Processo n.º 403/2020
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José António Teles Pereira
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Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – A Causa
1. A. (o ora Recorrido, sendo aqui Recorrente o Ministério Público) apresentou, junto do Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada, um pedido de habeas corpus, nos termos do artigo 220.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Penal (CPP), tendo em vista a sua restituição à liberdade, resultando a privação desta da imposição de uma situação de confinamento pelas autoridades de saúde da Região Autónoma dos Açores (RAA).
Alegou, em síntese: (a) tendo regressado a S. Miguel, onde tem a sua residência habitual, no dia 10/05/2020, vindo de Lisboa, foi encaminhado, conjuntamente com todos os demais passageiros do voo, para o hotel …, sito em Ponta Delgada, pelas forças de segurança que se encontravam no local para tal efeito; (b) nessa ocasião, não lhe foi permitido contactar com qualquer pessoa, designadamente familiares, situação que perdurava até ao momento da apresentação do pedido de habeas corpus; (c) de acordo com a informação que lhe foi prestada teria de ali permanecer (nessa situação) 14 dias, para proteção da saúde de todos, em virtude da pandemia por Covid-19; (d) não lhe foi permitido sair do quarto onde se encontra nem contactar com a mulher ou terceiros, estando o local sujeito a vigilância policial permanentemente; (e) a sua condução ao hotel mereceu a sua oposição, pois não apresenta qualquer sintoma da doença nem foi sujeito a qualquer rastreio para determinação de contágio pela Covid-19; (f) pediu para ir para casa, invocando a ilegalidade e arbitrariedade dessa situação, o que lhe foi negado por, está em crer, representantes da Direcção Regional de Saúde; (g) considera a restrição dos direitos fundamentais, nos quais se inclui a liberdade, subtraída à competência da Região Autónoma dos Açores e violadora do princípio da proporcionalidade, entre outros vícios apontados à medida aplicada.
1.1. Admitido liminarmente o requerimento, foi proferido despacho nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 221.º do CPP. A Autoridade de Saúde Regional prestou informações escritas nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 221.º, n.º 2, do CPP. Alegou, em síntese, que: (a) o requerente veio voluntariamente para S. Miguel sabendo da necessidade de confinamento obrigatório, pelo que não se pode concluir que foi detido, tanto mais que podia ter pedido para regressar ao local de origem, o que não lhe seria negado; (b) o requerente não está privado da liberdade, apenas está limitado no seu direito de circulação o que é permitido no Estado de Calamidade, não havendo fundamento para habeas corpus, pois não há qualquer detenção do mesmo; (c) a detenção pressupõe uma medida coativa contra a vontade e que resulta de um ato involuntário, ora dirigir-se voluntariamente para um local, cuja autorização para entrada depende de sujeição a medida confinamento profilático, não é subsumível à privação involuntária da liberdade, tanto mais que o requerente pode, a qualquer momento, desistir de entrar na RAA para findar o seu confinamento profilático; (d) a medida de confinamento obrigatório profilático foi decretada pela Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, de 04/05/2020, cujo artigo 11.º mantém em vigor a Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020, de 27/03/2020, a qual, por seu turno, tem como normas habilitantes as alíneas a), b), d) e e) do n.º 1 do artigo 90.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e os artigos 9.º, 10.º, 11.º e 12.º do Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019/A, de 22 de novembro, do Regime Jurídico do Sistema de Proteção Civil da Região Autónoma dos Açores, que por sua vez se funda no artigo 60.º da Lei de Bases da Proteção Civil; aqueles artigos 9.º, 10.º e 11.º são as normas habilitantes da Resolução do Conselho de Governo n.º 123/2020, de 04/05/2020, atribuindo ao Governo Regional dos Açores a competência para declarar os estados de contingência e de calamidade pública regional respetivamente, tendo sido ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 10.º que foi determinado o confinamento profilático; (e) dentro da normalidade constitucional estão previstos condicionamentos ao direito de circulação previstos no artigo 27.º da CRP, que são igualmente os que constam das normas habilitantes da resolução n.º 132/2020; a medida de confinamento imposta é proporcional pois as medidas anteriores menos restritivas, de quarentena profilática na ilha de residência junto das suas famílias, revelaram-se ineficazes, sendo eficaz do ponto de vista sanitário é proporcional, respeitando o principio da proporcionalidade; (f) não há qualquer sacrifício absoluto do direito à circulação previsto no artigo 27.º, da CRP, mas apenas dos seus condicionamentos, limitado no tempo (14 dias) e no espaço (apenas para quem viaja do exterior), em homenagem a dois bens e direitos fundamentais: à vida e à saúde, previstos nos artigos 24.º e 64.º da CRP.
1.1.1. Procedeu-se à audição da autoridade de saúde regional nos termos do n.º 2 do artigo 221.º do CPP, que se fez representar na diligência pelo Delegado de Saúde que coordena o acolhimento no aeroporto João Paulo II, em Ponta Delgada, tendo-se procedido, igualmente, ao interrogatório do requerente.
1.1.2. No Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada foi proferida decisão, datada de 16/05/2020, no sentido de recusar a aplicação, por inconstitucionalidade (mais concretamente, por violação do disposto nos artigos 1.º, 13.º, 18.º, 20.º, 27.º, 165.º, n.º 1, alínea b), 225.º, n.º 3, 227.º, n.º 1, alínea b), e 228.º da Constituição), das normas contidas nos artigos 9.º, 10.º 11.º e 12.º do Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019, de 22 de novembro, e nos pontos 3, alínea e), e 11 da Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, também na parte em que remete para a Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020, nos termos das quais se impõe o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores e, em consequência, de conceder a providência requerida, ordenando-se a restituição do requerente à liberdade.
Tal decisão considerou verificados os seguintes factos:
“[…]
1 – A. é piloto aviador prestando serviço em companhia aérea situada no estrangeiro, tendo a sua casa de morada de família em S. Miguel, onde reside a sua mulher.
2 – Regressou a Portugal no dia 08/05/2020, desembarcando no Aeroporto de Lisboa, permanecendo em Lisboa até ao dia 10/05/2020, por só nessa data haver voo para S. Miguel.
3 – No dia 10/05/2020, embarcou no voo …, n.º …, com destino a S. Miguel, tendo aterrado no aeroporto João Paulo II, em Ponta Delgada, pelas 09h55m.
4 – Ainda durante o voo foi-lhe entregue pelo pessoal de cabine um questionário, que presume fosse emitido pela autoridade de saúde regional, contendo questões sobre o local de onde provinha, se tinha determinados sintomas, quais os seus contactos, questionário esse que preencheu.
5 – Na mesma ocasião foi-lhe entregue uma declaração parcialmente preenchida, que devia completar com a sua identificação e assinatura, declarando que o incumprimento de quarentena o fazia incorrer em crime de desobediência, declaração que não subscreveu por não concordar com a mesma.
6 – Após o desembarque foi conduzido com os demais passageiros, cerca de 50, para a área de recolha da bagagem, onde aguardaram em fila, a vez de serem atendidos por duas senhoras que se encontravam no local.
7 – Quando chegou à sua vez, entregou os papéis que havia preenchido no avião à mesma, tendo esta colocado questões idênticas às que já constavam do questionário, tendo efetuado uma qualquer anotação relativamente ao facto da declaração referida em 5), não estar preenchida e assinada.
8 – Após responder às perguntas colocadas pela senhora que o atendeu, que presumiu ser enfermeira, reafirmando que não tinha qualquer um dos sintomas de COVID, foi-lhe entregue o desdobrável cuja cópia consta de fls. 11v.º-12, com informações sobre o novo coronavírus/COVID 19, e informado que no folheto tinha a indicação de um número de telefone para questões médicas e outro para questões não médica.
9 – Em seguida foi encaminhado para outra zona do aeroporto, onde permaneceu conjuntamente com os demais passageiros e respetivas bagagens, até ser transportado num autocarro, escoltado por um carro policial com os rotativos ligados, para o Hotel …, sito à Avenida …., em Ponta Delgada.
10 – Uma vez ali chegado foi encaminhado para a zona do check-in, tendo-lhe sido atribuído o quarto …, altura em que foi informado que não podia sair do quarto, onde teria de permanecer durante os próximos 14 dias.
11 – Mais foi informado que as refeições seriam fornecidas pelo hotel em três momentos definidos do dia, havendo duas alturas em que podia solicitar refeições/snacks adicionais.
12 – Acatou o que lhe foi indicado, verificando que havia um agente da PSP à porta de entrada do hotel.
13 – Efetuado o check-in foi para o seu quarto onde tem permanecido ininterruptamente.
14 – A limpeza e manutenção do quarto é feita por si, fornecendo o hotel toalhas e lençóis para mudar a cama, se solicitados.
15 – A lavagem e tratamento da sua roupa pessoal tem de ser efetuada por si, tendo sido informado que não havia serviço de lavandaria, mas ser-lhe-ia fornecido detergente, se solicitado.
16 – Foi informado que apenas seria possível aos familiares e amigos deixarem bens de 1.ª necessidade na receção para lhe serem entregues, como produtos de higiene, não tendo sido permitido que a esposa lhe trouxesse roupa para seu uso pessoal.
17 – Desde o dia 10/05/2020, apesar de falar telefonicamente com a sua esposa, não lhe foi permitido qualquer contacto presencial com a mesma, nem com qualquer outra pessoa.
18 – Apenas viu a sua esposa uma vez, estando esta na via pública e ele na varanda do quarto.
19 – Não foi sujeito a qualquer teste para despiste para a Covid-19, tendo sido informado, após questão por si colocada, que seria testado dois dias antes do termo da quarentena.
20 – Não foi sujeito a qualquer teste ou observação clínica antes de ser encaminhado para o hotel nem durante o período que ali tem permanecido.
21 – O acompanhamento/vigilância clínica é efetuada diariamente, através de contacto telefónico estabelecido através da Linha Saúde, sendo-lhe perguntado se tem febre ou outros sintomas associados à Covid-19.
22 – Apesar de ter dado conta no primeiro contacto telefónico que foi efetuado pela linha saúde, que não tinha termómetro no quarto, não lhe foi disponibilizado nenhum, sendo informado que bastava dizer se se sentia febril.
23 – Não lhe é permitido circular nos corredores do hotel nem em qualquer outra zona do mesmo, para além do seu quarto, havendo indicação de ronda por parte de agente da PSP de modo aleatório.
24 – Não foi informado que podia regressar a Lisboa nem que podia requerer que a quarentena fosse cumprida na sua residência, tendo sido num dos telefonemas da Linha Saúde que em conversa com a pessoa que o atendia referiu que preferia estar em casa, tendo-lhe então sido indicado para telefonar para o número que estava no folheto para questões não médicas.
25 – Efetuou tal telefonema, apenas tendo sido informado de um endereço eletrónico para onde devia dirigir o pedido, devidamente fundamentado, o que não fez por ter dado entrada aos presentes autos de habeas corpus.
26 – Deslocou-se a S. Miguel para passar o período de folga que tinha na companhia da esposa, que aqui reside.
27 – Aquando da chegada dos passageiros ao Aeroporto João Paulo II, em Ponta Delgada, os mesmos são sujeitos a medição de temperatura corporal através de aparelho instalado em local de passagem.
28 – Após o que são encaminhados para duas médicas que se encontram no aeroporto e questionados sobre o local de origem, dados de identificação e doenças sintomas que apresentem, não sendo sujeitos a qualquer exame clínico, nem testados para despiste à Covid-19.
29 – Se é indicado algum sintoma no processo de triagem ou a pessoa acusou temperatura anormal, tais passageiros são separados dos demais e submetidos a entrevista mais apurada a fim de tentar descortinar qual a origem da temperatura e/ou sintomas, podendo ser encaminhados para o hospital.
30 – Todos os passageiros que não apresentem qualquer sintoma e cuja temperatura corporal é considerada normal, são encaminhados de autocarro para unidade hoteleira previamente determinada – Hotel … ou Hotel … – sendo informados que têm de permanecer confinados ao quarto que lhes é atribuído durante o período de 14 dias e que serão vigiados diariamente, por contacto telefónico.
31 – São fornecidas refeições três vezes por dia, sem possibilidade de escolha de menu, e são permitidas duas solicitações adicionais por dia, a horas pré-definidas.
32 – Não lhes é permitida a saída do quarto, nem o contacto com outras pessoas, designadamente familiares, amigos ou demais hóspedes.
33 – As refeições são transportadas num carrinho por um empregado do hotel, que bate à porta, após o que se afasta, permitindo ao hóspede recolher a refeição, recolhendo em seguida o carrinho.
34 – Os quartos onde permanecem são de dimensões habituais num quarto de hotel, tendo os quartos no Hotel … varanda, enquanto os quartos no Hotel . têm apenas janela.
35 – Qualquer exercício físico terá de ser efetuado no quarto, não lhes sendo permitido o acesso ao exterior do hotel nem aos demais espaços desse mesmo hotel, aqui se incluindo os corredores.
36 – São sujeitos a um teste para despiste de Covid-19 cerca de 2 dias antes do termo dos 14 dias de confinamento.
37 – A sujeição a um teste na 1.ª semana, apesar de preconizada, não tem sido efetuada com regularidade.
38 – Caso algum dos passageiros venha a testar positivo ou a revelar sintomas, é encaminhado para o hospital para ser observados presencialmente por um médico, após o que pode regressar ao hotel ou ficar hospitalizado, dependendo da gravidade da sintomatologia.
39 – Encontra-se, em permanência, um agente da PSP à porta de cada uma das unidades hoteleiras, a fim de controlar/evitar a saída das pessoas que ali se encontram de quarentena.
40 – O único elemento informativo/documental que é entregue aos passageiros que desembarcam no aeroporto João Paulo II é o folheto cuja cópia consta de fls. 11vº-12.
41 – Os passageiros têm a possibilidade de regressar ao local de origem, devendo aceder ao site da DRS e imprimir a declaração ali acessível, e podem requer ao Diretor Regional da Saúde o cumprimento da quarentena no domicílio (a qual pode, ou não, ser deferida).
42 – Não é dada qualquer informação escrita sobre as possibilidades referidas em 41, nem é realizada sessão de esclarecimento que lhes dê conta dessas possibilidades ou que preste outros esclarecimentos.
Quando,
43 – A regra geral seguida em casos de infeção por Covid-19 de pessoa que se encontre nesta ilha e que não tenha chegado por via aérea, é de realização da quarenta preferencialmente na sua residência.
44 – Apenas nos casos em que a pessoa infetada careça de cuidados médicos específicos é que será encaminhada para o hospital, podendo ali ficar internada.
45 – A permanência na residência do doente infetado por Covid-19 pode ser acompanhada de um familiar ou de terceiro caso o mesmo não possa permanecer sozinho no local.
46 – Estando em condições de permanecer sozinho, os demais residentes são encaminhados para outros locais.
47 – A vigilância dos doentes infetados é efetuada por contacto telefónico diário através da Linha Saúde e a garantia da sua permanência no local onde estão em convalescença, pela passagem de agentes da PSP, duas vezes por dia e em momentos não previamente definidos.
48 – O confinamento de pessoas sobre as quais recaia a suspeita de poderem estar infetadas por Covid-19, designadamente por terem contactado com alguém infetado, é também efetuado na respetiva residência, com controlo telefónico da Linha Saúde e pela passagem dos agentes da PSP nos termos indicados em 47.
[…]”.
A decisão do Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada assentou nos seguintes fundamentos (transcrição parcial):
“[…]
Análise dos factos à luz das normas jurídicas vigentes:
Conforme dispõe o artigo 1.º da CRP, […].
Como refere o Prof. Jorge Miranda, ‘Pelo menos, de modo direto e evidente, os direitos, liberdades e garantias pessoais e os direitos económicos, sociais e culturais comuns têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas’ (aut. cit., in CRP anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, pág. 82).
É este, pois, o farol norteador dos demais princípios constitucionais.
E um deles, dos mais relevantes atenta a sua natureza estruturante do próprio estado democrático, é o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º, da CRP, onde se dispõe, […].
Para além daqueles princípios norteadores, há um direito constitucionalmente previsto e que incumbe aqui convocar, por essencial à questão a decidir: o direito à liberdade e à segurança.
Nos termos do artigo 27.º, n.º 1, da CRP, […].
Não sendo a liberdade humana unidimensional, podendo assumir múltiplas dimensões, do que são exemplo os artigos 37.º e 41.º da CRP, a liberdade em causa no artigo 27.º é a liberdade física, entendida como liberdade de movimento corpóreo, de ir e vir, a liberdade ambulatória ou de locomoção, prevendo-se no n.º 2 deste último artigo que […].
As exceções a tal princípio encontram-se tipificadas no n.º 3, o qual dispõe que: […].
Havendo privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na Lei, o Estado fica constituído no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer, conforme decorre do n.º 5 do artigo 27.º.
*
Tecidas estas breves considerações jurídicas e convocadas as normas constitucionais, analisemos à luz das mesmas a factualidade apurada. E dessa factualidade decorre que o requerente, tendo desembarcado em Ponta Delgada, não tendo qualquer sintoma indiciador de estar infetado pela Covid-19, foi conduzido, conjuntamente com os demais passageiros que aqui desembarcaram naquele voo …, em autocarro escoltado por veículo da PSP, para uma unidade hoteleira, onde foi instado a permanecer no quarto que lhe foi atribuído. Não só instando a permanecer no quarto, como proibido de contactar pessoalmente com outras pessoas que ali o pudessem procurar – familiares, amigos ou conhecidos – ou mesmo com os demais passageiros que consigo desembarcaram e para ali foram conduzidos. Ficou sujeito a alimentar-se com as refeições que estão pré-definidas por outrem; ficou impedido de receber bens que não os de primeira necessidade vindos do exterior, designadamente roupa que, aparentemente, não é considerado bem de primeira necessidade; ficou responsável pela manutenção e limpeza do quarto e pelo tratamento da sua roupa pessoal, não lhe sendo dado acesso aos serviços de lavandaria do hotel. Dizer que perante este quadro é o direito de circulação do requerente que está limitado, é encarar de modo absolutamente redutor a realidade. O direito de circulação está limitado, porque limitada está a sua liberdade. Cremos que qualquer cidadão perante este quadro não tem dúvidas em concluir que a liberdade que o requerente tem naquela situação em pouco difere da liberdade que tem um recluso que se encontra preso num estabelecimento prisional. Que tem mais conforto, melhores condições, sem dúvida; maior liberdade de circulação, aí parece que a vantagem pende para o recluso.
O poder de circulação do requerente – ou de qualquer outro dos passageiros que se encontre em idêntica situação – está de tal modo limitado que o ir e vir que lhes é permitido se circunscreve entre a porta do quarto e a varanda desse mesmo quarto (existente no caso do requerente). Outros há que nem varanda têm, e, tendo viajado em família, terão de partilhar o quarto (casal e filhos) durante o mesmo período de 14 dias.
Em suma, analisada a factualidade apurada é inexorável concluir que estamos perante uma verdadeira privação da liberdade pessoal e física do requerente, não consentida pelo mesmo, que o impede não só de se deslocar, como de estar com a sua família. Dizer que não há privação da liberdade porque a qualquer momento pode solicitar o seu regresso ao local de origem é uma falácia. O requerente não quer voltar para Lisboa, ponto de passagem para S. Miguel onde tem a sua residência pessoal e a sua família. O local de origem para onde pode voltar é, para si, um mero local de trânsito, sendo aqui, em S. Miguel, e não em Lisboa, que tem a sua casa de morada de família, o seu centro familiar.
[…]
Aqui chegados parece-nos inequívoco que estando o requerente privado, de facto, da sua liberdade de circulação e constrangido no exercício pleno das demais dimensões do seu direito à liberdade pessoal, imposta por uma decisão de autoridade administrativa, pode socorrer-se do habeas corpus para fazer valer a sua pretensão (se essa pretensão procede ou não, é questão diversa).
Com efeito, a tal título dispõe diretamente a Constituição, no seu artigo 31.º, que ‘Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.’
[…]
Ora, até às 23h59m do dia 2.05.2020 a quarentena obrigatória em unidade hoteleira a que os passageiros que desembarcavam neste arquipélago dos Açores se encontravam sujeitos, em tudo idêntica em termos de facto à quarentena a que o requerente se encontra agora sujeito, era implementada com respaldo no Decreto n.º 2-A/2020, de 21 de março, que procedeu à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, sendo admissível o recurso ao habeas corpus, mal seria que agora não o fosse. Se não por previsão do supracitado artigo 2.º, n.º 2, alínea a), atendendo a que o estado de emergência já cessou, por recurso direto ao artigo 31.º, n.º 1, da CRP.
Concluímos, pois, que o requerente está privado da liberdade e que é legítimo o recurso do mesmo ao instituto do habeas corpus.
[…]
Do fundamento legal para o confinamento obrigatório:
Perante tais conclusões incumbe, então, apreciar se a privação da liberdade a que se encontra sujeito é legítima, e para tanto teremos de encontrar resposta à segunda questão equacionada: qual o fundamento legal para a imposição ao requerente do confinamento obrigatório por 14 dias em unidade hoteleira, imposto pela Autoridade de Saúde Regional.
E esse fundamento é encontrado na Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, de 4 de maio […]
“No seguimento da monitorização permanente feita à situação de pandemia e considerando o final do prazo estabelecido para a situação de contingência na Região e para as cercas sanitárias na Ilha de São Miguel, o Governo dos Açores solicitou à autoridade de saúde regional que se pronunciasse sobre a eficácia das medidas, entretanto, implementadas bem como das medidas a implementar no futuro num contexto de realidades de contaminação diferenciadas nas nove ilhas dos Açores;
Assim, tendo em conta a pronúncia da autoridade de saúde regional e a ponderação da eficácia das medidas entretanto implementadas; Nos termos das alíneas a), b), d) e e) do n.º 1 do artigo 90.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e dos artigos 9.º, 10.º 11.º e 12.º do Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019, de 22 de novembro, (…), resolve: (…)
3 – Determinar, para todo o Arquipélago do Açores: (…) d) O reforço da necessidade de cumprimento escrupuloso da Circular Normativa n.º 32/2020, de 22 de abril, da Autoridade de Saúde Regional, no que respeita às necessidades de quarentena obrigatória e realização de testes COVID-19;
e) Que o confinamento obrigatório de não residentes, em unidades hoteleiras da Região, nos termos da Resolução n.º 77/2020, de 27 de março, passa a ser, a partir das 00:00 horas do dia 8 de maio, integralmente custeado pelos próprios.
[…]
11 – Determinar, para a Ilha de São Miguel, a manutenção de todas as restantes medidas em vigor, até às 23:59 horas de dia 31 de maio.’
Por força deste último n.º 11 mantiveram-se em vigor, até ao dia 31/05/2020, as determinações impostas pela Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020 de 27 de março de 2020 […].
Tal resolução do Governo Regional tendo como pressuposto, como se extrai do seu preâmbulo, o Decreto n.º 2-A/2020, de 21 de março, que procedeu à execução da declaração do estado emergência, nele se prevendo as situações sujeitas a confinamento obrigatório indispensáveis para a proteção da saúde pública, no contexto da situação de emergência causada pela epidemia SARSCoV-2, e para o tratamento da doença COVID-19; […] resolveu, no que ora interessa:
‘nos termos das alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 90.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, em conjugação com a alínea b) do n.º 1 do artigo 32.º do Decreto n.º 2-A/2020, de 21 de março, com o n.º 1 do artigo .º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, com o n.º 1 e alínea e) do n.º 2 do artigo 14.º e artigo 15.º todos do Regime Jurídico dos Contratos Públicos na Região Autónoma dos Açores, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 27/2015/A, de 29 de dezembro, alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º, n.º 1 do artigo 36.º, artigo 38.º, todos do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10-A /2020, de 13 de março, e, ainda, alínea e) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 29.º do Decreto Legislativo Regional n.º 1/2020/A, de 8 de janeiro, e alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do Decreto Regulamentar Regional n.º 5 /2020/A, de 14 de fevereiro,
1 – Determinar que os passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores cumpram, a partir de hoje, confinamento obrigatório, por catorze dias, em unidade hoteleira, de modo a reforçar as medidas de contenção da pandemia de COVID-19.
2 – O confinamento obrigatório dos passageiros e das respetivas bagagens, é realizado em unidades hoteleiras determinadas para este efeito, nas ilhas de desembarque de São Miguel ou Terceira, independentemente da residência dos indivíduos, exceto nos casos de força maior, devidamente autorizados pela autoridade de saúde regional.’
[…]
Da leitura conjugada das resoluções 77/2020 e 123/2020, do Conselho do Governo, temos de concluir que a Autoridade de Saúde atuou dentro da órbita daquelas resoluções e não por mero capricho ou excesso de zelo.
[…]
Da conformidade com a Constituição:
A questão que agora se coloca já tem de ser apreciada numa outra esfera: a da conformidade da Resolução do Conselho do Governo que a Autoridade de Saúde regional executa, e a que está sujeita o requerente, à luz dos princípios constitucionais. E para tanto é importante atentar no respaldo jurídico invocado pelo Conselho do Governo regional para suportar a sua resolução. E como supra se consignou, as normas conjuradas são as alíneas a), b), d) e e) do n.º 1 do artigo 90.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e dos artigos 9.º, 10.º 11.º e 12.º do Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019, de 22 de novembro. E são só essas as normas, pois com a cessação, às 23h59m do dia 02/05/2020, do estado de emergência, as normas legais invocadas na Resolução n.º 77/2020, designadamente o decreto que procedia à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República, cessaram igualmente a sua vigência, o que cremos não gerar controvérsia atenta a clareza da situação – se cessou o estado de emergência, forçosamente cessou o regime que lhe dava execução.
Restam-nos, então, as normas indicadas na Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020.
Será que alguma daquelas normas permite ao Governo Regional a compressão do direito à liberdade nos termos que resultam do confinamento imposto pelas suas resoluções? Ou, colocando a questão de outra forma, tem o Governo Regional competência para legislar em matéria de liberdade de circulação impondo o confinamento profilático?
E desde já diremos que não é certamente no artigo 90.º, do EPARAA, que se encontra tal legitimação, pois ali se conferem poderes ao Governo Regional no âmbito da atividade administrativa e económica.
De facto, tal artigo dispõe sobre a competência executiva do Governo Regional, determinando, no que ora interessa, que: ‘1 – Compete ao Governo Regional, no exercício de competências administrativas: a) Exercer poder executivo próprio; b) Dirigir os serviços e atividades de administração regional autónoma; d) Adotar as medidas necessárias à promoção e desenvolvimento económico e social e à satisfação das necessidades coletivas regionais; e) Administrar e dispor do património regional e celebrar os atos e contratos em que a Região tenha interesse;’.
Será então nos artigos 9.º, 10.º 11.º e 12.º do Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019, de 22 de novembro, que flui a legitimação para impor aos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores o cumprimento de confinamento obrigatório, por catorze dias, em unidade hoteleira?
Aquele decreto legislativo procede à definição do Regime Jurídico do Sistema de Proteção Civil da Região Autónoma dos Açores, em concretização do artigo 60.º, da Lei de Bases da Proteção Civil, o qual dispõe, no seu n.º 2, que ‘Nas regiões autónomas os componentes do sistema de proteção civil, a responsabilidade sobre a respetiva política e a estruturação dos serviços de proteção civil constantes desta lei e das competências dele decorrentes são definidos por diploma das respetivas Assembleias Legislativas.’
Estando ultrapassado o dia 04/05/2020, e, consequentemente, a declaração da situação de calamidade pública que vigorou nesta ilha até às 00h00m daquele dia (cfr. ponto 2, alínea a), da Resolução n.º 123/2020), mostra-se despiciendo analisar os invocados artigos 11.º e 12.º, que regulam a calamidade pública regional.
Mas já assim não é quanto aos artigos 9.º e 10.º, que regulam a contigência, pois, conforme flui do ponto 2, alíneas c) e d) da referida resolução, foi declarada a situação de contingência para a generalidade dos concelhos da ilha de S. Miguel, (com exceção de Povoação e Nordeste), bem como para as ilhas Terceira, Graciosa, São Jorge, Pico e Faial, a vigorar das 00h00m do dia 04/05/2020 e até às 24h00m do dia 31/05/2020.
Ora, o artigo 9.º define a competência para declaração de contingência – atribuindo-a ao membro do Governo Regional com competência em matéria de proteção civil (o que leva o requerente a pugnar, a final, pela ilegalidade da declaração de situação de contingência por vício de incompetência do Conselho de Governo – questão que acabar por não assumir relevância para a decisão face ao que infra se dirá).
Já o artigo 10.º define os requisitos a que deve obedecer o ato e âmbito material de declaração de contingência. E, no que ora interessa, é este o seu teor:
‘1 – O ato que declara a situação de contingência reveste a forma de despacho e menciona expressamente:
a) A natureza do acontecimento que originou a situação declarada;
b) O âmbito temporal e territorial;
c) O estabelecimento de diretivas específicas relativas à atividade operacional dos agentes de proteção civil e das entidades e instituições envolvidas nas operações de proteção e socorro;
d) Os procedimentos de inventariação dos danos e prejuízos provocados;
e) Os critérios de concessão de apoios materiais;
f) Os limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas, outros seres vivos ou veículos, por razões de segurança dos próprios ou das operações.’
Analisadas as referidas alíneas verificamos que é na alínea f) que se determina que o ato que declare o estado de contingência define os limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas, fazendo antever que se determina a definição dos limites é porque pressupõe a possibilidade de a autoridade proceder, no caso concreto, a essa limitação.
E de facto não temos dúvidas que em situação de contingência ou de calamidade (a alínea b) do n.º 2 do artigo 12.º, onde se definem os requisitos do ato e âmbito material da declaração de calamidade pública regional, e que na sua essência é em tudo igual à supra citada alínea f)) é possível limitar ou condicionar a circulação e permanência de pessoas, animais e veículos em determinados espaços. Mas tal só é possível, mesmo de acordo com a letra da lei, “por razões de segurança dos próprios ou das operações”.
O que se compreende tendo em conta o escopo da proteção civil definido no artigo 1.º da Lei de Bases da Proteção Civil: ‘A proteção civil é a atividade desenvolvida pelo Estado, regiões autónomas e autarquias locais, pelos cidadãos e por todas as entidades públicas e privadas com a finalidade de prevenir riscos coletivos inerentes a situações de acidente grave ou catástrofe, de atenuar os seus efeitos e proteger e socorrer as pessoas e bens em perigo quando aquelas situações ocorram.’
Facilmente compreendemos que assim seja: se estamos numa zona de derrocadas, ou onde lavra um incêndio, ou onde foram libertados gases tóxicos inadvertidamente, é claro que as autoridades no local vão poder, em prol da defesa daqueles que ali residem ou que por ali passam, ou da própria segurança dos operacionais envolvidos na operação de proteção civil, determinar que as pessoas se afastem do local, não possam ali entrar e/ou permanecer, ou outras medidas de idêntico jaez, dentro de condicionalismo específicos e tendo sempre como princípio a segurança dos próprios (isto é, a segurança daqueles que são sujeitos aos limites ou condicionamentos de circulação ou permanência).
Mas também cremos que face à factualidade apurada e os termos em que foi determinado o confinamento obrigatório de toda e qualquer pessoa que desembarque no aeroporto João Paulo II, não estamos perante uma mera limitação ou condicionamento à circulação ou permanência de pessoas que possa ser enquadrado no artigo 10.º ou mesmo no artigo 12.º, do Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019/A. E não pode ser enquadrado porque, como concluímos supra, o confinamento profilático obrigatório, por 14 dias, imposto ao requerente, que não tem qualquer sintoma indiciador do Covid-19 e que aqui tem residência, é uma verdadeira limitação do seu direito de liberdade e certamente não foi imposto por razões de segurança do próprio (requerente).
Estamos perante uma restrição efetiva de um direito fundamental, que não encontra respaldo nos invocados artigos 9.º a 12.º do supracitado diploma legal.
Pode, então, o Governo Regional decidir sobre tal matéria? A questão passa, mais uma vez, pela análise dos preceitos constitucionais. Nos termos do n.º 2 do artigo 18.º, da CRP, “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.” acrescentando o seu n.º 3 que ‘As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais’.
O artigo 19.º, por seu turno, determina que ‘os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição.’
Conforme decorre do disposto no artigo 165.º, n.º 1, da CRP, no que ora interessa, que ‘é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: b) Direitos, liberdades e garantias; (…)’.
No que às regiões autónomas concerne, a sua autonomia político-administrativa regional não afeta a integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição, conforme dispõe o n.º 3 do artigo 225.º da CRP, tendo os poderes que lhe são reconhecidos no artigo 227.º.
Da análise conjugada de tais normas extraímos que a competência para legislar sobre direitos, liberdade e garantias é da AR, ou do Governo da República, mediante autorização daquela. E apenas daqueles dois órgãos de soberania, reconhecidos como tal pelo artigo 110.º, da CRP. Tal competência já não é reconhecida ao Governo Regional, pois não lhe é conferido pela CRP, nem, consequentemente, pelo seu Estatuto Político Administrativo, competências de soberania, mas apenas autonomia político-administrativa.
E se assim é, a resposta à questão supra colocada terá de ser, então, negativa.
O Governo Regional não tem competência para restringir direitos, liberdades e garantias, mesmo tendo em conta o tempo de pandemia que vivemos.
Com a cessação do estado de emergência, ao abrigo do qual surgiu, e encontrou respaldo, a Resolução n.º 77/2020, cessaram as restrições que foram impostas a direitos constitucionais, como o direito à liberdade, os quais readquiriram a sua plenitude.
Como refere o Professor Vital Moreira: “A passagem do estado de emergência para um nível inferior de gravidade (calamidade pública) obriga o Governo a levantar suspensões de direitos atualmente decretadas» (…) « "O estado de calamidade administrativo [que só requer aprovação no Conselho de Ministros, não passando pela AR nem pelo Presidente da República] não pode fazer o que só o estado de exceção constitucional, por decreto presidencial, pode fazer, ou seja, suspender direitos; O estado de calamidade não pode, porém, afetar direitos que não podem ser restringidos em situações de normalidade constitucional, como é o caso, por exemplo, da proibição de internamento compulsivo (salvo por anomalia psíquica), da inviolabilidade da habitação, e da liberdade de culto ou do direito à greve" porque "estes direitos só podem ser afetados por via de declaração do estado de exceção constitucional (estado de sítio ou estado de emergência), decretado pelo PR com aprovação da AR, nos termos constitucionais."(in https://www.dn.pt/poder/vital-moreira-calamidade-publica-nao-permite-suspensao-de-direitos).
É certo que pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, foi declarado estado de calamidade em território nacional até às 23h59m do dia 17.05.20202, mas para além de não ser este o respaldo legal invocado pelo Governo Regional na sua Resolução 123/2020, também aquela resolução do Conselho de Ministros não é tão restritiva como é a resolução 123/2020, não impondo qualquer confinamento obrigatório profilático a pessoas que desembarquem em aeroportos portugueses – quer tenham vindo do estrangeiro quer de território nacional. Aliás, até o confinamento obrigatório de uma parte da população (pessoas com mais de 70 anos, por exemplo), medida que vinha a ser falada como devendo ser imposta aquando da declaração do estado de calamidade, acabou por não ser levada àquela Resolução 33-A/2020, pelos problemas de constitucionalidade que levantava.
Com efeito, a Lei de Bases da Proteção Civil, à luz da qual foi imposto o estado de calamidade, não foi desenhado para ser implementado a nível nacional e no contexto de uma pandemia, podendo levantar problemas de constitucionalidade quando restrinja direitos fundamentais. O que se compreende, pois, como bem nota a Raquel Brízida Castro, insigne professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e investigadora principal do Centro de Investigação de Direito Público, especialista em Direito Constitucional, “Se o Governo pudesse fazer a mesma coisa, ao abrigo da lei de bases da Proteção Civil, que fez ao abrigo do estado de exceção, então para que é que serviria o estado de exceção? O Governo não pode estabelecer limites à liberdade de circulação nos termos que foram permitidos no estado de exceção, por exemplo. Admitindo-se que pudesse vir a fazer o mesmo, aí estaríamos perante uma verdadeira fraude à Constituição.
[…]
Em suma, e agora voltando ao caso concreto, a resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, ao impor o confinamento profilático obrigatório nos termos definido pela Resolução 77/2020 daquele mesmo Conselho, restringe de forma flagrante o direito à liberdade, estando ferida de inconstitucionalidade, uma vez que a CRP não reconhece legitimidade ao mesmo para a restrição de direitos fundamentais.
Estamos, pois, perante um ato ferido de inconstitucionalidade formal orgânica.
[…]
Mas ainda que se admitisse que a Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020 não padecia de inconstitucionalidade formal orgânica, cremos que, ainda assim, sempre soçobraria quando analisada sob o prisma da constitucionalidade material. Isto é, na sua conformidade com os princípios e direitos constitucionalmente consagrados, designadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade. Concretizemos tal ideia por confronto com a factualidade apurada. E da mesma resulta que único pressuposto para o confinamento obrigatório em unidade hoteleira, por 14 dias, é ser passageiro num voo que aterre na Região Autónoma dos Açores. Ser ou não residente na região; estar ou não infetado; ter ou não condições para se manter confinado noutro local, é absolutamente irrelevante. Ou pelo menos foi irrelevante até 7.05.2020, pois a partir das 00h00m do dia 8, os não residentes sujeitos ao confinamento obrigatório ficam ainda sujeitos a custearem integralmente o confinamento que lhes é imposto (cfr. alínea e) do n.º 3 da referida Resolução). Não nos parece que o confinamento obrigatório decretado sem ter por base uma comprovada ou suspeita infeção, apenas porque se desembarcou na ilha, satisfaça o requisito da proporcionalidade na vertente da proibição do excesso prevista no n.º 2 do artigo 18.º, da CRP. Nunca a determinação de confinamento obrigatório, como radical privação da liberdade, pode configurar ato arbitrário, mas antes proporcional, reclamando uma adequada ponderação entre a privação da liberdade (que no caso do requerente é praticamente total, sendo fraca mitigação a possibilidade conferida de regressar ao local de origem) e o valor da saúde pública (este um bem difuso). Ora, a Orientação 10 de 16.3.2020 da Direcção-Geral da Saúde (DGS), em que se louvava expressamente a Resolução 77/2020, distingue, para efeitos de prevenção epidemiológica entre “quarentena” e “isolamento” (não são conceitos jurídicos, ao contrário do que por vezes se crê) dispondo que a primeira “é utilizada em indivíduos que se pressupõe serem saudáveis, mas possam ter estado em contacto com um doente infecioso”, enquanto o “isolamento é a medida utilizada em indivíduos doentes, para que através do afastamento social não contagiem outros cidadãos.” E, por fim, a própria Direcção Regional da Saúde (DRS), através da Circular 8-B/2020, dispõe o que é “caso suspeito” e “caso provável”, aliás de modo muito exigente, neles não cabendo qualquer cidadão saudável só por desembarcar numa ilha. Mas mesmo admitindo a possibilidade de ser determinado aquele confinamento obrigatório profilático, dificilmente poderá ter cabimento a determinação de autoridades de saúde confinando residentes no arquipélago, naquelas condições, “noutro local” que não o domicílio. Tanto mais que quando qualquer pessoa que resulte positivo à Covid-19, desde que não tenha um quadro clínico que necessite de cuidados médicos acrescidos, e não tenha desembarcado no aeroporto, faz a quarentena no seu domicílio, sendo vigiado clinicamente por telefonema da Linha Saúde e passagem pela PSP no local, duas vezes por dia. Não são apresentados, sendo esse um ónus de quem quer proceder a limitações da liberdade, elementos empíricos que justifiquem esse modo de proceder. E assim ele continua a violar o princípio da proporcionalidade, agora na vertente da necessidade, também prevista no n.º 2 do artigo 18.º, da CRP. Isto é tão mais verdade quando se apura que a vigilância a que são sujeitos é efetuada através de chamada telefónica diária, pela Linha Saúde, e não por observação de médico que compareça no local do confinamento; não têm sido sujeitos a teste de despiste para a Covid-19, à chegada, e apenas têm realizado, na generalidade dos casos, teste no final do confinamento (ou 2 a 3 dias antes do termo dos 14 dias). Mas não deixa de ser igualmente perturbadora a circunstância de vigorando o estado de calamidade em todo o país, conforme decorre Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, qualquer residente no continente possa desembarcar em qualquer aeroporto do continente e dirigir-se livremente para casa, mas nas Regiões Autónomas tenha que ficar confinado num hotel. Aliás, paradigmático desse tratamento desconforme é a situação do próprio requerente: regressou do estrangeiro, desembarcou no aeroporto de Lisboa no dia 8.05.2020, e não lhe foi imposta qualquer restrição de circulação; embarcou para S. Miguel, 2 dias depois, ilha onde tem a sua casa de morada de família e onde reside em permanência a sua mulher, e ao invés de ir para sua casa, é conduzido a um quarto de hotel, onde tem de permanecer confinado 24 horas por dia, durante 14 dias, sem poder sequer vir ao corredor. Confinado num hotel sem estar infetado ou haver suspeitas fundadas de o estar, quando outros que estão efetivamente infetados permanecem no seu domicílio. No caso concreto, o requerente pelo menos tem a vantagem de ter aqui residência, se assim não fosse ainda se via onerado com o custear integral do confinamento que lhe foi imposto. Naturalmente que admitimos a existência de tratamentos diferenciados, mas desde que assentem em fatores objetivos e objetiváveis e de modo proporcional, em conformidade com o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º, da CRP, e sem perder nunca de vista o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º, da CRP, o qual dispõe que: “1 – Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2 – Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.” E a esta luz temos dificuldade em aceitar não só o confinamento obrigatório de pessoas que não estão infetadas nem há suspeita de que o estejam, quando confrontado com a permanência domiciliária daqueles que estão efetivamente infetados; como também a diversidade de tratamento entre aqueles que estando confinados obrigatoriamente por força da mesma Resolução do Conselho do Governo aqui têm residência e aqueles que aqui a não têm (mas que podem ter aqui familiares e amigos que vinham visitar ou com quem vinham passar algum tempo para fortalecer laços familiares – aliás, e fazendo aqui um breve parêntesis, a questão do confinamento obrigatório afeta de forma indelével o cumprimento das responsabilidades parentais, criando um obstáculo quase intransponível ao direito de visitas nas situações em que a criança resida em local geograficamente descontinuado em relação a um dos progenitores), tendo estes (não residentes) de custear o confinamento imposto, e sendo o confinamento daqueles (residentes) custeado através do Programa 4. Do Plano Regional Anual para 2020, conforme decorre da alínea e) do ponto 3 da Resolução 123/2020, e ponto 6 da Resolução 77/2020.
[…]
Em suma, pelo que supra consignamos, entendemos que ainda que não padecesse de inconstitucionalidade formal e orgânica, sempre se verificaria a inconstitucionalidade material da obrigação de confinamento obrigatório por violação dos princípios da liberdade, da igualdade e da proporcionalidade (nas suas vertentes de necessidade e proibição de excesso).
[…]
Mas ainda que se admitisse que não se verificavam nenhuma das inconstitucionalidades supra apontadas, há um vício de que padece e que cremos ser inequívoco: a inexistência de um regime procedimental que permita a sindicabilidade da decisão de confinamento obrigatório – nada é regulado a tal título em nenhuma das resoluções. E se a Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020 ainda tinha o respaldo do estado de emergência e, consequentemente, valia o disposto no artigo 2.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, na resolução n.º 123/2020 não se fixa nenhum procedimento que garanta a comunicação a quem fica sujeito ao confinamento dos motivos desse confinamento, quais os seus direitos e qual o modo de sindicar a decisão. E a questão procedimental não é de menos importância, pois a ausência da sua regulamentação implica uma insindicabiliadde sistemática pela via judicial, quer de modo antecipado quer na vertente de validação subsequente, como ocorre na previsão da Lei 44/86. E nesse caso, apenas resta o recurso ao meio extraordinário do habeas corpus. No caso em apreço, conforme resulta claramente da factualidade apurada, para além do panfleto com informações sobre o Coronavírus e as regras de etiqueta social, e indicação de dois números telefónicos, um para questões médicas e outro para outras questões, nada mais foi entregue ao requerente (nem a nenhum outro passageiro que aqui desembarcou). Em momento algum lhe foram comunicados os direitos que tinha e qual o modo de os poder fazer valer caso entendesse que estavam a ser violados. E nada lhe foi comunicado, porque a Resolução não prevê tal procedimento. Estamos, pois, perante uma absoluta ausência de informação sobre os mecanismos de acesso ao direito, o que configura uma flagrante violação não só do disposto no n.º 4 do artigo 27.º, da CRP, que impõe que “Toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos.”, como do artigo 20.º, da CRP, que dispõe no seu n.º 1 que “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…)”, acrescentando o seu n.º 5 que ”Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”. Aliás, a própria Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no n.º 4 do seu artigo 5.º, prevê de modo expresso que “Qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.
[…]
Por fim, não podemos deixar de sublinhar que no caso em apreço não temos dúvidas que a medida de confinamento obrigatório implementada pelo Governo Regional pretende a segurança daqueles que aqui residem, mas qualquer medida – mesmo que seja para o bem comum – tem ainda assim de respeitar os princípios constitucionais que regem um estado de direito, e a República Portuguesa é um estado de direito democrático, que se baseia no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, como flui expressamente do artigo 2.º, da CRP.
Cremos que o afloramento a tal possibilidade de confinamento surge apenas na Lei n.º 81/2009, de 21 de Agosto, que institui um sistema de vigilância em saúde pública, que identifica situações de risco, recolhe, atualiza, analisa e divulga os dados relativos a doenças transmissíveis e outros riscos em saúde pública, bem como prepara planos de contingência face a situações de emergência ou tão graves como de calamidade pública, dispondo-se no seu artigo 17.º, dispõe-se que “De acordo com o estipulado na base XX da Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, o membro do Governo responsável pela área da saúde pode tomar medidas de exceção indispensáveis em caso de emergência em saúde pública, incluindo a restrição, a suspensão ou o encerramento de atividades ou a separação de pessoas que não estejam doentes, meios de transporte ou mercadorias, que tenham sido expostos, de forma a evitar a eventual disseminação da infeção ou contaminação.” Acrescentando o seu n.º 3 que “As medidas previstas nos números anteriores devem ser aplicadas com critérios de proporcionalidade que respeitem os direitos, liberdades e garantias fundamentais, nos termos da Constituição e da lei.” Mas como decorre da leitura de tal artigo, o que ali se dispõe carece de densificação, isto é, maior concretização.
E a questão do confinamento compulsivo em caso de doenças contagiosas, e os termos em que o mesmo deve ocorrer, é uma questão premente, e que não encontra suporte no artigo 27.º, n.º 3, da CRP, designadamente na sua alínea h), onde apenas se prevê o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente. Urge legislar sobre tal matéria, estabelecendo-se, de modo claro, os princípios fundamentais a que deve obedecer, deixando os aspetos detalhados para o direito derivado – e somente esses.
Pois, como refere o Professor Gian Luigi Gatta, que aqui citamos numa tradução livre, “neste momento, as energias do país estão focadas na emergência. Mas a necessidade de proteger os direitos fundamentais, também e acima de tudo em caso de emergência, exigindo-se aos Tribunais que façam sua parte. Porque, além da medicina e da ciência, também o direito – e o direito dos direitos humanos em primeiro lugar – devem estar na vanguarda: não para proibir e sancionar – como está sendo sublinhado demais nos dias de hoje – mas para garantir e proteger todos nós. Hoje a emergência é chamada de coronavírus. Nós não sabemos o amanhã. E o que fazemos ou não fazemos hoje, para manter a cumprimento dos princípios fundamentais do sistema, pode condicionar o nosso futuro.” (in “I diritti fondamentali alla prova del coronavirus. Perché è necessaria una legge sulla quarantena”,)
[…]
Em síntese e em jeito de resposta às três questões inicialmente equacionadas, concluímos que:
– o confinamento obrigatório a que o requerente se encontra sujeito pela Autoridade de Saúde Regional consubstancia uma privação da liberdade e não apenas uma limitação do seu direito de circulação;
– na ausência de previsão procedimental própria, que preveja a sindicabilidade sistemática pela via judicial daquela decisão de confinamento, ainda que na vertente de validação subsequente – é legítimo o recurso pelo requerente ao mecanismo extraordinário de habeas corpus previsto no artigo 31.º, da CRP;
– a determinação de confinamento imposta ao requerente pela Autoridade de Saúde Regional funda-se na Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, que mantém em vigor, nos termos do seu ponto, 11, as determinações impostas na Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020;
– a Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, ao manter a determinação de confinamento obrigatório, por catorze dias, em unidade hoteleira, imposta aos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores, tal como sucedeu com o requerente, é formal, orgânica e materialmente inconstitucional, por desconformidade com o disposto nos artigos 1.º, 13.º, 18.º, 20.º, 27.º, 165.º, n.º 1, alínea b), 225.º, n.º 3, 227.º, n.º 1, alínea b) e 228.º, da Constituição da República Portuguesa.
Razões porque, em suma, consideramos fundado o pedido de Habeas Corpus formulado pelo requerente, restando decidir em conformidade.
[…]” (sublinhados acrescentados).
1.2. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tendo por objeto as normas cuja aplicação foi recusada – as contidas no “[…] artigos 9.º, 10.º 11.º e 12.º do Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019, de 22 de novembro, e nos pontos 3, alínea e), e 11 da Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, também na parte em que remete para a Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020, nos termos das quais se impõe o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores”.
1.2.1. O recurso foi admitido no Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada.
1.2.2. No Tribunal Constitucional, foi proferido despacho, pelo relator, determinando a notificação das partes para alegarem.
1.2.3. O Ministério Público apresentou alegações, que culminaram nas seguintes conclusões:
“[…]
1) nos presentes autos, a digna magistrada judicial do Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada – comarca dos Açores –, magistrada recorrida, desaplicou, por sentença de 16 de Maio de 2020, «os artigos 9º, 10º, 11º e 12º do Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019, de 22 de novembro, e os pontos 3, alínea e), e 11, da Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, também na parte em que remete para a Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020, nos termos das quais se impõe o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores, por desconformidade com o disposto nos artigos 1.º, 13.º, 18.º, 20.º, 27.º, 165.º, n.º 1, alínea b), 225.º, n.º 3, 227.º, n.º 1, alínea b), e 228.º da Constituição da República Portuguesa» (cfr. supra n.º 21 das presentes alegações);
2) determinou, nessa medida, a mesma magistrada, ser «insubsistente, por manifestamente inconstitucional, a privação da liberdade do requerente por determinação da Autoridade de Saúde Regional, como tal, procede o habeas corpus, nos termos do artigo 31º, da CRP, e das alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 220º, do Código de Processo Penal, ordenando-se a restituição imediata do requerente A. à liberdade» (cfr. supra ibidem);
3) o digno magistrado do Ministério Público interpôs, em consequência, recurso obrigatório de constitucionalidade para este Tribunal Constitucional, ao abrigo, designadamente, do artigo 70º, n.º 1, alínea a) da LTC (cfr supra n.º 22 das presentes alegações);
4) o presente recurso ocorre no contexto de uma situação epidémica respeitante a uma doença respiratória aguda causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV-2), com origem na província de Hubei, na República Popular da China, onde terá sido detetado em dezembro de 2019 (cfr. supra n.º 23 das presentes alegações);
5) a Covid-19 é uma doença infetocontagiosa, transmitindo-se entre humanos por contacto próximo, através de gotículas libertadas pelo nariz ou pela boca que podem atingir a boca, o nariz ou os olhos de pessoas que se encontrem próximos, sendo atualmente aceite que o vírus perdure durante algum tempo em objetos e superfícies, dependendo do tipo de objetos e superfícies envolvidos;
6) tem um índice de letalidade global de 3,4%, que afeta sobretudo pessoas mais idosas e com outras patologias e uma taxa de transmissão de 2,75;
7) há, por outro lado uma alta percentagem de doentes assintomáticos, ou seja, que são portadores e potenciais transmissores do vírus, mas não apresentam (ainda) sinais da doença;
8) a doença é particularmente virulenta e transmissível, como facilmente se constata pelo facto de ter, em poucos meses, afetado praticamente todos os continentes, levando a Organização Mundial de Saúde a qualificá-la de pandemia em 11 de março de 2020. Há mais de um século que se não verificava uma doença com tão forte impacto na saúde da população, a nível global (cfr. supra n.º 24 das presentes alegações);
9) neste momento, o número de infetados em todo o mundo é superior a 8 milhões, com mais de 440.000 óbitos assinalados;
10) os primeiros casos detetados em Portugal ocorreram em 2 de março de 2020, possivelmente em resultado de viagens efetuadas ao estrangeiro, o que demonstra bem a influência das viagens, nomeadamente, aéreas, na propagação da doença;
11) neste momento, o nosso país aproxima-se das 38.000 infeções e conta com mais de 1.500 óbitos verificados;
12) o cenário em que ocorre o presente recurso é, pois, grave e não respeita apenas ao nosso país (cfr. supra n.º 25 das presentes alegações);
13) dado o elevado índice de transmissão da doença, mais uma vez confirmado pelo recente surto verificado em Pequim, no corrente mês de Junho, que em poucos dias alastrou a várias outras províncias chinesas, qualquer decisão tomada num determinado país, ao nível do controlo da doença, poderá refletir-se, como já se refletiu em meses anteriores, na situação vivida noutros países;
14) nessa medida, qualquer decisão sobre o controlo da doença carece de ser maduramente ponderada, para minimizar eventuais riscos para terceiros, no próprio país, ou noutros países;
15) as decisões sobre o controlo da doença carecem, por outro lado, de ser permanentemente ajustadas à situação epidemiológica existente. Uma medida tomada hoje, pode revelar-se desajustada amanhã, carecendo de ser corrigida, substituída ou complementada por outras medidas (cfr. supra n.º 26 das presentes alegações);
16) daí a necessidade de ajustar políticas a um nível global, ou regional (por exemplo, a nível europeu), adotando a Organização Mundial de Saúde, periodicamente, resoluções, ou emitindo diretivas, para permitir um combate global eficaz à pandemia;
17) por outro lado, não existindo tratamento inteiramente seguro, nem vacina, contra a doença, a gestão do surto viral carece de ser feita através da adoção de medidas, progressivas ou regressivas, de contenção, mitigação ou supressão, tendo por objetivo evitar uma propagação generalizada da doença na comunidade;
18) neste grupo inclui-se a imposição de quarentenas, confinamentos e outras formas de isolamento das pessoas que estão, ou possam estar infetadas, relativamente aos restantes elementos da comunidade, de modo a impedir a propagação do vírus, medidas, essas, advogadas pela Organização Mundial de Saúde para controlar este flagelo;
19) o facto de se estar perante uma epidemia sem precedentes no último século da história da humanidade, deverá levar a uma particular prudência na utilização de conceitos jurídicos normalmente associados a outras realidades, que poderão ser mais familiares, mas cuja utilização comporta riscos, por os conceitos utilizados não terem sido desenhados para o efeito agora pretendido (cfr. supra n.º 27 das presentes alegações);
20) a decisão que o Tribunal Constitucional vier a proferir no presente recurso de constitucionalidade, designadamente se concluir pela inconstitucionalidade das normas desaplicadas pela digna magistrada judicial recorrida, terão necessárias consequências em termos de saúde pública, designadamente durante o período em que estiver (se vier a estar) em curso a preparação de nova legislação que colmate as lacunas atualmente existentes, podendo impedir as autoridades sanitárias de adotar, entretanto, as medidas que se revelem mais necessárias ao controlo da pandemia, designadamente se o país se vir confrontado com uma segunda ou terceira vaga da epidemia que imponha, novamente, o recurso à figura do confinamento ou à imposição da quarentena (cfr. supra n.º 29 das presentes alegações);
21) a situação é tanto mais delicada, quanto o facto de se poder estar a tomar decisões em matéria da doença, não estando especialmente habilitado com conhecimentos médicos para o efeito, sendo, justamente, a única entidade que poderia avaliar o risco da transmissão da epidemia no arquipélago dos Açores – a Autoridade Regional de Saúde – a autora da medida posta em causa, que considerou mais adequada para controlar o risco de infeção naquela Região Autónoma (cfr. supra n.º 30 das presentes alegações);
22) ao longo da sentença recorrida, a maioria das vezes a digna magistrada reporta-se à limitação da liberdade de circulação, apenas se referindo à privação de liberdade quando pretende vincar uma nota de maior restrição do direito individual do interessado (cfr. supra n.º 31 das presentes alegações);
23) reconhece-se que a situação de confinamento profilático configura uma restrição aos direitos individuais das pessoas que a ele são sujeitas, mas será uma restrição à liberdade de circulação, ou à liberdade individual? E, no caso do presente recurso, é tal restrição consentida ou surgiu como uma circunstância imprevisível para o requerente?
24) o requerente é piloto de linhas aéreas, não desconhecendo, nessa medida, que idênticas medidas de confinamento profilático obrigatório foram adotadas por outros países, designadamente europeus e surgem no seguimento de recomendações da Organização Mundial de Saúde (cfr. supra n.º 32 das presentes alegações);
25) o que significa que o país que não adote tais medidas, corre o risco não só de não assegurar um combate eficaz à doença, como de inclusive contribuir para a sua propagação (os casos dos Estados Unidos e do Brasil são disso um triste exemplo);
26) o requerente chegou a Lisboa no dia 8 de maio de 2020, apenas tendo embarcado para São Miguel no dia 10 do mesmo mês. Não desconhecia, por outro lado, pela sua própria profissão, que as ligações aéreas no espaço europeu estavam, em geral, suspensas, assim tendo permanecido ainda durante várias semanas (cfr. supra n.º 33 das presentes alegações);
27) teve, por isso, tempo suficiente para se inteirar da situação no arquipélago e da obrigação imposta de confinamento profilático. E foi-lhe mesmo entregue, durante o voo, uma declaração parcialmente preenchida, declarando que o incumprimento de quarentena o fazia incorrer em crime de desobediência;
28) conhecia, pois, o requerente, a medida de confinamento que o aguardava, e aceitou embarcar em tais condições, reconhecendo, inclusive, que embora «estivesse consciente da ilegalidade da sua detenção, acatou as ordens recebidas e não exerceu o direito à resistência, constitucionalmente consagrado no artigo 21º da CRP»;
29) afigura-se, pois, inconsistente a tese de que o requerente terá sido apanhado de surpresa pela medida de confinamento, não tendo tido possibilidade de reagir. Teve tal possibilidade e não quis evitar a viagem, de alguma forma aceitando as respetivas consequências, parecendo ter em vista a possibilidade, inteiramente legítima, aliás, de vir a contestar judicialmente essa medida (cfr. supra n.º 34 das presentes alegações);
30) uma tal situação não pode deixar de ser devidamente ponderada quanto à qualificação da situação de confinamento que lhe foi imposta. É uma restrição imposta? É uma restrição livremente assumida? Um misto de ambas?
31) qualquer que seja a qualificação que se adote quanto a este aspeto, parece claro que se não trata de uma situação de detenção típica daquelas que normalmente suscitam o recurso a uma providência de habeas corpus;
32) sendo certo que se aceita que, mesmo em tais circunstâncias, o recurso a um controlo jurisdicional se afigura inteiramente legítimo e mesmo indispensável, uma vez que se trata de uma medida restritiva de um direito fundamental, qualquer que ele seja, privação de liberdade ou limitação da circulação da pessoa, imposta por uma autoridade administrativa, neste caso a autoridade regional de saúde;
33) a caracterização da situação de confinamento profilático como de privação de liberdade poderá suscitar a ponderação de diversas outras questões. Estaremos, relativamente à unidade hoteleira de confinamento, perante um centro de detenção? Sujeito à inspeção periódica do Ministério Público e das autoridades judiciais? Sujeito igualmente às visitas do Mecanismo Nacional de Prevenção? Estamos perante a aplicação de uma medida de segurança por autoridade administrativa? (cfr. supra n.º 35 das presentes alegações);
34) deverão as pessoas sujeitas a confinamento, a concluir-se pela tese da inconstitucionalidade no âmbito do presente recurso, ser, então, todas elas indemnizadas, por detenção ilegal ou arbitrária?
35) será a situação de confinamento substancialmente diferente da determinada pela declaração do estado de emergência, que vigorou em todo o território nacional desde o dia 19 de março (Decreto n.º 14-A/2020, de 18 de Março, do Presidente da República) até ao dia 2 de maio (Decreto n.º 20-A/2020, de 17 de abril, do Presidente da República) e permitiu o confinamento compulsivo no domicílio ou em estabelecimento de saúde (cfr. designadamente o artigo 4.º, alínea a), do primeiro Decreto)? (cfr. supra n.º 36 das presentes alegações)?
36) não constituiu tal confinamento igualmente «uma verdadeira privação da liberdade pessoal e física, não consentida», que impediu a maioria das pessoas de se deslocar e continuar a exercer a sua atividade profissional?
37) não é verdade que, pelo menos no âmbito do Decreto n.º 14-A/2020, do Presidente da República, que decretou o estado de emergência, a medida de confinamento compulsivo de cidadãos no domicílio ou em unidade hospitalar, necessária para evitar a propagação de doença infeciosa, como a COVID-19, não parece ter sido concebida como uma medida de privação da liberdade, que exigisse uma suspensão do direito à liberdade previsto no artigo 27.º da Constituição, mas antes como uma mera restrição ao direito à liberdade de deslocação e fixação, com reflexo no artigo 44.º, n.º 1, da Constituição?
38) não esteve a Ilha de São Miguel, sucessivamente, sujeita a uma situação de calamidade (2-4 de maio), de contingência (4-31 de maio) e de calamidade pública (até 15 de junho), o que comprova a volatilidade da situação epidemiológica na mesma ilha durante as últimas semanas, tal como mutável foi, também, e é, a situação no resto do país?
39) tal como concluído pela digna magistrada judicial recorrida, crê-se que a Autoridade Regional de Saúde agiu, no âmbito dos factos que determinaram a apresentação do recurso de constitucionalidade em apreciação, no quadro definido pelas Resoluções 77/2020 e 123/2020, do Conselho do Governo Regional e «não por mero capricho ou excesso de zelo»;
40) admite-se que a Lei de Bases de Proteção Civil, aprovada pela Lei 27/2006, de 3 de Julho, possa não ter sido desenhada «para ser implementado a nível nacional e no contexto de uma pandemia», não significando isso, porém, na ausência de outro quadro legal habilitante, que se não procure avaliar, para evitar males maiores, da possibilidade da sua utilização no âmbito da situação de precariedade sanitária em que nos encontramos (cfr. supra n.º 39 das presentes alegações);
41) têm-se, de qualquer modo, por duvidosas as premissas nas quais a sentença recorrida assenta, ao entender que o confinamento profilático obrigatório imposto ao requerente «que não tem qualquer sintoma indiciador do Covid-19 e que aqui tem residência, é uma verdadeira limitação do seu direito à liberdade e certamente não foi imposto por razões de segurança do próprio (requerente)»;
42) o facto de uma pessoa não ter «qualquer sintoma indiciador do Covid-19», não significa que não seja potencial portadora e transmissora do vírus, sendo apenas, possivelmente, um caso assintomático. Os testes, se conduzidos na altura, nada revelarão, mas a pessoa pode estar infetada e pode propagar a doença. É essa, justamente, uma das razões que aconselham o confinamento profilático ou a quarentena, de forma a permitir ao vírus o necessário tempo de incubação para se poder tornar percetível;
43) por outro lado, o período de confinamento é adotado quer para proteção da pessoa confinada, quer das pessoas que com ela poderão entrar em contacto. Sendo o vírus transmissível por gotículas que permanecem no ar ou em determinadas superfícies ou materiais, a saída de uma pessoa da situação de confinamento, naturalmente que a expõe mais a apanhar o vírus. Daí o facto de o desconfinamento, recentemente determinado a nível do território nacional, estar a ser realizado de forma progressiva e sujeito a permanente avaliação por parte das autoridades de saúde e dos órgãos de soberania;
44) se a pessoa desconfinada estiver infetada, corre o risco de infetar outras pessoas. No caso do requerente, justamente a família, com quem pretende vir a coabitar. E o requerente, piloto aéreo, tendo vindo do estrangeiro, faz aumentar, por esse facto, o risco de possível transmissão. Se, no seguimento do seu desconfinamento por decisão da autoridade judicial, vier a infetar os elementos do seu agregado familiar ou terceiros, não incorrerá em responsabilidade criminal?
45) admite-se que a legislação sobre proteção civil possa não constituir suficiente fundamento para a medida de confinamento (cfr. supra n.º 40 das presentes alegações);
46) esta legislação prevê, com efeito, em situações em que um determinado acontecimento é suscetível de afetar as pessoas, como sucede com a atual pandemia de COVID–19, que seja declarada a situação de alerta, de contingência ou de calamidade, consoante a necessidade de adotar medidas especiais adequadas e proporcionais a enfrentar graus crescentes de risco (artigos 8.º, n.ºs 1 e 2, 9.º e 3.º da mesma lei), cabendo à entidade responsável, na respetiva Região Autónoma, declarar a situação em causa (artigos 8.º, n.ºs 4 e 5, e 13.º, n.º 2, da referida lei), no caso dos Açores, e quanto à declaração da situação de contingência, em vigor na Ilha de São Miguel quando ocorreu o confinamento profilático do requerente, o Secretário Regional que tutela a área da proteção civil (artigo 7.º, n.º 1 e 9.º, do Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019/A, de 22 de novembro);
47) a lei de bases da proteção civil não prevê, contudo, a adoção de medidas específicas, num quadro de exceção, nas situações de alerta e de contingência, pelo que, muito embora a declaração de contingência constitua uma situação de emergência, em última análise, poderá entender-se que as medidas, que possam ser decretadas ao abrigo dessa declaração, deverão continuar a respeitar o restante quadro legal e constitucional, o qual se mantém vigente nesta situação;
48) nessa medida, poder-se-á entender que o facto de a alínea e), do n.º 1, do artigo 8.º, e de a alínea f) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019/A, de 22 de novembro, aditarem às menções que devem conter as declarações das situações de alerta e contingência, que constam da Lei n.º 27/2006, de 3 de junho, «os limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas», não constituirá, por si só, uma permissão à adoção deste tipo de medidas com inobservância do quadro legal vigente, sendo essas normas regionais inconstitucionais, por violação do disposto no artigo 112.º, n.º 4, e 227.º, n.º 1, a), da Constituição, uma vez que estaremos perante matéria – de direitos, liberdades e garantias – reservada à Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, b), da Constituição);
49) foi a Resolução do Conselho do Governo Regional dos Açores 65/2020, de 19 de março, que previu, pela primeira vez, a possibilidade de passageiros de voos do exterior, que aterrassem nesta Região Autónoma, ficarem obrigados a cumprir um período obrigatório de quarentena de 14 dias, determinado pela Autoridade de Saúde Regional (cfr. supra n.º 41 das presentes alegações);
50) por sua vez, a Resolução n.º 77/2020, de 27 de março de 2020, determinou que os passageiros que aterrassem na Região Autónoma dos Açores cumprissem confinamento obrigatório em unidade hoteleira, de modo a reforçar as medidas de contenção da pandemia de COVID-19:
51) seguidamente, a Resolução 123/2020, de 4 de Maio, veio aprovar medidas de levantamento gradual das restrições em vigor, determinando que a Ilha de São Miguel ficasse sujeita à declaração da situação de contingência, entre os dias 4 e 31 de maio (cfr. respectivo n.º 2, alínea c)) e determinando que o confinamento obrigatório de não residentes, em unidades hoteleiras da Região, passasse a ser, a partir do dia 8 de maio, integralmente custeado pelos próprios (respectivo n.º 3, alínea e));
52) Seguiu-se a Resolução 141/2020, de 18 de Maio de 2020, que declarou a situação de calamidade pública na ilha de S. Miguel e determinou que os passageiros que desembarcassem nos aeroportos de Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel, provenientes de aeroportos localizados em zonas consideradas pela Organização Mundial de Saúde como sendo zonas de transmissão comunitária ativa ou com cadeias de transmissão ativas do vírus SARS-CoV-2, ficariam obrigados a cumprir, em alternativa, um dos seguintes procedimentos:
a) apresentar comprovativo, em suporte papel, de documento emitido por laboratório credenciado para a realização de testes à COVID-19, que ateste a realização de teste de despiste ao SARS-CoV-2, nas 72 horas antes da partida do voo do aeroporto de origem;
b) realizar, com recolha de amostras biológicas à chegada, teste de despiste ao SARS-CoV-2, a promover pela autoridade de saúde, devendo permanecer, em isolamento profilático, em quarto de hotel indicado para o efeito até ao resultado do referido teste NEGATIVO, não podendo, entre o momento de recolha das amostras e o momento de o resultado do teste NEGATIVO decorrer mais de 48 horas;
c) realizar quarentena voluntária por um período consecutivo de 14 dias em hotel indicado para o efeito, prazo até ao termo do qual, serão realizadas recolhas de amostras biológicas e teste de despiste ao SARS-CoV-2 a promover pela autoridade de saúde local;
d) regressar ao destino de origem ou deslocar-se para qualquer destino fora da Região, cumprindo, até à hora do voo, isolamento profilático em hotel indicado para o efeito;
53) esta última Resolução permite constatar que o Governo Regional manteve a sua preocupação de adaptar a medida de confinamento à situação epidemiológica da Região Autónoma, configurando diversas medidas possíveis de evitar a propagação do vírus por parte de passageiros provenientes do exterior. E prevendo, designadamente, nos casos em que seja decretada quarentena obrigatória pela autoridade de saúde, que a mesma deva, no prazo de 24 horas, ser submetida a validação judicial junto do tribunal competente;
54) finalmente, a Resolução 152/2020, de 28 de maio, pelo facto de as cadeias de transmissão da Covid-19 na Região Autónoma dos Açores estarem praticamente extintas, fez cessar a obrigatoriedade de isolamento profilático de catorze dias para os passageiros provenientes do exterior da Região;
55) podendo, até, questionar-se, por esse motivo, se o presente recurso de constitucionalidade ainda manterá, então, a sua utilidade;
56) a situação de contingência foi declarada, relativamente ao arquipélago dos Açores, inicialmente pelo Despacho n.º 409/2020, de 17 de março de 2020, da Secretária Regional da Saúde e, posteriormente, pela Resolução n.º 63/2020, de 17 de março, do Conselho do Governo Regional dos Açores (cfr. supra n.º 42 das presentes alegações);
57) foi no âmbito de uma tal situação que foi determinado, pela Resolução n.º 65/2020, de 19 de março, que todos os passageiros de voos do exterior que aterrassem na Região Autónoma dos Açores, a partir do início da tarde do dia 19 de março, estavam obrigados a cumprir um período obrigatório de quarentena de 14 dias, determinado pela Autoridade de Saúde Regional;
58) após a declaração do estado de emergência, abrangendo todo o território nacional, pelo Decreto 14-A/2020 do Presidente da República, o Conselho do Governo Regional aprovou a Resolução 77/2020, que determinava o confinamento obrigatório de passageiros em unidade hoteleira durante 14 dias, exceto em casos de força maior, devidamente autorizados pela autoridade de saúde regional (cfr. supra n.º 43 das presentes alegações);
59) poder-se-á entender, que uma tal medida ia para além do previsto pelo Conselho de Ministros, no artigo 3.º dos Decretos 2-A/2020, de 20 de março, 2-B/2020, de 2 de abril, e 2-C/2020, de 17 de abril, que regulamentaram o exercício do estado de emergência, onde se determinava o confinamento obrigatório dos doentes com COVID-19, dos infetados com SARS-Cov2, e dos cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tivessem determinado a vigilância ativa, uma vez que essa medida se aplicava indiscriminadamente a todas as pessoas que desembarcassem nos aeroportos da Região Autónoma dos Açores;
60) no entanto, o facto de o artigo 4.º, alínea a), do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, apenas prever o cumprimento do confinamento no domicílio ou em estabelecimento de saúde, não fazendo referência à possibilidade de essa medida ser cumprida noutro tipo de local como uma unidade hoteleira, não parece, só por si, ser impeditivo de se considerar aquela medida abrangida pela previsão excecional da declaração do estado de emergência, tendo em conta um conceito lato de domicílio, para além de que os Decretos, que renovaram a declaração do estado de emergência (n.º 17-A/2020, de 2 de abril, e 20-A/2020, de 17 de abril), terem vindo aditar ao domicílio e ao estabelecimento de saúde, outros locais definidos pelas autoridades competentes;
61) o problema residiria, então, na circunstância de as pessoas que aterrassem nos aeroportos dos Açores terem obrigatoriamente que cumprir os 14 dias de confinamento em hotéis especialmente utilizados para esse efeito, sem que tivessem a liberdade de escolher o local e as condições do cumprimento do dever de confinamento;
62) para quem entenda que essa falta de autonomia, por parte dos passageiros envolvidos, se traduz numa medida de privação de liberdade, como considera a sentença recorrida, estaremos perante uma restrição ao direito à liberdade, o que violaria o princípio da proporcionalidade. Para quem entenda que estamos perante uma restrição à liberdade de circulação, provavelmente a conclusão não será a mesma;
63) seja como for, o facto de, após 2 de Maio de 2020, ter cessado o estado de emergência em todo o território nacional, aconselha a que se entenda, que o disposto na Resolução 77/2020, em matéria de confinamento, também deveria ter cessado a sua vigência, não devendo a medida de confinamento obrigatório ser aplicada a mais nenhum passageiro, entretanto chegado ao território da Região Autónoma dos Açores. Valendo tais considerações, igualmente, para a Resolução 123/2020;
64) quando à eventual inconstitucionalidade material da Resolução 123/2020 (cfr. supra n.º 44 das presentes alegações), a sentença recorrida considera que o confinamento obrigatório foi decretado sem ter por base uma comprovada ou suspeita de infeção, apenas porque se desembarcou na ilha de São Miguel, não satisfazendo, por isso, o requisito da proporcionalidade na vertente da proibição do excesso prevista no n.º 2 do artigo 18º, da Constituição;
65) não crê, porém, que se possa referir, sem mais, que o confinamento foi decretado sem ter por base uma comprovada infeção ou suspeita dela. Nenhuma autoridade administrativa, muito menos de saúde, pensará em recorrer a tal medida, havendo outras menos gravosas a utilizar;
66) dado o facto de o período de incubação do vírus poder ir até aos 14 dias (às vezes até mais), é muito difícil confirmar, relativamente a pessoas assintomáticas, se estão ou não infetadas, para se poder, em consciência, determinar, sem perigo, o seu desconfinamento. No caso de as pessoas provirem de fora da Região Autónoma dos Açores, ainda mais difícil se torna determinar o real risco que comportam, que implica sempre uma cuidadosa avaliação;
67) está-se, aqui, perante um potencial conflito de direitos, designadamente os direitos das eventuais pessoas confinadas e os direitos à vida e à saúde dos habitantes da Região;
68) assim, a resposta a uma tal pergunta, sobre a proporcionalidade de uma tal medida, não é simples e, muito menos, isenta de riscos. Tudo depende das circunstâncias em concreto na Região Autónoma em cada momento (estado da pandemia, se se encontra em fase de crescimento ou regressão), da origem e das condições de saúde dos viajantes que chegam ao arquipélago, bem como das condições existentes para acolhê-los, no caso de pessoas residentes ou com familiares residentes no território, nas respetivas casas;
69) O domicílio, próprio ou de familiares, poderá, assim, ser uma solução possível, mas também poderá não ser, no caso de tal domicílio integrar pessoas particularmente vulneráveis a contrair o vírus, por serem pessoas de risco;
70) aliás, a autoridade regional de saúde não deixou de informar o tribunal recorrido de o isolamento profilático da Região Autónoma dos Açores ter sido a medida sanitárias mais adequada não só para controlar, como também para fazer regredir a pandemia na referida Região Autónoma (cfr. supra n.º 12 das presentes alegações);
71) e informou, do mesmo modo, o referido tribunal, que a medida de quarentena profilática na ilha de residência dos interessados, junto das respetivas famílias, primeira medida adotada pelo Governo Regional, acabou por se não revelar eficaz, tendo aumentado, por essa via, os casos de contágio e novas redes difusoras (cfr. supra n.º 13 das presentes alegações);
72) houve, por isso, necessidade de adotar a medida de confinamento profilático obrigatório em unidade hoteleira, sobretudo tendo em conta que a Região Autónoma dos Açores é a região do país onde se regista maior índice de sobrelotação na habitação;
73) para além de que, permanecendo a pessoa em confinamento em casa, mantêm-se as restrições à sua liberdade, ou à sua circulação, relativamente a um eventual confinamento em unidade hoteleira, variando, embora, o grau de penosidade do mesmo confinamento e os seus eventuais custos;
74) seja como for, a evolução favorável da pandemia, pelo menos para já, permitiu ao Governo Regional dos Açores flexibilizar a adoção da medida de confinamento obrigatória em unidade hoteleira, garantindo a sua utilização apenas para os casos em que funcione como último recurso para o controlo da pandemia, caso não haja outras medidas menos penosas para a substituir;
75) assim, por todas as razões invocadas ao longo das presentes alegações, julga-se que este Tribunal Constitucional deverá:
a) negar provimento ao recurso obrigatório de constitucionalidade interposto pelo Ministério Público, nos presentes autos;
b) confirmar, nessa medida, embora eventualmente com diferentes fundamentos, a sentença recorrida, de 16 de maio de 2020, da digna magistrada judicial do Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada;
c) considerar organicamente inconstitucionais os artigos 9.º, 10.º, 11.º e 12.º do Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019/A, de 22 de novembro, e os pontos 3, alínea e), e 11, da Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, também na parte em que remete para a Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020, nos termos das quais se impõe o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores, por violação do artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
[…]” (ênfase no original).
1.2.4. O Recorrido não apresentou resposta.
1.2.5. Após a apresentação das alegações, o relator proferiu despacho no sentido da audição do Recorrente “[…] quanto à possibilidade de não conhecimento parcial do objeto do recurso, relativamente às normas contidas nos artigos 9.º, 10.º 11.º e 12.º do Regime Jurídico do Sistema de Proteção Civil da Região Autónoma dos Açores, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019/A, e nos pontos 5 e 6 da Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020 (com a consequente restrição do objeto do recurso às normas contidas nos pontos 1 a 4 e 7 da Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020 e nos pontos 3, alínea e), e 11 da Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020), por, eventualmente, não terem sido elas, em substância, objeto do juízo de censura jurídico-constitucional que determinou a recusa de aplicação de normas na decisão recorrida”.
O Recorrente respondeu nada ter a opor à redução do objeto do recurso.
Cumpre, após o relato do percurso do processo, apreciar e decidir o recurso de constitucionalidade.
II – Fundamentação
2. A decisão recorrida recusou a aplicação das normas contidas nos artigos 9.º, 10.º 11.º e 12.º do Regime Jurídico do Sistema de Proteção Civil da Região Autónoma dos Açores, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019/A, e nos pontos 3, alínea e), e 11 da Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, também na parte em que remete para a Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020, nos termos das quais se impõe o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores, por inconstitucionalidade.
Tem-se presente que a Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020 (que implementou as medidas restritivas, que a Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020 apenas manteve, com pequena alteração) foi, entretanto, revogada pela Resolução do Conselho do Governo n.º 141/2020, o que, todavia, não preclude a utilidade do recurso - basta-se esta com a suscetibilidade de discussão, em eventuais processos futuros, de efeitos da inconstitucionalidade e da consequente verificação de uma privação da liberdade não consentida por lei (cfr., designadamente, o Acórdão n.º 418/2003).
Impõe-se, antes de mais, proceder a um breve enquadramento das referidas normas, para melhor delimitar o objeto do recurso.
2.1. A Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, alterada, sucessivamente, pela Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro, e pela Lei n.º 80/2015, de 3 de agosto (doravante, LBPC) define proteção civil como a atividade desenvolvida pelo Estado, regiões autónomas e autarquias locais, pelos cidadãos e por todas as entidades públicas e privadas com a finalidade de prevenir riscos coletivos inerentes a situações de acidente grave ou catástrofe, de atenuar os seus efeitos e proteger e socorrer as pessoas e bens em perigo quando aquelas situações ocorram (artigo 1.º, n.º 1) e estabelece que a atividade de proteção civil tem caráter permanente, multidisciplinar e plurissectorial, cabendo a todos os órgãos e departamentos da Administração Pública promover as condições indispensáveis à sua execução, de forma descentralizada, sem prejuízo do apoio mútuo entre organismos e entidades do mesmo nível ou proveniente de níveis superiores (artigo 1.º, n.º 2).
Sendo a proteção civil desenvolvida em todo o território nacional (artigo 2.º, n.º 1, da LBPC), nas regiões autónomas as políticas e ações de proteção civil são da responsabilidade dos Governos Regionais (artigo 2.º, n.º 2, da LBPC).
A própria LBPC prevê a competência de órgãos regionais para certos atos (cfr., designadamente, o artigo 13.º, n.º 2, para a declaração de alerta, que cabe à entidade regional responsável pela área da proteção civil, o artigo 50.º, n.º 4, para a aprovação dos planos de emergência de âmbito regional, que cabe aos órgãos de governo próprios das regiões, o artigo 50.º, n.º 6, para a aprovação dos planos de emergência de âmbito municipal, que cabe ao membro do Governo Regional que tutela o sector da proteção civil, o artigo 50.º, n.º 8, para a elaboração dos planos regionais, que cabe aos organismos regionais competentes em matéria de proteção civil, e o artigo 56.º, n.º 3, para a autorização de atuação das forças armadas em caso de urgência, que compete aos comandantes operacionais conjuntos) e, para além de normas pontuais como as descritas, o artigo 60.º da LBPC estabelece o seguinte:
Artigo 60.º
Regiões autónomas
1 – Nas regiões autónomas os serviços de proteção civil dependem dos respetivos órgãos de governo próprio, sem prejuízo da necessária articulação com as competentes entidades nacionais.
2 – Nas regiões autónomas os componentes do sistema de proteção civil, a responsabilidade sobre a respetiva política e a estruturação dos serviços de proteção civil constantes desta lei e das competências dele decorrentes são definidos por diploma das respetivas Assembleias Legislativas.
Para os efeitos previstos no artigo 60.º, n.º 2, da LBPC, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores (doravante, ALRAA) aprovou, pelo Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019/A (e ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição e do n.º 1 do artigo 37.º e do n.º 1 e da alínea b) do n.º 2 do artigo 66.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores) o Regime Jurídico do Sistema de Proteção Civil da Região Autónoma dos Açores (doravante, RJSPCRAA).
O RJSPCRAA estabelece as normas estruturantes do Sistema de Proteção Civil da Região Autónoma dos Açores, no que se refere aos componentes do sistema de proteção civil, à responsabilidade sobre a respetiva política e à estruturação dos serviços de proteção civil (artigo 1.º, n.º 1).
Na Secção III (com a epígrafe “Contingência”) e na Secção IV (com a epígrafe “Calamidade pública regional”) do Capítulo II (com a epígrafe “Alerta, contingência e calamidade pública regional”) encontram-se quatro artigos que contêm um primeiro conjunto de normas cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida (artigos 9.º, 10.º, 11.º e 12.º), com a seguinte redação:
SECÇÃO III
Contingência
Artigo 9.º
Competência para declaração de contingência
A declaração da situação de contingência cabe ao membro do Governo Regional com competência em matéria de proteção civil, sob proposta do presidente do Serviço Regional de Proteção Civil e Bombeiros dos Açores, precedida da audição, sempre que possível, dos presidentes das câmaras municipais dos municípios abrangidos, sem prejuízo do disposto no artigo 38.º
Artigo 10.º
Ato e âmbito material de declaração de contingência
1 – O ato que declara a situação de contingência reveste a forma de despacho e menciona expressamente:
a) A natureza do acontecimento que originou a situação declarada;
b) O âmbito temporal e territorial;
c) O estabelecimento de diretivas específicas relativas à atividade operacional dos agentes de proteção civil e das entidades e instituições envolvidas nas operações de proteção e socorro;
d) Os procedimentos de inventariação dos danos e prejuízos provocados;
e) Os critérios de concessão de apoios materiais;
f) Os limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas, outros seres vivos ou veículos, por razões de segurança dos próprios ou das operações.
2 – A declaração da situação de contingência determina o acionamento das estruturas de coordenação política e institucional territorialmente competentes.
3 – A declaração da situação de contingência implica a ativação automática dos planos de emergência de proteção civil do respetivo nível territorial.
SECÇÃO IV
Calamidade pública regional
Artigo 11.º
Competência para a declaração de calamidade pública regional
A declaração da situação de calamidade pública regional é da competência do Governo Regional e reveste a forma de resolução do Conselho do Governo Regional.
Artigo 12.º
Ato e âmbito material de declaração de calamidade pública regional
1 – A resolução do Conselho do Governo Regional que declara a situação de calamidade pública regional menciona expressamente:
a) A natureza do acontecimento que originou a situação declarada;
b) O âmbito temporal e territorial;
c) O estabelecimento de diretivas específicas relativas à atividade operacional dos agentes de proteção civil e das entidades e instituições envolvidas nas operações de proteção e socorro;
d) Os procedimentos de inventariação dos danos e prejuízos provocados;
e) Os critérios de concessão de apoios materiais e financeiros, nos termos legalmente definidos.
2 – A declaração da situação de calamidade pública regional pode ainda estabelecer:
a) A mobilização civil de pessoas, por períodos de tempo determinados;
b) A fixação, por razões de segurança dos próprios ou das operações, de limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas, outros seres vivos ou veículos;
c) A fixação de cercas sanitárias e de segurança;
d) A racionalização da utilização dos serviços públicos de transportes, comunicações e abastecimento de água e energia, bem como do consumo de bens de primeira necessidade;
e) A estrutura de coordenação e controlo que, face aos prejuízos inventariados, fará a gestão global dos apoios a que houver lugar, de acordo com os critérios legalmente definidos.
3 – A declaração da situação de calamidade pública regional determina o acionamento das estruturas de coordenação política e institucional territorialmente competentes.
4 – A declaração de calamidade pública regional implica a ativação automática dos planos de emergência de proteção civil do respetivo nível territorial.
Sendo este o quadro normativo genérico relevante em vigor antes do aparecimento do vírus SARS-CoV-2 e da correspondente doença Covid-19, que levou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a declarar a situação de Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional em 30/01/2020 e a qualificar a doença como pandemia em 11/03/2020, importa atentar – construindo uma espécie de fita do tempo – nas normas aprovadas para dar resposta a tal problema de saúde pública antes e até aos diplomas em causa na decisão recorrida.
2.1.1. Pelo Despacho n.º 2836-A/2020, de 2 de março, da Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, da Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e da Ministra da Saúde, foi determinado que os empregadores públicos elaborassem um plano de contingência alinhado com as orientações emanadas pela Direção-Geral da Saúde (DGS), no âmbito da prevenção e controlo de infeção por SARS-CoV-2. No Despacho n.º 2875-A/2020, de 3 de março, da Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e da Ministra da Saúde, adotaram-se medidas para acautelar a proteção social dos beneficiários que se encontrassem impedidos, temporariamente, do exercício da sua atividade profissional por ordem da autoridade de saúde, devido a perigo de contágio.
Na RAA, pelo Despacho n.º 331/2020, de 5 de março, do Vice-Presidente do Governo Regional, da Secretária Regional da Solidariedade Social, e da Secretária Regional da Saúde, determinou-se que os empregadores públicos que, à data, ainda não tivessem elaborado um plano de contingência, deveriam fazê-lo no prazo de cinco dias úteis, em linha com as orientações emanadas pela Direção Regional da Saúde (DRS).
Entretanto, foi determinada a suspensão de alguns voos provenientes de Itália (Despacho n.º 3186-C/2020 e Despacho n.º 3186-D/2020, publicados em 10 de março).
Pelo Despacho n.º 3298-B/2020, de 13 de março, do Ministro da Administração Interna e da Ministra da Saúde, foi declarada a situação de alerta em todo o território nacional até 9 de abril de 2020. Na mesma data, através do Despacho n.º 385/2020, da Secretária Regional da Saúde, foi declarada a situação de alerta em todo o território da Região Autónoma do Açores, até ao dia 31/03/2020, inclusive.
Na mesma data, para além da ser determinada a interdição do desembarque e licenças para terra de passageiros e tripulações dos navios de cruzeiro nos portos nacionais (Despacho n.º 3298-C/2020), foi aprovado em Conselho de Ministros um conjunto de medidas relativas à situação epidemiológica (Resolução do Conselho de Ministros n.º 10-A/2020) e publicado o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, que estabelece medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus. Na sequência dos diplomas publicados em 13/03/2020, foram adotadas diversas medidas destinadas a conter a transmissão do vírus SARS-CoV-2.
Na Região Autónoma dos Açores, foi publicada a Resolução do Conselho do Governo n.º 63/2020 de 17 de março, pela qual foi declarada a situação de contingência em todo o território da RAA, até ao dia 31 de março, “[…] não sendo de excluir a prorrogação deste prazo ou a passagem à fase seguinte prevista no Regime Jurídico do Sistema de Proteção Civil da Região Autónoma dos Açores”. Nesse mesmo diploma, decidiu-se “[…] integrar nesta declaração de estado de contingência todas as medidas preventivas e recomendações já decretadas a este propósito pela autoridade regional de saúde, bem como todas aquelas que, sobre este assunto, venham a ser emitidas pela mesma entidade” e, do mesmo modo “integrar nesta declaração de estado de contingência todas as medidas já decretadas pelo Governo Regional ao abrigo da anterior declaração do estado de alerta, e solicitar ao Governo da República o reforço efetivo da fiscalização, nos aeroportos nacionais de origem, dos passageiros que embarcam, desde logo, para os aeroportos da Região Autónoma dos Açores, em especial, quanto ao cumprimento, por estes, das orientações das autoridades de saúde pública dos seus locais de origem”.
Em 18/03/2020, foi declarado o estado de emergência (que perdurou, como adiante veremos, entre 19 de março e 2 de maio), com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública (Resolução da Assembleia da República n.º 15-A/2020, de 18 de março, e Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março).
No dia subsequente, foi publicada a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, contendo medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica e o Conselho de Ministros regulamentou a aplicação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República (diploma publicado no dia seguinte – Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março).
Na mesma data, na RAA, foi publicada a Resolução do Conselho do Governo n.º 65/2020 de 19 de março, com o seguinte teor:
Na sequência da monitorização permanente feita à evolução da pandemia COVID-19, nos termos das alíneas a), b), d) e e) do n.º 1 do artigo 90.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e do artigo 9.º do Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019, de 22 de novembro, ouvida a Associação de Municípios dos Açores, o Conselho do Governo resolve o seguinte:
1 – Determinar que todos os passageiros de voos do exterior que aterrem na Região estão, a partir do início da tarde de hoje, obrigados a cumprir um período obrigatório de quarentena de 14 dias, determinado pela Autoridade de Saúde Regional.
2 – Determinar que todos os passageiros de voos do exterior que aterrem na Região são obrigados a assinar uma declaração que os informa que o não cumprimento desse período obrigatório de quarentena constitui crime de desobediência e, como tal, será apresentada queixa junto das autoridades judiciais.
3 – Determinar que todos os passageiros de voos do exterior que aterrem na Região estão sujeitos ao preenchimento de inquéritos de despiste de possíveis casos suspeitos de infeção pelo novo coronavírus COVID-19, uma medida de prevenção que está a ser coordenada, em cada um dos aeroportos, pelos delegados de saúde das respetivas ilhas.
4 – Sempre que, na sequência da informação prestada nos questionários, que são preenchidos antes do desembarque, existe a validação de um caso suspeito, esse passageiro fica imediatamente isolado para despiste, através de análises laboratoriais.
5 – Havendo a recusa de preenchimento do questionário de despiste, o passageiro fica, automaticamente, impedido de desembarcar pelo delegado de saúde.
6 – As tripulações destes voos, em caso de desembarque, estão igualmente sujeitas ao cumprimento de todas estas medidas.
7 – Determinou que os voos da ..., provenientes do exterior da Região, fiquem concentrados nos aeroportos de Ponta Delgada, ilha de São Miguel, e das Lajes, ilha Terceira, tendo em vista otimizar a capacidade de resposta das autoridades de saúde regionais face à situação da pandemia do COVID-19.
8 – Excetua-se do número anterior a capacidade de transporte de carga ou outras necessidades de força maior, desde que devidamente autorizadas pela Autoridade de Saúde Regional.
9 – A presente resolução produz efeitos à data de aprovação.
[sublinhados acrescentados]
A mera leitura da Resolução do Conselho do Governo n.º 65/2020 de 19 de março evidencia que ali não se previa nenhuma medida de confinamento obrigatório. Esta medida só veio a estabelecer-se na semana subsequente, na Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020 de 27 de março (cujas normas foram diretamente objeto de juízo de inconstitucionalidade na decisão recorrida), na qual se previu o seguinte:
Considerando que o Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, declarou o estado de emergência em todo o território nacional, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, motivada pela evolução da doença COVID-19, que a Organização Mundial de Saúde qualificou, no dia 11 de março de 2020, como uma pandemia internacional;
Considerando que o Decreto n.º 2-A/2020, de 21 de março, procede à execução da declaração do estado emergência, nele se prevendo as situações sujeitas a confinamento obrigatório indispensáveis para a proteção da saúde pública, no contexto da situação de emergência causada pela epidemia SARSCoV-2, e para o tratamento da doença COVID-19;
Considerando que a Resolução do Conselho do Governo n.º 63/2020, de 17 de março, declarou a situação de contingência em todo o território da Região Autónoma dos Açores;
Considerando a Resolução do Conselho do Governo n.º 65/2020, de 19 de março, que determinou que todos os passageiros de voos do exterior que aterram na Região estão obrigados a cumprir um período obrigatório de quarentena de 14 dias;
Considerando que o território continental português entrou em fase de mitigação da pandemia COVID-19, porquanto já se verifica a transmissão comunitária do vírus;
Considerando que segundo o European Center for Disease Prevention and Control – ECDC o isolamento profilático refere-se “à separação e restrição da circulação de pessoas que foram potencialmente expostas ao COVID-19, mas que atualmente são saudáveis e não apresentam sintomas” e que “para pessoas com sintomas leves de COVID-19, pode não ser necessário hospitalização. Em vez disso, os prestadores de cuidados de saúde podem recomendar isolamento, para limitar a propagação adicional do vírus”;
Considerando que, de acordo com a Orientação da Direção Geral da Saúde (DGS) n.º 10, de 16 de março de 2020, “o isolamento profilático e o isolamento, são medidas de afastamento social essenciais em Saúde Pública, especialmente utilizadas em resposta a uma epidemia e pretendem proteger a população pela quebra da cadeia de transmissão entre indivíduos”;
Considerando que o Governo dos Açores e a autoridade de saúde regional têm vindo a adotar medidas e procedimentos destinados a prevenir a propagação da infeção pelo novo Coronavírus na Região Autónoma dos Açores, que, em conjunto com colaboração dos cidadãos e das instituições públicas e privadas, têm limitado a propagação do vírus;
Considerando que importa intensificar a ação preventiva, através de medidas adequadas e proporcionais, para a minimizar os riscos coletivos que estão inerentes à propagação da doença COVID-19 e proteger a saúde pública da população residente ou em visitação nos Açores.
Considerando, por último, que na decorrência das recomendações da autoridade de saúde regional, verifica-se a necessidade urgente de confinamento de todos os passageiros e bagagens que desembarquem nas ilhas de São Miguel e Terceira, bem como o eventual isolamento dos profissionais da área da saúde e proteção civil.
Assim, após articulação prévia com o Representante da República para os Açores;
Nos termos das alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 90.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, em conjugação com a alínea b) do n.º 1 do artigo 32.º do Decreto n.º 2-A/2020, de 21 de março, com o n.º 1 do artigo .º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, com o n.º 1 e alínea e) do n.º 2 do artigo 14.º e artigo 15.º todos do Regime Jurídico dos Contratos Públicos na Região Autónoma dos Açores, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 27/2015/A, de 29 de dezembro, alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º, n.º 1 do artigo 36.º, artigo 38.º, todos do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, e, ainda, alínea e) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 29.º do Decreto Legislativo Regional n.º 1/2020/A, de 8 de janeiro, e alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do Decreto Regulamentar Regional n.º 5/2020/A, de 14 de fevereiro, o Conselho do Governo resolve:
1 – Determinar que os passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores cumpram, a partir de hoje, confinamento obrigatório, por catorze dias, em unidade hoteleira, de modo a reforçar as medidas de contenção da pandemia de COVID-19.
2 – O confinamento obrigatório dos passageiros e das respetivas bagagens, é realizado em unidades hoteleiras determinadas para este efeito, nas ilhas de desembarque de São Miguel ou Terceira, independentemente da residência dos indivíduos, exceto nos casos de força maior, devidamente autorizados pela autoridade de saúde regional.
3 – As unidades hoteleiras devem garantir as condições pré-determinadas de confinamento, designadamente, as relativas às condições de higiene e salubridade e à prestação de refeições diárias, de acordo com recomendações da autoridade de saúde regional.
4 – Os termos em que decorre a avaliação das condições de saúde dos passageiros sujeitos a confinamento são definidos por despacho da Secretária Regional da Saúde, após recomendação da autoridade de saúde regional, cabendo a esta a respetiva execução.
5 – Delegar na Secretária Regional da Energia, Ambiente e Turismo as competências necessárias para, mediante procedimento de ajuste direto, praticar todos atos atinentes aos procedimentos que, nos termos da lei, sejam acometidos à entidade adjudicante com vista à celebração de contratos de aquisição de serviços de alojamento e alimentação, necessários à execução do disposto nos números anteriores, bem como, às condições necessárias ao isolamento dos profissionais de saúde, da proteção civil, ou outros, que, no exercício das suas funções, venham a ser, eventualmente, contaminados pelo COVID-19.
6 – A despesa decorrente do disposto no número anterior é assegurada através do Programa 4. do Plano Regional Anual para 2020.
7 – A presente resolução produz efeitos à data da sua aprovação.
[sublinhados acrescentados]
Ainda com interesse para o caso dos autos (desde logo por ter sido igualmente objeto de um juízo de inconstitucionalidade na decisão recorrida), foi publicada a Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020 de 4 de maio, da qual consta, designadamente, o seguinte:
Considerando a conclusão da discussão pública do «Roteiro da Região Autónoma dos Açores “Critérios Para Uma Saída Segura da Pandemia COVID-19”» que pretende constituir-se como documento orientador de toda a sociedade açoriana quanto à forma e às regras que os Açores se comprometem a seguir no processo de saída da situação da Pandemia do COVID-19;
No seguimento da monitorização permanente feita à situação de pandemia e considerando o final do prazo estabelecido para a situação de contingência na Região e para as cercas sanitárias na Ilha de São Miguel, o Governo dos Açores solicitou à autoridade de saúde regional que se pronunciasse sobre a eficácia das medidas, entretanto, implementadas bem como das medidas a implementar no futuro num contexto de realidades de contaminação diferenciadas nas nove ilhas dos Açores;
Assim, tendo em conta a pronúncia da autoridade de saúde regional e a ponderação da eficácia das medidas entretanto implementadas;
Nos termos das alíneas a), b), d) e e) do n.º 1 do artigo 90.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e dos artigos 9.º, 10.º 11.º e 12.º do Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019, de 22 de novembro, ouvidos os municípios da Região Autónoma dos Açores e a Delegação Regional dos Açores da Associação Nacional de Freguesias, o Conselho do Governo resolve:
1 – Aprovar o «Roteiro da Região Autónoma dos Açores “Critérios Para Uma Saída Segura da Pandemia COVID-19”».
2 – Determinar, ao nível de prontidão e resposta, no âmbito do Regime Jurídico do Sistema de Proteção Civil da Região Autónoma dos Açores:
a) A declaração, para a Ilha de São Miguel, da situação de calamidade pública, das 00:00 de dia 2 de maio até às 00:00 de dia 4 de maio, por forma a permitir a fixação de cercas sanitárias em todos e cada um dos seus concelhos;
b) A prorrogação das cercas sanitárias em todos os concelhos da Ilha de S. Miguel, até às 00:00 horas do dia 4 de maio;
c) A declaração, para os Concelhos de Ponta Delgada, Lagoa, Ribeira Grande e Vila Franca do Campo, da Ilha de São Miguel, da situação de contingência, de dia 4 de maio até às 24:00 horas do dia 31 de maio;
d) A manutenção, nas Ilhas Terceira, Graciosa, São Jorge, Pico e Faial, da situação de contingência, até às 24:00 horas do dia 31 de maio;
e) A passagem, nas Ilhas de Santa Maria, Flores e Corvo, da situação de contingência para a situação de alerta, das 00:00 horas do dia 4 de maio e até às 24:00 de dia 31 de maio.
3 – Determinar, para todo o Arquipélago do Açores:
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e) Que o confinamento obrigatório de não residentes, em unidades hoteleiras da Região, nos termos da Resolução n.º 77/2020, de 27 de março, passa a ser, a partir das 00:00 horas do dia 8 de maio, integralmente custeado pelos próprios;
--------------------------------------------------------------------------------------------
11 – Determinar, para a Ilha de São Miguel, a manutenção de todas as restantes medidas em vigor, até às 23:59 horas de dia 31 de maio.
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15 – Integrar nas declarações de situação de calamidade pública, de contingência e de alerta todas as medidas que, sobre este assunto, venham a ser emitidas pela Autoridade de Saúde Regional.
16 – As medidas previstas na presente Resolução podem ser revertidas ou anuladas, a qualquer momento, tendo em conta a evolução da situação da pandemia do COVID-19 na Região.
17 – A presente resolução produz efeitos à data da sua aprovação.
[sublinhados acrescentados]
2.1.2. As normas cuja aplicação foi recusada na decisão recorrida podem dividir-se em dois grupos: (1) de um lado, as normas contidas nos artigos 9.º, 10.º 11.º e 12.º do RJSPCRAA; (2) do outro, as normas contidas na Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020 de 27 de março e nos pontos 3, alínea e), e 11 da Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020.
As normas do primeiro grupo contêm regras (formais, de competência e materiais) relacionadas com a declaração de contingência e a declaração de calamidade pública regional, no âmbito do sistema regional de proteção civil. As normas do segundo grupo, pressupondo genericamente, uma atuação das autoridades regionais no quadro das normas do primeiro, estabelecem medidas administrativas de resposta ao problema de saúde pública decorrente da epidemia de Covid-19 especificamente relacionadas com o confinamento obrigatório em unidade hoteleira, pelo período de 14 dias (por esse motivo, algumas – não todas, como se verá – normas desse segundo grupo referem as do primeiro grupo como base legal).
Há que verificar se todas elas têm viabilidade enquanto objeto do recurso. Sendo inequívoco que a decisão recorrida declarou formalmente desaplicar todas elas, essa expressa menção não impede a redução do objeto do recurso se, analisados os seus fundamentos, for de concluir que o juízo de inconstitucionalidade não pôs em causa o conteúdo normativo de todas, com fundamento em inconstitucionalidade.
Relativamente às normas do primeiro grupo, importa notar, antes de mais, que não foram formalmente invocadas pelo legislador como base legal para todas as normas do segundo grupo. Em particular: a Resolução do Conselho do Governo n.º 65/2020 de 19 de março (que não integra, sequer formalmente, o objeto do recurso, tendo estabelecido a medida de quarentena obrigatória, todavia sem obrigação de permanecer em unidade hoteleira designada pelas autoridades regionais) indica como base legal o artigo 9.º do RJSPCRAA; a Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020 de 27 de março, que instituiu o confinamento obrigatório em unidade hoteleira pelo período de 14 dias, não indica como base legal qualquer norma do RJSPCRAA; e a Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020 de 4 de maio, que se limitou a manter, com uma pequena modificação, aquele confinamento obrigatório, indica como base legal, entre outros, os artigos 9.º, 10.º 11.º e 12.º do RJSPCRAA, por referência a um conjunto de medidas bastante mais alargado do que a mera manutenção do confinamento obrigatório.
Percorridos os fundamentos da decisão recorrida, resulta claro que o juízo de inconstitucionalidade, que foi determinante para o sentido de decisão, não teve por objeto diretamente as regras (formais, de competência e materiais) relacionadas com a declaração de contingência e a declaração de calamidade pública regional, no âmbito do sistema regional de proteção civil. O Tribunal de Instrução Criminal não censurou diretamente e em geral, no plano jurídico-constitucional, os poderes das autoridades regionais no âmbito da declaração de contingência e da declaração de calamidade pública regional. O juízo de censura foi dirigido – e foi dirigido apenas – às normas das quais resultou (na qualificação da decisão recorrida) uma restrição do direito à liberdade do requerente, sendo certo que a própria decisão recorrida refere que a Autoridade de Saíde atuou “dentro da órbita daquelas resoluções”. Pois bem, tais normas (potencialmente) restritivas só podem encontrar-se no segundo grupo atrás enunciado.
Assim, há que concluir que, materialmente, considerados os seus fundamentos, a decisão recorrida apenas recusou a aplicação, por inconstitucionalidade, de normas contidas na Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020 de 27 de março e na Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020 de 4 de maio.
É certo que, na decisão recorrida, são feitas sucessivas referências aos artigos 9.º a 12.º do RJSPCRAA, essencialmente para concluir que estes não constituem, nem poderiam constituir, base legal suficiente para a restrição da liberdade do requerente. Esta apreciação não implica, todavia, que as normas respetivas tenham sido o objeto do juízo de inconstitucionalidade; pelo contrário, evidencia que estão fora desse juízo, atuando nos fundamentos da decisão como normas diversas das recusadas, apresentadas ao lado destas, para com elas serem confrontadas e comparadas.
De um modo revelador, o tribunal recorrido afirma recusar a aplicação das normas “[…] nos termos das quais se impõe o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores” – obrigação que decorre das indicadas resoluções e não do RJSPCRAA.
Consequentemente, o presente recurso não pode ter por objeto as normas dos artigos 9.º a 12.º do RJSPCRAA, visto que não se verifica, substancialmente, quanto a elas, a previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – não foi recusada a sua aplicação por inconstitucionalidade.
Pelas mesmas razões, mutatis mutandis, o objeto do recurso não abrange as normas contidas nos pontos 5 e 6 da Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020 de 27 de março. Sendo respeitantes à contratação pública e à despesa, apesar de verem a sua aplicabilidade necessariamente prejudicada pelo afastamento das normas contidas nos pontos precedentes, elas não foram, rigorosamente, atingidas pelo juízo de censura jurídico-constitucional afirmado na decisão recorrida.
Resulta do exposto que constituem objeto do recurso as normas contidas nos pontos 1 a 4 e 7 da Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020 e nos pontos 3, alínea e), e 11 da Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, nos termos das quais se impõe o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores.
2.2. Na decisão recorrida, considerou-se que as normas objeto do recurso violam o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, porquanto, e em síntese, o Governo Regional “[…] não tem competência para restringir direitos, liberdades e garantias, mesmo tendo em conta o tempo de pandemia que vivemos […]” e “[…] com a cessação do estado de emergência, ao abrigo do qual surgiu, e encontrou respaldo, a Resolução n.º 77/2020, cessaram as restrições que foram impostas a direitos constitucionais, como o direito à liberdade, os quais readquiriram a sua plenitude”.
São inequívocos os dados de facto relevantes para tal afirmação: o requerente da providência de habeas corpus foi sujeito a confinamento obrigatório em 10/05/2020, altura em que já não vigorava a declaração do estado de emergência (declarado inicialmente pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, entre 19/03/2020 e 02/04/2020, renovado pelo Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril, entre 03/04/2020 e 17/04/2020, e novamente renovado pelo Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, de 17 de abril, entre 18/04/2020 e 02/05/2020, após o que vigorou a situação de calamidade declarada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020).
Assim, não concorrem para o enquadramento jurídico-constitucional do caso dos autos as normas relativas ao estado de emergência. Por outro lado, a “situação de calamidade” não tem relevância constitucional para efeitos de suspensão de direitos, liberdades e garantias, relevando para esse efeito apenas a “calamidade” que funda a declaração do estado de emergência (artigo 19.º, n.º 2, da Constituição) – “[o] estado de emergência constitucional é declarado com o objetivo de promover o regresso à normalidade.a situação de calamidade administrativa visa o mesmo objetivo, mas, em vez de atuar por via da suspensão dos direitos fundamentais, persegue-o no âmbito de um quadro legislativo que envolve restrições específicas e predefinidas desses mesmos direitos” (Miguel Nogueira de Brito, Modelos de emergência no direito constitucional, revista e-Pública, vol. 7, n.º 1, abril de 2020, disponível em www.e-publica.pt, p. 8; sobre alguns problemas normativos em estado de emergência, v., ainda, Pedro Lomba, Constituição, estado de emergência e administração sanitária: alguns problemas, revista e-Pública, cit., pp. 28/43, e Catarina Santos Botelho, “Estados de exceção constitucional: estado de sítio e estado de emergência”, in Carla Amado Gomes e Ricardo Pedro (eds.), Direito Administrativo de Necessidade e de Excepção, AAFDL, Lisboa, 2020, pp. 9/57, disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3619217).
Perante este quadro, vejamos se a inconstitucionalidade orgânica afirmada na decisão recorrida deve ter-se por verificada.
2.2.1. A alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição prevê o seguinte:
Artigo 165.º
(Reserva relativa de competência legislativa)
1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
b) Direitos, liberdades e garantias;
----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Esta previsão “[…] inclui seguramente a regulamentação de todos os direitos enunciados no Título II da Parte I da Constituição [contêm-se neste título os artigos 24.º a 57.º] […]. A reserva de competência legislativa da AR nesta matéria vale não apenas para as restrições (art. 18.º), mas também para toda a intervenção legislativa no âmbito dos direitos, liberdades e garantias” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra, 2014, p. 327; no mesmo sentido, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. II, 2.ª ed., Lisboa, 2018, p. 544).
Trata-se de um entendimento pacificamente consolidado na jurisprudência constitucional, entendendo-se que (tomando de empréstimo as palavras do Acórdão n.º 362/2011):
“[…]
[T]odo o regime dos direitos, liberdades e garantias está englobado na reserva relativa de competência da Assembleia da República (art. 165.º, n.º 1, al. b), da CRP). Nestes termos, todas as normas disciplinadoras de um qualquer direito desta natureza carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República. Esta exigência ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito.
[…]”.
Impõe-se, pois, verificar se as normas que estão em causa nos presentes autos disciplinam um dos “direitos, liberdades e garantias” previstos na Constituição.
2.2.2. Estabelece o artigo 27.º da Constituição:
Artigo 27.º
Direito à liberdade e à segurança
1 – Todos têm direito à liberdade e à segurança.
2 – Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.
3 – Excetua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:
a) Detenção em flagrante delito;
b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos;
c) Prisão, detenção ou outra medida coativa sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão;
d) Prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente;
e) Sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente;
f) Detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente;
g) Detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários;
h) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.
----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
No Acórdão n.º 479/94, o Tribunal pronunciou-se sobre o sentido da norma do artigo 27.º da Constituição nos termos seguintes:
“[…]
A norma do artigo 27.º da Constituição é particularmente exigente em relação às restrições que consente ao direito fundamental nela consagrado, impondo ao legislador um grau de vinculação muito intenso.
Antes ainda da revisão constitucional de 1982, Figueiredo Dias considerava que "nenhuma ordem jurídica pode viver e manter-se sem a utilização de certas medidas que obriguem fisicamente as pessoas a apresentarem-se a certos atos ou a submeterem-se a certas formalidades", sustentando não encontrar qualquer óbice a que, "para além da prisão preventiva, seja constitucionalmente admissível a detenção, a custódia, a guarda à vista ou a vinculação de presença. Ponto é que, naturalmente, a aplicação de tais medidas seja contida dentro de um estrito princípio de necessidade e de proporcionalidade e seja revestido de efetivas garantias, nomeadamente quanto à sua judicialidade tendencialmente imediata nos casos em que a situação de restrição ou privação da liberdade deva manter-se" (cfr. "A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais", Livros Horizonte, 1981, pp. 86 e 87).
Mas, como já se observou, as revisões constitucionais não alargaram significativamente o quadro das exceções ao princípio do direito à liberdade, havendo até, a revisão de 1982, introduzindo uma alteração na regra do n.º 2 em termos de lhe emprestar, se não um acréscimo, ao menos uma acrescida precisão na garantia ali consagrada.
Neste contexto jurídico-constitucional tem sido reconhecido pela doutrina como de "duvidosa constitucionalidade" a consagração legal de uma medida de detenção para fins exclusivos de identificação, quando a identificação não puder ser de imediato provada (cfr. Maia Gonçalves, ob. cit., pp. 319 e 324 e João Castro e Sousa, Os meios de coação no novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal – O novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1992, pp. 160 e 161).
Com efeito, o procedimento de identificação a que se reporta o artigo 3.º, n.º 1, do Decreto sob exame, ao permitir que se imponha aos identificandos, com base em exclusivas razões de segurança interna, uma permanência num posto policial que pode prolongar-se até seis horas, há de considerar-se como uma privação total da liberdade não cabível no quadro das exceções que taxativa e tarifadamente a Constituição prevê.
Tem-se por inaceitável o entendimento de que a privação da liberdade assim verificada possa ser entendida como mera restrição da liberdade, implicando tão só um condicionamento da liberdade ambulatória dos identificandos autorizado no quadro das restrições consentidas pela Constituição em sede de direitos, liberdades e garantias.
E tem-se por inaceitável, porque a norma sob sindicância na sua “máxima dimensão abstrata” – permanência coativa até seis horas em posto policial para efeito de identificação por razões de segurança interna – (e só esta aqui importa considerar, sendo de todo irrelevante, dentro da delimitação do objeto do pedido, a consideração de outras hipotéticas dimensões), se traduz manifestamente numa privação da liberdade, numa privação total da liberdade, já que o identificando durante este lapso temporal fica circunscrito ao espaço confinado das instalações de um posto policial, de todo impedido de circular e de livremente se movimentar.
Independentemente da questão de se averiguar, com inteiro rigor dogmático, qual a diferença de natureza ou de grau e de intensidade entre a "privação total ou parcial da liberdade" e "as restrições à liberdade que não se traduzem na sua privação total ou parcial" [cfr. a decisão de 6 de novembro de 1980 (Caso Guzzardi contra a Itália) do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Publications de la Cour Européenne des Droits de l'Homme, Série A – Arrêts et decisions, vol. 39, Affaire Guzzardi, Conseil de L'Europe, Strasbourg, 1981, pp. 32 e 33, na qual se considera a situação da "privação da liberdade" (artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e a restrição à liberdade de circulação (artigo 2.º do Protocolo Adicional n.º 4)] poder-se-á dizer que a distinção se suporta num critério qualitativo e não quantitativo, isto é, a privação da liberdade atinge diretamente uma dimensão da dignidade da pessoa humana, enquanto a mera restrição ou limitação da liberdade apenas condiciona o pleno desenvolvimento dessa dimensão.
Segundo Maunz-Dürig, a privação da liberdade (Freiheitsentziehung) existe quando alguém contra a sua vontade é confinado, coativamente, através do poder público, a um local delimitado, de modo que a liberdade corporal-espacial de movimento lhe é subtraída. Local delimitado (eng umgrenzter Ort) pode ser o espaço de um edifício ou um acampamento. Haverá ainda privação da liberdade quando a pessoa detida puder deixar o estabelecimento prisional para trabalhar sob vigilância das autoridades prisionais.
A mera limitação de liberdade (Freiheits-beschränkung) existe quando alguém é impedido, contra a sua vontade, de aceder a um certo local que lhe seria jurídica e facticamente acessível ou de permanecer num certo espaço. A liberdade de movimentação não é, assim, em contraposição à privação da liberdade, subtraída, mas apenas limitada numa certa direcção (cfr. Grundgesetz, Kommentar, § 104, 6 e 12).
A privação da liberdade traduz-se numa perturbação do âmago do direito à liberdade física, à liberdade de alguém se movimentar e circular sem estar confinado a um determinado local, sendo a essência do direito atingida por um determinado tempo (que pode ser, aliás, de duração muito reduzida).
A limitação ou restrição da liberdade (que não implique a sua privação) concretiza-se através de uma perturbação periférica daquele direito mantendo-se, no entanto, a possibilidade de exercício das faculdades fundamentais que o integram.
[…]” (sublinhados acrescentados).
Se é certo que os âmbitos dogmáticos de privação e de restrição e, acima de tudo, a delimitação da sua fronteira in concreto não são unívocos (cfr., designadamente, as declarações de voto apostas ao Acórdão n.º 479/94), o certo é que o Tribunal tem regressado a esta jurisprudência (cfr., designadamente, os Acórdãos n.os 185/96, 83/2001, 471/2001, 204/2015, 220/2015, 228/2015 e 463/2016) e o Tribunal Constitucional Federal Alemão também não abandonou, no essencial, os traços gerais da apontada distinção [cfr., recentemente, o acórdão de 24/07/2018 (2 BvR 309/15 e 2 BvR 502/16), §67, bem como as citações ali indicadas: “2. a) O âmbito de proteção do artigo 2.º, n.º 2-2, da Lei Fundamental abrange tanto as medidas restritivas da liberdade (freiheitsbeschränkende Maßnahme) como as medidas privativas da liberdade (freiheitsentziehende Maßnahme); o Tribunal Constitucional distingue estas categorias de medidas com base na intensidade da interferência [na liberdade]. Um ato constituirá uma restrição da liberdade se alguém for impedido por autoridade pública, contra a sua vontade, de se deslocar para um lugar ou de permanecer num lugar que, de outro modo seria – no plano de facto e no plano jurídico – de acesso livre para si. Um ato constituirá uma privação da liberdade, o modo mais severo de restrição da liberdade, se suprimir a liberdade de movimento – que exista, em termos gerais, nas concretas circunstâncias de facto e de direito – nas suas diversas vertentes. A privação da liberdade caracteriza-se pela particular intensidade da interferência, e ainda pela sua duração, que não deve ser meramente de curto prazo” – v., ainda, o acórdão de 15/05/2002 (2 BvR 2292/00), §§ 24 e 25, ambos disponíveis em www.bundesverfassungsgericht.de/].
Está em causa, em suma, no artigo 27.º da Constituição, “[…] o direito à liberdade física, à possibilidade de movimentação sem constrangimentos. Tutela-se aqui, conforme tem sido consensualmente reconhecido, um aspeto parcelar e específico das diversas dimensões em que se manifesta a liberdade humana, o direito à liberdade física, entendida «como liberdade de movimentos corpóreos, de ‘ir e vir’, a liberdade ambulatória ou de locomoção» (cfr. Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2010, p. 638) ou como «direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar» (cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 478). É este também o entendimento que, de forma reiterada, tem sido sustentado pelo Tribunal Constitucional (cfr., entre outros, os acórdãos n.os 479/94, 663/98, 471/2001, 71/2010, 181/2010 e 54/2012)” (Acórdão n.º 204/2015), incluindo “o direito de não ser aprisionado ou fisicamente impedido ou constrangido por parte de outrem” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2014, p. 479).
Como explica José Lobo Moutinho, “[o] facto de a Constituição, e também a doutrina e a jurisprudência, falarem a propósito da liberdade física assim entendida, de liberdade tout court (ou, como faz a Constituição italiana, de liberdade pessoal), sem outra adjetivação, é uma mera figura de estilo, explicável pelo facto de a liberdade física, como as suas restrições, enquanto justamente físicas, se mostrarem mais claramente apreensíveis e aparecerem como a forma mais direta de compressão da liberdade humana, pelo facto de, por elas, se limitarem indiretamente muitas outras expressões da liberdade – pelo que pode dizer que a liberdade física as precede e condiciona (Vezio Crisafulli/Livio Paladin, Commentario breve alla Constituzione, Padova, 1990, pág. 79) – e pela gravidade que daí lhes advém (bem expressa no facto de, entre nós, a sua privação estar incluída no conteúdo das mais graves de entre as penas: as de prisão” (anotação ao artigo 27.º, Constituição Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda e Rui Medeiros, vol. II, 2.ª ed., Lisboa, 2018, p. 544). Este entendimento da “liberdade” prevista no artigo 27.º da Constituição enquanto (também e principalmente) “liberdade física”, que as exceções do n.º 3 confirmam em polo negativo, corresponde ao sentido interpretativo que tem sido adotado na jurisprudência constitucional – v., designadamente, os Acórdãos n.os 479/94, 185/96, 83/2001, 471/2001, 204/2015, 220/2015, 228/2015 e 463/2016.
2.2.3. O Tribunal, para aferir de uma eventual privação ou restrição, deve atentar, particularmente, na intensidade da afetação da liberdade resultante da aplicação das normas cuja aplicação foi recusada.
Importa, para o efeito, recordar o contexto factual fixado na decisão recorrida – não na medida em que o recurso tenha por objeto os factos (trata-se, como é sabido, de um recurso normativo), mas na medida em que estes revelam a potencialidade abstrata de restrição resultante da execução das normas aplicadas. Na verdade, tendo as normas sido executadas – sem desvio aparente face à respetiva estatuição – nos termos descritos na decisão recorrida, os correspondentes factos constituem um exemplo concreto do seu alcance abstrato. Podem, pois, e devem, neste preciso sentido e contexto, ser olhados tais factos enquanto acontecimentos reveladores da intensidade da afetação visada ou consentida pelas normas. Tais factos podem alinhar-se do modo que se passa a descrever.
1 – A pessoa visada pela norma foi encaminhada para uma certa zona do aeroporto, onde permaneceu conjuntamente com os demais passageiros e respetivas bagagens, até ser transportada num autocarro, escoltado por um carro policial com os rotativos ligados, para o Hotel …., sito à Avenida …., em Ponta Delgada.
2 – Uma vez ali chegada, foi encaminhada para a zona do check-in, tendo-lhe sido atribuído um quarto de hotel específico, altura em que foi informada de que não podia sair do quarto, onde teria de permanecer durante os próximos 14 dias.
3 – Mais foi informada de que as refeições seriam fornecidas pelo hotel em três momentos definidos do dia, havendo duas alturas em que podia solicitar refeições/snacks adicionais.
4 – Foi destacado um agente da PSP para a porta de entrada do hotel.
5 – Feito o check-in, a pessoa visada pela norma foi para o seu quarto, onde permaneceu ininterruptamente, o que corresponde às indicações que recebeu.
5 – A limpeza e manutenção do quarto foi feita pela pessoa visada pela norma, fornecendo o hotel toalhas e lençóis para mudar a cama, se solicitados.
6 – A lavagem e tratamento da roupa pessoal teve de ser efetuada pela pessoa visada pela norma, que foi informada de que não havia serviço de lavandaria, sendo fornecido detergente, se solicitado.
7 – A pessoa visada pela norma foi informada de que apenas seria possível aos familiares e amigos deixarem bens de 1.ª necessidade na receção para lhe serem entregues, como produtos de higiene, não tendo sido permitido que o cônjuge lhe trouxesse roupa para seu uso pessoal.
8 – Desde o dia em que aterrou nos Açores, a pessoa visada pela norma, apesar de falar telefonicamente com o cônjuge, não pôde ter contacto presencial com este, nem com qualquer outra pessoa.
9 – Apenas viu o cônjuge uma vez, estando este na via pública e a pessoa visada pela norma na varanda do quarto.
10 – Não lhe é permitido circular nos corredores do hotel nem em qualquer outra zona do mesmo, para além do seu quarto, havendo indicação de ronda por parte de agente da PSP de modo aleatório.
11 – Todos os passageiros que não apresentavam qualquer sintoma e cuja temperatura corporal era considerada normal eram encaminhados de autocarro para unidade hoteleira previamente determinada – Hotel … ou Hotel … – sendo informados de que tinham de permanecer confinados ao quarto que lhes era atribuído durante o período de 14 dias e de que eram vigiados diariamente, por contacto telefónico.
12 – Não lhe foi permitida a saída do quarto, nem o contacto com outras pessoas, designadamente familiares, amigos ou demais hóspedes.
13 – As refeições eram transportadas num carrinho por um empregado do hotel, que batia à porta, após o que se afastava, permitindo ao hóspede recolher a refeição, recolhendo em seguida o carrinho.
14 – Qualquer exercício físico teve de ser efetuado no quarto, não sendo permitido o acesso ao exterior do hotel nem aos demais espaços desse mesmo hotel, aqui se incluindo os corredores.
Medidas como as que se acabam de traçar – elencadas no contexto já referido no começo deste item – têm, evidentemente, um impacto significativo (o que quase corresponde a um eufemismo) na liberdade dos cidadãos [“[o] gozo do direito à liberdade pessoal é afetado pela imposição de quarentena obrigatória aos passageiros provenientes do estrangeiro e pela imposição de isolamento a pessoas suspeitas ou confirmadas com teste positivo de infeção pelo novo coronavírus” – Alessandra Spadaro, COVID-19: Testing the Limits of Human Rights, European Journal of Risk Regulation, European Journal of Risk Regulation, 11(2), 317-325. doi:10.1017/err.2020.27].
Em coerência com a jurisprudência constitucional anterior, impõe-se concluir que a maior parte das restrições descritas – mas, acima de tudo, o seu conjunto – corresponde, inequivocamente (e recuperando a classificação do Acórdão n.º 479/94), a uma “privação total da liberdade”. Assim se conclui, seja pela verificação de que a norma, “na sua máxima dimensão abstrata”, implica que o visado “fica circunscrito [a um] espaço confinado […], de todo impedido de circular e de livremente se movimentar” (expressões do referido Acórdão), seja ao constatar, por comparação, que a execução de uma medida como a descrita em muito pouco [e, descontada a envolvência (um quarto de hotel) porventura mais “amigável”, em nada de substancialmente significativo] se afasta do que resultaria da aplicação de uma (hipotética) pena curta de prisão, porventura até com aspetos mais gravosos (por exemplo, a falta de acesso a um espaço comum para exercício físico), seja até, por maioria de razão, face ao que se concluiu no citado Acórdão n.º 479/94, no qual se qualificou como inequívoca privação da liberdade a circunscrição a um espaço confinado até 6 horas (quando no caso dos autos está em causa um período até 56 vezes superior a esse).
Em suma, as normas sub judice preveem medidas de privação da liberdade, de sinal contrário à previsão do artigo 27.º, n.º 2, da Constituição e ao direito à liberdade consagrado no n.º 1 do mesmo artigo, na sua vertente de liberdade pessoal.
2.2.4. Como vimos (supra, 2.2.1.), todas as normas disciplinadoras de um direito liberdade ou garantia carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República, exigência que “[…] ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito” (Acórdão n.º 362/2011). Assim, verificando-se que as normas sub judice estabelecem medidas que privam da liberdade as pessoas por ela visadas, contra o previsto no artigo 27.º da Constituição (supra, 2.2.3.), é evidente que a respetiva matéria se encontra abrangida pela reserva de competência legislativa prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição – competência que não foi concretamente delegada e só o poderia ser no Governo (e não no Governo Regional – cfr. artigos 227.º, n.º 1, alínea b), e 228.º, n.º 1, da Constituição).
De todo o modo, “[…] a distinção entre privação total da liberdade (nomeadamente a prisão, que aliás pode revestir diversos graus de intensidade de confinamento) e a privação parcial (por exemplo, a proibição de entrada em determinados locais, proibição de residência em determinada localidade ou região) só tem relevo constitucional na medida em que a diferente gravidade de uma e outra deve ser tomada em conta na sua justificação sob o ponto de vista do princípio da proporcionalidade” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, cit., p. 479)
Esta conclusão no sentido da verificação de inconstitucionalidade orgânica (nela comungando, Tiago Fidalgo de Freitas, A execução do estado de emergência e da situação de calamidade nas regiões autónomas – o caso da pandemia COVID-19, revista e-Pública, cit., pp. 74/75) não seria – e não é – abalada pelo sentido adotado em outras discussões periféricas e a jusante.
Assim, quem entender que, com a imposição de quarentena, designadamente através de confinamento, não está em causa o direito à liberdade, previsto no artigo 27.º da Constituição, mas sim o direito à deslocação, previsto no artigo 44.º da Constituição (sobre esta discussão, ver Jorge Reis Novais, Direitos Fundamentais e inconstitucionalidade em situação de crise – a propósito da epidemia COVID-19, revista e-Pública, cit., pp. 79-117, especialmente pp. 95 e ss. e p. 99, e Estado de Emergência – Quatro notas jurídico-constitucionais sobre o Decreto Presidencial, disponível em https://observatorio.almedina.net/; José de Melo Alexandrino, Devia o direito à liberdade ser suspenso? – Resposta a Jorge Reis Novais, disponível em https://observatorio.almedina.net/; Miguel Nogueira de Brito, Pensar no estado da exceção na sua exigência, disponível em https://observatorio.almedina.net/; e Rúben Ramião, O Direito à Liberdade e o Estado de Emergência numa Releitura de Alf Ross (2.ª Resposta a Jorge Reis Novais) e Lendo a Constituição em Estado de Emergência (3.ª Resposta a Jorge Reis Novais), disponíveis em http://www.icjp.pt/publicacoes/papers/4), concluirá de igual modo estar em causa um direito referido na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP.
Também não interfere com a conclusão ora alcançada a discussão sobre a viabilidade constitucional das medidas de internamento em unidade de saúde, face ao disposto no artigo 27.º da Constituição [cfr., sobre esta discussão, cfr. André Dias Pereira, Sobre o internamento compulsivo de portadores de tuberculose – anotação ao acórdão da Relação do Porto de 6 de fevereiro de 2002, Lex Medicinae, n.º 1, janeiro-junho de 2004, pp. 135/142; Sónia Fidalgo, Internamento compulsivo de doentes com tuberculose, Lex Medicinae, n.º 2, julho-dezembro de 2004, pp. 87/124; Ana Paula Guimarães e Fernanda Rebelo, Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e dos Protocolos Adicionais, vol. I, org. por Paulo Pinto de Albuquerque, Lisboa, 2019, pp. 826/831; e Vasco Ricoca Peixoto, Ricardo Mexia, Nina de Sousa Santos, Carlos Carvalho e Alexandre Abrantes, Da tuberculose ao COVID-19: legitimidade jurídico-constitucional do isolamento/tratamento compulsivo por doenças contagiosas em Portugal, na Acta Médica Portuguesa, vol. 33, n.º 4 (2020), p. 225; Catarina Santos Botelho, “Estados de exceção constitucional: estado de sítio e estado de emergência”, cit., especialmente as considerações tecidas no respetivo ponto 3.3.-b)], seja porque não se trata, in casu, de internar cidadãos em unidade de saúde, seja porque o entendimento no sentido da viabilidade de tais medidas não deixaria de remeter para a sua adoção por lei parlamentar ou diploma do Governo autorizado pela Assembleia da República.
Mostra-se, pois, bem fundado o juízo de censura jurídico-constitucional afirmado na decisão recorrida, no que respeita à inconstitucionalidade orgânica das normas cuja aplicação foi recusada.
Tanto basta – e isso nos dispensa, por inutilidade, da abordagem de outros fundamentos de desconformidade constitucional constantes dessa decisão – para concluir pela improcedência do recurso
III – Decisão
3. Face ao exposto, decide-se:
a) não conhecer do objeto do recurso relativamente às normas contidas nos artigos 9.º, 10.º 11.º e 12.º do Regime Jurídico do Sistema de Proteção Civil da Região Autónoma dos Açores, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 26/2019/A e nos pontos 5 e 6 da Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020;
b) julgar inconstitucionais as normas contidas nos pontos 1 a 4 e 7 da Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020 e nos pontos 3, alínea e), e 11 da Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, nos termos das quais se impõe o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores, por violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º, por referência ao artigo 27.º, da Constituição da República Portuguesa; e, consequentemente,
c) negar provimento ao recurso, na parte em que dele se conhece.
Sem custas.
Lisboa, 31 de julho de 2020 - José António Teles Pereira
[O relator atesta, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, o voto de conformidade ao presente Acórdão dos restantes integrantes da 1.ª Secção, Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros, Conselheiro José João Abrantes, Conselheiro Vice-Presidente, João Pedro Caupers e Conselheiro Presidente, Manuel da Costa Andrade] - José António Teles Pereira