ACÓRDÃO Nº 516/2020
Processo n.º 480/19
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Mariana Canotilho
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa, em que é recorrente A., S.A. e recorrida AT – Autoridade Tributária e Aduaneira, foi pela primeira interposto recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC) da decisão arbitral proferida (fls. 3-16), em 08 de abril de 2019.
2. No curso do processo a quo, a ora recorrente apresentou pedido de pronúncia arbitral, requerendo a anulação da autoliquidação de IRC, respeitante ao ano de 2015, e da decisão de indeferimento da respetiva reclamação graciosa, por não terem admitido a dedução à parte da coleta do IRC produzida pelas taxas de tributação autónoma dos benefícios fiscais apurados no âmbito do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE) e do Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento (CFEI) no montante de € 345.809,91, com fundamento na inconstitucionalidade do afastamento do direito à dedução à coleta de IRC (derivada de tributações autónomas) de benefícios fiscais por violação do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
Constituído o Tribunal arbitral, o mesmo proferiu a decisão ora recorrida, na qual julgou improcedente o pedido de pronúncia arbitral.
Com interesse para os autos, pode ler-se na decisão:
«A questão central a decidir nos presentes autos arbitrais consiste em saber se deve ser reconhecido à Requerente o direito a deduzir os benefícios fiscais, a título de SIFIDE e CFEI, à coleta produzida por tributações autónomas.
[…]
Quanto à diferenciação de natureza entre as figuras da tributação autónoma e do IRC este Tribunal reitera a posição adotada de forma uniforme pela jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo e da Doutrina no sentido de que as tributações autónomas são um imposto sobre a despesa diferente e distinto do IRC que é um imposto sobre o rendimento.
[…]
Consequentemente, a dedução à coleta é uma realidade inerente ao IRC enquanto imposto enformado pelos princípios da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real. Já o mesmo não acontece em relação à coleta devida por tributações autónomas, aliás a dedução de tais encargos, caso se verificasse, eliminaria o sentido anti abusivo que as caracteriza. Apesar da inserção sistemática e a ligação funcional ao IRC, as tributações autónomas são cobradas no âmbito do processo de liquidação deste imposto sem, no entanto, se descaracterizarem e perderem sua raiz dogmática própria. Em suma, as tributações autónomas, que incidem sobre certas despesas, funcionam de modo diferente do que constitui o escopo do IRC ao tributar rendimentos. No desenvolvimento desta posição a Decisão Arbitral n.º 111/2018-T refere, de forma pertinente, o seguinte: “Nada se diz na lei se o que está no artigo 90.º do Código do IRC, sob a epígrafe “Procedimento e Forma de liquidação” se aplica às duas realidades – IRC e tributação autónoma – ou a uma só e a qual. Porém, no entender deste Tribunal duma interpretação teleológica e sistemática da lei resulta claro que o n.º 1 do artigo 90.º - que encerra o procedimento de liquidação – se aplica quer ao IRC quer às tributações autónomas. Já o n.º 2 do mesmo artigo – que encerra a forma de liquidação – reporta-se aos casos da matéria coletável referida no artigo 15.º do CIRC, ou seja, ao IRC.
[…]
Para este Tribunal afigura-se claro que no cálculo das tributações autónomas não cabem quaisquer deduções sendo a respetiva liquidação efetuada nos termos dos artigos 88.º e 89.º e do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC. O legislador no n.º 2 do artigo 90.º do CIRC refere-se apenas à matéria coletável constante do artigo 15.º do CIRC. O facto do procedimento de liquidação previsto no n.º 1 do artigo 90.º do CIRC se aplicar também às tributações autónomas não implica direta e necessariamente que o mesmo ocorra com o n.º 2 do referido artigo 90.º. [Destacado]
Finalmente impõe-se analisar agora se os regimes de apoio ao investimento que são concretizados em deduções à coleta do IRC, nomeadamente os regimes do CFEI e do SIFIDE, se reportam ou não à coleta de IRC stricto sensu.
Primeiro, em termos de enquadramento, importa referir que a Lei n.º 49/2013, de 16 de Julho aprovou o CFEI com o intuito de promover o investimento e internacionalização das empresas nacionais por intermédio da concessão de um crédito fiscal, na forma de dedução à coleta, pela realização de certos investimentos. O CFEI correspondeu a uma dedução à coleta de IRC no montante de 20% das despesas de investimento em ativos afetos à exploração realizadas, até à concorrência de 70% daquela coleta. O investimento elegível para a obtenção deste crédito fiscal tinha que ser realizado entre 1 de Junho de 2013 e 31 de Dezembro de 2013, sendo que o montante máximo das despesas de investimento elegíveis era de € 5 000 000,00 por sujeito passivo. O CFEI não é cumulável, relativamente às mesmas despesas de investimentos elegíveis, com quaisquer outros benefícios fiscais da mesma natureza.
Já o SIFIDE foi primeiro aprovado pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, e sucessivamente previsto nos artigos 33.º a 40.º do Código Fiscal do Investimento e nos artigos 35.º a 42.º do Código Fiscal do Investimento aprovado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro.
O SIFIDE II permite às empresas a obtenção de um benefício fiscal, em sede de IRC, proporcional à despesa de investimento em investigação e desenvolvimento que consigam evidenciar, na parte que não tenha sido objeto de comparticipação financeira do Estado a fundo perdido. Assim, o benefício a obter com o SIFIDE II traduz-se na possibilidade de deduzir à coleta de IRC apurada no exercício, um montante de crédito fiscal que resulta do somatório das seguintes parcelas: Taxa base: 32,5% das despesas realizadas no exercício; Taxa incremental: 50% do acréscimo das despesas realizadas no exercício face à média aritmética simples das despesas realizadas nos dois exercícios anteriores, até ao limite de € 1.500.000. Os valores que traduzam o benefício fiscal em sede de SIFIDE são deduzidos ‘aos montantes apurados nos termos do artigo 90.º do Código do IRC, e até à sua concorrência’ e na liquidação respeitante ao período de tributação em que se realizem as despesas para o efeito elegíveis e que, na falta ou insuficiência de coleta apurada nesses termos, as despesas que não possam ser deduzidas no exercício em que forem realizadas ‘poderão ser deduzidas até ao 6.° exercício imediato’.
[…]
Por tudo o quanto vai exposto, não faz sentido invocar a inconstitucionalidade do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC aditado pela Lei n.º 7.º-A/2016, de 30 de março, por violação do princípio da retroatividade da lei, proibida pelo artigo 103.º, n.º 3, da CRP, na medida em que tal normativo não é convocado sequer na resolução do caso em apreço. [Destacado] Este Tribunal entende que relativamente à questão da dedutibilidade das despesas de investimento previstas no CFEI aplica-se o entendimento que se deixou exposto relativamente ao SIFIDE, não havendo motivos que fundamentem uma posição distinta»”
3. Perante esta decisão, a requerente veio apresentar requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 19-21). Depois da tramitação processual própria, neste Tribunal, que confirmou o preenchimento dos pressupostos processuais para o prosseguimento dos autos, pelo despacho da Relatora de 16 de janeiro de 2020 foi admitido o requerimento de recurso e as partes foram notificadas para produzir as suas alegações (fls. 106).
4. Nas suas alegações (fls. 109-128), a recorrente concluiu:
«1º. A ora Recorrente colocou à apreciação desse Douto Tribunal ad quem questão concernente à conformidade constitucional do artigo 90.°, n.° 2, do CIRC, na redação vigente no exercício de 2015, à luz da interpretação, preconizada na decisão arbitral recorrida, de que tal disposição não se reputa aplicável à coleta das tributações autónomas resultante dos artigos 88.°, n.° 21, 89.º, alínea a), e 90.º, n,° 1, alínea a), do CIRC;
2.º Julgou o Douto Tribunal a quo que a expressão "montante apurado nos termos do número anterior", prevista no artigo 90º, n.° 2, do CIRC, deve ser interpretada como "montante apurado nos termos do artigo 15° do CIRC”, tendo, nessa medida, julgado improcedente a pretensão da ora Recorrente;
3.º No entender da Recorrente, a aludida interpretação restritiva do artigo 90.º, n.° 2, do CIRC consubstancia uma violação do princípio da legalidade tributária previsto no artigo 103.°, n.° 3, última parte, da CRP;
4.º Com efeito, a liquidação do imposto lato sensu (incluindo as tributações autónomas) reputar-se-ia desconforme à lei - em concreto, ao preceito legal que expressamente visou regulá-la: o artigo 90.º do CIRC ("Procedimento e forma de liquidação"), nos seus diversos números (incluindo o n.° 2);
5.º Assim, a questão decidenda objeto do presente recurso consiste em aferir da bondade constitucional daquela interpretação restritiva do artigo 90.º, n.° 2, do CIRC, à luz do princípio da legalidade tributária previsto no artigo 103., n.° 3, última parte, da CRP;
6.° As tributações autónomas configuram um modo de evitar que os sujeitos passivos obviem à tributação em IRC de determinadas realidades, traduzindo-se, por conseguinte, num mecanismo reflexo de tributação em sede deste imposto;
7.º Ao visarem a proteção de receita em sede de IRC, as tributações autónomas configuram um modo de proteção da receita tributária de índole empresarial;
8.° A ideia de que as tributações autónomas configuram uma componente do próprio IRC resulta da localização sistemática do artigo 88.° no capítulo IV "Taxas" do CIRC e, de modo expresso, dos artigos 12.° e 23,°-A, n.° 1, alínea a), daquele diploma (neste sentido vide, a título de exemplo, o resumo das alegações apresentadas pela Autoridade Tributária nos processos arbitrais n.os 93/2014- T, 59/2014-T e 282/2013-T e nos processos n.os 0429/14 e 0525/14, que correram termos junto do Supremo Tribunal Administrativo);
9.º Assumindo as tributações autónomas a natureza de IRC e não contemplado artigo 88.° do CIRC qualquer mecanismo de operacionalização da liquidação específico daquelas, as regras do procedimento de liquidação do Capítulo V do CIRC reputam-se comummente aplicáveis à determinação das tributações autónomas e do lucro tributável;
10.º Nessa medida, afiguram-se aplicáveis à liquidação de tributações autónomas os artigos 89.º e 90.º, n.° 1, do CIRC, não existindo sequer quaisquer outras disposições que prevejam termos distintos para a sua liquidação (neste sentido vide a decisão arbitral recorrida e o acórdão do Tribunal Constitucional n.° 267/2017, de 31.05.2017, proferido no processo n.° 466/16);
11.° Uma hipotética conclusão contrária, no sentido de que artigo 90.º, n.° 1, do CIRC não se reputa aplicável ao procedimento de liquidação de tributações autónomas, conduziria à conclusão intolerável de que não existe no ordenamento jurídico-tributário qualquer norma que preveja a liquidação destas, o que inquinaria de ilegalidade o seu próprio procedimento de liquidação por esse motivo (neste sentido vide a decisão arbitral proferida em 05.10.2015, no processo n.° 219/2015-T, no qual foi Árbitro Presidente o Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa);
12.º Clarificada que está a aplicação do artigo 90.°, n.° 1, do CIRC à liquidação das tributações autónomas, cumpre realçar que dita o artigo 90.º, n.º 2, alínea c), do CIRC que "Ao montante apurado nos termos do número anterior são efetuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada: (...) A relativa a benefícios fiscais";
13.º Não obstante a norma remeter expressamente, sem quaisquer reservas, para o "montante apurado nos termos do número anterior" - que abrange o procedimento de liquidação das tributações autónomas, como inclusivamente foi reconhecido na decisão arbitral recorrida - o Douto Tribunal a quo decidiu reduzir o escopo de tal norma adotando uma interpretação corretiva para "montante apurado nos termos do artigo 15.º do CIRC', apesar de nem sequer existir expressa menção a este artigo no n.° 2, ou em qualquer outro número, do artigo 90.º do CIRC;
14.º Ora, o artigo 90.º, sob epígrafe "Procedimento e forma de liquidação", está inserido no Capítulo V do CIRC, o qual regula a matéria da "Liquidação" do IRC, ditando o artigo 103.º, n.° 3, da CRP, a respeito do procedimento de liquidação de impostos, que "Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos (...) cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei";
15.º Decorre da disposição constitucional em referência que o procedimento de liquidação dos impostos deve respeitar o princípio da tipicidade (enquanto corolário do princípio da legalidade), sendo mandatória a prevalência da previsão legal no que respeita ao procedimento de liquidação;
16.º O princípio da legalidade do procedimento de liquidação - previsto no artigo 103.°, n.° 3, in fine, da CRP - impõe ao legislador a incumbência de legislar de forma absoluta, estatuindo a norma ordinária de tal forma que não haja necessidade de adoção de interpretações corretivas, integração com recurso a outras normas ou com recurso a analogia em todos os casos aos quais a mesma se aplique, devendo tal procedimento residir e ser balizado pela tipificação do texto legal;
17.° In casu, ao decidir o Douto Tribunal a quo que a remissão expressa a "montante apurado nos termos do número anterior" não se reporta efetivamente ao montante apurado no número anterior, mas sim ao montante apurado nos termos do artigo 15.º do CIRC, o tribunal afasta-se da intenção clara do legislador expressa no texto da lei, devendo tal interpretação restritiva ser rejeitada por afrontadora da Lei Fundamental, nos termos do artigo 103.°, n.° 3, in fine, da CRP;
18.º O entendimento adotado na decisão arbitral recorrida não poderia de todo o modo proceder, uma vez que no artigo 90.º, n.° 2, do CIRC não é feita qualquer menção ao montante apurado nos termos do artigo 15.º do CIRC nem é introduzida qualquer restrição ou limitação às deduções ao montante apurado nos termos do artigo 90.º, n.° 1, do CIRC;
19.º Caso tivesse sido intenção do legislador referir-se, no n.° 2 do artigo 90.º do CIRC, ao montante apurado nos termos do artigo 15.º do CIRC, tê-lo-ia efetuado de modo claro, preciso e expresso, como aliás se impunha que fizesse por força do princípio da legalidade do procedimento de liquidação previsto no aludido artigo 103.°, n.° 3, da Lei Fundamental;
20.º Assim, só pode entender-se que o legislador não visou qualquer limitação ao conceito de "montante apurado nos termos do número anterior" (artigo 9.º, n.° 3 do CC);
21.º Atenta a clareza do artigo 90.º, n.° 2, do CIRC, a única interpretação conforme ao princípio constitucional da legalidade depende da imputação ao montante apurado nos termos do n.° 1 - incluindo tributações autónomas - das deduções previstas naquela norma;
22.º Isto é, dispondo o n.° 2 do artigo 90.º do CIRC que as deduções são efetuadas "ao montante apurado nos termos do número anterior" e referindo-se o n.° 1 do mesmo artigo à operação de liquidação do IRC, da qual resulta o apuramento da coleta, a única interpretação conforme ao princípio constitucional da legalidade depende da imputação ao IRC apurado - que inclui as tributações autónomas - das deduções elencadas no n.° 2 do artigo 90.º do CIRC;
23.º Consequentemente, nos casos em que o montante dos benefícios fiscais seja superior à coleta resultante do lucro tributável, será o remanescente do crédito de imposto dedutível, também, à coleta resultante das tributações autónomas e até à concorrência desta;
24.º O direito a deduzir o SIFIDE e CFEI ao montante total de IRC, incluindo tributações autónomas, apurado ao abrigo do n.° 1 do artigo 90.º do CIRC, configura a interpretação que melhor se coaduna com a própria natureza excecional dos benefícios fiscais (cf. artigo 2.º do EBF);
25.º A natureza excecional dos benefícios fiscais reforça o entendimento de que estes podem ser deduzidos às tributações autónomas, uma vez que as motivações extrafiscais que os determinaram se sobrepõem às motivações de arrecadação de receita propulsoras da generalidade das tributações autónomas (i.e. sendo as tributações autónomas um instrumento que visa obviar ao evitação de pagamento do IRC devido e sobrepondo-se os benefícios fiscais ao objetivo de arrecadação de receita, seria incoerente impedir a dedução dos benefícios fiscais às tributações autónomas);
26.º Relativamente ao SIFIDE, as razões de natureza extrafiscal que justificam a sua sobreposição às receitas fiscais são de grande relevância, na medida em que o legislador considerou que o incremento em I&D é determinante para a competitividade das empresas e para a produtividade e crescimento económico do país a longo prazo (cfr. Relatório do Orçamento do Estado para 2011);
27.º A relevância que o legislador atribui ao SIFIDE - e a prevalência dos objetivos subjacentes à consagração do benefício vis-a-vis o objetivo de obtenção de receitas fiscais - encontra expressão legal no artigo 92.°, n.° 2, alínea b), do CIRC, que exclui o benefício em referência do cálculo do limite geral de dedução de benefícios fiscais em sede de IRC;
28.° Sobrepondo-se este benefício à arrecadação de receitas, impõe-se considerar irrelevante que as receitas tributárias provenientes da tributação em IRC, incluindo das tributações autónomas;
29.º Nesse sentido, tendo em conta o propósito do legislador de privilegiar o incentivo em I&D empresarial, inexiste fundamento legal para afastar a dedutibilidade do beneficio fiscal do SIFIDE à coleta das tributações autónomas que resulta diretamente dos artigos 36.º, n.° 1, do Código Fiscal do Investimento e 38.°, n.° 1, do novo Código Fiscal do Investimento;
30.º Acresce que a interpretação ora propugnada, ao permitir aplicar o SIFIDE a sujeitos passivos que, embora apresentem prejuízos fiscais, suportam IRC a título de tributações autónomas, aumenta o número de potenciais beneficiários, afigurando-se mais apta a promover os objetivos extrafiscais subjacentes à sua criação;
31.º Por outro lado, no que concerne à dedutibilidade das despesas de investimento previstas no CFEI, entende a Recorrente aplicar-se, mutatis mutandis, o que supra se deixou exposto a propósito do SIFIDE, inexistindo quaisquer motivos que obstem à adoção de posição distinta (cfr. artigos 3.º, n.° 1, 5.º, alínea a) e 7.º da Lei n.° 49/2013, de 16 de julho);
32.º Termos em que se requer a esse Douto Tribunal ad quem que julgue que a interpretação do n.° 2 do artigo 90.º, do CIRC, preconizada pelo Douto Tribunal a quo, ao restringir o direito à dedução de benefícios fiscais à totalidade do imposto apurado nos termos do n.° 1 do mesmo artigo, padece de inconstitucionalidade por violação do princípio da legalidade tributária, previsto no artigos 103.°, n.° 3, da CRP, com as demais consequências legais [Destacado];
33.° E nem sequer se invoque, o que só por mero dever de patrocínio se admite, sem conceder, que não se deverá atender ao princípio constitucional da legalidade no procedimento de liquidação, nos termos do artigo 103.°, n.° 3, in fine, da CRP, em função das alterações ao artigo 88.°, n.° 21, do CIRC, ocorridas após o exercício de 2015 (cfr. artigos 135.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016, e 233.º da Lei do Orçamento do Estado para 2018);
34.º Não obstante o declarado caráter interpretativo daquelas redações do n.° 21 do artigo 88.° do CIRC, estas configuram normas inovadoras e não interpretativas;
35.º Não resultava da redação do n.° 2 do artigo 90.º do CIRC, anterior às Leis do Orçamento do Estado para 2016 e 2018, que as deduções listadas nas respetivas alíneas se encontravam limitadas no que concerne à coleta de tributações autónomas, decorrendo daquela, pelo contrário o direito à dedução ao montante apurado nos termos do artigo 90.º, n.° 1, do CIRC, incluindo tributações autónomas; [Destacado]
36.º Nunca poderia o julgador ou intérprete concluir que da norma em crise decorria a restrição à dedução de benefícios fiscais nos termos previstos no atual artigo 88.°, n.° 21, do CIRC (i.e. em face da anterior redação da lei, nunca poderiam os tribunais ter adotado uma interpretação que conduzisse à restrição do direito à dedução de benefícios fiscais, sob pena de violação do princípio da legalidade do procedimento de liquidação, previsto no artigo 103.°, n.° 3, in fine, do CIRC); [Destacado]
37.º Nesta medida, só poderá concluir-se pelo caráter inovador e não interpretativo dos artigos 135.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016 e 233.º da Lei do Orçamento do Estado para 2018, que modificaram a redação do artigo 88.°, n.° 21, do CIRC (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.° 267/2017, proferido em 31.05.2017, no processo n.° 466/16);
38.º Impõe-se assim concluir que a interpretação acima atingida, relativamente ao artigo 90.º, n.° 2, do CIRC, não é passível de ser afetada pelos artigos 135.º e 233.º das Leis do Orçamento do Estado para 2016 e 2018, que atribuem natureza interpretativa à redação do n.° 21 do artigo 88.° do CIRC, porquanto tais alterações violariam o princípio da proibição da retroatividade quando interpretado no sentido de ditar em exercícios prévios o afastamento do direito à dedução de benefícios fiscais à coleta de derivada de tributações autónomas (cfr. artigo 103.º, n.° 3, da CRP)».
5. A recorrida contra-alegou (fls. 130-178), tendo formulado as seguintes conclusões:
“1.º Alega a recorrente que a decisão arbitral merece censura constitucional e deve ser revogada, porquanto que a interpretação veiculada na referida decisão viola o princípio da legalidade tributária e o princípio da retroatividade da lei fiscal;
2.º Salvaguardando o devido respeito, a interpretação efetuada no âmbito da decisão arbitral não enferma de qualquer inconstitucionalidade;
3.º A presente controvérsia apenas surgiu a partir do momento em que diversos sujeitos passivos promoveram junto do CAAD “teses” que desafiavam a estabilidade interpretativa que sempre existiu em torno do tema, “teses” às quais o CAAD, embora muito minoritariamente, deu acolhimento;
4.ºA expetativa na manutenção de uma das interpretações efetuadas pela jurisprudência arbitral não se pode confundir com as expetativas geradas pela própria lei e, sobretudo para o que aqui agora releva, com aquilo que a própria lei fiscal estabelece.
5.º O IRC apresenta-se como uma realidade dicotómica, em que coexistem lado a lado: (1) um IRC em sentido lato, configurado como um tributo de obrigação única, incidindo sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, em que o facto gerador do tributo surge isolado no tempo, originando, para o contribuinte, uma obrigação de pagamento com caráter avulso, sem prejuízo de o apuramento do montante devido pelos agentes económicos sujeitos à referida ‘taxa’ ser efetuado periodicamente, num determinado momento, conjuntamente com outras operações similares, sem que a liquidação conjunta influa no seu resultado; e (2) um IRC em sentido estrito, enquanto imposto que incide sobre o lucro ou o rendimento líquido das pessoas coletivas;
6.° Os regimes de incentivos fiscais ao investimento, que estão em causa na decisão recorrida, têm em comum a modalidade técnica de efetivação do benefício, que consiste na dedução de uma percentagem das despesas de investimento relevantes "ao montante apurado nos termos do artigo 90.° do CIRC" (n.° 1 do artigo 3.° da Lei n.° 49/2013) ou à "coleta do IRC apurada nos termos da alínea a) do n.° 1 do artigo 90.° do CIRC" (cf. n.° 1 do artigo 23.° e n.° 1 do artigo 38.° do CFI).
7.° Por seu turno, o artigo 90.° do CIRC determina que «Ao montante apurado nos termos do número anterior são efetuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada: (...) A relativa a benefícios fiscais;
8.° Da concatenação do estabelecido nestes normativos, resulta que a dedução a que se refere o citado normativo opera nos termos em que as deduções, previstas no n.° 2 do artigo 90.° operam, atenta a subsunção dos créditos de imposto por benefícios fiscais, como é o caso do SIFIDE II, na alínea b) - anterior alínea c) - desta norma.
9.° Cabe lembrar que com a inserção das TA no CIRC, pela Lei n.° 30-G/2000, de 29/12, mediante o aditamento do artigo 69.°-A (atual artigo 88.°) passaram a coexistir, neste Código, dois sistemas de tributação com natureza e finalidades distintas, sem que o legislador haja introduzido as necessárias adaptações que tais diferenças impunham, não obstante tal inclusão ter constituído «(...) um entorse à luz das características próprias do IRC, enquanto imposto direto que incide sobre o rendimento das pessoas coletivas».
10.° Sendo as TA uma forma especial de tributação, especialidade que advém da delimitação dos fatores geradores, regras de quantificação, taxas aplicáveis e finalidades associadas, é redutor concluir, como base numa interpretação meramente literal e simplificadora, como sucede na "tese" da Recorrente, que, por partilharem as regras de liquidação, definidas no artigo 89.°/1 e no artigo 90.° do CIRC, as respetivas coletas devem ter o mesmo destino da coleta do IRC stricto sensu.
11.°Importa atentar as coletas das TA e a coleta do IRC em sentido estrito não se fundem, sendo os respetivos cálculos perfeitamente autonomizados, porquanto os elementos que lhe servem de base (matéria coletável e taxas) provêm de quadros normativos diferenciados.
12.° Enquanto a liquidação da coleta do IRC consiste na aplicação das taxas previstas no artigo 87.° à matéria coletável, determinada segundo as regras constantes do Capítulo III do CIRC, a liquidação das TA assenta nas taxas e nos valores tributáveis das diversas realidades contempladas no artigo 88.° do mesmo código, dualidade que reflete, necessariamente, a diferente natureza e finalidades do IRC stricto sensu e das TA.
13.º Ao contrário do que propugna a Recorrente a tese por si aventada colide frontalmente com os fins intrínsecos às TA, na medida em que produz um efeito autofágico de resultado zero, ou seja, como se nunca tivesse havido TA.
14.° As finalidades intrínsecas às TA ficam completamente esvaziadas e afastadas através desta errática tese, na medida em que a consequência pretendida por aquela norma deixa de existir, porquanto se obsta ao pagamento do montante apurado a título de TA.
15.° Por seu turno, não é despiciendo relembrar que o crédito produzido pelos benefícios fiscais, in casu, o SIFIDE II, continua a estar na esfera do sujeito passivo, através da modalidade de reporte para os anos subsequentes.
16.° Deve estar subjacente a qualquer benefício fiscal ao investimento (como o SIFIDE II) o reconhecimento económico e social justificativo da perda de receita fiscal que o mesmo implica, in casu, as despesas de investimento em l&D estão associados à prossecução do objetivo de incremento da produtividade e consequente reforço da competitividade das empresas.
17.° Justamente, a escolha da modalidade técnica sob a qual opera este incentivo fiscal (o crédito de imposto) permite combinar o montante do investimento em l&D (despesas elegíveis) com a rendibilidade do mesmo, pois quanto maior for o volume do capital investido maior é a dimensão do benefício fiscal potencial e quanto mais elevados os lucros derivados do investimento maior a capacidade de aproveitamento do benefício.
18.° Existe, portanto, uma ligação indissociável entre o benefício fiscal SIFIDE e as regras de determinação da matéria coletável do IRC, pelo método direto, que tomam como base o lucro revelado pela contabilidade e para cuja formação concorrem as chamadas "despesas elegíveis".
19.° Cabe lembrar que estão afastados deste benefício fiscal, pelo artigo 5.° do Regime do SIFIDE II, aprovado pelo artigo 133.° da Lei n.° 55-A/2010, de 31 de dezembro (e artigo 39.° do Código Fiscal do Investimento) os sujeitos passivos cujo lucro tributável seja determinado por métodos indiretos, regra que denuncia bem que, se o legislador tivesse concebido o SIFIDE por forma a que o crédito de imposto fosse deduzido às coletas das TA, não faria qualquer sentido esta regra de exclusão.
20.° Desde a inserção formal do regime das TA no CIRC, sucederam-se as alterações ao artigo 88.°, sem que a doutrina ou a jurisprudência fizessem eco de qualquer divergência de entendimento a respeito da exclusão de deduções às coletas das TA, excecionada a dedução consentida pelo n.° 12 do artigo 88.° (introduzida pelo Decreto-Lei n.° Decreto-Lei n.° 192/2005, de 7 de novembro), em que o legislador de forma expressa tomou posição sobre a dedução à coleta das TA a que se refere o n.° 11 desse artigo das retenções na fonte sobre os dividendos.
21.° Uma leitura holística das normas do CIRC revela a coexistência de um sistema de tributação com base no rendimento com o regime especial das TA, como já antes referido, circunstância que coloca um esforço exigente ao legislador para destrinçar os normativos que regulam aspetos que colidem com a natureza e características das TA.
22.° O cálculo dos pagamentos por conta não pode senão ter por referência o apuramento do IRC baseado nas regras de determinação do lucro tributável e da matéria coletável (do Capítulo III do CIRC) e, nunca, o apuramento feito com base nas regras de incidência das taxas de tributação autónoma (do artigo 88.° do CIRC).
23.° Os exemplos apresentados bastariam para sustentar a conclusão de que a expressão contida no corpo do n.° 2 do artigo 90.° do CIRC, "o montante apurado nos termos do número anterior a que reportam as deduções enunciadas nas alíneas deste número, em que se inclui a dedução por benefícios fiscais (alínea b), atual alínea c)) e expressões equivalentes utilizadas noutros artigos quer do CIRC, quer de outros institutos legais (e.g., artigo 4.° do Regime do SIFIDE II ou Código Fiscal do Investimento) devem ter um sentido unívoco e coerente, que é o do corresponder à coleta do IRC stricto sensu, apurada com base na matéria coletável que tem como ponto de partida o lucro.
24.° A interpretação, no fundo, defendida pela Recorrente encerra em si mesma uma limitação insanável, porquanto, aparentemente, apenas seria válida para as deduções previstas no artigo 4.° do Regime do SIFIDE II, bem como na alínea b) (ou alínea c)) do n.° 2 do artigo 90° do CIRC, abstraindo por completo de uma análise de todas as consequências sistemáticas decorrentes de tal entendimento.
25.° À luz dos critérios de interpretação que convocam os elementos de interpretação histórico, sistemático e teleológico, as expressões "Ao montante apurado nos termos do número anterior", ou "o montante apurado nos termos do artigo 90. ° do Código do IRC" a que faz referência o n.° 2 do artigo 90.° e o n.° 1 e o n.° 3 do artigo 4.° do Regime do SIFIDE, só podem ser entendidas como respeitando ao IRC liquidado mediante a aplicação das taxas previstas nos números 1 e 2 do artigo 87.° à matéria coletável, determinada segundo as regras enunciadas no capítulo III do CIRC, e não ao montante apurado a título de TA, assim se devolvendo à norma o seu sentido original, que era o que correspondia à sua redação textual antes da introdução das TA no CIRC.
26.° A interpretação estritamente literal daquela expressão conduziria a resultados absurdos e perversos, do ponto de vista da natureza e objetivos associados a um benefício fiscal, porquanto abriria a porta a que sujeitos passivos com prejuízos fiscais, mas com TA sobre despesas não documentadas ou despesas com veículos de elevado valor ou despesas de representação, usufruíssem da dedução a título do SIFIDE.
27.° Em suma, e como bem refere a decisão arbitral proferida no processo n.° 247/2019-T, da interpretação da expressão contida no corpo do n.° 2 do artigo 90.° do CIRC à luz dos critérios gerais enunciados no artigo 9.° do Código Civil, resulta a não dedução às coletas das TA de benefícios fiscais, incluindo a título do crédito de imposto do SIFIDE II, porquanto aquelas coletas de TA não admitem outras deduções que não sejam a prevista no n.° 12 do artigo 88.° do CIRC.
28.° A "tese" propugnada pela Recorrente assenta numa pura falácia interpretativa, que não encontra respaldo quer na letra, quer na mens legislatoris e, bem assim, na mens legis, mostrando-se perfeitamente alinhada com o princípio da legalidade tributária.
29.° O teor do artigo 133.°, o qual aditou o número 21 ao artigo 88.° do CIRC, com os efeitos previstos no artigo 135.°, ambos constantes da Lei do Orçamento de Estado para 2016, publicado a 30.03.2016, com entrada em vigor no dia seguinte, nos quais se preconiza, com carácter interpretativo, que «A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos do artigo 89." e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.»
30.° Tal norma veio clarificar, positivando, como se evidenciou supra, o entendimento e prática perfilhados pacificamente pela doutrina e pelos contribuintes em geral, os quais nunca foram postos em causa pela Recorrida.
31.° Apenas vindo a tornar-se, artificialmente, uma controvérsia face às peregrinas teses propugnadas no CAAD, pelo que qualquer interpretação dissonante será, essa sim, materialmente inconstitucional.
32.° No artigo 135.° da referida Lei n.° 7-A/2016, de 30 de março, o legislador determinou que a norma em causa teria carácter interpretativo.
33.º Verificando-se que, de facto e insofismavelmente, o novo n.° 21 do artigo 88.° do CIRC tem carácter interpretativo, as disposições aí contidas integrarão a norma interpretada desde o seu início de vigência.
34.° Embora em matéria fiscal os princípios constitucionais da legalidade e da proibição da retroatividade da lei, previstos no artigo 103.° da CRP, imponham algumas restrições ao legislador, entende a Recorrente que não existe uma proibição constitucional genérica de leis fiscais interpretativas.
35.° A admissibilidade constitucional de leis interpretativas em matéria fiscal - tal como relativamente a quaisquer normas de natureza fiscal - deverá ser aferida em função das matérias sobre as quais versam e do respetivo conteúdo normativo uma vez que a proibição constitucional da retroatividade da lei fiscal se cinge às matérias de incidência (objetiva, subjetiva, temporal e territorial) do imposto.
36.° Partindo-se, assim, da admissibilidade teórica de leis interpretativas em matéria fiscal, cumpre analisar se, no caso em apreço, não obstante a declaração expressa do legislador, estamos efetivamente perante uma lei interpretativa conforme as disposições constitucionais, o que, nos parece por demais evidente.
37.° Considera-se, assim, que, para qualificar uma lei como interpretativa, deverão verificar-se os seguintes requisitos: (1) Existir uma questão controvertida ou incerta na lei em vigor; e (2) o legislador consagrar uma solução interpretativa que resolva a incerteza a que chegariam o intérprete ou o julgador com base no normativo vigente anteriormente à alteração legislativa.
38.° Em face desta posição, cuja fundamentação é ponderável, à face da legislação vigente em 2012, pode e deve aceitar-se a atribuição de natureza interpretativa que se faz no artigo 135.° da Lei n.° 7-A/2016, de 30 de março, conforme a Constituição da República Portuguesa ("CRP"), ao n.° 21 do artigo 88.° do CIRC, à luz dos ensinamentos de BAPTISTA MACHADO, porquanto a solução nele prevista de inviabilidade de dedução do pagamento especial por conta ao montante global das TA passa o teste enunciado por este Autor, i, e.: (1) A solução que resultava do teor literal do artigo 93.°, n.° 1, do CIRC era clara no sentido da não dedutibilidade à coleta produzida pelas TA (efetivamente a "questão de fundo" apenas se tornou controvertida face às peregrinas teses propugnadas no CAAD, encabeçadas por grandes grupos económicos, consultoras e escritórios de advocacia) sendo claro e hialino que a solução definida pela nova lei situa-se dentro dos quadros da virtual e artificialmente controvérsia criada por aqueles; (2) O julgador ou o intérprete poderiam chegar a essa solução sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei, já que a interpretação restritiva é admissível quando há razões para concluir que o alcance do texto legal atraiçoa o pensamento legislativo ou é necessário otimizar a harmonização de interesses conflituantes que duas normas visam tutelar.
39.º Não se antevê ou vislumbra que o regime que resulta do n.° 21.° do artigo 88.° do CIRC encerre qualquer contradição, na medida em que, segundo esta nova norma, as normas do CIRC relativas à forma de liquidação de TA devem ser interpretadas como aí se prevê e relativamente a essa parte da liquidação de IRC não são efetuadas deduções.
40.º Aliás, foi precisamente com este sentido que foi elaborado o modelo 22 de declaração de IRC e se foi aplicando o regime agora explícito no n.° 21 do artigo 88.°.
41.º Aplicando estes critérios à situação em apreço, somos obrigados a concluir que estamos, realmente, perante uma lei interpretativa.
42.º A norma ora em apreço apenas veio clarificar positivando, como se evidenciou ao longo dos autos, aquilo que sempre foi o espírito da norma, bem como o entendimento e prática perfilhados pacificamente pela doutrina e pelos contribuintes em geral, os quais nunca foram postos em causa pela Recorrida, pelo que qualquer interpretação dissonante é e será materialmente inconstitucional, conforme a tese validada, erraticamente, pela Recorrente.
43.° Se fosse possível deduzir benefícios fiscais à coleta das TA neutralizar-se-ia a razão de ser dessas tributações.
44.º O sentido anti abuso das TA não seria conseguido se a coleta que delas resulta fosse sujeita àquele tipo de deduções. elemento inicial da interpretado do n.° 2 do artigo 90.° (o literal) não possibilita, sem mais, o entendimento da possibilidade de serem operadas deduções ao resultado das TA, visto de outras disposições e sua aplicação (n.° 1 do artigo 105.° CIRC, com terminologia semelhante, e, relevando também a conexão das deduções ao lucro, o n.° 5 do artigo 90.° n.° 5, 91.° e 91.°-A do CIRC e a alínea a) do n.° 5, artigo 3.° da Lei n.° 49/2013, conjugado com o n.° 1 do artigo 69.° n.° 1 do CIRC) resultar não serem as TA naquele consideradas.
45.° E à mesma conclusão se chega através dos elementos teleológico e sistemático, tendo em consideração as: (1) Causas; (2) Fundamentos; (3) Finalidades, nomeadamente, evitar a hipertrofia de gastos -limitando-os -, diminuindo artificialmente a capacidade contributiva, preservação da boa gestão empresarial mediante necessidade de justificação empresarial dos gastos seja para evitar despesas excessivas ou de natureza mista privado-empresarial seja para combater a evasão fiscal, por exemplo, a distribuição oculta de lucros ou a contribuição para a economia paralela, propiciando a eliminação da opacidade face à transparência, a racionalidade de comportamentos, evitando desigualdade, repartindo mais adequadamente a carga fiscal, objetivos, portanto, que não podem ser postergados, ainda que a finalidade reditícia possa eventualmente ser considerada, mas não erigida como algo exclusivo ou nuclear, sendo, portanto, as correspondentes normas dissuasoras, compensatórias e anti abuso); e (4) Resultados das TA em harmonização com a fundamentação das deduções estabelecidas no n.° 2 do artigo 90° do CIRC, em que estão compreendidos quaisquer benefícios fiscais operando por dedução à coleta e, consequentemente, conduzindo ao desagravamento dessa coleta.
46.° O ring fencing é, portanto, aplicável às TA.
47° Deverá acrescentar-se não serem, assim, procedentes argumentos como a necessidade de prevalência do interesse que justifica o benefício, visto que a respetiva hierarquização prioritária só se colocará quando não seja contrastante com o intuito legal da preservação do bom agir como o legislador preceituou e não como o intérprete, substituindo inaceitavelmente este, considera aquele.
48.° Também é irrelevante o argumento que, se lex generalis non derrogat ex specialis, a lei estabelecendo o beneficio não poderia ser afetada pela que estabelece a não dedução, e o argumento não é procedente visto qualquer beneficio que dê origem à dedução estar compreendido na categoria geral estabelecida na alínea c) do n.° 2 do artigo 90° do CIRC e, portanto, o respetivo tratamento é o tratamento dos benefícios em geral incluídos nesse preceito, sejam ou não incentivos, e que se deixou assinalado, como resultado da harmonização dos interesses envolvidos.
49.° Aliás, inicialmente as TA não foram incluídas no CIRC, quando, depois, se poderia ter tido a ideia da respetiva dedutibilidade, nunca tal aconteceu, e só posteriormente (i.e., com o CAAD) passou a ser objeto de controvérsia, não se tendo caído, pois, na uniformidade contrária.
50.° Não se afigura, pois, necessária qualquer lei interpretativa para se atingir o entendimento da não dedutibilidade do elencado no n.° 2 do artigo 90.° do CIRC à coleta das TA. [Destacado]
51.° A norma aqui sindicada, ao estabelecer o carácter interpretativo da nova redação ao do n.° 21 do artigo 88, é totalmente clara em abranger todo o n°. 21 (aliás, a respetiva parte final é que resolve a putativa e artificial controvérsia criada exclusivamente pelo CAAD), não podendo, portanto, ser limitado o seu comando, salvo se não ocorrer o condicionalismo para tal exigido, o que não sucede.
52.° Como resulta do acervo interpretativo deste Tribunal, exclui-se do âmbito aplicativo desse princípio as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, o que, desde logo, significa que a norma constitucional não afasta todo e qualquer tipo de retroatividade.
53.° A irretroatividade fiscal é uma manifestação do princípio da segurança jurídica ou da confiança inscrito no princípio do Estado de direito (artigo 2.° da CRP).
54.° Daí que, casuisticamente, há necessidade de avaliar e ponderar devidamente o interesse privado dos contribuintes com o interesse público que justifica agravamentos fiscais com um certo grau de retroatividade.
55.° Com efeito, o conceito de retroatividade previsto no supra citado n.° 3 do artigo 103.° da CRP, e que decorria já do princípio da proteção da confiança e da segurança jurídica (cf. artigo 2.° da CRP), não é unívoco, tendo vindo a ser estratificado em 3 segmentos pela doutrina e pela jurisprudência.
56.° A jurisprudência deste Tribunal tem entendido que a retroatividade proibida pelo, n.° 3 do artigo 103.° da CRP é a retroatividade própria ou autêntica, ou seja, que aquele preceito constitucional visa apenas proteger as situações que se traduzem na aplicação da lei nova a factos anteriores à sua entrada em vigor (vide Acórdãos n.° 128/2009, n.° 85/2010 e n.° 399/2010).
57.° Resulta, assim, que a jurisprudência do Tribunal Constitucional entende que o artigo 103.°, n.° 3, da CRP, apenas proíbe a retroatividade autêntica, não abrangendo os casos em que, não obstante o facto tributário ter ocorrido ao abrigo da lei antiga, ainda continua a produzir efeitos na vigência na lei nova - retroatividade de 2.° grau -, nem tão-pouco abrangendo os casos em que o facto tributário ainda está em formação - retroatividade de 3.° grau. Destarte, o momento relevante para a determinação do carácter retroativo da lei fiscal, à luz do preceituado no n.° 3 do artigo 103.° da CRP, é o momento da verificação do facto tributário, pelo que, será de considerar retroativa a lei que atinja esse facto retrospetivamente em relação ao momento da sua entrada em vigor.
58.° Assim, relevante para aferição da retroatividade da lei fiscal, e, por conseguinte, do respetivo grau de retroatividade, é o facto tributário e o momento em que ocorre. Ora no caso em apreço a inexistência de expectativas jurídicas ou de manutenção do regime legal pretensamente controverso é incontornável, porquanto até a própria a norma em causa regula a matéria do pagamento do imposto liquidado, não contendendo com a sua incidência ou quantificação da própria coleta.
59.° Nos chamados casos de retroatividade falsa ou imprópria, o grau de confiança suscitado nos contribuintes e a relevância do mesmo não pode deixar de ser ponderado ao nível da proporcionalidade.
60.° No caso das normas fiscais interpretativas materiais - as que visam solucionar a incerteza de lei anterior, situando-se dentro dos quadros da controvérsia, com um conteúdo que o julgador ou intérprete a ela pudesse chegar, sem ultrapassar os limites típicos impostos à interpretação e aplicação da lei - não se pode dizer que a confiança dos contribuintes no sentido da norma interpretada gera expectativas legítimas da sua continuidade no ordenamento jurídico.
61.° Se a norma é controversa, a única expectativa que existe é que o legislador a solucione.
62.° Se ele o faz, optando por um dos entendimentos possíveis [IN CASU APENAS UM ERA POSSÍVEL], que até já era seguida pela jurisprudência, não se pode dizer que há frustração intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva da confiança depositada na norma interpretada.
63.° No caso dos presentes autos é paradigmático da inexistência de expectativas jurídicas ou de manutenção do regime legal pretensamente controverso.
64.° A verdade é que, até às peregrinas teses propugnadas no CAAD, por grandes grupos económicos, consultoras e escritórios de advocacia, nunca foi questionada a não dedutibilidade da quantia adiantada na coleta das TA.
65.° O próprio programa informático da Recorrida de suporte à apresentação das declarações de IRC não possibilitava tal dedução.
66.° Apenas com a intervenção do CAAD é que surgiram - em 2014 e 2015 - decisões daquele "tribunal", umas no sentido de que o PEC e os benefícios fiscais podiam ser deduzidos à coleta das TA, e outras em sentido contrário.
67.° Ora, a expectativa na manutenção de uma das interpretações efetuadas (exclusivamente) pela jurisprudência arbitral não se pode confundir com as expectativas geradas pela própria lei.
68.° Se a norma era duvidosa e se foi criada uma controvérsia quanto à dimensão aplicativa da mesma, o expectável era que o legislador viesse resolver a incerteza num dos sentidos possíveis, provavelmente no sentido com a mesma sempre foi aplicada, que, como vimos, essa era a interpretação mais correta.
69. ° Face a tudo o que vem supra exposto, resta concluir pelo carácter interpretativo do n.° 21 do artigo 88.° do CIRC, introduzido pela Lei n.° 7-A/2016, de 30 de Março, que, sendo diretamente aplicável à situação em apreço, de acordo com o artigo 13.° do Código Civil, implicará o indeferimento da pretensão da Recorrente por determinar expressamente a referida norma que ao montante de TA não serão efetuadas quaisquer deduções.
70.° É manifesto, portanto, que a atribuição de natureza interpretativa à referida norma não viola os princípios constitucionais da segurança jurídica e da proibição da retroatividade».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
a) Delimitação do objeto do recurso
6. Conforme resulta das transcrições e destaques supra – tanto da decisão assacada, como das peças elaboradas pela recorrente e pela recorrida –, temos que o objeto do presente recurso se cinge à interpretação normativa, efetivamente adotada como ratio decidendi pelo tribunal arbitral, respeitante, especificamente, à norma constante da alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, quando interpretada no sentido de afastar a dedução relativa a benefícios fiscais da coleta apurada em sede de tributações autónomas; a forma de liquidação da coleta resultante de tributações autónomas afastar-se-ia, segundo esta leitura, da aplicada à restante coleta do imposto apurado nos termos do número 1 do mesmo artigo; desta maneira, a interpretação questionada converter-se-ia, alegadamente, numa aplicação contra legem da norma legal e, nesses termos, ofensiva do princípio da legalidade fiscal, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da CRP.
Saliente-se que não estão em causa, nestes autos, quaisquer outras dimensões normativas, em face de outros parâmetros constitucionais, as quais, a despeito de aparecerem em alguns pontos da argumentação expendida no contencioso originário, são laterais e poderiam eventualmente provocar entropia na enunciação do objeto do presente recurso; como sublinhado, elas, na verdade, consistem em meros elementos acessórios e que foram expressamente descartados e de facto não aplicados pelo decisum a quo. Fica também, de forma clara, fora do objeto do recurso, designadamente, as atinentes a uma eventual inconstitucionalidade do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, aditado pela Lei n.º 7.º-A/2016, de 30 de março, com fundamento em violação do princípio da retroatividade da lei, uma vez que o tribunal a quo expressamente a afasta da ratio decidendi da causa, sustentando que “tal normativo não é convocado sequer na resolução do caso em apreço”.
Depreende-se da formulação da própria recorrente, constante, de forma ilustrativa, dos números 32, 35 e 36 (destacado supra) das suas conclusões de recurso, em harmonia com o raciocínio previamente construído junto do tribunal arbitral, que a sua tese, desde o início do processo (cfr. ponto 9.1 da decisão recorrida), assenta no entendimento segundo o qual a dedução relativa a benefícios fiscais, prevista no artigo 90.º, n.º 2, alínea c), do CIRC, é necessariamente aplicável à coleta resultante das tributações autónomas, sendo, pois, incomportável, por violador do princípio constitucional da legalidade fiscal, qualquer sentido diverso deste determinado. Não se questiona, pois, o processo interpretativo ou a operação de subsunção em si mesma, mas sim uma dimensão generalizável, decorrente de um resultado interpretativo que, no entender da recorrente, não encontra respaldo na lei ou sequer correspondência o respetivo enunciado normativo. É, portanto, indispensável averiguar se esta norma concebida pelo Tribunal a quo é ou não compatível com a Constituição da República Portuguesa. Não se confunde, porém, este juízo, com a definição de qual seja a melhor interpretação infraconstitucional aplicável ao litígio de fundo.
Neste quadro, e seguindo a jurisprudência constitucional adotada a partir do Acórdão n.º 411/12, pode ainda afirmar-se estarmos dentro do espaço de da competência própria do Tribunal Constitucional. Como se afirma nesse aresto: “na fiscalização concreta (...) o conceito funcional de “norma” inclui não apenas o enunciado de determinado preceito, em si mesmo tomado, mas ainda a certa interpretação que lhe foi dada pela decisão judicial de que se interpôs recurso. Também aqui é este o sentido funcionalmente adequado que se deve atribuir ao termo “norma”, pois que consonante com as razões justificativas da função de controlo atribuídas ao Tribunal pela Constituição. De outro modo (...) se o Tribunal não sindicasse a conformidade constitucional das diferentes dimensões interpretativas dadas pelo julgador, nos casos concretos, às normas que por ele são aplicadas (ou cuja aplicação é recusada), a função que, especificamente, é atribuída à jurisdição constitucional (de administração da justiça em matérias jurídico-constitucionais : artigo 223.º) não viria a ser cabalmente cumprida”. Nestes termos, não estamos, no presente caso, na zona volúvel entre o controlo normativo e o controlo (inidóneo) de decisões judiciais, uma vez que é claramente identificável a existência de um critério geral da decisão judicial do caso concreto, que, no entender da recorrente, foi encontrado através de um procedimento contrário às garantias constitucionais de legalidade e tipicidade em matéria fiscal.
Assim, prevê o invocado dispositivo, ínsito à dimensão normativa ora posta em crise:
«Artigo 90.º
(Procedimento e forma de liquidação)
1- A liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos:
a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria coletável que delas conste;
b) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 120.º, a liquidação é efetuada até 30 de novembro do ano seguinte àquele a que respeita ou, no caso previsto no n.º 2 do referido artigo, até ao fim do 6.º mês seguinte ao do termo do prazo para apresentação da declaração aí mencionada e tem por base o maior dos seguintes montantes: (Redação da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro)
1) A matéria coletável determinada, com base nos elementos de que a administração tributária e aduaneira disponha, de acordo com as regras do regime simplificado, com aplicação do coeficiente de 0,75; (Aditado pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro)
2) A totalidade da matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada; (Aditado pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro)
3) O valor anual da retribuição mínima mensal. (Aditado pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro)
c) (Revogada pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro)
2 - Ao montante apurado nos termos do número anterior são efetuadas as seguintes deduções, pela ordem indicada:
a) A correspondente à dupla tributação jurídica internacional;
b) A correspondente à dupla tributação económica internacional;
c) A relativa a benefícios fiscais;
d) A relativa ao pagamento especial por conta a que se refere o artigo 106.º;
e) A relativa a retenções na fonte não suscetíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável.
[…]».
A constitucionalidade da norma extraída de tal preceito é questionada à luz dos parâmetros constitucionais decorrentes do Artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa que determina:
«Artigo 103.º
(Sistema fiscal)
[…]
3. Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei».
b) Quadro da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre tributações autónomas e legalidade fiscal
7. Com interesse para os autos, embora não se trate das mesmas dimensões normativas como a que especificamente integra o presente recurso, importa revisitar decisões anteriores do Tribunal Constitucional em relação a dois pontos fundamentais: em primeiro lugar, relativamente à caracterização jurídico-constitucional das tributações autónomas; e, em segundo lugar, quanto à questão da interpretação da alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC no sentido de excluir do âmbito de aplicação da norma a parte da coleta que resulta da aplicação das taxas de tributação autónoma.
No que se refere ao enquadramento jurídico-constitucional das tributações autónomas, merece destaque o Acórdão n.º 617/12, proferido em Plenário, em sede de recurso de oposição de julgados. Nesse aresto, o Tribunal Constitucional indicou um conjunto de elementos caraterizadores daquele tipo de tributação que se afiguram relevantes para o presente caso, enquanto premissas do juízo de constitucionalidade a levar a cabo. Recorde-se, pois, a posição então assumida pelo Tribunal na matéria em causa:
«Com este tipo de tributação teve-se em vista, por um lado, incentivar os contribuintes a ela sujeitos a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal e, por outro lado, evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição camuflada de lucros, sobretudo de dividendos que, assim, apenas ficariam sujeitos ao IRC enquanto lucros da empresa, bem como combater a fraude e evasão fiscais que tais despesas ocasionem não apenas em relação ao IRS ou IRC, mas também em relação às correspondentes contribuições, tanto das entidades patronais como dos trabalhadores, para a segurança social.
(...)
Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.
Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º, n.º 9, do CIRC).
Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo.
Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso).
Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa».
Esta caraterização – designadamente, a distinção entre os factos geradores do IRC e das tributações autónomas, enquanto impostos de distinta natureza - tem, naturalmente, relevância jurídico-constitucional, e será tomada em consideração na análise da norma questionada no presente recurso.
8. Quanto à questão da interpretação da alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC no sentido de excluir do âmbito de aplicação da norma a parte da coleta que resulta da aplicação das taxas de tributação autónoma, importa recordar o que disse o Tribunal Constitucional no recente Acórdão n.º 182/2020. Estava, então, em causa a compatibilidade com o princípio da legalidade tributária, previsto no artigo 103.º, n.º 3, CRP, do critério normativo extraído dos números 1 e 2 do artigo 9.º, do Código Civil que sustentou o sentido interpretativo adotado pela decisão recorrida naquele processo, segundo o qual a dedução à coleta de IRC pode ser objeto de interpretação corretiva para se apurar o montante do imposto devido, no que toca à aplicação das taxas de tributação autónoma.
Como se vê, a questão passava por delinear os efeitos e limites do exercício interpretativo de que estão imbuídos os tribunais enquanto agentes da autoridade jurisdicional do Estado, no âmbito do seu poder-dever de determinação da lei aplicável, de entre todo o universo de normas abstrata e alegadamente mobilizáveis para resolução da questão jurídica controvertida. Nessa lógica, entendeu-se, na decisão citada, que “uma vez satisfeitas as exigências mínimas de determinabilidade que cingem a liberdade de conformação do legislador, não há como não admitir que as leis que versam sobre a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes carecem irremediavelmente, como todas as leis, de interpretação e que esta nunca pode gerar uma confiança absoluta na previsibilidade dos seus resultados” (ponto 18 do Acórdão n.º 182/2020). Considerou, na ocasião, o Tribunal Constitucional que “a verdadeira segurança reside na inteligibilidade e prestabilidade de todos meios disponíveis para assegurar que o processo interpretativo seja racionalmente ordenado à obtenção dos resultados materialmente mais adequados”.
Assim, decidiu o Tribunal Constitucional que do princípio constitucional da legalidade tributária não deflui uma incompatibilidade automática e necessária relativamente à inferência de uma interpretação corretiva do apropriado sentido da lei, desde que se tenha, nesse âmbito, efetivado a tutela jurisdicional, pautada por todas as suas garantias constitucionalmente inerentes. Nesse pressuposto, não implicando a interpretação corretiva, questionada naquele processo, a assunção de um critério inovador, à luz da análise feita, não se verificou qualquer ofensa à proibição da retroatividade fiscal, exteriorização temporal do princípio da legalidade.
Com isso, o Acórdão n.º 182/2020 não julgou inconstitucional o artigo 9.º, nºs. 1 e 2, do Código Civil, na interpretação segundo a qual a norma fiscal que se contém no n.º 2 do artigo 90.º do Código do IRC, na versão da Lei n.º 3-B/2010, relativa a deduções à coleta do IRC, pode ser objeto de uma interpretação corretiva para efeitos de apuramento do quantum do imposto devido, na parte que resulta da aplicação das taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do mesmo Código.
c) Mérito
9. Nessa senda, devemos, em primeiro lugar, densificar o teor do parâmetro constitucional invocado, a fim de confirmar ou infirmar a compatibilidade em relação a ele da norma atacada, consubstanciada no artigo 90.º, n.º 2, alínea c), do CIRC. Como se sabe, o princípio da legalidade fiscal, previsto pelo artigo 103.º, n.º 3, CRP, comporta um âmbito formal, o qual estabelece, no regime de competências do Estado, a separação vertical do poder de tributar, atribuído à Assembleia da República, ao Governo, às Autarquias Locais ou às Regiões Autónomas, e um âmbito substancial, que aborda a definição dos elementos essenciais dos impostos. Nos presentes autos, interessa-nos este segundo.
A bem dos direitos fundamentais em matéria fiscal, a Constituição exige a previsibilidade de tais elementos, quais sejam, taxa ou alíquota do imposto, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes. Nestes termos, o princípio da legalidade fiscal implica a existência de uma regra de reserva de lei, em três vertentes (normas fiscais que criam impostos; normas de incidência; e normas de garantias dos contribuintes), que implica que o imposto deve “ser desenhado na lei de forma suficientemente determinada, sem margem para desenvolvimento regulamentar nem para discricionariedade administrativa quanto aos seus elementos essenciais” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pg. 1091).
Em rigor, a imposição constitucional de conhecimento prévio, pelos contribuintes, das características elementares dos tributos, que se lhes impõem - como forma de suportar o funcionamento do Estado na consecução das suas funções democraticamente designadas, em prol da realização de tarefas fundamentais consagradas na CRP -, representa a subordinação do estrito interesse das finanças públicas, per se, ao escrutínio, debate público e vontade geral expressa pelos titulares parlamentares do mandato político democrático (v.g., “no taxation without representation”). Por isso, compete, em primeira linha, ao legislador garantir, com a clareza, a transparência e o controlo inerentes a um Estado (fiscal) de direito, que a obrigação tributária obedece aos critérios de validade, de forma e de conteúdo constitucionalmente desenhados, para que seja possível a cobrança de impostos. Sem prejuízo da abertura autorizada a outras modalidades, a lei é, por excelência, o instrumento mais capaz de assim salvaguardar.
Com efeito, a ideia subjacente à legalidade tributária, numa perspetiva material, expressa-se, antes de mais, no princípio da tipicidade da lei fiscal, que implica que a obrigação legal-tributária tem de ser determinada de forma suficiente quer quanto à sua incidência, quer no seu quantum. Assim, para produzir efeitos, o tipo normativo fiscal delimita, abstratamente, a natureza e a medida do acontecimento económico-social a que pretende atribuir relevância fiscal, consagrando-o como facto tributário, com significado jurídico. Não basta, pois, uma previsão genérica de princípios ou bases gerais, suscetíveis a arbitrariedades; é indispensável abordar, especificamente, a “disciplina normativa destes aspetos” (José Casalta Nabais, O dever fundamental de pagar impostos, Almedina, 2009, p. 368).
Desta forma, fica claro que a finalidade do comando constitucional de garantia da legalidade fiscal é, por um lado, acautelar a estabilidade e a segurança da legítima expetativa que contribuintes depositam no Estado quanto à imposição de obrigações jurídicas com repercussões na sua capacidade patrimonial; e, ao mesmo tempo, afastar o risco de usurpação da legitimidade democrática inserta nas instâncias de representação política por parte de outros órgãos do Estado, investidos de atribuições de igual dignidade e relevo, porém com distintos graus de legitimação democrática e responsabilização pública (accountability) que não se coadunam, em princípio, com o estabelecimento de institutos tributários, pelas razões explicadas. Isto mesmo tem repetidamente afirmado o Tribunal Constitucional; recorde-se, por exemplo, o disposto no Acórdão n.º 545/2015: “a exigência de reserva de lei em matéria tributária, que tem origem no princípio da autotributação dos impostos e fundamento justificativo na garantia dos direitos fundamentais dos contribuintes, abrange necessariamente os chamados elementos essenciais dos impostos. Com efeito, o princípio da legalidade fiscal está expressamente consagrado na Constituição na vertente de reserva material de lei formal: no artigo 168.º, n.º 1, alínea i), que reserva à exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a criação de impostos e sistema fiscal (princípio da reserva de lei formal); e no artigo 103.º, n.º 2, que estabelece que os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes (princípio da reserva material)”.
Em suma, a caracterização de certo facto como tributariamente relevante e do cálculo do montante de imposto, se algum, sobre ele refletido estão reservados à tipicidade da lei fiscal, em razão da necessidade de se observar o critério da máxima especificação possível, com vista a determinar o cumprimento da obrigação futura, salvaguardando-a de uma eventual transfiguração aleatória por parte dos intérpretes e aplicadores da norma, que seria incompatível com a Constituição da República Portuguesa.
10. Todavia, e uma vez que não é possível a determinabilidade antecipada de toda e qualquer situação que se enquadre nas hipóteses de sujeição à tributação, o postulado da praticabilidade tem, de alguma maneira, relativizado a exigência de uma tipicidade absoluta, em benefício da concreta igualdade fiscal. Conforme explica Ana Paula Dourado, “a enumeração taxativa conduzirá a uma maior imprecisão, no sentido em que certos rendimentos semelhantes ao ‘paradigma’, ao ‘tipo’ objeto da lei, ficam de fora, e conduzem a um tratamento diferente de situações semelhantes. Neste caso, a lei não cumpre a sua função de verdadeiro critério orientador do intérprete e de garante de um Estado de Direito” (Ana Paula Dourado, O princípio da legalidade fiscal: tipicidade, conceitos jurídicos indeterminados e margem de livre apreciação, Almedina, 2007, p. 149). Além disso, e como recorda Sérgio Vasques (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.ª Edição, Almedina, 2018, p. 363) “as normas tributárias raramente têm uma só leitura, portanto, e é comum que a letra da lei fiscal nos ofereça várias interpretações possíveis, entre as quais há que decidir lançando mão dos demais elementos de interpretação”.
Por esse motivo, a ideia de praticabilidade, ou concordância prática entre as várias normas e princípios jurídico-fiscais, entre si e em relação à realidade fáctica a que devem aplicar-se, convoca o aplicador das normas para uma tarefa de conciliação interpretativa, de forma a imprimir coerência sistémica ao regime tributário. Consequentemente, a atividade hermenêutica dos tribunais – sempre que se defrontem com conflitos ou dúvidas de natureza normativa no que respeita aos elementos essenciais de um imposto – orienta-se para a busca de um equilíbrio entre segurança, plausibilidade e lógica sistemática das normas e institutos jurídicos mobilizáveis no caso concreto. Esta tem sido, também, a posição do Tribunal Constitucional, em vasta jurisprudência (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos n.º 233/94, 756/95, 127/04, 500/09 e 855/14) que admite a necessidade de um espaço aberto à interpretação, em nome da conciliação da ideia de legalidade com outros princípios constitucionalmente relevantes, no plano fiscal. Nas palavras do Acórdão n.º 127/04, “o princípio da igualdade tributária reclama que os conceitos tenham a abertura ou plasticidade semântica suficiente para poder abarcar as realidades que expressam a capacidade tributária elegida, os níveis de riqueza ou de rendimento tributando, e que esse objetivo possa ser realizado não só no plano abstrato da previsão dos tipos tributários, mas também no plano da sua aplicação concreta, em que se situam o combate à evasão e a praticabilidade do sistema”. Nos termos do Acórdão n.º 756/95, é esta plasticidade que permite “a adaptação ao constante aparecimento de novas situações que, substancialmente iguais a outras já tributadas, não estejam ainda formalmente descritas com precisão” e que procura, também, evitar a fuga aos impostos. Desse balanço resulta uma margem de valoração legítima que não equivale, em absoluto, ao exercício de um poder público arbitrário.
Na verdade, pelo contrário, é a referida possibilidade de adaptação que permite a satisfação da finalidade de justiça tributária desejada pelo Estado (José Luís Saldanha Sanches, Os limites do planeamento fiscal: substância e forma no direito fiscal português, comunitário e internacional, Coimbra Editora, 2006, pp. 32-34). Tal racionalização sistémica é elemento essencial, em sede de tutela jurisdicional, quando os contribuintes se veem confrontados com uma cobrança tributária que entendem não ser devida por não estar preenchida a exigência de previsibilidade nos termos suficientemente densificados que o princípio da legalidade fiscal reclama.
Contudo, nem sempre se verifica uma relação direta e clara entre uma alegada ofensa à legalidade tributária e a referida plasticidade. Mantendo-se os critérios paramétricos antes aprofundados, pode acontecer, também, que se questione a eventualidade de uma distorção significativa dos elementos essenciais dos impostos, em termos passíveis de afetar a mencionada previsibilidade. É o caso nos presentes autos, em que não se constata uma nova situação tributável que mereça receber um tratamento em igualdade de condição com outras; mas, sim, da existência de um inequívoco e incontestado facto tributário que recebeu o tratamento tido como legalmente determinado, em termos sistémicos, primeiro pela administração tributária e, depois, pelo juiz, embora contestado pela recorrente.
Vejamos.
11. Nestes autos, entende a recorrente que o standard de legitimidade da margem de valoração do sentido normativo dos elementos essenciais da tributação (maxime, do escopo de incidência), em termos sistemicamente coerentes, foi ultrapassado, em termos que constituem uma violação da CRP. Na sua opinião, não resulta da redação aplicável in casu da alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC que as deduções ai consagradas estivessem afastadas, no que respeita à coleta de tributações autónomas. Ou seja, a dimensão normativa decorrente da decisão arbitral a quo aqui controlável comportaria uma distorção significativa, ou ilegítima, da ontologia dos elementos essenciais dos impostos, interdita à luz do conteúdo do supra analisado princípio da legalidade fiscal, inscrito no artigo 103.º, n.º 3, CRP.
Ora, como se viu, o conteúdo da garantia constitucional da tipicidade inclui a suficiente determinação dos elementos essenciais dos impostos, de forma a salvaguardar o contribuinte de qualquer arbitrariedade a sua cobrança. Ocorre que, compulsada a dimensão normativa em crise, relativa à não dedutibilidade de benefícios fiscais ao montante da coleta apurado em sede de tributações autónomas, não se verifica uma transfiguração aleatória, constitucionalmente vedada, quanto à sua cobrança, nos termos da lei. Em consequência, adianta-se, desde já, que o seu sentido se afigura compatível com a exigência de previsibilidade suficiente, imposta em virtude do estatuído no artigo 103.º, n.º 3, CRP e, portanto, não ofende o princípio da legalidade fiscal.
Não se vê em que medida haveria de ser diferente, considerando que, conforme é amplamente aceite na jurisprudência nacional, as tributações autónomas se distinguem do IRC, quanto a um importante conjunto de elementos básicos. Como acima se viu, e como salienta a jurisprudência constitucional, designadamente, no citado Acórdão n.º 617/12, são distintos os factos tributários que originam o imposto, a sua natureza – de formação sucessiva, no caso do IRC, e instantânea, no caso das tributações autónomas -, a teleologia da respetiva criação e o inerente critério de avaliação da capacidade contributiva. Assim, sendo as tributações autónomas afiguram-se como extraordinárias (incidentes sobre certos encargos efetuados por sujeitos passivos de IRC, e apenas na eventualidade da sua existência) e independentes do rendimento e do resultado do balanço financeiro do contribuinte (lucro tributável), tendo um apuramento próprio e distinto do imposto que sobre este incide – o IRC, em sentido estrito.
Logo, sob o ponto de vista do princípio da legalidade e da coerência sistémica, a dedução à coleta aplicável ao IRC (em que se inserem o SIFIDE e CFEI) não se reproduz de forma necessária em sede de tributações autónomas. Neste contexto, a interpretação normativa ora atacada não distorce ou transfigura os elementos essenciais do imposto em causa ao arrepio da imposição constitucional consubstanciada no princípio da legalidade fiscal. Ao não contrariar a configuração dos correspondentes elementos essenciais, tal dimensão de não dedutibilidade não só não fere o sentido constitucional da legalidade fiscal, como pode ser justificada com base na coerência do próprio instituto das tributações autónomas e as finalidades que, com a sua consagração, o legislador legitimamente visa prosseguir. Nestes termos, e à semelhança do que entendeu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 182/20, «do mesmo modo que se entende que o princípio da legalidade não exige ao legislador que configure as normas fiscais de modo a possibilitar um cálculo exato e antecipado dos impostos a pagar, também não pode — nem é desejável — que dele se extraiam para o intérprete mais constrangimentos metodológicos do que aqueles que, em cada momento, se têm como válidos e aptos a suportar a interpretação da lei fiscal.
(...) a interpretação corretiva da lei fiscal não é, em si mesma ou em toda a sua extensão, necessária e automaticamente incompatível com o princípio da legalidade tributária”, sendo, por isso, “inequívoco que a violação de tal princípio não ocorrerá nas hipóteses em que a interpretação corretiva da lei tenha servido apenas para afastar ou excluir o sentido que mais imediatamente decorreria da relevância gramatical do enunciado em benefício daquele que, apesar de corresponder a uma utilização menos imediata dos elementos linguísticos em causa, o texto da lei não exclui de forma categórica ou inequívoca”. Por tudo aquilo que já se disse, há boas razões para entender que foi precisamente o que fez o intérprete da norma questionada, afastando o sentido literal da norma, em favor de uma interpretação que, não sendo incompatível com o texto legal, se lhe afigurou mais compatível com outros elementos interpretativos, designadamente, o sistémico e o teleológico.
Em conclusão, a interpretação resultante da norma extraída da alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, quando interpretada no sentido de afastar a dedução relativa a benefícios fiscais da coleta apurada em sede de tributações autónomas não ofende o invocado parâmetro do princípio da legalidade fiscal, nos termos do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo da alínea c) do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, quando interpretada no sentido de afastar a dedução relativa a benefícios fiscais da coleta apurada em sede de tributações autónomas;
b) Negar provimento ao recurso interposto.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UC, ponderados os critérios estabelecidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 20 de outubro de 2020 - Mariana Canotilho - Pedro Machete - Fernando Vaz Ventura - Manuel da Costa Andrade
A Relatora atesta o voto de conformidade ao presente acórdão da Senhora Conselheira Maria Assunção Raimundo
Mariana Canotilho