11.º, n.ºs 1 e 3).
8.ª) Por conseguinte, a solução jurídica perfilhada na LN, ao aditar o enunciado “incluindo as taxas relativas a operações de pagamento baseadas em cartões”, consagra uma “interpretação declarativa” das palavras “Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros” da pretérita fórmula da verba 17.3.4 da TGIS, o que lhe confere um cariz interpretativo, em sentido próprio.
9.ª) Aliás, idêntica interpretação das palavras da verba 17.3.4 da TGIS já foi perfilhada em sede de decisões arbitrais, no douto acórdão de 7 de dezembro de 2017, proc. n.º 756/2016-T, no âmbito de controvérsias tributárias.
10.ª) Em conclusão, quanto à matéria de constitucionalidade, a decisão arbitral incorreu em erro de julgamento, por força de erro de interpretação quanto ao alcance, no caso em apreço, da “lei interpretativa” respeitante à incidência objetiva do imposto, nomeadamente à luz do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.»
4. Por sua vez, no que respeita ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o recorrente, A., S.A. apresentou as seguintes conclusões:
«1.ª O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com referência à decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 103/2018-T, na qual se encontrava em discussão a sujeição a Imposto do Selo da Taxa de Serviço de Comerciante (TSC) e da Taxa Multilateral de Intercâmbio (TMI), que a AT considera tratar-se de comissões cobradas por prestações de serviços financeiros, enquadradas na verba 17.3.4 da TGIS (“Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros”), tendo o Tribunal Arbitral considerado improcedente o pedido de declaração da ilegalidade de IS sobre a TSC e procedente o pedido de declaração da ilegalidade da liquidação de IS sobre a TMI;
2.ª Em apreço no presente recurso está apenas a sindicância da correção promovida pela administração tributária referente à TSC, no valor de € 448.273,60, que não foi objeto de anulação pelo Tribunal a quo, em especial o juízo vertido na decisão arbitral de que a mesma não padece das inconstitucionalidade suscitadas, máxime não viola os artigos 103.º e 104.º, da CRP, assim como o princípio da capacidade contributiva;
3.ª No que concerne especificamente à questão da inconstitucionalidade que ora se pretende ver reponderada, decidiu o Tribunal Arbitral que “auferindo a Requerente uma comissão pelo serviço financeiro prestado ao comerciante, existe subjacente à tributação em Imposto do Selo uma situação em que se revela capacidade contributiva, que é a disponibilidade da quantia recebida.”, concluindo que “não ocorre a alegada inconstitucionalidade daquela verba 17.3.4. por violação do principio da capacidade contributiva, pois a tributação das empresas não tem de ser efetuada apenas com base no lucro, como se infere do texto do n.º 2 do artigo 104.º da CRP, ao estabelecer que «a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real»” (cf. p. 18 da decisão recorrida, nosso negrito);
4.ª A compensação/comissão/desconto que se encontra a ser sujeita a IS não materializa o aproveitamento de uma capacidade económica reconduzível aos elementos económico-financeiros subjacentes ao IS, de onde decorre a conclusão de que o Requerente não manifesta capacidade de contribuir com IS, no que diz respeito a esta realidade;
5.ª A conformidade da tributação com o princípio da capacidade contributiva comporta a realização de teste para determinar da sua legitimidade constitucional, ao abrigo do qual se visa aferir se a realidade que se pretende tributar, encerra em si mesma o pressuposto económico que convoca a tributação conforme erigida pelo legislador;
6.ª O Tribunal a quo, para efeitos de aferir da existência de capacidade contributiva do Requerente que legitime a tributação em sede de IS, reporta-se ao conceito de rendimento (e não de consumo ou despesa inerentes à tributação em desse de IS) e recorre ao enquadramento constitucional dos impostos sobre o rendimentos e aos princípios que lhe estão subjacentes, designadamente ao princípio da tributação pelo lucro real, o que evidencia e denuncia que não encontra tal parâmetro em sede de IS, pelo que, se não deteta capacidade contributiva própria de IS na realidade de que ora nos ocupamos, deveria, com o devido respeito, ter concluído que ela não existe e obstar à tributação em crise, julgando verificada a violação do princípio da capacidade contributiva;
7.ª A TSC não manifesta um facto relevador de capacidade contributiva em sede de IS, pelo que a subsunção da mesma à verba 17.3.4 da TGIS deve ser julgada inconstitucional, nos termos propugnados;
8.ª O Recorrente não nega que a TSC possa ser considerada como rendimento por si auferido (tal como considerou o Tribunal Arbitral na decisão proferida), evidenciando, nessa medida capacidade contributiva, a qual se encontra, contudo esgotada, quando se verifica a tributação em sede de IRC, não constituindo pressuposto da tributação em sede de IS;
9.ª Tal rendimento – a alegada comissão – não pode ser novamente tributada, de per si, e exatamente com a mesma motivação – unicamente por ser rendimento –, tanto em sede de IS como em sede de IRC, porquanto tal se assumiria como manifestamente violador do princípio da capacidade contributiva e bem assim do princípio da coerência sistemática, ínsitos nos artigos 103.º e 104.º da CRP;
10.ª Para que se avalie a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a TSC é sujeita a IS nos termos da verba 17.3.4, é imprescindível a boa compreensão da TSC e das suas funções no âmbito do complexo de operações que integram a utilização de TPA, referindo-se a este propósito muito resumidamente que quando determinados bens ou serviços são pagos pelos consumidores finais mediante utilização de cartão, existe todo um aglomerado de serviços associados – não necessariamente serviços financeiros – normalmente a três entidades: o comerciante, o adquirente e o emitente. Neste contexto, além de outras taxas e comissões pagas no âmbito da aludida rede complexa de serviços, a TSC corresponde a uma taxa paga (mediante desconto) pelo consumidor ao adquirente, como compensação pelo risco da assunção do crédito sobre o emitente, por conta do cliente final;
11.ª Sem perder de vista o objeto do presente recurso – a inconstitucionalidade da liquidação de IS TSC reconduzida à verba 17.3.4 da TGIS, sobre a TSC, por violação do princípio da capacidade contributiva e dos artigos 103.º e 104.º da CRP – relembre-se que o IS é o imposto mais antigo ainda vigente no sistema fiscal português, pelo que em face da evolução natural da sociedade portuguesa desde a sua criação, este imposto foi sujeito a constantes alterações e reformas, designadamente considerando as criticas de que foi alvo quanto à sua indefinição e abrangência;
12.ª O IS é considerado como imposto indireto e como um imposto sobre o consumo;
13.ª A propósito da reforma do imposto de selo, CARLOS BATISTA LOBO, Na linha do relatório da Comissão de Desenvolvimento da Reforma Fiscal e da Resolução do Conselho de Ministros sobre a Reforma Fiscal, o novo Código tem em conta a necessidade de substituição da maioria das formas de tributação do imposto do selo contrárias aos padrões a que a moderna fiscalidade deve obedecer por formas de tributação mais simples, harmónicas e eficazes. Os princípios da igualdade, da justiça, da coerência e da eficiência do sistema fiscal reclamam, no entanto, a continuação da tributação, posto que eventualmente em quadro diferente, das manifestações de capacidade contributiva que não sejam atingidas por qualquer outra forma, não devendo a desejável reformulação do imposto contribuir de modo algum para a consagração de novos e indesejáveis privilégios fiscais a favor de qualquer setor ou atividade. Deve a reforma do imposto manter as características positivas que o imposto ainda encerra designadamente a facilidade e simplicidade da liquidação e cobrança” (cf. CARLOS BATISTA LOBO, “O Novo Código do Imposto do Selo: Alguns aspetos iniciais de enquadramento”, in Ciência Técnica e Fiscal, Centro de Estudos Fiscais, n.º 400, outubro-dezembro de 2000, pp. 262 e 263; sublinhado e destacado nossos);
14.ª O IS tem uma lógica muito própria, aglutinando no seu âmago uma multiplicidade de realidades bastante distintas. Por esse motivo, aquele tende a ser visto como um imposto residual, não se podendo, contudo, redundar na prática num imposto de sobreposição, pretendendo alcançar exclusivamente manifestações de capacidade contributiva que não sejam visadas por outros impostos;
15.ª O entendimento contrário (de que o IS é um imposto de sobreposição e cumulativo com outros impostos) seria violador dos princípios da capacidade contributiva e da coerência do sistema, como ora se reclama;
16.ª Na situação sub judice, a categoria que releva é a de IS enquanto imposto sobre instrumentos e operações financeiras e de seguros, em especial sobre “Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros” prevista na Verba 17.3.4 da TGIS, que deve ser balizado pelo princípio da substancia económica das operações e pelos princípios constitucionais fiscais – especificamente, o princípio do estado de direito, o princípio da capacidade contributiva e o princípio da coerência sistemática –, sob pena de se cair na tentação de sujeitar a tributação toda e qualquer operação que tenha a mera aparência de serviço financeiro;
17.ª Por ser o sistema fiscal o garante do Estado Social, JOSÉ CASALTA NABAIS defende, que entre os direitos e deveres constitucionalmente consagrados se encontra, o dever fundamental de pagar impostos, o qual deve ser balizado pelos princípios da legalidade, da segurança jurídica, da coerência do sistema e da igualdade – este último entendido como igualdade em sentido material (“ou igualdade na lei [...]”) e dependente do princípio da capacidade contributiva como tertium comparationis;
18.ª O princípio da capacidade contributiva é essencial para a manutenção de uma tributação justa, sendo pertinente referir que “(…) a vigência do princípio da capacidade contributiva não carece dum preceito constitucional especifico e direto, reconduzindo-se o seu fundamento jurídico ao sentido e alcance do principio geral da igualdade decorrente das diversas concretizações constantes do texto constitucional e da sua adequada articulação com os preceitos e princípios constitucionais relativos aos impostos ou mesmo aos direitos fundamentais” (cf. JOSÉ CASALTA NABAIS, “O dever fundamental de pagar impostos”, Coleção Teses, Almedina, 1998, p. 449);
20.ª O Tribunal Constitucional tem vindo reconhecer, quanto ao princípio da capacidade contributiva, que «O legislador, na seleção e articulação dos factos tributáveis deverá ater-se a factos reveladores da capacidade contributiva “definindo como objeto (matéria coletável) de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto”. A tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, exigindo-se, por isso, “um mínimo de coerência logica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objeto do mesmo”» (cf. Acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional no âmbito do processo n.º 348/97;);
21.ª O Requerente respeitosamente solicita a este douto Tribunal é que aprecie a liquidação de IS em crise nos autos, à luz da génese e matriz do imposto em causa e em especial da posição do Tribunal Arbitral, no sentido de apurar, por um lado, se a TSC encerra em si mesma uma capacidade contributiva, reconduzível à tributação em sede de IS, e por outro se a existir capacidade contributiva a mesma está esgotada pela tributação em sede de outro imposto;
22.ª Como diapasão que pauta o bom funcionamento do sistema fiscal relembre-se o princípio da coerência sistemática. Com efeito, “O princípio da coerência sistemática obriga, portanto, o legislador a construir tributos públicos tanto quanto possível isentos de contradições materiais e que, não só por si mesmos, mas em articulação com as demais figuras que povoam no sistema, sejam capazes de produzir resultados condizentes com o princípio da igualdade tributária” (cf. SÉRGIO VASQUES, “Manual de Direito Fiscal”, 2011, Almedina, p. 303;);
23.ª Será necessário ter sempre em consideração o critério da capacidade contributiva como legitimador da tributação, pelo que para cada realidade passível de ser tributada terá de ser feito o exercício de aferir se e em que medida existe capacidade contributiva suscetível de ser sujeita a um determinado imposto;
24.ª Na presente situação não há capacidade contributiva, entendida esta como pressuposto económico que o IS visa tributar. De facto, considerando o entendimento dominante sufragado pela doutrina e jurisprudência de que a capacidade contributiva é condição da tributação, do mesmo resulta necessariamente que tal capacidade deve ser aferida por consideração à célula de tributação que se lhe está a aplicar – no presente caso IS -, pelo que, se o Tribunal apenas identifica uma manifestação de capacidade reconduzível a um distinto imposto – o Tribunal a quo apenas identificou uma manifestação de rendimento, o qual é objeto de IRC -, seria forçoso concluir que não há capacidade contributiva que legitime a tributação em sede de IS;
25.ª O Recorrente não nega que a TSC possa ser considerada como rendimento por si auferido (tal como considerou o Tribunal Arbitral na decisão proferida). O qual, é, todavia, objeto de tributação em sede de IRC, pelo que, permitir que o mesmo seja tributado de per se, e exatamente com a mesma motivação – unicamente por ser rendimento –, tanto em sede de IS como em sede de IRC é manifestamente violador do princípio da capacidade contributiva e bem assim do princípio da coerência sistemática, ínsitos nos artigos 103.º e 104.º da CRP;
26.ª Conforme se referiu, o IS, na vertente da tributação de operações financeiras visa tributar o rendimento manifestado pelos clientes das instituições bancárias através do consumo dessas mesmas operações financeiras. Logo, encontra justificação no n.º 4 do artigo 104.º da CRP e não no n.º 2 do artigo 104.º da CRP, pelo que pretender reconduzir o rendimento auferido pelo Recorrente a título de TSC na verba 17.3.4 da TGIS configura uma enorme entorse das regras básicas referentes ao sistema fiscal português;
27.ª Não é a própria comissão que gera o incremento da capacidade contributiva pois a tributação em sede de imposto de selo tem por escopo o consumo de operações financeiras sendo essas que são tributadas, ainda que por via das comissões cobradas, e não as comissões individualmente consideradas e sem suporte numa operação que caia no campo de incidência da tributação em sede do imposto em análise, ou seja, a comissão só por si não é facto revelador de capacidade contributiva para efeitos de IS;
28.ª Admitir que a disponibilidade da quantia recebida como TSC revela capacidade contributiva que deve ser tributada em IS viola frontalmente os n.os 2 e 4 do artigo 104.º da CRP, de onde se retira o princípio da coerência sistemática;
29.ª E viola igualmente o princípio da capacidade contributiva na medida em que “(…) o princípio da capacidade contributiva implica assim idoneidade do sujeito para suportar o respetivo imposto, o que ocorrerá apenas quando se verifique uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado pelo legislador (…)” (cf. JOSÉ CASALTA NABAIS, “O dever fundamental de pagar impostos”, Coleção Teses, Almedina, 1998, p. 496);
30.ª Adicionalmente, e tendo o tribunal arbitral configurado a TSC como uma manifestação de rendimento (“disponibilidade de quantia recebida”), há que ter em consideração uma vertente específica da capacidade contributiva: o princípio do rendimento líquido;
31.ª A doutrina tem acolhido esta vertente determinando que apenas pode ser objeto de tributação o rendimento líquido auferido e também a jurisprudência do Tribunal Constitucional acolheu o princípio do rendimento liquido “(…) – ou “princípio do rendimento liquido objetivo” – nos termos do qual apenas o montante liquido constitui (verdadeiro) rendimento para o pagamento dos impostos, constitui, pois, decorrência do principio da capacidade contributiva na modelação do imposto sobre o rendimento. E, em principio, tal justifica que ao rendimento total auferido devam ser deduzidas despesas especificas com a sua obtenção, pois tais gastos constituem uma expressão negativa da capacidade contributiva e, como tal, devem ser excluídos desse conceito se se revelarem indispensáveis à produção ou obtenção de rendimento” (cf. Acórdão n.º 142/2004 do Tribunal Constitucional);
32.ª Assim, e em consonância com o princípio da capacidade contributiva e do princípio do rendimento líquido, a tributação da TSC deveria permitir um ajuste entre os custos suportados pelo adquirente (ora Recorrente) no âmbito da assunção do crédito que efetua mediante disponibilização do TPA e o alegado rendimento auferido. Todavia, o IS não prevê qualquer tipo de dedução de custos relacionados com a obtenção do rendimento a tributar – porque tal imposto não é um imposto sobre o rendimento! –, sendo que nos termos da verba 17.3.4 da TGIS o que é objeto de tributação é a própria comissão integral, auferida pelo Recorrente. Neste contexto, é manifesta a violação do princípio da capacidade contributiva na interpretação segundo a qual a TSC corresponde a uma “comissão por prestação de serviço financeiro” e deve ser tributada nos termos da verba 17.3.4 da TGIS;
O rendimento auferido pelo Recorrente a título de TSC é tributável em sede de IRC – o verdadeiro e assumido Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, tributação que esgota a capacidade contributiva do Requerente, que não pode assim ser sujeito a ova tributação em IS;
33.ª Acresce que, não há uma conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97), conforme é pacificamente exigido para que se respeite o princípio da capacidade contributiva;
34.ª A norma de incidência em análise não assenta, ou não deve assentar, num conceito congénere do conceito de rendimento-acréscimo uma vez que não se visa com a tributação em IS das mencionadas operações financeiras gerar uma duplicação da tributação dos respetivos proveitos das instituições de crédito, em paralelo com o IRC, o que a verificar-se, como é o caso, representa uma violação dos artigos 103º.e 104.º da CRP e do princípio da capacidade contributiva;
35.ª Considerando que o titular do interesse económico é o comerciante, alcançar-se-ia a mesma conclusão quanto ao juízo de inconstitucionalidade da verba 17.3.4 da TGIS., pois o que está em causa é uma compensação atribuída ao Requerente pela disponibilização de um crédito ao comerciante, sendo que esta atribuição sob a forma de desconto por parte do comerciante não corresponde a uma manifestação de capacidade contributiva específica na esfera jurídica deste;
36.ª Em face do exposto, conclui-se que a interpretação que sujeita a IS nos termos da verba 17.3.4 da TGIS a TSC auferida pelo Recorrente é manifestamente inconstitucional em violação dos artigos 103º.e 104.º da CRP, os quais comportam o princípio da justiça tributária e da coerência sistemática, e bem assim do princípio da capacidade contributiva, pelo que deverá o Tribunal Constitucional declarar tal inconstitucionalidade e em consequência deverá a decisão recorrida ser revogada, com as demais consequências.»
5. Apesar de devidamente notificada para o efeito, a recorrida, AT não apresentou resposta em nenhum dos recursos.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
a) Questão prévia relativa ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC
6. Na sequência das alegações produzidas, suscitando-se dúvidas sobre o preenchimento de um dos requisitos de conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, concretamente a necessidade de o mesmo ter por objeto uma norma ou interpretação normativa, foram notificadas as partes nesse recurso para se pronunciarem, querendo, sobre a possibilidade de o mesmo não ser conhecido por falta de idoneidade do seu objeto.
Apenas o recorrente se pronunciou, entendendo que o recurso deve ser conhecido por se mostrarem preenchidos os requisitos para o efeito, designadamente o seu objeto normativo, afirmando a sua pretensão de obtenção, junto deste Tribunal, «de uma imposição para o Tribunal recorrido de aplicação da verba em causa numa dimensão adequada à Constituição (…)» (cfr. ponto 29.º do requerimento, fls. 251, e também ponto 32.º, fls. 252).
Explicou ainda que pretende «a avaliação da conformação constitucional da interpretação da verba 17.4.3 da TGIS nos moldes afirmados pelo Tribunal a quo por se entender que a mesma encerra uma violação do princípio da capacidade contributiva e da coerência sistemática, visto que faz incidir sobre determinada realidade – a Taxa de Serviço ao Comerciante – tributação, em sede de Imposto do Selo, na esfera do Banco emissor do cartão mediante o qual foi realizada a transação na origem de tal taxa, independentemente de a mesma materializar para aquele o aproveitamento de uma capacidade contributiva reconduzível aos elementos económico-financeiros subjacentes ao Imposto do Selo, sem se encontrar identificada capacidade contributiva para tal – condição sine qua non de qualquer tributação, de acordo com o que resulta dos artigos 103.º e 104.º da CRP, ou de estar em linha com a coerência do sistema tributário» (cfr. pontos 37.º a 39.º do requerimento apresentado em resposta ao despacho para se pronunciar sobre a possibilidade de o recurso não ser conhecido, fls. 253-254).
Esta explicitação, no entanto, longe de demonstrar a normatividade da questão que o recorrente pretende ver apreciada, reforça a conclusão de que o presente recurso não apresenta um objeto idóneo de fiscalização concreta de constitucionalidade.
7. Vejamos:
No domínio da fiscalização concreta da constitucionalidade, onde o presente processo se insere, a competência do Tribunal Constitucional traduz-se no julgamento da conformidade constitucional de normas ou interpretações normativas (artigo 277.º da Constituição), sendo os recursos restritos unicamente à questão da inconstitucionalidade (artigo 280.º, n.º 6, da Constituição).
Assim, no âmbito dos seus poderes cognitivos de fiscalização concreta, está vedada ao Tribunal Constitucional a reapreciação de decisões, nomeadamente jurisdicionais, não compreendendo o nosso ordenamento jurídico a figura do recurso constitucional de “amparo” ou queixa constitucional. Neste contexto, a admissibilidade do recurso de constitucionalidade depende da enunciação de uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa. Assim, sob pena de falta de idoneidade do recurso, impende sobre o recorrente o ónus de delimitar como objeto material do recurso de constitucionalidade o critério normativo que presidiu ao juízo decisório do caso concreto, ou seja, uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, reportando-a a uma disposição ou conjugação de disposições legais, em cuja literalidade encontre um mínimo de conexão, autonomizando-a da pura atividade de subsunção, intrinsecamente relacionada com as particularidades específicas do caso concreto.
8. No requerimento de interposição de recuso o recorrente limitou-se a referir que pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da interpretação normativa que incide sobre a verba 17.3.4 da TGIS, sem especificar, no entanto, qual seria a dimensão normativa em causa. Todavia, dando cumprimento ao ónus previsto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC, indicou que «invocou no pedido de pronúncia arbitral, submetido junto do Centro de Arbitragem Administrativa, que a interpretação segundo a qual a TSC corresponde a uma “comissão por prestação de serviço financeiro” sujeita a Imposto do Selo, por aplicação da verba 17.3.4 da TGIS, viola os artigos 103.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e o princípio da capacidade contributiva» (cfr. ponto 4 do requerimento de interposição de recuso, fls. 29).
Nas alegações de recurso apresentadas pelo recorrente, o mesmo admite que «(…) a primeira questão que se coloca e cujo reexame se solicita a este Douto Tribunal Constitucional é a de saber se a TSC encerra uma manifestação de capacidade contributiva na esfera do Requerente, que se reconduza à célula de tributação de Imposto do Selo. A conformação de tal questão assume um relevo primordial nos presentes autos (…), ou seja, afirmar que a TSC encerra em si mesma o pressuposto económico selecionado pelo legislador como objeto de IS, contido na verba que se pretende fazer incidir sobre aquela realidade» (cfr. ponto II.1.1.a) das alegações de recurso, p. 7, fls. 186 – sublinhado aditado).
As alegações produzidas pelo recorrente evidenciam, assim, a sua discordância com o facto de o Tribunal Arbitral ter qualificado a TSC como comissão, o que implica estar abrangida pela verba 17.3.4 da TGIS. Nesse contexto, discorda da decisão recorrida quando esta entende que a TSC visa remunerar o serviço financeiro que é prestado pelo banco, aqui recorrente, ao efetuar o pagamento ao comerciante, disponibilizando-lhe a quantia em causa, deduzida da TSC. No entendimento do recorrente trata-se de um “erro de enquadramento”. Finalmente, discorda ainda o recorrente da consideração de que a disponibilidade da quantia recebida pelo banco revela a verificação de capacidade contributiva em sede de IS, entendendo antes que a capacidade contributiva assim evidenciada deve ser tributada em sede de IRC. Com base nesta argumentação, o recorrente conclui que a interpretação sufragada pelo Tribunal Arbitral viola o princípio da capacidade contributiva, na medida em que faz incidir sobre o recorrente uma tributação em sede de IS quando – no seu entender – a capacidade contributiva revelada pela TSC é melhor enquadrada de outra forma.
Daqui se retira, desde logo, que o propósito do recurso não é discutir a constitucionalidade de uma norma, mas discutir a decisão do tribunal a quo de incluir a TSC no âmbito de aplicação da verba 17.3.4 da TGIS.
9. Ora, apreciar se a TSC é uma “comissão por prestação de serviço financeiro”, se a mesma está abrangida pela verba 17.3.4 da TGIS ou se a manifestação de capacidade contributiva é reconduzível à categoria de consumo, rendimento ou despesa, tudo isto constitui matéria de aplicação da lei ordinária ao caso concreto. Trata-se de qualificar juridicamente um quadro factual determinado e de subsumi-lo na previsão de incidência fiscal, para verificar se a classificação como “comissão” efetuada pelo tribunal a quo está correta, discutindo se estamos perante uma prestação de serviço. A alegação, pelo recorrente, de uma violação do princípio da capacidade contributiva bem como o princípio da coerência sistemática, pressupõe o acolhimento da tese por si proposta quanto à qualificação jurídica da TSC, em refutação da bondade do decidido na decisão arbitral. Um tal exercício implicaria, porém, necessariamente, um juízo de controlo do mérito sobre a aplicação que a decisão recorrida fez do direito aos factos dados como provados. Desta forma, a pretensão do recorrente reconduz-se a procurar que este Tribunal Constitucional aprecie a correção da subsunção levada a cabo pelo tribunal a quo – o que não cabe no âmbito da jurisdição constitucional. De resto, o recorrente assume-o em vários pontos das alegações do recurso, bem como nas conclusões que formulou (cfr., v.g., a conclusão 20.º das alegações de recurso, pp. 36-37, fls. 216-217).
Como decorre do que acima se deixou já referido sobre a competência deste Tribunal, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto. No domínio da fiscalização concreta da constitucionalidade, a interpretação do direito infraconstitucional feita pelo tribunal recorrido é, em princípio, vinculativa para o Tribunal Constitucional. A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correção jurídica do concreto julgamento, competindo-lhe apenas «julgar inconstitucional (…) a norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação» (artigo 79.º-C da LTC), ou seja, pronunciar-se sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida (neste sentido, cfr., entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 633/2008, 2.ª Secção, ponto 7.1., e 64/2020, 1.ª Secção, ponto 6). Só no caso previsto no artigo 80.º, n.º 3, da LTC poderá o Tribunal Constitucional, se assim o entender justificadamente, afastar-se da interpretação acolhida pela decisão recorrida, e substitui-la por outra, conforme à Constituição (cfr. o artigo 80.º, n.º 3, da LTC), mas tal pressupõe o conhecimento do recurso o que, como se viu, não se verifica, neste caso, por não se reunirem os respetivos pressupostos.
Conclui-se, assim, que a questão de inconstitucionalidade que o recorrente formula não recai sobre qualquer norma, estruturando-se, em vez disso, sobre a atividade subsuntiva da decisão arbitral. A sua pretensão não corresponde, portanto, a um juízo de desconformidade de normas por parte do Tribunal Constitucional, na sua dimensão de virtualidade de aplicação genérica e abstrata, mas a um juízo de censura à sua aplicação ao caso pelo tribunal a quo.
Nestes termos, não tendo o recorrente apresentado, perante o Tribunal Constitucional, uma questão de constitucionalidade de natureza verdadeiramente normativa conclui-se pela inadmissibilidade do presente recurso.
b) Do mérito do recurso interposto ao abrigo da alínea a) do artigo 70.º da LTC
i) Delimitação da questão de constitucionalidade
10. O presente recurso incide sobre a norma constante do artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, (Orçamento do Estado para o ano de 2016), que foi desaplicada pela decisão a quo com a seguinte fundamentação (cfr. ponto 3.3.2., p. 27, fls. 16):
«No caso em apreço, verifica-se uma situação em que a nova lei a que foi atribuída natureza interpretativa é verdadeiramente inovadora, pelo que aquele artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016 é materialmente inconstitucional, por ser incompaginável com a proibição de retroatividade que consta do artigo 103.º, n.º 3, da CRP, por estatuir uma aplicação retractiva da alteração que aquela Lei introduziu na verba 17.3.4 da TGIS.
Por isso, por força do disposto no artigo 204.º da CRP, que estabelece que «nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados», tem de ser recusada a aplicação daquele artigo 154.º, bem como da nova redação da verba 17.3.4..
Estando afastada a possibilidade de aplicar a nova legislação, é de concluir, pelo que se referiu, que não se podem enquadrar na verba 17.3.4 da TGIS, vigente em 2014, a TMI e as comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas Automáticos em operações com cartões bancários.
Pelo exposto, a correção relativa à TMI e às comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas Automáticos em operações com cartões bancários é ilegal, por enfermar de vício de violação de lei, que justifica a anulação da liquidação, na parte respetiva (correção no valor de € 1.418.351,65).»
11. Importa, antes do mais, recordar o teor dos vários preceitos legais relevantes para apreciar o recurso. O artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, (Orçamento do Estado para o ano de 2016) tem a seguinte redação:
«Artigo 154.º
Disposição interpretativa no âmbito do Código do Imposto do Selo
As redações dadas ao n.º 1, n.º 3 e alínea b) do n.º 5, todos do artigo 2.º, ao n.º 8 do artigo 4.º e ao n.º 7 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo e à verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo têm carácter interpretativo.»
Por seu turno, o artigo 153.º da mesma lei, estabelece o seguinte:
«Artigo 153.º
Alteração à Tabela Geral do Imposto do Selo
A verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, anexa ao Código do Imposto do Selo, passa a ter a seguinte redação:
“17.3.4 - Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros, incluindo as taxas relativas a operações de pagamento baseadas em cartões... 4%”.»
Na redação vigente em 2014 (ano do exercício em causa), a verba 17.3.4 da TGIS tinha a seguinte redação:
17 – Operações financeiras:
(…)
17.3.4 – Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros... 4%»
12. A decisão recorrida recusou a aplicação da norma do artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016, afastando, consequentemente, a aplicação da nova redação da verba 17.3.4 da TGIS, dada pelo artigo 153.º da mesma Lei, aos factos do caso. Fundamentou a desaplicação com o facto de, como se viu, entender que a disposição a que «foi atribuída natureza interpretativa é verdadeiramente inovadora», violando, por isso, «a proibição de retroatividade que consta do artigo 103.º, n.º 3, da CRP, por estatuir uma aplicação retroativa da alteração que aquela Lei introduziu na verba 17.3.4 da TGIS».
Cumpre, assim, apreciar a questão da constitucionalidade da norma constante do artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, (Orçamento do Estado para o ano de 2016) na medida em que atribui natureza interpretativa à redação que o artigo 153.º da mesma Lei deu à verba 17.3.4 da TGIS, anexa ao Código do Imposto do Selo, na dimensão desaplicada à TMI e às comissões interbancárias.
ii) O parâmetro: proibição da retroatividade no domínio fiscal
13. A Constituição estabelece a República Portuguesa como um Estado de direito democrático, no seu artigo 2.º, de onde decorrem os princípios da tutela da confiança e da segurança jurídica, mas também uma vasta margem de discricionariedade para o legislador tomar distintas escolhas relativamente à vigência dos atos legislativos, dentro de certos limites.
Como referido no Acórdão n.º 608/2013, do Plenário, ponto 9:
«Como se afirma no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 559/98, “tratando-se de um domínio em que a retroatividade da lei não está constitucionalmente vedada (ela é apenas proibida no domínio penal, e, ainda assim se a retroatividade não for in melius; no domínio fiscal e no das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias), quer a lei seja retroativa, quer seja retrospetiva, ela só é inconstitucional, se violar princípios constitucionais autónomos” (cfr., no mesmo sentido, o Acórdão n.º 355/2013).
Assim, no caso, encontramo-nos num âmbito onde prevalece a liberdade de conformação do legislador democraticamente legitimado, desde que respeite os limites constitucionais. Como afirmado pelo Acórdão n.º 287/90:
“Não há, com efeito, um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados. Ao legislador não está vedado alterar o regime do casamento, do arrendamento, do funcionalismo público ou das pensões, por exemplo, ou a lei por que se regem processos pendentes. (…) Valem aqui, por maioria de razão, as considerações que a jurisprudência deste Tribunal (…) tem feito ao negar uma proibição genérica de retroatividade.”»
Mais especificamente, sobre a produção de efeitos sobre o passado de alterações legislativas, o Tribunal Constitucional declarou no Acórdão n.º 575/2014, do Plenário, ponto 21:
«O Estado de direito é um estado de segurança jurídica. E a segurança exige que os cidadãos saibam com o que podem contar, sobretudo nas suas relações com os poderes públicos. Saber com o que se pode contar em relação aos atos da função legislativa do Estado é coisa incerta ou vaga, precisamente porque o que é conatural a essa função é a possibilidade, que detém o legislador, de rever ou alterar, de acordo com as diferentes exigências históricas, opções outrora tomadas. Contudo, a possibilidade de alteração dessas opções, se é irrestrita (uma vez cumpridas as demais normas constitucionais que sejam aplicáveis) quando as novas soluções legislativas são pensadas para valer apenas para o futuro, não pode deixar de ter limites sempre que o legislador decide que os efeitos das suas escolhas hão de ter, por alguma forma, certa repercussão sobre o passado.
A Constituição não proíbe, em geral, que as novas escolhas legislativas – tomadas pelo legislador ordinário no quadro da sua estrutural habilitação para rever opções antes tomadas por outros legisladores históricos – façam repercutir os seus efeitos sobre o passado. Mas, para além disso, não proíbe nem pode proibir genericamente que o legislador recorra a uma “técnica” de modelação da repercussão dos efeitos das suas escolhas em face da variabilidade dos graus de intensidade de que ela pode revestir. Na verdade, a repercussão sobre o passado das novas escolhas legislativas pode assumir uma intensidade forte ou máxima, sempre que a lei nova faça repercutir os seus efeitos sobre factos pretéritos, praticados ao abrigo de lei anterior, redefinindo assim a sua disciplina jurídica. Mas pode também assumir uma intensidade fraca, mínima ou de grau intermédio, sempre que a lei nova, pretendendo embora valer sobre o futuro, redefina a disciplina de relações jurídicas constituídas ao abrigo de um (diverso) Direito anterior. Neste último caso, designa-se este especial grau de repercussão dos efeitos das novas decisões legislativas como sendo de “retroatividade fraca, imprópria ou inautêntica”, ou ainda, mais simplesmente, de “retrospetividade”. Como quer que seja, e não sendo o recurso por parte do legislador a qualquer uma destas formas de retroação da eficácia dos seus atos genericamente proibida pela Constituição, a convocação legislativa de qualquer uma destas técnicas não deixa de colocar problemas constitucionais, face justamente ao imperativo de segurança jurídica que decorre do princípio do Estado de direito.
É, com efeito, evidente que a repercussão sobre o passado das novas escolhas legislativas, qualquer que seja a forma ou o grau de que se revista, diminui ou fragiliza a faculdade, que os cidadãos de um Estado de direito devem ter, de poder saber com o que contam, nas relações que estabelecem com os órgãos de poder estadual. Precisamente por isso, a Constituição proibiu expressamente o recurso, por parte do legislador, à retroatividade forte, sempre que a medida legislativa que a ela recorre implicar intervenções gravosas na liberdade e (ou) no património das pessoas, assim sucedendo quando estejam em causa restrições a direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 3), a definição de comportamentos criminalmente puníveis (artigo 29.º, n.º 1), ou a criação de impostos ou definição dos seus elementos essenciais (artigo 103.º, n.º 3). A razão pela qual a Constituição exclui a possibilidade de existência de leis retroativas nesses casos reside precisamente na intensidade da condição de insegurança pessoal que do contrário resultaria no quadro de um Estado de direito democrático como é aquele que o artigo 2.º institui.»
Assim, se é certo que o legislador democraticamente legitimado goza de uma ampla margem de liberdade de disposição, quer de conteúdos materiais de atos legislativos, quer relativamente à sua produção de efeitos, ele encontra-se irremediavelmente vinculado à Constituição, que lhe limita a possibilidade de recurso à retroatividade num conjunto de situações e matérias, sendo uma delas o domínio da legislação fiscal.
14. A proibição da retroatividade no âmbito fiscal está consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, segundo a qual, «Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei». Como se salientou no ponto 7.1 do Acórdão n.º 128/2009, da 3.ª Secção, que viria a servir de orientação à jurisprudência subsequente (cfr., entre outros, os Acórdãos n.º 85/2010, da 1.ª Secção, ponto 5, n.º 399/2010, do Plenário, pontos 11 e 12, n.º 18/2011, da 3.ª Secção, ponto 3, n.º 310/2012, da 2.ª Secção, ponto 2, 382/2012, da 2.ª Secção, ponto 8, n.º 617/2012, do Plenário, ponto 2, n.º 85/2013, do Plenário, ponto 9):
«7.1. Foi na revisão constitucional de 1997 que o legislador constituinte tomou a opção de consagrar, no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, o princípio geral de proibição de cobrança, pelo Estado, de impostos retroativos. Explicitou-se, aqui, diz a doutrina, algo que já decorria do princípio da proteção de confiança e da ideia de Estado de direito nos termos do artigo 2.º da CRP (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 1092 e ss.).
Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável (não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e em que medida, ser retroativas) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroativa, sendo a expressão «retroatividade» usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável.
(…)
Uma vez expresso no texto da Constituição a proibição da retroatividade em matéria fiscal, o Tribunal passou a ler esta proibição já não numa dimensão subjetiva (dependendo, em concreto, do contexto dos sujeitos da relação tributária resultante da aplicação da lei) mas antes numa dimensão objetiva. Diz o Tribunal, a este propósito, que à proibição expressa da retroatividade da lei fiscal “não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objetividade e autovinculação do Estado pelo Direito” (Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/2000, in www.tribunalconstitucional.pt)
Quer isto dizer que, atualmente, e consagrado que está o princípio geral de irretroatividade da lei fiscal, a mera natureza retroativa de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fiscal ou do particular tributado. Por outras palavras, o juízo de inconstitucionalidade decorre apenas da mera análise dos dados normativos, não dependendo, em nenhum momento, da averiguação de quaisquer elementos circunstanciais que resultem da condição, em concreto, de uma certa relação jurídico-tributária.»
A Constituição proíbe, portanto, a estatuição de consequências jurídicas novas que constituam ex novo ou agravem situações fiscais já definidas. Todavia, as normas fiscais podem envolver diferentes “graus de retroatividade”, sendo a proibição do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, interpretada pela jurisprudência constitucional no sentido de apenas consagrar a proibição da retroatividade autêntica ou própria da lei fiscal. Uma lei nova que pretenda afetar situações fiscais já esgotadas ou estabilizadas é necessariamente inconstitucional. Todavia, se a nova lei afeta direitos, situações ou posições constituídas no passado, mas que prolongam os seus efeitos no presente, o juízo de inconstitucionalidade já depende da “ponderação” de bens e interesses em confronto efetuada na análise da proteção da confiança.
Como se explanou no Acórdão n.º 617/2012, do Plenário, ponto 2 (citado e reafirmado no Acórdão n.º 85/2013, do Plenário, ponto 9):
«Sendo o poder de lançar impostos inerente à noção de Estado, como manifestação da sua soberania, perante um longo passado de abusos e arbitrariedades, a introdução do princípio da legalidade nesta matéria veio conferir-lhe um estatuto de cidadania no mundo do Direito.
Assim, para que o Estado possa cobrar um imposto ele terá que ser previamente aprovado pelos representantes do povo e terá que estar perfeitamente determinado em lei geral e abstrata, só assim se evitando que esse poder possa ser exercido de forma abusiva e arbitrária, indigna de um verdadeiro Estado de direito.
Por outro lado, o mesmo princípio da legalidade não poderá deixar de impedir que a lei tributária disponha para o passado, com efeitos retroativos, prevendo a tributação de atos praticados quando ela ainda não existia, sob pena de se permitir que o Estado imponha determinadas consequências a uma realidade posteriormente a ela se ter verificado, sem que os seus atores tivessem podido adequar a sua atuação de acordo com as novas regras.
Esta exigência revela as preocupações do princípio da proteção da confiança dos cidadãos, também ele princípio estruturante do Estado de direito democrático, refletidas na vertente do princípio da legalidade, segundo o qual, a lei, numa atitude de lealdade com os seus destinatários, só deve reger para o futuro, só assim se garantindo uma relação íntegra e leal entre o cidadão e o Estado.
É neste sentido que deve ser entendida a opção do legislador constituinte de, na revisão constitucional de 1997, consagrar no artigo 103.º, n.º 3, a regra da proibição da retroatividade da lei fiscal desfavorável. Com esta alteração constitucional não se visou explicitar uma simples refração do princípio geral da proteção da confiança dos cidadãos, inerente a toda a atividade do Estado de direito democrático, mas sim expressar uma regra absoluta de definição do âmbito de validade temporal das leis criadoras ou agravadoras de impostos, prevenindo, assim, a existência de um perigo abstrato de grave violação daquela confiança.
O Tribunal Constitucional tem vindo a seguir o entendimento que esta proibição da retroatividade, no domínio da lei fiscal, apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei (v.g. acórdãos n.º 128/2009, 85/2010 e 399/2010, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
(…)
Com efeito, conforme refere Cardoso da Costa “(…) a linha demarcadora do âmbito da retroatividade fiscal constitucionalmente admissível passará, desde logo, pela distinção entre situações tributárias «permanentes» e «periódicas» e «factos» cuja eficácia fiscal se esgota ou se firma «instantaneamente», para cada um deles «de per si» (maxime, pela distinção entre «impostos periódicos» e «impostos de obrigação única»), e passará provavelmente, depois, no que concerne àquele primeiro tipo de situações, pela distância temporal que já tiver mediado entre o período de produção dos rendimentos e a criação (ou modificação) do correspondente imposto. Isto, de todo o modo, sem prejuízo do relevo de outras circunstâncias, cujo possível peso não poderá ignorar-se.” (Cfr. Cardoso da Costa, "O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal", in Perspetivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição, Vol. II, Coimbra, 1997, p. 418).»
15. A norma cuja aplicação foi recusada pelo tribunal a quo resulta da interpretação do artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016, que atribui natureza interpretativa à norma do artigo 153.º da mesma lei, norma esta de incidência fiscal, pois altera a redação da verba 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, anexa ao Código do Imposto do Selo. Enquanto, na redação anterior, a verba se referia a «Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros», o referido artigo 153.º vem aditar, no final desta formulação, a expressão «incluindo as taxas relativas a operações de pagamento baseadas em cartões». O tribunal a quo entendeu que a disposição a que «foi atribuída natureza interpretativa é verdadeiramente inovadora», o que convoca a questão da sua compatibilização com o princípio da não retroatividade fiscal consignado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP.
No presente processo, encontramo-nos perante o problema da qualificação, pelo legislador, de uma determinada norma como interpretativa. Nesse contexto, é importante começar por referir que uma norma interpretativa apresenta diferenças importantes relativamente a uma norma inovadora em termos de objeto, regime e efeitos jurídicos. Ao invés de uma disposição inovadora, uma norma interpretativa não pretende introduzir um conteúdo normativo novo no ordenamento jurídico, mas apenas clarificar qual a interpretação da mesma que o seu autor entende dever vigorar. Pressupõe-se, neste caso, uma necessidade de aclarar o anteriormente disposto por este ser considerado pelo legislador como dúbio ou provocador de incerteza jurídica. Neste sentido, uma norma interpretativa deverá, necessariamente, fixar uma das interpretações possíveis decorrentes do enunciado normativo já vigente.
Como referido no Acórdão n.º 267/2017, da 2.ª Secção, ponto 7:
«A especificidade da lei interpretativa prende-se com a intenção e a força vinculante do próprio ato normativo: por contraposição à lei inovadora, aquela visa ou declara pretender fixar apenas o sentido correto de um ato normativo anterior. A mesma não pretende criar direito novo, antes tem como objetivo esclarecer o sentido “correto” do direito preexistente. “O órgão competente que cria uma lei (p. ex. a Assembleia da República) tem também a competência para a interpretar, modificar, suspender ou revogar” (cfr. BATISTA MACHADO, [Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983], p. 176). Está em causa, afinal, uma manifestação da mesma competência legislativa que é fonte em sentido orgânico do ato interpretando (cfr. idem, ibidem).»
Fixando o autor da norma a sua interpretação, entende-se que essa é a forma como a norma deve ser interpretada para o futuro, mas também como deveria ter sido interpretada no passado, desde o início da sua produção de efeitos. Trata-se de um exercício legítimo do poder legislativo em prol da certeza jurídica e da correção dos atos normativos, que se projeta sobre o passado.
No ordenamento jurídico, a edição de uma disposição interpretativa vinculativa envolve, necessariamente, a adoção de forma de lei. Decorre do artigo 112.º, n.º 5, da Constituição que apenas através do exercício do poder legislativo é possível, com eficácia externa, interpretar um qualquer preceito legal. Assim, a norma interpretativa deverá ter forma e força de lei. Nesse sentido, tendo em conta o princípio da equiparação de valor dos atos legislativos, decorrente do artigo 112.º, n.º 2, da Constituição, a norma qualificada pelo legislador como interpretativa tem um valor igual ao da norma interpretada. Ora, «por ser de valor igual a este último, a lei interpretativa determina-lhe o sentido para todos os efeitos, independentemente da correção hermenêutica de tal interpretação. Por isso, a interpretação fixada pelo autor da lei interpretativa – a chamada “interpretação autêntica” – “vale com a força inerente à nova manifestação de vontade” do respetivo autor (cfr. Autor cit., ibidem, p. 177). Daí a consequência de a lei interpretativa se integrar na lei interpretada (cfr. o artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil)» (Acórdão n.º 267/2017, da 2.ª Secção, ponto 7).
Consequentemente, verifica-se que existem normas formalmente classificadas pelo legislador como interpretativas que, por serem inovatórias, não correspondem à definição material dada supra desta figura. Encontramos, assim, no nosso ordenamento jurídico normas interpretativas em sentido formal e substantivo (“verdadeiras” normas interpretativas) a par de normas apenas formalmente interpretativas (“falsas” normas interpretativas). Neste último caso, o legislador, com a aposição desta classificação, faz com que a norma projete os seus efeitos para o passado, desde a entrada em vigor da norma supostamente interpretada. A aprovação de leis apenas formalmente interpretativas, neste contexto, será problemática na medida em que se viole uma norma constitucional que proíba a retroatividade. É por isso que esta questão se coloca, nomeadamente, no domínio fiscal, onde vigora a regra da proibição da retroatividade no âmbito fiscal, consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição
Com efeito, como o Tribunal Constitucional referiu no Acórdão n.º 267/2017, da 2.ª Secção, ponto 7:
«Pode suceder – e sucede com alguma frequência – que o legislador declare ou qualifique expressamente como “interpretativa” certa disposição de uma lei nova, mesmo quando essa disposição seja na realidade inovadora. Trata-se em tais casos de um disfarce da retroatividade substancial dessa lei. E, “quando não existe norma de hierarquia superior que proíba a retroatividade, tal qualificação do legislador deve ser aceite para efeito de dar a tal disposição um efeito equivalente ao de uma lei interpretativa, nos termos do artigo 13.º [do Código Civil]” (v. Autor cit., ibidem, p. 245). Porém, existindo uma norma superior que proíba a retroatividade (substancial), importará determinar se a lei nova reveste caráter inovador ou não, visto que, se a nova lei constituir direito novo, violará necessariamente a aludida proibição de retroatividade.»
Se é certo que uma “verdadeira” norma interpretativa produz, por natureza, efeitos retroativamente, por se aplicar a factos e situações passadas, essa deve ser considerada uma retroatividade meramente formal. Nesse caso, como não existe modificação substancial do conteúdo normativo, pretendendo-se apenas «consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da lei anterior com que os interessados podiam e deviam contar», não existe a suscetibilidade de violação das legítimas expectativas dos cidadãos (Acórdão n.º 267/2017, da 2.ª Secção, ponto 7) – nem, em rigor, existe uma situação de retroatividade em sentido próprio. Encontramos-mos, portanto, fora do domínio da proibição constitucional de retroatividade fiscal. No entanto, se a norma aprovada se pretende aplicar a factos e situações jurídicas anteriormente disciplinados, prescrevendo um regime novo, distinto do vigente, então estamos perante uma verdadeira situação de retroatividade (material ou substancial). Nesses casos, a classificação como “norma interpretativa” dada pelo legislador representa, afinal, a imposição de um efeito retroativo à nova lei, atuando exclusivamente razões ou critérios de oportunidade politico-legislativa. Estas normas criam uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários da norma alegadamente interpretada (mas na realidade alterada) não podiam contar, gerando uma frustração da confiança depositada na manutenção da solução que a lei interpretada consagrava. Como referido no Acórdão n.º 267/2017, da 2.ª Secção, ponto 7, «Na ótica da tutela da confiança dos destinatários do direito, releva que a lei interpretativa formalmente retroativa apenas declara o direito preexistente; ao passo que a lei interpretativa substancialmente retroativa, ao modificar o direito preexistente, constitui direito novo.» Efetivamente, neste último caso, os cidadãos que se comportaram no passado de acordo com o que consideravam ser o enquadramento jurídico vigente, serão confrontados com uma modificação inovatória desse regime que afeta factos e situações passadas. É exatamente para impedir essas situações que o legislador constituinte determinou a regra da proibição da retroatividade no âmbito fiscal, consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Sendo esta proibição um afloramento do princípio da tutela da confiança, a verdade é que o legislador constituinte, ao determinar que «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos (…) que tenham natureza retroativa» formulou uma regra absoluta de proibição de normas retroativas nesse domínio – se verdadeiramente retroativas – afastando juízos de ponderação. Nesse contexto, não podem subsistir dúvidas de que a proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição abrange as leis que apenas formalmente foram classificadas de interpretativas.
16. Segundo a decisão recorrida, apesar de o legislador classificar a norma em apreciação como meramente interpretativa, ela apresenta-se como sendo verdadeiramente inovadora. Assim, considerou que, ao definir a nova redação da verba 17.3.4., dada pelo artigo 153.º da Lei n.º 7-A/2016, como mera interpretação, através do artigo 154.º da mesma lei, o legislador está a impor retroativamente novos encargos fiscais. Em consequência, o tribunal a quo recusou a aplicação «daquele artigo 154.º, bem como da nova redação da verba 17.3.4.».
Concretamente, entendeu o Tribunal recorrido, no ponto 3.3.2. da decisão, que, face à redação vigente em 2014, as comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas automáticas em operações com cartões bancários, não eram enquadráveis na verba da TGIS, atinente a “Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros”. Consequentemente, entendeu que que a norma a que foi atribuída natureza interpretativa pelo artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016, é inovadora, pelo que as alterações introduzidas pelo artigo 153.º da Lei n.º 7-A/2016 à verba 17.3.4., não poderiam ser aplicadas ao caso em apreciação, por serem materialmente inconstitucionais, atendendo à proibição constitucional da retroatividade na área fiscal, constante do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Num primeiro momento a decisão recorrida salienta as diferenças de redação da verba 17.3.4 da TGIS vigente em 2014 e resultante da Lei n.º 7-A/2016, entendendo que, à face da redação vigente em 2014, as comissões em causa, cobradas entre entidades bancárias, não eram enquadráveis na verba 17.3.4. TGIS, porque então se fazia referência apenas a “operações financeiras” e a “outras comissões e contraprestações por serviços financeiros”. Mais observou que o artigo 3.º, n.º 3, alínea g), do CIS estabelecia que o titular do interesse económico nas restantes operações financeiras realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades ou outras instituições financeiras, era o cliente das mesmas. Só, posteriormente, pela Lei n.º 22/2017, de 23 de maio, seria introduzido o aditamento da alínea h) ao n.º 3 do artigo 3.º do CIS, estabelecendo que, se considera titular do interesse económico (i.e., fica com o encargo do imposto), «nas operações de pagamento baseadas em cartões, previstas na verba 17.3.4.da Tabela Geral do Imposto do Selo, as instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras a quem aquelas forem devidas».
Do conjunto destas normas inferiram os árbitros que as “operações financeiras” a que se reportava a verba 17.3.4. seriam aquelas que são praticadas entre aquelas instituições e os clientes, que são os titulares do interesse económico – o que, neste tipo de atos sujeitos a Imposto do Selo, constituía fundamento para imposição do encargo da tributação, nos termos do artigo 3.º.
Em consequência, entendeu o tribunal a quo que «não haveria fundamento para tributar as comissões e contraprestações cobradas entre entidades bancárias para repartirem entre si as despesas necessárias para suportar o funcionamento do sistema de pagamentos automáticos (TMI)» por se afigurar «manifesto que nesses pagamentos interbancários não havia qualquer relevância do interesse dos clientes. Por outro lado, no que concerne à utilização de cartões bancários, estava vedado às instituições de crédito, “cobrar quaisquer encargos diretos pela realização de operações bancárias em caixas automáticas” (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 3/[2010], de 5 de janeiro)». Assim «se no que concerne às operações em caixas automáticas (multibanco), havia prestação de serviços financeiros aos clientes de instituições bancárias», certo é que «pela prestação destes serviços não poderia haver comissões ou contraprestações enquadráveis na verba 17.3.4.». Considerando, portanto, que a referida verba, na redação vigente em 2014, não abrangia a TMI nem as comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas Automáticas em operações com cartões bancários, a decisão recorrida concluiu que as alterações legislativas introduzidas pelas Lei n.º 7-A/2016, no contexto da Lei n.º 22/2017, não podem ser aplicadas à situação em causa no processo por força da proibição constitucional da retroatividade da criação de impostos.
Desta forma, a decisão recorrida fundamentou, com base em argumentos de ordem literal, teleológica e sistemática o caráter inovador que atribuiu à norma agora sob fiscalização. Ora, inserindo-se este recurso no domínio da fiscalização concreta de constitucionalidade, a interpretação do direito infraconstitucional feita pelo tribunal recorrido é, em princípio, vinculativa para o Tribunal Constitucional, ao qual cabe julgar a conformidade ou desconformidade com a Constituição da norma cuja aplicação a decisão recorrida recusou (artigo 79.º-C da LTC).
É certo que o Tribunal Constitucional não está impedido de se afastar da interpretação acolhida pela decisão recorrida (cfr. o artigo 80.º, n.º 3, da LTC). No caso sub iudicio, contudo, não encontramos razões para duvidar do acerto da caracterização da norma que foi efetuada pelo tribunal a quo.
Na versão vigente em 2014, a verba 17.3.4 da TGIS fazia referência apenas a «operações financeiras» e a «outras comissões e contraprestações por serviços financeiros» o que por si só não impunha a conclusão de não incidência das taxas em referência da incidência do IS. Todavia, o artigo 3.º, n.º 3, alínea g), do CIS estabelecia que se considerava «titular do interesse económico (…) nas restantes operações financeiras realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades ou outras instituições financeiras, o cliente destas». Esta redação permitia inferir, como o tribunal a quo fez, que as «operações financeiras» a que se reportava a verba 17.3.4 seriam aquelas que são praticadas entre estas e os clientes, por serem estes os titulares do interesse económico que constituía fundamento para imposição do encargo da tributação, nos termos do artigo 3.º. Assim sendo, parecia não existir justificação legal para abranger no âmbito de aplicação da verba as comissões e contraprestações cobradas entre entidades bancárias – sem envolver os seus clientes – para repartirem entre si as despesas necessárias para suportar o funcionamento do sistema de pagamentos automáticos (como é o caso da TMI).
Para além disso, resulta do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 3/2010, de 5 de janeiro, que, no que concerne à utilização de cartões bancários, estava vedado às instituições de crédito, «cobrar quaisquer encargos diretos pela realização de operações bancárias em caixas automáticas». Assim, apesar de haver prestação de serviços financeiros aos clientes de instituições bancárias nas operações em caixas automáticas (multibanco), o certo é que pela prestação destes não poderia haver comissões ou contraprestações enquadráveis na verba 17.3.4.
Nesse sentido se pronunciaram igualmente outros tribunais arbitrais no âmbito do CAAD (cfr. a decisão de 31 de outubro de 2019 no processo 171/2019-T, que replica a fundamentação proferida no acórdão aqui recorrido, bem como o acórdão de 24 de janeiro de 2019, proferido no processo n.º 431/2018-T, ambos disponíveis no URL: https://caad.org.pt/tributario/decisoes).
Em abono da sua tese o recorrente invoca a decisão arbitral proferida em 7 de dezembro de 2017 no proc. 756/2016-T do CAAD. Todavia, o objeto daquela decisão não incidiu sobre a TMI ou as comissões interbancárias, antes sobre a TSC, que tem outras características e suscita, por conseguinte, questões de interpretação também diferentes.
17. Não existem, assim, motivos para afastar a interpretação do tribunal a quo de que a verba 17.3.4., na redação vigente em 2014, não abrangia a TMI nem as comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas Automáticos em operações com cartões bancários. Consequentemente, sendo incontroverso o conteúdo inovatório gravoso para os contribuintes da norma – visto que tributa o que antes não era tributado –, a pretensão de a mesma se aplicar a anos fiscais anteriores ao do início da sua vigência mostra-se flagrantemente incompatível com a proibição constitucional de impostos retroativos.
Sendo assim, não havendo razão aparente para alterar a conclusão a que chegou o tribunal a quo, impõe-se julgar a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, (Orçamento do Estado para o ano de 2016) na medida em que atribui natureza interpretativa à redação que o artigo 153.º da mesma Lei deu à verba 17.3.4 da TGIS, anexa ao CIS – e nessa medida determina que nas “Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros” poderão ser subsumidas a TMI e as comissões interbancárias cobradas pela utilização de Caixas Automáticas em operações com cartões bancários -, por força da proibição constitucional da retroatividade da criação de impostos (cfr. o artigo 103.º, n.º 3, da Constituição).
Impõe-se, por conseguinte, confirmar a decisão recorrida nesta parte.
18. Resta concluir, devendo o recorrente A., S.A., ser condenado nas custas do recurso que interpôs e não logrou ser conhecido (artigo 84.º, n.º 2, da LTC), não havendo responsável por custas no recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, por o recorrente delas estar isento.
III – Decisão
Termos em que se decide:
a) Não conhecer do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC pelo A., S.A.;
b) Julgar inconstitucional, por violação da proibição de criação de impostos com natureza retroativa estatuída no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 154.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que, por efeito do caráter meramente interpretativo que lhe atribui, determina que a norma do artigo 153.º da citada Lei – que dá nova redação à verba 17.3.4 da Tabela Geral de Imposto do Selo; e,
c) Em consequência negar provimento ao recurso interposto pelo MP ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente A., SA, com taxa de justiça que se fixa em 15 UCs no que respeita ao recurso pelo mesmo interposto, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Sem custas quanto ao recurso interposto pelo MP, por não serem legalmente devidas, ex vi artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais.
Lisboa, 21 de outubro de 2020 - Maria de Fátima Mata-Mouros - José João Abrantes - João Pedro Caupers - José Teles Pereira
A Relatora atesta o voto de conformidade do Presidente Manuel da Costa Andrade.
Maria de Fátima Mata-Mouros