ACÓRDÃO N.º 174/2020
Processo n.º 564/2018
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
– Relatório
1. A., ora recorrente, foi condenado pelo Tribunal da Comarca de Leiria – Instância Central – Secção Criminal, por acórdão proferido em 13 de julho de 2015, por um crime de homicídio qualificado, na pena de 16 anos de prisão.
Inconformado, o arguido recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo apresentado o recurso, primeiro por correio eletrónico, em 1 de outubro de 2015, e depois em suporte de papel, em 6 de outubro do mesmo ano. Este recurso foi admitido por despacho de 20 de outubro de 2015 do Tribunal da Comarca de Leiria, onde se fixou a sua subida «de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo».
Subidos os autos ao Tribunal da Relação de Coimbra, este procedeu à notificação do arguido «da eventualidade da ponderação/ajuizamento da invalidade/extemporaneidade dos respetivos recursos» (cfr. fls. 3 dos autos).
O Tribunal da Relação de Coimbra proferiu, então, acórdão em 9 de novembro de 2016 (cfr. fls. 2-73 dos autos), onde concluiu pela rejeição do recurso do recorrente. Como fundamento do decidido quanto a este aspeto, refere-se (cfr. fls. 5-8 dos autos):
«Por efeito da expressa revogação pelo art. 4.º/a) da Lei n.º 41/2013 (de 26/06) do quadro legal em que se fundou o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) n.º 3/2014 (de 06/03/2014) do Supremo Tribunal de Justiça, máxime do art. 150.º/1/d/2 do Código de Processo Civil de 1961 (aprovado pelo D.L. n.º 44129, de 28/12), na redação do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27/12 – e, logo, naturalmente, do regulamentar dele dependente, designadamente da Portaria n.º 642/2004, de 16/06 (cfr., por maioria de razão art. 7.º/1/2 do Código Civil) -, automaticamente ultrapassada, prejudicada e caducada ficou também, obviamente, a respetiva disciplina, cuja amplitude, aliás, sempre meramente se circunscreveu/reportou – como não podia deixar de ser, e nele (AUJ n.º 3/2014) foi expressamente consignado – aos contemplados atos (de remessa a juízo de peças processuais através de correio-electrónico) que houvessem sido praticados até ao limite temporal de vigência do citado art. 150.º/1/d)/2 do CPC/1961 (na versão introduzida pelo referido D.L. nº 324/2003), ou seja, até 31/8/2013, véspera da entrada em vigor no ordenamento jurídico nacional de tal norma revogatória, ocorrida em 1 de Setembro de 2013 (cfr. art. 8.º da citada Lei n.º 41/2013, de 26/06).
Consequentemente, inexiste na atualidade – desde tal data de 01/09/2013 –qualquer base legal e, dessarte, jurisprudencial de suporte jurídico do uso do correio eletrónico (email) como meio válido de apresentação a juízo de atos processuais escritos, pelos respetivos sujeitos, no âmbito do processo penal e/ou contraordenacional, bem como, em lógica decorrência, da pressuposta, injustificada (legalmente descabida), irrazoavelmente proveitosa e gratuita afetação e utilização em seu próprio e exclusivo benefício de preciosos, exíguos e dispendiosos recursos humanos e materiais – (…) - necessários à impressão e junção ao pertinente processo do conteúdo do respetivo ficheiro informático, à custa do cronicamente deficitário erário público – procedimentos obviamente escusativos da assimétrica incomodatividade e económica onerosidade inerente à alternativa utilização, em tempo útil, de qualquer dos três (!) meios legalmente estabelecidos/disponibilizados sob o art. 144º/7/8 do Código de Processo Civil: entrega na secretaria judicial, remessa pelo correio, sob registo; e/ou envio através de telecópia (…)! -, o que, circunstancialmente multiplicado no plano processual nacional, seguramente representará sério e assaz gravoso desfalque orçamental, premente e exigentemente evitável e, ademais, rigorosamente acautelável por todos os agentes e funcionários estatais/administrativos, sobre quem incumbe o especial dever de racional e sóbria gestão dos meios a utilizar na exclusiva prossecução do interesse público, sob pena de pertinente responsabilização civil, disciplinar e/ou criminal (…), atividade procedimental dessarte incontornavelmente proibida, como legalmente estatuído sob o art. 130º do Código de Processo Civil [subsidiariamente aplicável no âmbito processual criminal, (cfr. art. 4º do Código de Processo Penal)], que, como tal, inexoravelmente condicionará a respetiva ilicitude e óbvia e consequente invalidade absoluta, nulidade, por axiomática postulância – em função de tal caracterizado/inelutável afrontamento legal – da imperativa dimensão normativa emergente da integrada participação dos arts. 280º/1, 294º e 295º do Código Civil.
Por conseguinte, a consequência jurídica do ilícito ato de transmissão por anexo a mensagem de correio-electrónico (email) expedida pelo Exmo. defensor do idº arguido A. no dia 01/10/2015 – muito para além, pois, daquele limite temporal de 31/08/2013, e já no domínio de distinta legislação (com referência à subjacente ao dito AUJ nº 3/2014 do Supremo Tribunal de Justiça), a partir da própria conta (de email) (…)@adv.oa.pt, (cfr. fls 2008) – de ficheiro de texto (em formato pdf) virtualmente significativo da peça recursiva do referido acórdão, entretanto oficiosa e ilicitamente reproduzido e junto aos autos – pelos Serviços do tribunal recorrido – a fls. 2009/2149, situado, como é bom-de-ver, aquém da própria disciplina da tramitação jurídica do procedimento criminal, haver-se-á, identicamente, e por maioria de razão, que naturalmente aferir pela disciplina geral dos atos jurídicos (quaisquer que sejam) contrários à legalidade expressa/imperativa, e, logo, pelo regime geral estabelecido pela dimensão normativa resultante da conjugada interpretação dos citados arts. 295º e 294º do Código Civil, apodicticamente determinativa da correspondente nulidade, e não já, como nos parece de mediana inteligibilidade – com o devido respeito por diverso entendimento -, pela específica das invalidades dos próprios atos privativos do processo criminal, estabelecida sob os arts. 118º a 123º do C. P. Penal.
2 – Destarte, verificando-se a respectiva invalidade e, doutra sorte, a larga ultrapassagem (em 8 dias!) do termo final do enunciado prazo recursório (28/09/2015) aquando da apresentação em Juízo do original da sua peça recursiva (em 06/10/2015), impor-se-á, outrossim, concluir pela respectiva extemporaneidade e, logo, pela preclusão do seu direito à interposição de recurso do dito acórdão condenatório em 01/10/2015, limite temporal da tolerância legal de realização do acto mediante a observância do referenciado ónus de pagamento de pertinente multa-sanção postulado pela enunciada dimensão normativa resultante da conjugada interpretação dos arts. 107º/5 e 107º-A/c) do CPP, e 139º/6 do CPC.» (sublinhados no original)
2. Ainda inconformado, recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante designada por LTC), referindo o seguinte:
«A., arguido nos autos acima identificados, tendo sido notificado da douta Decisão Sumária do Venerando Tribunal Constitucional que não deu provimento ao recurso, vem agora, por ser o momento certo, e também por não se conformar com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 09/11/20 16, na parte em que indefere a admissão do recurso interposto, por alegada extemporaneidade do mesmo devido ao facto de ter sido enviado em primeiro lugar por correio eletrónico, e só posteriormente, em cinco dias, ter sido entregue em mão, nos termos dos Art.ºs 69 e seguintes da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, alterada pela Lei 143/85 de 26 de Novembro, Lei 85/89 de 7 de Setembro, pela Lei n.º 88/95 de 1 de Setembro e pela Lei n.º 13-A/98 de 26 de Fevereiro, interpor recurso deste para o Tribunal Constitucional:
1.- O recurso é interposto de acordo com a alínea b) do n.º 1 do Art.º 70 da Lei do Tribunal Constitucional.
2.- Pretende-se que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da norma extraída interpretativamente dos Art. ° 150, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do C. P. Civil de 1961, na redação do Decreto-Lei n.º 324/2003, 27/12, e a Portaria n.º 642/2004, de 16/06 e Portaria n.º 114/2008, de 06/02, e ainda, o Art.º 4° da Lei n.º 41/2013, de 26/06, o Art.º 144, n.ºs 1, 7 e 8 do novo C. P. Civil. e a Portaria n.º 280/2013, de 26/08. no sentido de não ser admissível a utilização de correio eletrónico como meio legal de apresentação em juízo de actos processuais escritos. pelos respectivos sujeitos, no âmbito do processo penal.
3.- Bem como a norma contida nos Art.º 286, 294 e 295 do Código Civil, Art.º 195 do novo C. P. Civil e o Art.º 123 do C. P. Penal, interpretada no sentido de que o recurso apresentado pelo arguido a juízo, por correio eletrónico, no âmbito do processo penal, é nulo.
4.- Ambas as normas, por violação dos princípios constitucionais do acesso ao direito e aos Tribunais, do direito à tutela jurisdicional efetiva, da legalidade, da proporcionalidade ou principio da proibição do excesso e do próprio direito ao recurso,
5.- Princípios esses plasmados nos Art.º 18, 20, 29 e 32 do Constituição da República Portuguesa
6.- As questões das inconstitucionalidades foram invocadas num requerimento em que o arguido se pronunciou sobre a eventualidade do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, interposto do Acórdão proferido em 1.ª Instância, não ser admitido por alegada intempestividade devido ao facto do senhor Juiz Desembargador Relator, como questão prévia e pela primeira vez nos autos, considerar inadmissível a utilização de correio eletrónico como meio legal de apresentação em juízo de actos processuais escritos, pelos respectivos sujeitos. no âmbito do processo penal.
7.- A parte do Acórdão proferido com data de 9 de novembro de 2016 pelo Tribunal da Relação de Coimbra aplicou as normas impugnadas, uma vez que se entendeu que é inadmissível a utilização de correio eletrónico como meio legal de apresentação em juízo de actos processuais escritos, pejos respectivos sujeitos, no âmbito do processo penal, apesar ter sido fixada a jurisprudência em sentido contrário por Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ n.º 3/2014, datado de 6 de março».
O Tribunal da Relação de Coimbra, porém, por despacho de 19 de dezembro de 2017 (cfr. fls. 78-80 dos autos), rejeitou o recurso, considerando-o extemporâneo.
Novamente inconformado, o arguido reclamou desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4, da LTC. Este Tribunal, através do Acórdão n.º 170/2018 (cfr. fls. 81-92 dos autos), deferiu a reclamação, considerando, designadamente (cfr. fls. 91-92 dos auto):
«É inequívoco que o recorrente suscitou previamente a inconstitucionalidade destas normas, no exercício do contraditório sobre a questão da tempestividade do recurso interposto e sobre a validade da prática de actos processuais escritos por correio eletrónico no âmbito do processo penal. Também é inequívoco que tais normas foram aplicadas pelo tribunal a quo como rationes decidendi, na medida em que constituíram os fundamentos do juízo de nulidade da apresentação do recurso através de correio eletrónico e consequente extemporaneidade do mesmo, por apenas ter sido considerada a data de apresentação dos duplicados.
Desta forma, afigura-se inexistir qualquer outro fundamento – ainda que diverso daquele em que se fundou a decisão reclamada – que obste ao conhecimento do objecto do recurso, pelo que o mesmo deve ser admitido.»
Desta forma ficou decidida a admissibilidade do recurso, na sequência do que o Tribunal a quo remeteu o recurso ao Tribunal Constitucional.
3. Os autos prosseguiram para alegações, tendo o recorrente apresentado as seguintes conclusões (cfr. fls. 107-124, mais especificamente fls. 118-124):
«1.- O presente recurso de constitucionalidade foi interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 70 da Lei do Tribunal Constitucional, pelo ora Recorrente A., pretendendo este que este Venerando Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da norma extraída interpretativamente dos Art.º 150, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do C. P. Civil de 1961, na redação do Decreto-Lei n.º 324/2003, 27/12, e a Portaria n.º 642/2004, de 16/06 e Portaria n.º 114/2008, de 06/02, e ainda, o Art.º 4° da Lei n.º 41/2013, de 26/06, o Art.º 144, n.ºs 1, 7 e 8 do novo C. P. Civil, e a Portaria n.º 280/2013, de 26/08, no sentido de não ser admissível a utilização de correio eletrónico como meio legal de apresentação em juízo de actos processuais escritos, pelos respectivos sujeitos, no âmbito do processo penal,
II.- E que a norma contida nos Art.ºs 286, 294 e 295 do Código Civil, Art.º 195 do novo Código de Processo Civil determinava que o recurso apresentado pelo arguido a juízo, por correio eletrónico, no âmbito do processo penal, é nulo.
III.- Já que ambas as normas com essa interpretação violam os princípios constitucionais da igualdade, do acesso ao direito e aos Tribunais, do direito à tutela jurisdicional efetiva, da proporcionalidade ou princípio da proibição do excesso e do próprio direito ao recurso, que estão consagrados nos Art.ºs 13, 18, 20 e 32 da Constituição da República Portuguesa.
IV.- Este recurso foi interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 09/11/2016, proferido no âmbito do Processo n.º 7/12.5JALRA.Cl, que incidiu sobre o Acórdão proferido pelo Tribunal Coletivo do Tribunal Central Criminal de Leiria, em 13 de Julho de 2015, na parte em que indefere a admissão do recurso interposto pelo coarguido A., aqui Recorrente, por alegada extemporaneidade do mesmo devido ao facto de ter sido enviado em primeiro lugar por correio eletrónico, e só posteriormente, em cinco dias, ter sido entregue em mão na secretaria judicial.
V.- Tal recurso foi apresentado por correio eletrónico no Tribunal recorrido no último dia do prazo, tendo procedido á entrega em mão na secretaria judicial do original do recurso 5 (cinco) dias após.
VI.- O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 09/1112016, como questão prévia, rejeitou o recurso apresentado pelo Recorrente A. por o considerar intempestivo, na medida em que considera inválido o acto de transmissão por anexo a mensagem de correio eletrónico (email), no dia 01/1012015, do recurso em ficheiro de texto (em formato PDF).
VII. - O dia 01/1 0/20 15 era o 3.º dia útil após o termo do prazo, pelo que tal envio do recurso por correio eletrónico foi acompanhado do respetivo comprovativo do pagamento da multa prevista no Art.º 107 do Código de Processo Penal.
VIII.- O original do referido recurso, bem como os respectivos duplicados legais, foram entregues, em mão, na secretaria judicial do tribunal recorrido cinco (5) dias mais tarde, ou seja, no dia 06/10/2015.
IX.- Aparentemente, tal como foi referido pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 152/2017, da 3.a Secção, em que foi Relator o Excelentíssimo Juiz Conselheiro Gonçalo Ribeiro "com a publicação do DL n.º 303/2007, de 24 de agosto, que suprimiu do elenco do então artigo 150.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o correio eletrónico como forma de apresentação a juízo de atos processuais, essa possibilidade deixou de estar disponível, tendo sido substituída pela transmissão eletrônica integrada na citada plataforma informática. "
X.- Continuando afirma-se que "paralelamente, a Portaria n.º 642/2004, de 16 de junho, que regulava a forma de apresentação a juízo dos atos processuais enviados através de correio eletrónico, então em vigor, foi revogada parcialmente pela Portaria n.º 114/2008, de 6 de fevereiro. e,
XI.- "Contudo, dado que o sistema informático Citius não esteve até há bem pouco tempo disponível em todos os Tribunais de todas as hierarquias e jurisdições, designadamente nos Tribunais Superiores, não se mostra possível praticar aí atos processuais por transmissão eletrónica de dados, nos termos atualmente regulados na Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, em todas essas situações. "
XII.- Concluindo-se mesmo nesse douto Acórdão, que nessa medida, "tem-se entendido que nos Tribunais em que o sistema Citius não está disponível, é ainda possível recorrer ao correio eletrónico como forma de apresentação de atos processuais, mantendo-se em vigor, nessa parte, a Portaria n.º 642/2004, de 16 de junho. "
XIII.- A questão da admissibilidade, ou não, da utilização do correio eletrónico, na apresentação em juízo de actos processuais escritos, em processo penal, já tinha sido, cerca de um ano e meio antes, objecto de um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, com o n.º 3/2014, de 6 de março, no qual se fixou jurisprudência nos seguintes termos:
"Em processo penal, é admissível a remessa ajuízo de peças processuais através de correio eletrónico, nos termos do disposto no Art.º 150, n.º 1, alínea d) e n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961, na redação do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27/12, e na Portaria n.º 642/2004, 16/06, aplicáveis conforme o disposto no Art.º 4 do Código do Processo Penal. "
XIV - Daqui decorria que o correio eletrónico constituía à época em que foi utilizado - 01/10/2015 - uma forma admissível de prática de atos processuais em todos aqueles processos excluídos do âmbito de aplicação da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto e em Tribunais onde o sistema Citius não esteja em execução, corno era o caso do processo penal, ou nos Tribunais superiores.
XV.- E apesar de em 2007 o correio eletrónico ter deixado de fazer parte do elenco do Art.º 150 do CPC, tal não se ficou a dever a qualquer circunstância que desaconselhasse a sua utilização,
XVI.- Mas sim, da desnecessidade do seu uso, face a uma transmissão eletrónica de dados integrada num sistema mais completo e abrangente.
XVII.- Assim a interpretação no sentido de não ser admissível a utilização de correio eletrónico corno meio de apresentação em juízo de actos processuais escritos pelos respectivos sujeitos, no âmbito do processo penal, viola o princípio do acesso ao direito e aos tribunais consagrado no Art.º 20 da CRP, que por sua vez faz parte integrante do princípio material da igualdade consagrado no Art.º 13 do mesmo diploma fundamental.
XVIII. - Com a eliminação dessa forma de apresentação de peças processuais em juízo sem qualquer fundamento que o aconselhe, o sujeito processual vê ser restringido o seu direito à ação, que consiste no direito de levar a sua pretensão ao conhecimento do órgão judicial, com o consequente direito à abertura do processo (direito ao processo), com o consequente dever de se pronunciar mediante decisão fundamentada (direito à decisão), e dependendo da decisão, exigir se for o caso, a execução da decisão (direito à execução da decisão do tribunal), viola o direito à decisão da causa em prazo razoável e o direito a um processo equitativo, princípios consagrados no Art.º 20 CRP.
XIX.- A densificação deste último direito a um processo equitativo encontra-se, no âmbito do processo penal, consagrado no Art.º 32 da CRP, que tal interpretação também viola.
XX.- Importa também referir que a interpretação de ambas as normas que se consideram inconstitucionais violam o direito a um processo orientado para a justiça material sem demasiadas peias formalísticas.
XXI.- Já que por questões meramente formais, sem qualquer justificação, o Recorrente veria ser-lhe negado o direito a ver reapreciada o seu processo, quer na matéria de facto, quer na matéria de direito.
XXII.- O n.º 5 do Art.º 20 da CRP consagra o direito à tutela jurisdicional efetiva, considerando assim insuficiente o direito de acesso ao direito e aos tribunais,
XXIII.- E impondo que o legislador tenha esse princípio da efetividade em consideração no momento de tratar da organização dos tribunais e na delimitação, e definição, dos instrumentos processuais.
XXIV.- Uma legislação que não permite a apresentação de peças processuais em juízo através de correio eletrónico, em processo penal, sem qualquer justificação, contrariando a evolução da legislação no sentido do aproveitamento das novas tecnologias com objetivo de desmaterializar ajustiça e diminuir a morosidade da mesma, viola o disposto no Art.º 18 da CRP, na medida em que, violando os princípios do acesso ao direito e aos tribunais, nomeadamente no direito à tutela jurisdicional efetiva, reconhecidos direitos fundamentais tutelados no Art.º 20 do mesmo diploma fundamental, as suas restrições só se justificarão para salvaguardar um outro direito ou interesse protegido constitucionalmente.
XXV.- Ao considerar nula e ilegal a remessa ajuízo de peças processuais através de correio eletrónico, está a ser violado direito ao Recurso, que se traduz na reapreciação da questão por um Tribunal superior, quer quanto á matéria de direito, quer quanto à matéria de facto,
XXVI.- Já que em processo penal o direito de defesa pressupõe um duplo grau de jurisdição.
XXVII.- Além da violação do direito de defesa consagrado no Art.º 32 da CRP, também o principio consagrado na mesma norma constitucional da presunção de inocência do arguido, numa das suas dimensões mais importantes, que chega a assumir um valor autónomo - a obrigatoriedade de julgamento no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa - também se encontra violado já que tal meio processual se integra numa das medidas implementadas para aumentar a celeridade processual.
XXVIII.- Seria aliás completamente desproporcional esta restrição nas possibilidades de envio das peças processuais para os tribunais, já que não se consegue apreender qualquer justificação para o fazer.
XXIX.- Ora, ao facilitar a comunicação entre os cidadãos que buscam a justiça e os tribunais que a administram, a utilização do correio eletrónico para a remessa ajuízo das peças processuais em processo penal, respeitará o direito constitucional consagrado no mesmo Art.º 32 da CRP ao processo célere.
XXX.- O que a interpretação no sentido da não admissão de tal forma de apresentação de peças processuais ajuízo - correio eletrónico - certamente violaria.
XXXI.- A segurança e a autenticidade em momento algum seria colocada em causa já que estamos perante um meio de envio muito idêntico, mas mais prático e mais rápido, do que o envio por telecópia,
XXXII.- Nomeadamente se se proceder à entrega do original e dos respectivos duplicados, ou do seu envio por correio registado, dentro dos cinco dias posteriores.
Atentas tais conclusões, o Recorrente termina pedindo que seja declarada a inconstitucionalidade da norma extraída interpretativamente dos Art.º 150, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do C. P. Civil de 1961, na redação do Decreto-Lei n.º 324/2003,27/12, e a Portaria n.º 642/2004, de 16/06 e Portaria n.º 114/2008, de 06/02, e ainda, o Art.º 4° da Lei n.º 41/2013, de 26/06, o Art.º 144, n.ºs 1, 7 e 8 do novo C. P. Civil, e a Portaria n.º 280/2013, de 26108, no sentido de não ser admissível a utilização de correio eletrónico como meio legal de apresentação em juízo de actos processuais escritos, pelos respectivos sujeitos, no âmbito do processo penal, e da norma contida nos Artºs 286, 294 e 295 do Código Civil, Art.º 195 do novo Código de Processo Civil que determinava que o recurso apresentado pelo arguido a juízo, por correio eletrónico, no âmbito do processo penal, é nulo, já que ambas as normas com essa interpretação violam os princípios constitucionais da igualdade, do acesso ao direito e aos Tribunais, do direito à tutela jurisdicional efetiva, da proporcionalidade ou principio da proibição do excesso e do próprio direito ao recurso, que estão consagrados nos Art.ºs 13, 18, 20 e 32 da Constituição da República Portuguesa.
E, em consequência, que seja ordenada a reforma da decisão recorrida em conformidade com o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade.»
4. Também o Ministério Público, junto deste Tribunal Constitucional, se pronunciou no sentido da procedência do presente recurso de constitucionalidade, propugnando pela consequente revogação da decisão do Tribunal da Relação de rejeição do recurso do acórdão de primeira instância que condenou o arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado, na pena de 16 anos de prisão (fls. 157 a 202):
«12º
Inconformado, o arguido recorreu (…) para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo apresentado as suas alegações, primeiro por correio eletrónico, em 1 de outubro de 2015, e depois em suporte de papel, em 6 de outubro do mesmo ano (cfr. fls. 3 dos autos e supra nº 2 das presentes contra-alegações).
13º
Já no Tribunal da Relação de Coimbra, o Ilustre Desembargador Relator ordenou a notificação do arguido «da eventualidade da ponderação/ajuizamento da invalidade/extemporaneidade dos respectivos recursos …» (cfr. fls. 3 dos autos e nº 3 das presentes contra-alegações).
14º
O arguido argumentou, então, «… no que lhe respeita, a manutenção em vigor do AUJ nº 3/2014 do Supremo Tribunal de Justiça, e, dessarte, a validade e eficácia da expedição a Juízo (em 01/10/2015), por anexo a mensagem de correio-electrónico (email) de cópia da sua peça recursiva, bem como da sua oficiosa reprodução e junção aos autos (a fls. 2009/2149) pelos pertinentes Serviços do tribunal recorrido, subsidiariamente suscitando a inquinação de diversa interpretação da dimensão normativa em que se ancorou por vício de inconstitucionalidade, por virtual violação dos princípios do acesso ao direito e aos tribunais, do direito à tutela jurisdicional efetiva, da legalidade, da proporcionalidade, e do direito ao recurso, impostamente plasmados nos arts. 18, 20, 29 e 32 da Constituição da República Portuguesa...» (cfr. fls. 3-4 dos autos e supra nº 4 das presentes contra-alegações).
15º
O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 9 de novembro de 2016, rejeitou, porém, o recurso do arguido, considerando, designadamente (cfr. fls. 5-8 dos autos e supra nº 5 das presentes contra-alegações):
“Por efeito da expressa revogação pelo art. 4º/a) da Lei nº 41/2013 (de 26/06) do quadro legal em que se fundou o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) nº 3/2014 (de 06/03/2014) do Supremo Tribunal de Justiça, máxime do art. 150º/1/d/2 do Código de Processo Civil de 1961 (aprovado pelo D.L. nº 44129, de 28/122), na redação do Decreto-Lei nº 324/2003, de 27/12 – e, logo, naturalmente, do regulamentar dele dependente, designadamente da Portaria nº 642/2004, de 16/06 (cfr., por maioria de razão art. 7º/1/2 do Código Civil) -, automaticamente ultrapassada, prejudicada e caducada ficou também, obviamente, a respectiva disciplina, cuja amplitude, aliás, sempre meramente se circunscreveu/reportou – como não podia deixar de ser, e nele (AUJ nº 3/2014) foi expressamente consignado – aos contemplados actos (de remessa a juízo de peças processuais através de correio-electrónico) que houvessem sido praticados até ao limite temporal de vigência do citado art. 150º/1/d)/2 do CPC/1961 (na versão introduzida pelo referido D.L. nº 324/2003), ou seja, até 31/8/2013, véspera da entrada em vigor no ordenamento jurídico nacional de tal norma revogatória, ocorrida em 1 de Setembro de 2013 (cfr. art. 8º da citada Lei nº 41/2013, de 26/06).
Consequentemente, inexiste na atualidade – desde tal data de 01/09/2013 –qualquer base legal e, dessarte, jurisprudencial de suporte jurídico do uso do correio eletrónico (email) como meio válido de apresentação a juízo de actos processuais escritos, pelos respectivos sujeitos, no âmbito do processo penal e/ou contraordenacional (…) procedimentos obviamente escusativos da assimétrica incomodatividade e económica onerosidade inerente à alternativa utilização, em tempo útil, de qualquer dos três (!) meios legalmente estabelecidos/disponibilizados sob o art. 144º/7/8 do Código de Processo Civil: entrega na secretaria judicial, remessa pelo correio, sob registo; e/ou envio através de telecópia (…), o que, circunstancialmente multiplicado no plano processual nacional, seguramente representará sério e assaz gravoso desfalque orçamental, premente e exigentemente evitável e, ademais, rigorosamente acautelável por todos os agentes e funcionários estatais/administrativos, sobre quem incumbe o especial dever de racional e sóbria gestão dos meios a utilizar na exclusiva prossecução do interesse público, sob pena de pertinente responsabilização civil, disciplinar e/ou criminal (…) particularmente, no que ora diretamente releva, pelos funcionários judiciais, especificamente vinculados a redobrado cuidado e empenho na limitação de custos e gestão orçamental, por especial efeito do superiormente postulado/determinado pelo Ofício/Circular nº 20/2011 (de 28/03) da Direcção-Geral da Administração da Justiça, atividade procedimental dessarte incontornavelmente proibida, como legalmente estatuído sob o art. 130º do Código de Processo Civil [subsidiariamente aplicável no âmbito processual criminal, (cfr. art. 4º do Código de Processo Penal)], que, como tal, inexoravelmente condicionará a respectiva ilicitude e óbvia e consequente invalidade absoluta, nulidade, por axiomática postulância – em função de tal caracterizado/inelutável afrontamento legal – da imperativa dimensão normativa emergente da integrada participação dos arts. 280º/1, 294º e 295º do Código Civil.
Por conseguinte, a consequência jurídica do ilícito acto de transmissão por anexo a mensagem de correio-electrónico (email) expedida pelo Exmo. defensor do idº arguido A. no dia 01/10/2015 – muito para além, pois, daquele limite temporal de 31/08/2013, e já no domínio de distinta legislação (com referência à subjacente ao dito AUJ nº 3/2014 do Supremo Tribunal de Justiça), (…) situado, como é bom-de-ver, aquém da própria disciplina da tramitação jurídica do procedimento criminal, haver-se-á, identicamente, e por maioria de razão, que naturalmente aferir pela disciplina geral dos actos jurídicos (quaisquer que sejam) contrários à legalidade expressa/imperativa, e, logo, pelo regime geral estabelecido pela dimensão normativa resultante da conjugada interpretação dos citados arts. 295º e 294º do Código Civil, apodicticamente determinativa da correspondente nulidade, e não já, como nos parece de mediana inteligibilidade – com o devido respeito por diverso entendimento -, pela específica das invalidades dos próprios actos privativos do processo criminal, estabelecida sob os arts. 118º a 123º do C. P. Penal.
2 – Destarte, verificando-se a respectiva invalidade e, doutra sorte, a larga ultrapassagem (em 8 dias!) do termo final do enunciado prazo recursório (28/09/2015) aquando da apresentação em Juízo do original da sua peça recursiva (em 06/10/2015), impor-se-á, outrossim, concluir pela respectiva extemporaneidade e, logo, pela preclusão do seu direito à interposição de recurso do dito acórdão condenatório em 01/10/2015, limite temporal da tolerância legal de realização do acto mediante a observância do referenciado ónus de pagamento de pertinente multa-sanção postulado pela enunciada dimensão normativa resultante da conjugada interpretação dos arts. 107º/5 e 107º-A/c) do CPP, e 139º/6 do CPC.”
16º
Conclui-se, pois, do excerto acabado de referir, que o acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Coimbra, rejeitou o recurso do arguido por o considerar extemporâneo.
Julga-se, porém, que não será assim.
Com efeito, como devidamente salientado pelo arguido, nas suas alegações de recurso para este Tribunal Constitucional (cfr. fls. 108-109 dos autos) (destaques do signatário):
“7. O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 09/11/2016, como questão prévia, rejeitou o recurso apresentado pelo Recorrente A. por o considerar intempestivo, na medida em que considera inválido o acto de transmissão por anexo a mensagem de correio eletrónico (email), no dia 01/10/2015, do recurso em ficheiro de texto (em formato PDF).
8 – O dia 01/10/2015 era o 3º dia útil após o termo do prazo, pelo que tal envio do recurso por correio eletrónico foi acompanhado do respetivo comprovativo do pagamento da multa prevista no Art. 107º do Código de Processo Penal.
9 – O original do referido recurso, bem como os respectivos duplicados legais, foram entregues, em mão, na secretaria judicial do tribunal recorrido cinco (5) dias mais tarde, ou seja, no dia 06/10/2015.
10 – Tal como teria de acontecer se o recurso fosse apresentado por telecópia no referido dia 01/10/2015.
11 – Quer os documentos enviados por correio eletrónico, quer os documentos enviados por telecópia, são rececionados pelo mesmo aparelho no Tribunal para onde forem enviados, ficando inicialmente guardados em ficheiro de texto (formato PDF).
12 – A questão da admissibilidade, ou não, da utilização do correio eletrónico, na apresentação em juízo de actos processuais escritos, em processo penal, já tinha sido, cerca de um ano e meio antes, objecto de um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, com o nº 3/2014, de 6 de março, no qual se fixou jurisprudência nos seguintes termos:
“Em processo penal, é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio eletrónico, nos termos do disposto no Art. 150º, nº 1, alínea d) e nº 2 do Código de Processo Civil de 1961, na redação do Decreto-Lei nº 324/2003, de 27/12, e na Portaria nº 642/2004, 16/06, aplicáveis conforme o disposto no Art. 4 do Código de Processo Penal.”
17º
Assim, o recurso do arguido não foi apresentado extemporaneamente, mas dentro do prazo definido na lei para o efeito, falecendo, por esse motivo, a base da principal argumentação do Acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Coimbra.
Por outro lado, o facto de o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 3/2014 ter sido proferido em 6 de março de 2014, já depois de publicada a Lei 41/213, de 26 de junho, levanta, pelo menos, a dúvida legítima sobre se a fundamentação do mesmo Acórdão se não poderia continuar a aplicar durante a vigência da nova legislação, pelo menos durante um período inicial de transição.
Tanto mais que o mesmo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência faz expressa referência, na nota 1, à nova Lei 42/2013, sem, porém, precisar a consequência, para o mesmo Acórdão, da respectiva entrada em vigor.
18º
O ora recorrente refere igualmente, em seguida, nas suas alegações, e com interesse para a apreciação do presente recurso, o Acórdão 152/17, deste Tribunal Constitucional, referindo, a este propósito (cfr. fls. 109-110 dos autos) (destaques do signatário):
“13 – Aparentemente, tal como foi referido pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 152/2017, da 3ª Secção, em que foi Relator o Excelentíssimo Juiz Conselheiro Gonçalo Ribeiro, “com a publicação do DL nº 303/2007, de 24 de agosto, que suprimiu do elenco do então artigo 150º, nº 2, do Código de Processo Civil, o correio eletrónico como forma de apresentação a juízo de actos processuais, essa possibilidade deixou de estar disponível, tendo sido substituída pela transmissão eletrónica integrada na citada plataforma informática.”
14 – Continuando afirma-se que “paralelamente, a Portaria nº 642/2004, de 16 de junho, que regulava a forma de apresentação a juízo dos actos processuais enviados através de correio eletrónico, então em vigor, foi revogada parcialmente pela Portaria nº 114/2008, de 6 de fevereiro.”
15 – “Contudo, dado que o sistema informático Citius não esteve até há bem pouco tempo disponível em todos os Tribunais de todas as hierarquias e jurisdições, designadamente nos Tribunais Superiores, não se mostra possível praticar aí actos processuais por transmissão eletrónica de dados, nos termos atualmente regulados na Portaria nº 280/2013, de 26 de agosto, em todas essas situações.
16 – Concluindo-se mesmo nesse douto Acórdão, que nessa medida, tem-se entendido que nos Tribunais em que o sistema Citius não estava disponível, era ainda possível recorrer ao correio eletrónico como forma de apresentação de actos processuais, mantendo-se em vigor, nessa parte, a Portaria nº 624/2004, de 16 de junho.”
19º
As alegações do arguido, apresentadas neste Tribunal Constitucional, referem-se mais adiante, novamente, ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 3/2014, considerando, a este propósito (cfr. fls. 110-11 dos autos) (destaques do signatário):
“17 – A propósito da questão, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu o Acórdão para fixação de jurisprudência nº 3/2014 (DR, Série I, nº 74, de 15-04-2014, p. 2440-2447), como acima já se referiu e se citou a jurisprudência fixada.
18 – Nesse mesmo Acórdão afirma-se ainda que “Aí se entendeu – no que é de acompanhar – que a eliminação da referência ao correio eletrónico no artigo 150º resultou, porém, não da verificação de uma qualquer circunstância que desaconselhasse a sua utilização, mas da desnecessidade do seu uso face a uma transmissão eletrónica de dados integrado num sistema mais completo e abrangente. Foi, todavia, intenção expressa do legislador rodear a implementação do novo método das maiores cautelas e, por isso, a aplicação da regulamentação por esta Portaria ficou limitada, nos termos do respetivo artigo 2º, às ações declarativas cíveis, providências cautelares e notificações judiciais avulsas e às execuções cíveis».
19 – Razão pela qual a Portaria nº 642/2004, de 16 de junho, apenas foi revogada na parte respeitante às ações previstas no artigo 2º da Portaria nº 114/2008, de 6 de fevereiro, isto é,
20 – Às ações declarativas cíveis, providências cautelares e notificações judiciais avulsas e às execuções cíveis, mantendo-se em vigor para todos os demais processos e Tribunais, independentemente da jurisdição e hierarquia.
21 – Daqui decorria que o correio eletrónico constituía à época em que foi utilizado – 01/10/2015 – uma forma admissível de prática de actos processuais em todos aqueles processos excluídos do âmbito de aplicação da Portaria nº 280/2013, de 26 de agosto e em Tribunais onde o sistema Citius não esteja em execução, como era o caso do processo penal, ou nos Tribunais superiores.
22 – Todavia, os termos em que essa forma de apresentação a juízo de actos processuais se efetiva e os efeitos processuais consequentes dependem do cumprimento das disposições relevantes da Portaria nº 642/2004, de 16 de junho, tal como aconteceu no caso em apreço.
23 – Assim, antes de ser inconstitucional, a interpretação no sentido de não ser de admitir o envio de peças processuais em processo penal, é ilegal.
24 – Não tendo sido permitido ao ora recorrente sindicar a decisão recorrida, e submetê-la a uma nova apreciação por outro Tribunal Superior, ou seja, pelo STJ.”
20º
Ora, crê-se que assiste razão, nesta parte, ao arguido.
Com efeito, não parece estarmos perante nenhuma situação de intempestividade do recurso apresentado pelo arguido (quer na modalidade de correio eletrónico, quer de apresentação em suporte de papel), como anteriormente referido (cfr. supra nºs 16-17 das presentes contra-alegações) e, muito menos, há dúvidas sobre a qualidade e adequação do seu conteúdo, apenas se questionando a forma utilizada para o efeito.
Não há, assim, dúvidas de que a peça processual do arguido chegou ao conhecimento do tribunal ad quem, em formato acessível a este e no prazo legalmente definido para o efeito.
21º
O Código de Processo Penal não contém diretamente normas que definam o regime de apresentação a juízo dos actos processuais das “partes”, embora se refira, nos seus artigos 111º a 117º, a diversos aspetos da comunicação de actos processuais e da convocação para eles.
Assim, por exemplo, a comunicação entre serviços de justiça e entre as autoridades judiciárias e os órgãos de polícia criminal pode efetuar-se mediante mandado, carta, ofício, aviso, telegrama, telex, telecópia, comunicação telefónica, correio eletrónico ou qualquer outro meio de telecomunicações (cfr. art. 111º, nºs 3 e 4 do CPP).
Por outro lado, a convocação para acto processual pode ser feita por qualquer meio destinado a dar conhecimento a uma pessoa do facto, inclusivamente por via telefónica, lavrando-se cota no auto quanto ao meio utilizado (cfr. art. 112º, nº 1 do CPP).
Por último, as notificações efetuam-se mediante contacto pessoal com o notificando e no lugar em que este for encontrado, via postal registada, por meio de carta ou aviso registados, via postal simples, por meio de carta ou aviso, nos casos expressamente previstos, editais e anúncios, nos casos em que a lei expressamente o admitir (cfr. art. 113º, nº 1 do Código de Processo Penal).
Não há, pois, dúvidas, de que o Código de Processo Penal permite a utilização, pelo tribunal, de diversos meios de comunicação e convocação, deixando ao respetivo critério a escolha do que for considerado, em cada momento, mais adequado.
Mas, simultaneamente, é omisso sobre o regime de apresentação a juízo dos actos processuais das “partes”.
22º
Ora, nesta matéria, o Tribunal da Relação de Coimbra (cfr. supra nº 5 das presentes contra-alegações), entendeu ser necessário recorrer ao disposto no art. 4º do Código de Processo Penal, que, nos casos omissos, manda observar as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, os princípios gerais do processo penal.
E, no caso dos autos, reporta-se ao art. 144º do Código de Processo Civil, que, relativamente à apresentação de peças processuais pelas partes, veio definir (destaques do signatário):
“1 – Os atos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes são apresentados a juízo por transmissão eletrónica de dados, nos termos definidos na portaria prevista no nº 1 do artigo 132º, valendo como data da prática do acto processual a da respectiva expedição.
2 – A parte que pratique o acto processual nos termos do número anterior deve apresentar por transmissão eletrónica de dados a peça processual e os documentos que a devam acompanhar, ficando dispensado de remeter os respectivos originais.”
23º
A Portaria 280/13, de 26 de Agosto, entrada em vigor no dia 1 de Setembro de 2013 (cfr. art. 38º da mesma Portaria), foi adotada na sequência da aprovação do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, tendo vindo regulamentar a tramitação eletrónica dos processos nos tribunais judiciais de 1ª instância (cfr. art. 1º da mesma Portaria), designadamente, a definição do sistema informático através do qual é efetuada a tramitação eletrónica de processos nos termos previstos no Código de Processo Civil (Sistema Citius – cfr. art. 5º, nº 1 da referida Portaria), bem como a apresentação de peças processuais e documentos por transmissão eletrónica de dados, nos termos dos nºs. 1 a 3 do artigo 144.º do Código de Processo Civil, incluindo a apresentação do requerimento de interposição de recurso, das alegações e contra-alegações de recurso (cfr. art. 1º, nº 1, alíneas a) e b) da mesma Portaria).
Na sua redação inicial, porém, a referida Portaria apenas tinha, como âmbito de aplicação, as ações declarativas cíveis e as ações executivas cíveis (cfr. art. 2º da referida Portaria), prevendo-se, ainda, disposições específicas para os processos da competência dos tribunais e juízos de execução de penas (arts. 32º e segas. da referida Portaria).
Por outras palavras, a tramitação eletrónica de processos foi, pelo próprio legislador, prevista como devendo ter lugar faseadamente, ou seja, enquanto a mesma tramitação eletrónica se iniciava relativamente a determinados tipos de processos, outros continuariam a utilizar a sua normal e tradicional tramitação.
24º
Através da publicação da Portaria 170/2017, de 25 de maio, a Portaria 280/2013 foi, porém, alterada, prevendo-se, agora, também, a tramitação eletrónica dos processos penais nos tribunais judiciais de 1.ª instância, embora apenas a partir da receção dos autos em tribunal a que se referem o n.º 1 do artigo 311.º e os artigos 386.º, 391.º-C e 396.º do Código de Processo Penal (cfr. art. 1º, nº 2 da Portaria 280/2013, na nova redação).
Não estamos, pois, perante uma integral aplicação da tramitação eletrónica aos processos penais, mas apenas a partir de uma determinada fase, a da receção dos autos em tribunal.
Sendo certo, por outro lado, que a Portaria 280/2013, na sua nova redação, veio, designadamente, regulamentar a apresentação de peças processuais e documentos por transmissão eletrónica de dados, nos termos dos nºs 1 a 3 do artigo 144.º do Código de Processo Civil, incluindo a apresentação do requerimento de interposição de recurso, das alegações e contra-alegações de recurso e da reclamação contra o indeferimento do recurso e a subida dos recursos, nos termos dos artigos 643.º, 644.º, 646.º, 671.º, 688.º e 696.º do Código de Processo Civil, e a apresentação do requerimento de interposição de recurso, das motivações, da reclamação contra a não admissão ou retenção do recurso, e da resposta ao recurso, nos termos dos artigos 405.º, 411.º e 413.º do Código de Processo Penal (cfr. art. 1º, nº 6 da mesma Portaria).
25º
Nos termos do art. 4º, nº 1, da Portaria 280/2013, na sua nova redação, «a apresentação de peças processuais e documentos por transmissão eletrónica de dados dispensa a remessa dos respetivos originais, duplicados e cópias, nos termos da lei» (destaques do signatário).
Todavia, nos termos do nº 2 da mesma disposição (destaques do signatário):
“2 - O disposto no n.º 1 não prejudica:
a) O dever de exibição das peças processuais em suporte de papel e dos originais dos documentos juntos pelas partes por transmissão eletrónica de dados, sempre que o juiz o determine, designadamente, quando:
i) Duvidar da autenticidade ou genuinidade das peças ou dos documentos;
ii) For necessário realizar perícia à letra ou assinatura dos documentos.”
Ou seja, mesmo perante o regime instituído pelas alterações introduzidas pela Portaria 170/2017 à Portaria 280/2013, não é absoluta a imperatividade de acolhimento do regime de apresentação de peças processuais por transmissão eletrónica de dados, designadamente em matéria de processo penal.
26º
Acresce que a apresentação de peças processuais e documentos por transmissão eletrónica de dados por mandatários judiciais é efetuada através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais (Sistema Citius), o que pressupõe o prévio registo do apresentante, sob pena de o mesmo não poder aceder ao referido sistema informático (cfr. art. 5º da Portaria).
Por outro lado, a apresentação de peças processuais é efetuada através do preenchimento de formulários disponibilizados em determinado endereço eletrónico, devendo as peças processuais e os documentos entregues ser assinados digitalmente através de certificado de assinatura eletrónica que garanta, de forma permanente, a qualidade profissional do signatário (cfr. art. 6º da Portaria).
Por outras palavras, o apresentante carece, não só de prévio registo junto do sistema Citius, mas igualmente de possuir uma assinatura digital, sob pena de estar impossibilitado de utilizar o referido sistema ou de proceder à consulta de processos (cfr. art. 27º da Portaria 280/2013, quanto a este último especto).
27º
Contudo, a Portaria 280/2013, em apreciação, prevê igualmente (cfr. nºs 5 e 6 do art. 6º da Portaria 280/2013, na nova redação):
“5 - Podem ser entregues em suporte físico os documentos:
a) Cujo suporte físico não seja em papel ou cujo papel tenha uma espessura superior a 127 g/m2 ou inferior a 50 g/m2;
b) Em formatos superiores a A4.”
6 - A entrega dos documentos referidos no número anterior deve ser efetuada no prazo de cinco dias após o envio dos formulários e ficheiros através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais.”
E o art. 10º da Portaria em apreciação contempla, igualmente, a possibilidade de se recorrer ao disposto no art. 144º, nº 7 do Código de Processo Civil, no caso de a dimensão da peça processual, ou do conjunto da peça processual e dos documentos, exceder 10 MB.
Ou seja, contemplam-se novas exceções à regra da apresentação de peças processuais exclusivamente por transmissão eletrónica de dados.
Sendo certo, por outro lado, que a própria Portaria 280/2013, na nova redação, faz indicação das peças, os autos e os termos processuais e documentos que, sendo relevantes para a decisão material da causa, devam constar do suporte físico (cfr. art. 28º da mesma Portaria).
Podendo tais peças ser enviadas em suporte de papel, quando haja lugar à prática de actos pelo juiz de círculo, desde que o juiz o determine (cfr. art. 36º da mesma Portaria).
28º
Resta indicar que mesmo o art. 4º da Portaria 170/2017, respeitante à sua aplicação no tempo, determina, ainda assim, uma sua entrada em vigor faseada, consoante os artigos em causa, tornando algo complicada a definição da exata entrada em vigor de cada disposição.
Todavia, tudo indica que o legislador terá pretendido que as alterações relativas à regra da utilização da transmissão eletrónica de dados em matéria de apresentação de recursos penais entrassem em vigor no dia 1 de julho de 2017 (cfr. art. 4º, nº 1 da Portaria 170/2017), pouco antes do início de férias judiciais, e o registo e a gestão de acessos ao sistema informático, por parte dos mandatários judiciais, vigorasse a partir de 1 de setembro de 2017 (cfr. nº 2 da mesma disposição).
Estamos, pois, longe da segurança conclusiva do Acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Coimbra, que considerou que tal entrada em vigor estaria irremediavelmente fixada para o dia 1/09/2013 (cfr. supra nº 5 das presentes contra-alegações).
29º
O preâmbulo da Portaria 170/2017 não deixa, por outro lado, de referir ser seu primeiro objetivo, consagrar «a possibilidade, de forma inovadora no âmbito do sistema judiciário, de as partes procederem ao exame e consulta de processos executivos por via eletrónica…» (destaques do signatário).
E acrescenta, um pouco mais adiante, um segundo objetivo (destaques do signatário):
“A presente portaria prevê, no entanto, outro passo importante para o projeto de desmaterialização dos processos judiciais, ao determinar a aplicação do regime de tramitação eletrónica previsto na Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, aos processos judiciais que até agora não se encontravam abrangidos pelo mesmo, designadamente aos processos penais (a partir da fase de julgamento), aos processos de contraordenação (apenas a partir do momento em que os autos são presentes ao juiz) e aos processos de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo (a partir da receção do requerimento para abertura da fase jurisdicional).
Após praticamente uma década de utilização do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais (Citius), em resultado das medidas de reforço do sistema implementadas pelo Ministério da Justiça e mostrando-se totalmente ultrapassados os problemas que afetaram esse sistema anteriormente, encontram-se reunidas as condições para a sua utilização em todas as áreas da responsabilidade dos tribunais judiciais, mesmo àquelas que se revestem de maior sensibilidade. Assim, e a partir de 1 de julho, será possível aos mandatários, por exemplo, remeterem as suas peças processuais através do sistema informático Citius, permitindo-se também por essa via efetuar as notificações entre mandatários, com as respetivas vantagens associadas.
Estando em causa a aplicação subsidiária do que, nessa matéria, estabelece o Código de Processo Civil, a tramitação eletrónica dos referidos processos abrange apenas a prática dos atos em relação aos quais as correspondentes leis de processo não estabelecem disciplina própria e em que, além disso, a aplicação subsidiária da lei processual civil se harmonize com a natureza desses processos.
Deste modo, por exemplo, e enquanto não for alterado o Código de Processo Penal nesse sentido, não será ainda possível aos tribunais notificarem eletronicamente os advogados ou defensores nomeados em processo penal.”
O próprio legislador foi, por isso, prudente ao definir que a tramitação eletrónica de processos, designadamente em matéria penal, não era integral e tinha de adequar-se, não só às condições e características do sistema informático utilizado (Sistema Citius), que, como se sabe, deu, em determinada altura, sérios problemas, que levaram à paralisação de inúmeros processos judiciais, como também às leis processuais vigentes.
30º
Sendo certo, por outro lado, que a própria Associação Sindical dos Juízes Portugueses, ainda muito recentemente, veio requerer, à Provedora de Justiça, que solicitasse, ao Tribunal Constitucional, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de diversas portarias, incluindo a Portaria 170/2017, que vieram impor que os processos passassem a ser tramitados em tribunal de forma desmaterializada.
Ora, perante um tal cenário, de introdução faseada de um sistema de desmaterialização de diversos tipos de processos em tribunais nacionais, que decorre há vários anos, com comprovadas dificuldades na operacionalidade de algumas das soluções ensaiadas, será legítimo recusar, a um arguido que entregou o seu requerimento de recurso tempestivamente, a apreciação do mesmo recurso, só porque não o mesmo não foi apresentado através de tramitação eletrónica adequada?
Sinceramente, não se crê!
E, com isto, não se pretende colocar em causa a prossecução do objetivo de desmaterialização dos processos judiciais em tribunais nacionais, mas apenas situar tal objetivo no seu devido contexto e extrair, desse mesmo contexto, os fundamentos para a devida ponderação da questão de constitucionalidade em apreciação nos presentes autos.
31º
Como se viu, embora com diversas exceções, a entrada em vigor da modalidade de entrega de requerimentos de recurso em matéria penal, através de tramitação eletrónica de dados, acabou por ser fixada, pelo legislador, para o dia 1 de julho de 2017.
Ora, nos presentes autos, o requerimento de recurso foi entregue tempestivamente, pelo arguido, em 1 de outubro de 2015 (cfr. supra nº 2 das presentes contra-alegações), primeiro por correio eletrónico e, alguns dias depois, em suporte de papel, ou seja, dois anos antes da entrada em vigor, nesta parte, da Portaria 170/2017.
Seria, por isso, legítimo e até mesmo expectável, que o Ilustre Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra tivesse, na dúvida, convidado o arguido para apresentar o seu requerimento de recurso no formato que considerou exigível, em vez de determinar, desde logo, a rejeição, sem apelo nem agravo, do mesmo recurso.
32º
Poderia fazê-lo, desde logo, no âmbito do seu dever de gestão processual (cfr. art. 6º do Código de Processo Civil), «promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, …, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável».
Poderia fazê-lo, ainda, no respeito pelo princípio de cooperação (cfr. art. 7º, nº 1, do Código de Processo Civil):
“1 - Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.”
Poderia fazê-lo, por último, no respeito pelo princípio do suprimento de deficiências formais de actos das partes (cfr. art. 146º, nº 2 do Código de Processo Civil), tanto mais que um tal suprimento ou correção não implicaria prejuízo relevante para o regular andamento da causa.
33º
Uma tal conduta, a ter-se verificado, permitiria respeitar o princípio de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, bem como concorreria, no caso dos autos, para um adequado respeito pelo princípio do processo justo ou equitativo.
E estaria próxima, por exemplo, da jurisprudência deste Tribunal Constitucional, designadamente relativa às consequências de não apresentação de conclusões nas alegações de recurso em processo penal.
Como referido, por exemplo, no Acórdão 536/2011, de 15 de novembro (Relator: Conselheiro Gil Galvão) (destaques do signatário):
“6. A reforma do regime dos recursos em processo civil efetivada pelo Decreto‑Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, tendo revogado o artigo 690. ° do CPC, veio, simultaneamente, aprovar o artigo 685º-C, n.º 2, alínea b), onde se considera que a falta de alegações ou de conclusões constitui fundamento de rejeição de recurso. Assim, onde anteriormente se admitia o convite ao recorrente para suprimento daquela falta de conclusões, agora tal convite só ocorre quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou quando nelas se não tenha procedido às especificações previstas no n.º 2 do artigo 685.º-A. O que, no dizer de Armindo Ribeiro Mendes (Recursos em Processo Civil - Reforma de 2007, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pág. 108), é uma solução mais drástica - e diversa da acolhida no processo penal, onde se prevê um despacho de aperfeiçoamento (artigo 417. ° n.º 3) - concluindo aquele Autor que é de "prever que se venham a suscitar questões de inconstitucionalidade nesta matéria." Já Amâncio Ferreira (Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª.ed., Coimbra, Almedina, 2009, pág. 171) sustenta que em boa hora o legislador optou pela tese do indeferimento do recurso na situação de falta de conclusões, como vinha defendendo face à vetustez da norma que impõe a formulação de conclusões, advinda do Código de 1939, concluindo que não compreende a afirmação de Ribeiro Mendes, relativamente ao citado enfoque constitucional. Por outro lado, Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil - novo regime, Coimbra, Almedina, 2007, pág. 151) refere que, quando faltem conclusões, não se admite a prolação de despacho de aperfeiçoamento, tendo em conta os antecedentes históricos do que agora se encontra previsto no artigo 685.º-A, em comparação do que constava do artigo 690.º-A, já que a falta de conclusões foi excluída do leque de situações que, em face do anterior preceito, admitiam despacho de aperfeiçoamento. Pode, assim, afirmar-se que o legislador pretendeu que, na situação de falta de conclusões na alegação de recurso em processo civil, não houvesse lugar ao despacho convite, optando pela rejeição imediata do recurso.
7. Diversa é a situação em processo penal e contraordenacional. Com efeito, na área penal e contraordenacional, existe variada jurisprudência (vejam-se os Acórdãos n.ºs 66/2000, 265/2001, 320/2002, 140/2004 e 459/2010, todos disponíveis na página Internet do Tribunal, em www.tribunalconstitucional.pt), onde foi sempre decidido - na consideração de que o direito a um duplo grau de jurisdição se identifica como verdadeira garantia de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição) - que enfermava de inconstitucionalidade uma interpretação normativa que, na falta de conclusões na motivação do recurso ou na presença de qualquer deficiência ou obscuridade, conduzisse à imediata rejeição do recurso sem convite ao recorrente.
Porém, como se salientou no Acórdão n.º 40/2000 (que se reportou à aplicação do disposto no artigo 690.º, n.º 3 do CPC em contencioso administrativo), “enquanto naqueles arestos estava em causa o direito ao recurso do arguido em processo penal ou contraordenacional, constitucionalmente garantido pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, no presente processo está em causa um recurso interposto em processo administrativo. Com efeito, naquelas decisões considerou-se que seriam inconstitucionais os artigos 412.º, n.º 1 e 420.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (acórdãos 193/97, 43/99 e 417/99) e 63.º, n.º 1 e 59.º, n.º 3 do Regime Geral das Contraordenações (acórdãos n.ºs 303/99 e 319/99) quando interpretados no sentido supra referido, "por essa interpretação afetar desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa, o direito ao recurso, garantido no que se refere ao processo penal e contraordenacional pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição". Pois bem, o artigo 32.º, n. 1 da Constituição apenas trata das garantias de defesa do arguido, entre as quais hoje se inclui expressamente o direito ao recurso, em processo criminal - e contraordenacional, Ex vi do n.º 10 do mesmo preceito - não sendo consequentemente invocável no momento de determinar as garantias dos administrados no âmbito do contencioso administrativo”. Nas palavras do Acórdão n.º 488/03, é “a diferença de parâmetros constitucionais convocáveis em processo penal (ou contraordenacional) e em outros ramos de direito processual que impede uma simples transposição de soluções obtidas em matéria de processo criminal e contraordenacional – por confronto com o artigo 32.º da Constituição – para o exterior do âmbito de aplicação desta norma”.
34º
Vejamos, por outro lado, o referido no Acórdão 462/2016, de 14 de julho (Relator: Conselheiro João Cura Mariano), em matéria de direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, bem como de direito a um processo equitativo (destaques do signatário):
“O artigo 20.º da Constituição garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efetive através de um processo equitativo (n.º 4).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão n.º 440/94, acessível na internet em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/, assim como os restantes acórdãos adiante referidos sem outra menção expressa).
Como resulta também da vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta matéria, o direito de ação ou direito de agir em juízo, efetivado através de um processo equitativo, entendido num sentido amplo, significa não apenas que o processo deverá ser justo na sua conformação legislativa, mas também que deverá ser um processo informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais, de modo a que seja adequado a uma tutela judicial efetiva.
Neste mesmo sentido, a doutrina e a jurisprudência têm procurado densificar o princípio do processo equitativo através de outros princípios: (1) direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias; (2) o direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas; (3) direito a prazos razoáveis de ação ou de recurso, proibindo-se prazos de caducidade exíguos do direito de ação ou de recurso; (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em tempo razoável; (6) direito ao conhecimento dos dados processuais; (7) direito à prova, isto é, à apresentação de provas destinadas a demonstrar e provar os factos alegados em juízo; (8) direito a um processo orientado para a justiça material sem demasiadas peias formalísticas. (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, págs. 415 e 416).
Por outro lado, conforme tem sido entendimento do Tribunal Constitucional, se é certo que a exigência de um processo equitativo não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo, impõe, contudo, no seu núcleo essencial, que os regimes adjetivos proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efetiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.
A questão em causa nos autos enquadra-se num conjunto vasto de casos, que o Tribunal já foi chamado a apreciar, em que é imposto um ónus processual às partes e em que a lei prevê uma determinada cominação ou consequência processual para o incumprimento de tal ónus.
Ora, a respeito das exigências decorrentes da garantia constitucional de acesso ao direito e à justiça, quando estejam em causa normas que impõem ónus processuais, o Tribunal tem afirmado que tal garantia não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo, não sendo incompatível com a imposição de ónus processuais às partes (cfr., neste sentido, entre outros, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 122/02 e 46/05).
No entanto, com também tem sido salientado pelo Tribunal, a ampla liberdade do legislador no que respeita ao estabelecimento de ónus que incidem sobre as partes e à definição das cominações e preclusões que resultam do seu incumprimento está sujeita a limites, uma vez que os regimes processuais em causa não podem revelar-se funcionalmente inadequados aos fins do processo (isto é, traduzindo-se numa exigência puramente formal e arbitrária, destituída de qualquer sentido útil e razoável) e têm de se mostrar conformes com o princípio da proporcionalidade. Ou seja, os ónus impostos não poderão, por força dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, impossibilitar ou dificultar, de forma arbitrária ou excessiva, a atuação procedimental das partes, nem as cominações ou preclusões previstas, por irremediáveis ou insupríveis, poderão revelar-se totalmente desproporcionadas face à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta cometida, colocando assim em causa o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (cfr., sobre esta matéria, Carlos Lopes do Rego, “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, in «Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa», Coimbra Editora, 2003, pp. 839 e ss. e, entre outros, os Acórdãos n.ºs 564/98, 403/00, 122/02, 403/02, 556/2008, 350/2012, 620/13, 760/13 e 639/14 do Tribunal Constitucional).
O Tribunal Constitucional, procurando densificar, na sua jurisprudência, o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em questão a imposição de ónus às partes, tem reconduzido tal juízo à consideração de três vetores essenciais:
- a justificação da exigência processual em causa;
- a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado;
- e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus (cfr., neste sentido, os Acórdãos n.ºs 197/07, 277/07 e 332/07).
No que respeita à situação dos autos, tendo em conta a liberdade de conformação que é conferida ao legislador ordinário, tem sentido que este possa prever um regime de recurso em que incumba ao recorrente, nas alegações, desenvolver os fundamentos ou razões jurídicas com base nas quais pretende ver alterada a decisão recorrida, exigindo ainda a formulação de conclusões destinada a resumir, de forma abreviada e sintética, o âmbito do recurso e dos respetivos fundamentos, enunciando as questões a decidir.
O cumprimento destas exigências, cuja satisfação não se revela excessivamente onerosa para o recorrente, não representa uma simples formalidade, posto que o corpo das alegações tem uma função substancialmente útil e necessária, conforme acima explicitado, destinando-se as conclusões apenas a sintetizar o conteúdo dessas alegações.
Assim, tendo em atenção o exposto, perante uma questão apenas enunciada nas conclusões e tendo em atenção a aludida função das alegações e a relação entre estas e as respetivas conclusões, não se afigura que o não conhecimento de tal questão ponha em causa a garantia do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva em qualquer das dimensões acima explicitadas.
Importa, no entanto, apreciar se o não conhecimento da questão, em resultado da aludida omissão, pode ter lugar sem que tenha havido um prévio convite ao recorrente no sentido de suprir tal omissão.
O Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado na sua jurisprudência que o direito ao processo, conjugado com o direito à tutela jurisdicional efetiva, impõe que se atribua prevalência à justiça material sobre a justiça formal, evitando-se soluções que, devido à exigência de cumprimento de «requisitos processuais», conduzam a uma decisão que, bem vistas as coisas, se poderá traduzir numa verdadeira denegação de justiça.
Concretamente, no que respeita a esta matéria, o Tribunal tem entendido que não existe um genérico direito à obtenção de um despacho de aperfeiçoamento (cfr., neste sentido o Acórdão n.º 259/02) e que o convite ao aperfeiçoamento de peças processuais deficientes não significa que beneficie de tutela constitucional um genérico, irrestrito e ilimitado “direito” das partes à obtenção de um sistemático convite ao aperfeiçoamento de todas e quaisquer deficiências dos atos por elas praticados em juízo.
Acresce que, como decorre também da jurisprudência do Tribunal (concretamente, dos acórdãos n.ºs 259/02 e 374/00), o convite ao aperfeiçoamento tem sentido e justificação quando as deficiências em causa forem de natureza estritamente formal ou secundária, dizendo respeito à “apresentação” ou “formulação”, mas não ao conteúdo, concludência ou inteligibilidade da própria alegação ou motivação produzida. Assim, o convite ao aperfeiçoamento de deficiências formais não pode ser instrumentalizado pelo respetivo destinatário, de forma a permitir-lhe, de modo enviesado, obter um novo prazo para, reformulando substancialmente a pretensão ou impugnação que optou por deduzir, obter um prazo processual adicional para alterar o objeto do pedido ou impugnação deduzida, só então cumprindo os ónus que a lei de processo justificadamente coloca a seu cargo.
Por outro lado, o Tribunal também já entendeu que o convite ao aperfeiçoamento não será constitucionalmente exigível nos casos em que a deficiência formal se deva a um “erro manifestamente indesculpável do recorrente” (cfr. Acórdão n.º 184/04).
Relativamente ao regime processual dos recursos, o Tribunal Constitucional tem entendido que o legislador tem uma ampla liberdade de conformação no que respeita ao estabelecimento, em cada ramo processual, das respetivas regras, desde que tais regras não signifiquem a imposição de ónus de tal forma injustificados ou desproporcionados que acabem por importar lesão da garantia de acesso à justiça e aos tribunais (Cfr., entre outros, o Acórdão n.º 299/93).”
35º
E o Acórdão 462/2016 acrescenta, um pouco mais adiante (destaques do signatário):
“Por outro lado, não obstante a assinalada diferença nesta matéria entre o direito processual penal e contraordenacional face ao processo civil, importa também salientar que, mesmo no âmbito processual penal e contraordenacional o tribunal tem entendido não haver lugar ao convite ao aperfeiçoamento quando estejam em causa omissões que afetem a motivação do recurso (e não apenas as conclusões).
Com efeito, na jurisprudência do Tribunal Constitucional, quer a relativa aos recursos de natureza penal (ou contraordenacional), quer a relativa aos recursos de natureza não penal, o Tribunal tem distinguido as situações em que as insuficiências e omissões detetadas no requerimento de recurso dizem [respeito] apenas às conclusões do recurso, daquelas situações em que tais insuficiências e omissões dizem respeito também à respetiva motivação.
A esse respeito, o Tribunal tem reiteradamente afirmado que da sua jurisprudência não pode retirar-se «uma exigência constitucional geral de convite para aperfeiçoamento, sempre que o recorrente não tenha, por exemplo, apresentado motivação, ou todos ou parte dos fundamentos possíveis da motivação (e que, portanto, o vício seja substancial, e não apenas formal). E ainda, por outro lado, que o legislador processual pode definir os requisitos adjetivos para o exercício do direito ao recurso, incluindo o cumprimento de certos ónus ou formalidades que não sejam desproporcionados e visem uma finalidade processualmente adequada, sem que tal definição viole o direito ao recurso constitucionalmente consagrado» (cfr., Acórdão n.º 140/2004).
Daí que, mesmo no domínio processual penal e contraordenacional, o Tribunal Constitucional distinga dois tipos de situações.
Nos casos em que as omissões, insuficiências ou deficiências em causa ocorrem não apenas nas conclusões do requerimento recurso, mas também na respetiva motivação, o Tribunal Constitucional tem formulado juízos negativos de inconstitucionalidade em relação a interpretações normativas no sentido de que, em tais circunstâncias, não deverá ser conhecida a matéria em questão, improcedendo o recurso, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tais deficiências. É o caso, por exemplo, dos Acórdãos n.ºs 259/2002, 140/2004 e 660/2014, em que o Tribunal não julgou inconstitucional a norma constante do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, quando interpretada no sentido de que a falta de indicação, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, das menções aí exigidas, tem como efeito o não conhecimento dessa matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tais deficiências.
Já nos casos em que também as omissões, insuficiências ou deficiências em causa se verifiquem apenas nas conclusões – e não na motivação –, o entendimento do Tribunal tem sido no sentido de se pronunciar pela inconstitucionalidade das interpretações normativas no sentido da rejeição imediata do recurso, sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento. Assim, entre outros, nos acórdãos n.ºs 192/2002, 529/2003, 322/2004, 405/2004, 357/2006 e 485/2008 o Tribunal concluiu pela inconstitucionalidade da referida norma do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, interpretado no sentido de que a falta, apenas nas conclusões da motivação do recurso – e não na motivação – das menções aí contidas determina a imediata rejeição do recurso, sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento.”
36º
Ora, no caso dos presentes autos, o arguido, ora recorrente, apresentou tempestivamente as suas alegações de recurso, primeiro por correio eletrónico, depois em suporte de papel, sendo, por isso, tais alegações suscetíveis de ser conhecidas e apreciadas pelo Tribunal da Relação de Coimbra, ora recorrido.
E a imediata rejeição do recurso, pelo simples motivo de não ter sido apresentado por transmissão eletrónica de dados (uma simples deficiência), sem se dar a possibilidade ao recorrente de suprir o seu lapso e de corrigir a forma de apresentação da sua peça processual, ainda mais quando se possa contestar estar-se perante um lapso e não perante uma possibilidade legalmente admissível de apresentação da mesma peça em juízo, traduz-se numa decisão que acaba por lhe não permitir o acesso a uma decisão adequada à sua pretensão, ou seja, que lhe nega o acesso ao tribunal e a uma tutela jurisdicional efetiva, restringindo o seu direito de defesa e o seu direito ao recurso e a um duplo grau de jurisdição, previstos no art. 32º da Constituição.
Com tal atuação, não se crê que a instância recorrida haja propugnado por «um processo informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais, de modo a que seja adequado a uma tutela judicial efetiva», ou haja concretizado um «direito a um processo orientado para a justiça material sem demasiadas peias formalísticas».
Por outras palavras, «os ónus impostos não poderão, por força dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, impossibilitar ou dificultar, de forma arbitrária ou excessiva, a atuação procedimental das partes, nem as cominações ou preclusões previstas, por irremediáveis ou insupríveis, poderão revelar-se totalmente desproporcionadas face à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta cometida, colocando assim em causa o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva».
O que, pelo contrário, se esperaria, da instância recorrida, era a concretização da ideia de que «o direito ao processo, conjugado com o direito à tutela jurisdicional efetiva, impõe que se atribua prevalência à justiça material sobre a justiça formal, evitando-se soluções que, devido à exigência de cumprimento de «requisitos processuais», conduzam a uma decisão que, bem vistas as coisas, se poderá traduzir numa verdadeira denegação de justiça».
37º
Pelos mesmos motivos, se julga que assiste razão ao arguido, ora recorrente, quando considera, nas suas alegações de recurso para este Tribunal Constitucional (cfr. fls. 112-113 dos autos) (destaques do signatário):
“25 – O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que rejeitou o recurso do Recorrente A. entendeu não ser admissível a utilização de correio eletrónico com meio legal de apresentação em juízo de actos processuais escritos, pelos sujeitos, no âmbito do processo penal, pelo que se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da norma extraída interpretativamente dos Art. 150º, nº 1, alínea d) e nº 2 do C. P. Civil de 1961, na redação do Decreto-Lei nº 324/2003, 27/12, e a Portaria nº 642/2004, de 16/06 e Portaria 114/2008, de 06/02, e ainda, o Art. 4º da Lei nº 41/2013, de 26/06, o Art. 144º, nºs 1, 7 e 8 do novo C. P. Civil, e a Portaria nº 280/2013, de 26/08, no sentido de não ser admissível a utilização de correio eletrónico como meio legal de apresentação em juízo de actos processuais escritos, pelos respectivos sujeitos, no âmbito do processo penal.
26 – E que a norma contida nos Art.s 286, 294 e 295 do Código Civil, Art 195 do novo Código de Processo Civil determinava que o recurso apresentado pelo arguido a juízo, por correio eletrónico, no âmbito do processo penal, é nulo.
27 – Ambas as normas com essa interpretação violam os princípios constitucionais do acesso ao direito e aos Tribunais, do direito à tutela jurisdicional efetiva, da legalidade, da proporcionalidade ou princípio da proibição do excesso e do próprio direito ao recurso.
28 – Que estão consagrados nos Arts. 18, 20, 29 e 32 da Constituição da República.
29 – Tal interpretação das normas viola o princípio do acesso ao direito e aos Tribunais consagrado no Art. 18 da CRP na medida em que dificulta o acesso aos Tribunais.
30 – Segundo a interpretação, que se julga inconstitucional, a remessa a juízo, em processo penal, só pode ser efetuada através de um, de três meios:
- Por entrega na secretaria judicial até às 16 horas do último dia útil do prazo;
- por envio através [de] correio registado, até às 18 horas do último dia útil do prazo, na maior parte do país:
- E finalmente, por telecópia, até ao final do último dia do prazo.
31 – Ora, tem sido uma preocupação do legislador facilitar o acesso ao direito e aos tribunais, não se perceberia que houvesse nesta altura um retrocesso nesta matéria.
32 – Não sendo à época ainda possível estender a aplicação da plataforma Citius ao processo penal, não se descortina qualquer razão para ter voltado para trás no processo penal e deixar de se permitir a remessa de peças processuais por correio eletrónico.
33 – A interpretação das normas que se considera inconstitucional introduz uma dificuldade acrescida na entrega das peças processuais em juízo,
34 – Contrariando os objetivos de facilitar a comunicação e da desmaterialização, e leva à repetição de actos, representando uma clara violação [do] princípio da obtenção de um julgamento num prazo razoável.”
38º
Assim como se considera que assiste igualmente alguma razão ao arguido, ora recorrente, quando este refere ainda, nas suas alegações de recurso para este Tribunal Constitucional (cfr. fls. 115-118 dos autos) (destaques do signatário):
“45 – Assim a interpretação no sentido de não ser admissível a utilização de correio eletrónico como meio de apresentação em juízo de actos processuais escritos pelos respectivos sujeitos, no âmbito do processo penal, viola o princípio do acesso ao direito e aos tribunais consagrado no art. 20 da CRP, que por sua vez faz parte integrante do princípio material da igualdade consagrado no Art. 13 do mesmo diploma fundamental.
46 – Com a eliminação dessa forma de apresentação de peças processuais em juízo sem qualquer fundamento que o aconselhe, o sujeito processual vê ser restringido o seu direito à ação, que consiste no direito de levar a sua pretensão ao conhecimento do órgão judicial, com o consequente direito à abertura do processo (direito ao processo), com o consequente dever de ser pronunciar mediante decisão fundamentada (direito à decisão), e dependendo da decisão, exigir se for o caso, a execução da decisão (direito à execução da decisão do tribunal), viola o direito à decisão da causa em prazo razoável e o direito a um processo equitativo, princípios consagrados no Art. 20 CRP.
47 – A densificação deste último direito a um processo equitativo encontra-se, no âmbito do processo penal, consagrado no Art. 32 da CRP, que tal interpretação também viola.
48 – Tal consequência ofende em medida insuportável o direito a um processo justo e equitativo e as garantias de defesa do arguido que vê ser-lhe recusado um direito (a requerer uma nova apreciação da matéria de facto e de direito por um Tribunal Superior) em condições que não controla e que frustram por completo as legítimas expectativas que formou quanto ao prazo de exercício desse direito.
49 – Importa também referir que a interpretação de ambas as normas que se consideram inconstitucionais violam o direito a um processo orientado para a justiça material sem demasiadas peias formalísticas.
50 – Já que por questões meramente formais, sem qualquer justificação, o Recorrente veria ser-lhe negado o direito a ver reapreciada o seu processo, quer na matéria de facto, quer na matéria de direito.
51 – O nº 5 do Art. 20 da CRP consagra o direito à tutela jurisdicional efetiva, considerando assim insuficiente o direito de acesso ao direito e aos tribunais.
52 – E impondo que o legislador tenha esse princípio da efetividade em consideração no momento de tratar da organização dos tribunais e na delimitação, e definição, dos instrumentos processuais.
53 – Ao não reconhecer o correio eletrónico como uma forma possível de apresentação de peças processuais em processo penal, os sujeitos processuais vêm os seus direitos restringidos sem qualquer justificação.
54 – Na medida em que a restrição dessa forma de apresentação de peças processuais – correio eletrónico – não tem qualquer fundamento, nem qualquer motivação que a desaconselhe.
55 – Uma legislação que não permite a apresentação de peças processuais em juízo através de correio eletrónico, em processo penal, sem qualquer justificação, contrariando a evolução da legislação no sentido do aproveitamento das novas tecnologias com objetivo de desmaterializar a justiça e diminuir a morosidade da mesma, viola o disposto no Art. 18 da CRP, na medida em que, violando os princípios do acesso ao direito e aos tribunais, nomeadamente no direito à tutela jurisdicional efetiva, reconhecidos direitos fundamentais tutelados no Art. 20 do mesmo diploma fundamental, as suas restrições só se justificarão para salvaguardar um outro direito ou interesse protegido constitucionalmente.
56 – É de ponderar a intensidade lesiva/ofensiva da decisão que, na interpretação sindicada, não admite recurso para o Tribunal da Relação em relação à matéria de facto e de direito, bem como posteriormente, se fosse caso disso, para o Supremo Tribunal de Justiça, em matéria de direito.
57 – O que não é seguramente o caso da restrição, sem qualquer fundamento ou justificação, dos meios para apresentação das peças processuais, considerando ilegal, ou mesmo nula tal forma de apresentação – correio eletrónico.
58 – Violado encontra-se também o princípio da proporcionalidade consagrado no Art. 18 da CRP, também chamado princípio da proibição do excesso, já que tal interpretação não tem em vista a prossecução dos fins visados pela lei (princípio da adequação), nem se mostra necessário a eliminação do correio eletrónico dos meios para a remessa das peças processuais (princípio da necessidade), e, por fim, as restrições devem ser consideradas justas medidas, ou seja, que não sejam desproporcionadas e excessivas (princípio da proporcionalidade em sentido estrito).
59 – Ao considerar nula e ilegal a remessa a juízo de peças processuais através de correio eletrónico, está a ser violado direito ao Recurso, que se traduz na reapreciação da questão por um Tribunal superior, quer quanto à matéria de direito, quer quanto à matéria de facto,
60 – Já que em processo penal o direito de defesa pressupõe um duplo grau de jurisdição.
61 – Além da violação do direito de defesa e do direito ao recurso, consagrados no Art. 32 da CRP, também o princípio consagrado na mesma norma constitucional da presunção de inocência do arguido, numa das suas dimensões mais importantes, que chega a assumir um valor autónomo – a obrigatoriedade de julgamento no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa – também se encontra violado já que tal meio processual se integra numa das medidas implementadas para aumentar a celeridade processual.
62 – Seria aliás completamente desproporcional esta restrição nas possibilidades de envio das peças processuais para os tribunais, já que não se consegue apreender qualquer justificação para o fazer.
63 – Ora, ao facilitar a comunicação entre os cidadãos que buscam a justiça e os tribunais que a administram, a utilização do correio eletrónico para a remessa a juízo das peças processuais em processo penal, respeitará o direito constitucional consagrado no mesmo Art. 32º da CRP ao processo célere.
64 – A contrario, poderemos afirmar que esse direito constitucionalmente consagrado será violado com a interpretação segundo a qual tal utilização não é admissível.
65 – A segurança e a autenticidade em momento algum seria colocada em causa já que estamos perante um meio de envio muito idêntico, mas mais prático e mais rápido, do que o envio por telecópia,
66 – Nomeadamente se se proceder à entrega do original e dos respectivos duplicados, ou do seu envio por correio registado, dentro dos cinco dias posteriores.”
39º
Ora, poder-se-á não acompanhar inteiramente a argumentação do arguido acabada de transcrever, mas as questões de violação de muitos dos princípios constitucionais que suscita parecem, ao signatário, pertinentes, muito embora se tenha por certo que o envio de peças processuais através de correio eletrónico não cumpre, exatamente, a mesma função que a transmissão das referidas peças processuais através do sistema Citius, uma vez que, neste último caso, tais peças ficariam, desde logo, devidamente integradas e estruturadas no seio do mesmo sistema, com a facilidade daí decorrente para a prossecução dos restantes trâmites processuais (comunicação às partes, acesso por parte do tribunal, etc.).
Mas a questão fundamental a ter em conta é, porém, o da gravosa consequência de tal violação procedimental de entrega das peças processuais, que, no caso do Acórdão recorrido, se traduz na impossibilidade de o recorrente levar o seu requerimento de recurso à apreciação da instância ad quem.
40º
Ora, neste âmbito, há que ter particularmente em conta que o regime de nulidades processuais, em sede de processo penal, é particularmente exigente e se encontra sujeito ao princípio da nulidade (cfr. art. 118º do Código de Processo Penal), estabelecendo a lei, neste domínio, que “a violação ou a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei» (cfr. nº 1 desta disposição).
Ora, sintomaticamente, o Acórdão recorrido não invoca, como fundamento da nulidade que diz existir na transmissão a juízo do requerimento de recurso do arguido através de correio eletrónico, nenhuma disposição do Código de Processo Penal, mas apenas disposições do Código Civil, designadamente os arts. 294º e 295º do mesmo diploma (cfr. supra nº 5 e 15 das presentes contra-alegações).
Não se vendo, por outro lado, mesmo que estivéssemos perante uma situação de nulidade à face da lei processual penal, que a mesma fosse insanável (cfr. art. 119º do Código de Processo Penal) e não apenas que o acto pretensamente ilegal fosse irregular, o que determinaria que a respectiva nulidade estaria dependente de arguição (cfr. art. 120º do Código de Processo Penal).
41º
Assim, por todas as razões invocadas ao longo das presentes contra-alegações, julga-se que este Tribunal Constitucional deverá:
a) conceder provimento ao recurso de constitucionalidade interposto pelo arguido ora recorrente, A., nos presentes autos;
b) revogar, nessa medida, o Acórdão recorrido, de 9 de novembro de 2016, do Tribunal da Relação de Coimbra, que rejeitou o recurso interposto, pelo arguido e, nessa medida, confirmou o Acórdão proferida pelo Tribunal Coletivo do Tribunal Central de Leira, de 13 de julho de 2015, que condenou o mesmo arguido, pela prática de um crime de homicídio qualificado, na pena de 16 anos de prisão;
c) com efeito, o Acórdão recorrido considerou não só extemporâneo, mas igualmente ferido de nulidade, o envio do requerimento de interposição de recurso do arguido para o Tribunal da Relação de Coimbra, por o mesmo ter sido formalizado através de transmissão por correio eletrónico, num primeiro momento e em suporte de papel, num segundo momento, e não através da respectiva transmissão através do sistema Citius.»
5. Por cessação de funções no Tribunal Constitucional do relator originário foram os autos redistribuídos à ora relatora.
Cumpre apreciar e decidir
II
– Fundamentação
a) Delimitação da questão de constitucionalidade
6. O Recorrente apresenta a questão de constitucionalidade distribuída por duas dimensões: por um lado, «a inconstitucionalidade da norma extraída interpretativamente dos artigos 150.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, do C. P. Civil de 1961, na redação do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27/12, e a Portaria n.º 642/2004, de 16/06, e a Portaria n.º 114/2008, de 06/02, e ainda, o artigo 4.º da Lei n.º 41/2013, de 26/06, o artigo 144.º, n.ºs 1, 7 e 8, do novo C. P. Civil, e a Portaria n.º 280/2013, de 26/08, no sentido de não ser admissível a utilização de correio eletrónico como meio legal de apresentação em juízo de atos processuais escritos, pelos respetivos sujeitos, no âmbito do processo penal;» e, por outro lado, a «interpretação normativa do disposto nos artigos 286.º, 294.º e 295.º do Código Civil, artigo 195.º do novo Código de Processo Civil» no sentido de que «o recurso apresentado pelo arguido a juízo, por correio eletrónico, no âmbito do processo penal, é nulo».
Lida a decisão recorrida logo se percebe, porém, que a mesma não aplicou, como ratio decidendi, nenhuma norma extraída da conjugação dos «artigos 150.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, do C. P. Civil de 1961, na redação do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27/12, e a Portaria n.º 642/2004, de 16/06, e a Portaria n.º 114/2008, de 06/02, e ainda, o artigo 4.º da Lei n.º 41/2013, de 26/06, o artigo 144.º, n.ºs 1, 7 e 8, do novo C. P. Civil, e a Portaria n.º 280/2013, de 26/08». O que a decisão recorrida considerou foi que, uma vez que o artigo 150.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC) de 1961, se encontrava revogado – não o tendo, logicamente, aplicado –, inexistia qualquer base legal de suporte jurídico para o uso do correio eletrónico como meio válido de apresentação a juízo de atos processuais escritos, pelo que o ato assim praticado deveria ser considerado nulo. Foi, portanto, a norma que qualifica como nula a apresentação do requerimento de recurso através de correio eletrónico, por inexistir base legal para o efeito, que determinou a conclusão da extemporaneidade do mesmo. Esta teve como consequência a sua rejeição com esse fundamento, já que sendo nula a apresentação (dentro do prazo) do requerimento de recurso por correio eletrónico, apenas viria a ser considerada a data da apresentação dos duplicados (já fora do prazo).
Assim, de forma a fazer coincidir o objeto do recurso com a efetiva ratio decidendi da decisão recorrida, no respeito pela função instrumental do recurso de constitucionalidade, importa reconduzir a apreciação da questão de constitucionalidade à norma que comina com nulidade o recurso apresentado pelo arguido a juízo, por correio eletrónico, dentro do prazo, no âmbito do processo penal, resultante da conjugação do artigo 4.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, o artigo 144.º, n.ºs 1, 7 e 8, do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e a Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, com o disposto nos artigos 286.º, 294.º e 295.º do Código Civil, e artigo 195.º do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.
b) Enquadramento normativo da questão
7. Para melhor compreensão da dimensão normativa questionada, importa, antes de mais, contextualizar a inserção sistemática e evolução do regime jurídico aplicável à situação objeto do presente processo.
Até à aprovação do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de agosto, o artigo 150.º do CPC (na versão aprovada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro), previa apenas a entrega das peças processuais na secretaria judicial ou, em alternativa, a remessa a juízo por correio (sob registo) ou por telecópia ou meios telemáticos, nos termos previstos em diploma regulamentar.
O Decreto-Lei n.º 183/2000, prosseguindo objetivos de combate à morosidade processual, de simplificação, desburocratização e eficácia processual, alterou a redação do artigo 150.º do Código de Processo Civil, consagrando, de forma inovadora, a admissibilidade do envio dos articulados através de correio eletrónico, necessariamente acompanhado da aposição da assinatura digital do seu signatário, valendo como data da prática do ato processual a da sua expedição. Ciente da mudança estrutural provocada por esta alteração, o legislador estabeleceu, como norma transitória, que «O regime previsto nos n.ºs 1 a 4 do artigo 150.º entra em vigor no dia 1 de janeiro de 2003, podendo as partes dele prevalecer-se desde o dia 1 de janeiro de 2001» (artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 183/2000). No preâmbulo daquele diploma, é explicado que «em face da necessidade de adaptação dos profissionais do foro e da integral informatização dos tribunais, prevê-se em disposição transitória que a apresentação dos articulados e alegações ou contra-alegações escritas em suporte digital só é obrigatória a partir do dia 1 de janeiro de 2003, sendo facultativa desde a data da entrada em vigor do diploma, quer para tais peças processuais, quer para quaisquer outros atos processuais que devam ser praticados por escrito, deixando de existir a necessidade de junção dos duplicados e cópias legais no caso de as peças processuais serem apresentadas em suporte digital» (sublinhado adicionado).
Subsequentemente, o Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de dezembro, que modificou o Código das Custas Judiciais, através do seu artigo 5.º veio alterar de novo o artigo 150.º do CPC, elucidando-se, no ponto 11 do preâmbulo, que «simultaneamente, e à margem da revisão do Código das Custas Judiciais, clarifica-se o regime do envio e do suporte das peças processuais, previsto no artigo 150.º do Código de Processo Civil, cujo aplicação e utilidade práticas têm vindo a suscitar inúmeras dúvidas, designadamente no que respeita à utilização do suporte digital e do correio eletrónico, instituindo-se um normativo suscetível de acarretar vantagens e benefícios para todos os operadores judiciários.» Nesta sequência, o procedimento de remessa a juízo das peças processuais através de correio eletrónico veio, nos termos do n.º 2 do artigo 150.º do CPC, a ser objeto de regulamentação pela Portaria n.º 642/2004, de 16 de junho. Segundo o artigo 1.º, n.º 3, da referida Portaria, apenas a entrega do requerimento executivo se encontrava excluída do seu âmbito de aplicação.
Posteriormente, prosseguindo na senda da progressiva desmaterialização dos processos judiciais, o Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, alterou o CPC, procedendo à revisão do regime de recursos e de conflitos em processo civil e adaptando-o à prática de atos processuais por via eletrónica. Neste âmbito, o diploma modificou o disposto no artigo 150.º do CPC, estabelecendo a transmissão eletrónica de dados como modo preferencial de prática dos atos processuais escritos das partes, «nos termos definidos na portaria prevista no n.º 1 do artigo 138.º-A, valendo como data da prática do ato processual a da respetiva expedição» (artigo 150.º, n.º 1, CPC, na redação resultante desta alteração). No entanto, ao dispor sobre a aplicação no tempo desta alteração, o artigo 11.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 303/2007 estabeleceu que a produção de efeitos da alteração introduzida, nomeadamente, ao artigo 150.º CPC, «depende da entrada em vigor da portaria prevista no n.º 1 do artigo 138.º-A do referido Código e aplica-se aos processos pendentes nessa data». Neste contexto, foi aprovada a Portaria n.º 114/2008, de 6 de fevereiro, regulando vários aspetos da tramitação eletrónica dos processos, nomeadamente a forma de apresentar a juízo, por transmissão eletrónica de dados, os atos processuais e documentos pelas partes através do sistema informático CITIUS. Salientava-se, desde logo, no preâmbulo que «o projeto de desmaterialização dos processos judiciais não se concretiza num único momento. Resulta antes de um processo evolutivo e de um conjunto concertado de ações diversas, realizadas ao longo do tempo, que envolvem esforços de construção e disponibilização de novas aplicações informáticas, de novos instrumentos de trabalho, de formação inicial e permanente a diversas categorias de profissionais do sector da justiça, de renovação de equipamentos e da aprovação de instrumentos normativos». Com este enquadramento, a aplicação da tramitação eletrónica foi circunscrita às ações declarativas cíveis, às providências cautelares, às notificações judiciais avulsas e às ações executivas cíveis, com exceção da apresentação do requerimento executivo (artigo 2.º). Esta Portaria veio revogar a Portaria n.º 642/2004, de 16 de junho, no que diz respeito a estas ações (artigo 27.º)
8. Face a esta profusão de atos legislativos e à omissão de norma relativa à utilização de transmissão eletrónica de dados no Código de Processo Penal (CPP), surgiram decisões judiciais de sentido antagónico, no que concerne à admissibilidade legal da apresentação, em processo penal, de peças processuais através de correio eletrónico. A controvérsia jurisprudencial cessou com a prolação, pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 6 de março de 2014, do acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 3/2014 (publicado no Diário da República n.º 74, série I, de 17 de abril de 2014). Aí foi fixada jurisprudência no seguinte sentido:
«Em processo penal, é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio eletrónico, nos termos do disposto no artigo 150.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961, na redação do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27.12, e na Portaria n.º 642/2004, de 16.06, aplicáveis conforme o disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal».
9. No dia 1 de setembro de 2013, entrou em vigor o novo CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho. Este diploma disciplina a apresentação a juízo dos atos processuais no artigo 144.º que, ao não prever a possibilidade de remessa de articulados através de correio eletrónico, veio consolidar o paradigma de prática dos atos processuais escritos através da «transmissão eletrónica de dados, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 1 do artigo 132.º (tramitação eletrónica)» (artigo 144.º, n.º 1), vulgo através do sistema informático CITIUS.
Para regulamentar a matéria da tramitação eletrónica de processos à luz do novo CPC foi aprovada a Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, que revogou a Portaria n.º 114/2008, de 6 de fevereiro, disciplinando, nomeadamente, a «apresentação de peças processuais e documentos por transmissão eletrónica de dados, nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 144.º do Código de Processo Civil, incluindo a apresentação do requerimento de interposição de recurso, das alegações e contra-alegações de recurso e da reclamação contra o indeferimento do recurso e a subida dos recursos, nos termos dos artigos 643.º, 644.º, 646.º, 671.º, 688.º e 696.º do Código de Processo Civil» (artigo 1.º, n.º 1, alínea b), da Portaria n.º 280/2013, na sua versão original). Embora produzisse efeitos logo no dia 1 de setembro de 2013, o artigo 2.º da Portaria circunscreveu o seu âmbito material de aplicação à tramitação eletrónica «das ações declarativas cíveis, dos procedimentos cautelares, das notificações judiciais avulsas, com exceção dos processos de promoção e proteção das crianças e jovens em perigo e dos pedidos de indemnização civil ou dos processos de execução de natureza cível deduzidos no âmbito de um processo penal», bem como «das ações executivas cíveis e respetivos incidentes apensados».
A Portaria n.º 280/2013 foi posteriormente alterada pela Portaria n.º 170/2017, de 25 de maio, que estendeu a tramitação eletrónica dos processos nos tribunais judiciais de 1.ª instância ao processo penal, mas «apenas a partir da receção dos autos em tribunal a que se referem o n.º 1 do artigo 311.º e os artigos 386.º, 391.º-C e 396.º do Código de Processo Penal» (artigo 1.º, n.º 2, da Portaria n.º 280/2013, na redação dada pelo artigo 2.º da Portaria n.º 170/2017). Mais especificamente, a Portaria n.º 170/2017, regulamentou, pela primeira vez, a tramitação eletrónica (através do endereço https://citius.tribunaisnet.mj.pt, previsto no artigo 5.º, n.º 1), da «apresentação do requerimento de interposição de recurso, das motivações, da reclamação contra a não admissão ou retenção do recurso, e da resposta ao recurso, nos termos dos artigos 405.º, 411.º e 413.º do Código de Processo Penal» (artigo 1.º, n.º 6, alínea b), da Portaria n.º 280/2013, na redação dada pelo artigo 2.º da Portaria n.º 170/2017). Por força do artigo 6.º da Portaria n.º 170/2017, as alterações introduzidas entraram em vigor no dia 29 de maio de 2017.
Finalmente, o regime de tramitação eletrónica de processos previsto na Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, alargou-se às causas (cíveis e penais) pendentes nas instâncias superiores dos tribunais judiciais em consequência das alterações introduzidas pela Portaria n.º 267/2018, de 20 de setembro. Todavia, essa aplicação, de acordo com as disposições de direito final e transitório incluídas no respetivo artigo 18.º, teve início, quanto aos processos no Supremo Tribunal de Justiça, no dia 11 de dezembro de 2018 (n.º 1) e, relativamente aos processos nos Tribunais da Relação, no dia 9 de outubro de 2018 (n.º 2).
c) do mérito da causa
10. Segundo a decisão recorrida, a aprovação do novo CPC através da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, veio revogar, através do seu artigo 4.º, a disciplina da apresentação a juízo de atos processuais, prevista no artigo 150.º do CPC anteriormente vigente, consequentemente revogando a Portaria n.º 642/2004, de 16 de junho, que contemplava a possibilidade de remessa de articulados através de correio eletrónico. Ainda segundo a decisão recorrida, é a introdução, através da referida Lei n.º 41/2013, de um novo quadro legal que sustenta a desconsideração da jurisprudência fixada, pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão uniformizador n.º 3/2014, acima referido. Assim, os meios para a apresentação do requerimento em juízo seriam apenas os legalmente estabelecidos no artigo 144.º, n.ºs 7 e 8, do CPP: a entrega na secretaria judicial, a remessa pelo correio, sob registo e o envio através de telecópia (esta nos termos previstos pelo Decreto-Lei n.º 28/92, de 27 de fevereiro). Na sequência, concluindo pela inexistência de base legal para a apresentação a juízo de atos processuais escritos através de correio-electrónico, entendeu o tribunal a quo sancionar com a nulidade a prática daquele ato.
A este propósito, invoca o Recorrente que a norma que comina como nulo o ato de apresentação, em processo penal, do articulado de recurso através de correio eletrónico, viola o princípio constitucional de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da Constituição, na dimensão de direito a um processo equitativo.
11. O artigo 20.º da Constituição, sob a epígrafe «Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva», garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efetive através de um processo equitativo (n.º 4).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange, nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (veja-se, neste sentido, entre outros, os Acórdãos n.º 204/2015, 2.ª Secção, ponto 2.3; n.º 401/2017, da 3.ª Secção, ponto 14; n.º 675/2018, Plenário, ponto 6; n.º 687/2019, 1.ª Secção, ponto 13).
Acresce ainda que o direito de ação ou direito de agir em juízo terá de efetivar-se através de um processo equitativo, o qual deve ser entendido não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais. A jurisprudência e a doutrina têm procurado densificar o conceito de processo equitativo essencialmente através dos seguintes princípios: (1) direito à igualdade de armas ou igualdade de posição no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias; (2) proibição da indefesa e direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas, controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras; (3) direito a prazos razoáveis de ação e de recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiados exíguos; (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em prazo razoável; (6) direito de conhecimento dos dados do processo (dossier); (7) direito à prova; (8) direito a um processo orientado para a justiça material (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, 2007, vol. I, pp. 415-416).
12. É certo que a exigência consagrada no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo. Deve ser reconhecida, aliás, uma ampla discricionariedade legislativa na definição da tramitação processual civil, que permite ao legislador, por razões de conveniência, oportunidade e celeridade, fazer incidir ónus processuais sobre as partes e prever quais as cominações ou preclusões que resultam do seu incumprimento.
No entanto, isso não significa que as soluções adotadas sejam imunes a um controle de constitucionalidade. O reconhecimento do direito fundamental a um processo equitativo estabelece limites a essa liberdade de conformação, nomeadamente garantindo que os regimes adjetivos proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efetiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (veja-se, neste sentido, entre outros, os Acórdãos n.º 204/2015, 2.ª Secção, ponto 2.3; n.º 353/2017, Plenário, ponto 7; n.º 105/2018, da 1.ª Secção, ponto 7). Nesse contexto, deve ser controlado se os ónus processuais impostos pelo legislador são funcionalmente adequados aos fins do processo, traduzindo-se numa exigência puramente formal e arbitrária, destituída de qualquer sentido útil e razoável, bem como se as cominações ou preclusões que decorram do seu incumprimento se revelam totalmente desproporcionadas perante a gravidade e relevância da falta. Também deverá ser controlada a interpretação normativa que, de uma forma inovatória e surpreendente, determina a imposição às partes de exigências formais que elas não podiam razoavelmente antecipar, sendo o desculpável incumprimento sancionado em termos irremediáveis e definitivos (vide, neste sentido, Lopes do Rego, “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade, dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, em Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2004, pág. 839 e seg.).
Neste sentido, no Acórdão n.º 462/2016, da 2.ª Secção, ponto 2.2., o Tribunal Constitucional já constatou que:
«(…) a ampla liberdade do legislador no que respeita ao estabelecimento de ónus que incidem sobre as partes e à definição das cominações e preclusões que resultam do seu incumprimento está sujeita a limites, uma vez que os regimes processuais em causa não podem revelar-se funcionalmente inadequados aos fins do processo (isto é, traduzindo-se numa exigência puramente formal e arbitrária, destituída de qualquer sentido útil e razoável) e têm de se mostrar conformes com o princípio da proporcionalidade. Ou seja, os ónus impostos não poderão, por força dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, impossibilitar ou dificultar, de forma arbitrária ou excessiva, a atuação procedimental das partes, nem as cominações ou preclusões previstas, por irremediáveis ou insupríveis, poderão revelar-se totalmente desproporcionadas face à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta cometida, colocando assim em causa o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (cfr., sobre esta matéria, Carlos Lopes do Rego, “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, in «Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa», Coimbra Editora, 2003, pp. 839 e ss. e, entre outros, os Acórdãos n.ºs 564/98, 403/00, 122/02, 403/02, 556/2008, 350/2012, 620/13, 760/13 e 639/14 do Tribunal Constitucional).
O Tribunal Constitucional, procurando densificar, na sua jurisprudência, o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em questão a imposição de ónus às partes, tem reconduzido tal juízo à consideração de três vetores essenciais:
- a justificação da exigência processual em causa;
- a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado;
- e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus (cfr., neste sentido, os Acórdãos n.ºs 197/07, 277/07 e 332/07).»
A possibilidade de controlo, através de um juízo de proporcionalidade, da imposição de ónus às partes, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, também é aplicável no âmbito do direito ao recurso em processo penal. Atente-se no que, a propósito se refere no Acórdão n.º 485/2008, 2.ª Secção, ponto 2.3., por referência à fundamentação do Acórdão n.º 215/20072.ª Secção, ponto 2.4.:
«Especificamente quanto ao processo criminal, em que é convocável o parâmetro constitucional do princípio das garantias de defesa, incluindo expressamente o direito ao recurso, tem‑se considerado ser lícito ao legislador, na sua regulamentação, impor determinados ónus aos diversos intervenientes processuais. Mister é, no entanto, que, ao fazê‑lo, o legislador respeite o princípio da proporcionalidade. Na verdade, a natureza de direito fundamental que desde sempre o Tribunal Constitucional reconheceu ao direito de recurso das decisões penais finais (maxime se condenatórias) e que o legislador constitucional reforçou, ao consagrá-lo explicitamente, na revisão constitucional de 1997, com o aditamento feito na parte final do n.º 1 do artigo 32.º (“O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”), convoca diretamente a aplicabilidade do princípio da proporcionalidade, não apenas para proscrever soluções legais negatórias da admissibilidade do recurso, mas também como critério aferidor da legitimidade dos condicionamentos e da tramitação legal dos recursos. E o juízo de proporcionalidade a emitir neste domínio não pode deixar de tomar em consideração três vetores essenciais: (i) a justificação da exigência processual em causa; (ii) a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado; e (iii) a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento do ónus.
Na jurisprudência precedentemente citada firmou‑se o entendimento de que, nas situações apreciadas, se justificava a formulação de convite, antes de se considerar irremediavelmente precludido o conhecimento dos recursos interpostos, por tal ser a solução que melhor se coaduna com a ponderação entre o interesse na celeridade própria do processo penal e o asseguramento das garantias de defesa e do direito de recurso. A concordância prática entre o valor da celeridade, conatural ao processo penal, e a plenitude das garantias de defesa é possível, com a formulação de convite para, em prazo curto, ser suprida a deficiência, “sem necessidade de se chegar ao extremo de fulminar desde logo o recurso, em desproporcionada homenagem ao valor celeridade, promovido, assim, à custa das garantias de defesa do arguido”.» (sublinhado aditado)
Por conseguinte, importa sujeitar a dimensão normativa objeto do presente processo a um juízo de proporcionalidade, aderindo-se, para esse efeito, à ponderação destes três vetores essenciais, aventados na jurisprudência do Tribunal Constitucional.
13. No que respeita à situação dos autos, não exige desenvolvida demonstração a conclusão de que a exigência de apresentação pelas partes das peças processuais por um dos três meios previstos no artigo 144.º, n.ºs 7 e 8, do CPC (entrega na secretaria judicial, remessa por correio, sob registo ou através de telecópia) é justificada. Trata-se de uma exigência funcionalmente adequada aos fins, não podendo afirmar-se que se trata de uma imposição arbitrária sem qualquer sentido útil para a tramitação processual. Não se trata, por outro lado, manifestamente, de um ónus particularmente gravoso ou difícil de satisfazer por parte do Recorrente.
No entanto, a interpretação normativa que nos ocupa neste processo abrange não o ónus, em si, mas o desvalor jurídico com que se comina o seu incumprimento: neste caso, a nulidade do recurso. Para analisar o problema de constitucionalidade do critério normativo sob fiscalização deve começar-se por referir que a consequência jurídica da inobservância de um meio de comunicação do ato – requisito formal – não se encontra expressamente prevista na letra do texto legal.
Como resulta do que acima se explanou de forma detalhada, ao tempo da prática do ato afigurava-se controverso determinar, com a devida segurança, qual o regime jurídico aplicável à apresentação do requerimento de recurso, em sede de processo penal. Por um lado, no Código de Processo Penal subsistia a inexistência de norma reguladora. Por outro lado, a profusão e sucessão, de disciplinas legais gerou tal dúvida interpretativa que levou o Supremo Tribunal de Justiça, perante a existência de arestos de teor contraditório, a prolatar um acórdão uniformizador de jurisprudência. No entanto, este aresto acabou por não pôr termo, em definitivo, à controvérsia, face à aprovação posterior de um novo Código de Processo Civil.
Neste contexto, é necessário aferir se a sanção constante da dimensão normativa sob análise resiste ao teste do princípio da proporcionalidade. Como o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 434/2011, 2.ª Secção, ponto 7, referiu:
«Apesar de se reconhecer a importância de uma estrutura processual deliberadamente simplificada e célere (…) é imperioso garantir que o bem jurídico celeridade não comprometa, de forma desproporcional, o princípio do contraditório, sob pena de violação incomportável do acesso à tutela jurisdicional efetiva.
A propósito do equilíbrio necessário entre a celeridade processual e a justiça da decisão, em termos transponíveis para a presente situação, refere C. Lopes do Rego:
“As exigências de simplificação e celeridade – assentes na necessidade de dirimição do litígio em tempo útil – terão, pois, necessariamente que implicar um delicado balanceamento ou ponderação de interesses por parte do legislador infraconstitucional – podendo nelas fundadamente basear-se o estabelecimento de certos efeitos cominatórios ou preclusivos para as partes ou a adoção de “mecanismos que desencorajem as partes de adotar comportamentos capazes de conduzir ao protelamento indevido do processo”, sem, todavia, aniquilar ou restringir desproporcionadamente o núcleo fundamental do direito de acesso à justiça e os princípios e garantias de um processo equitativo e contraditório que lhe estão subjacentes, como instrumentos indispensáveis à obtenção de uma decisão jurisdicional – não apenas célere - mas também justa, adequada e ponderada” (in “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2003, p. 855).
Do exposto resulta que uma falha processual – maxime que não acarrete, de forma significativa, comprometimento da regularidade processual ou que não reflita considerável grau de negligência - não poderá colocar em causa, de forma irremediável ou definitiva, os fins substantivos do processo, sendo de exigir que a arquitetura da tramitação processual sustente, de forma equilibrada e adequada, a efetividade da tutela jurisdicional, alicerçada na prevalência da justiça material sobre a justiça formal, afastando-se de soluções de desequilíbrio entre as falhas processuais – que deverão ser distinguidas, consoante a gravidade a e relevância - e as consequências incidentes sobre a substancial regulação das pretensões das partes.»
Ora, no caso dos presentes autos, estamos perante um quadro em que existiam dúvidas razoáveis sobre qual a via imposta pelo texto legal para a apresentação do requerimento de recurso mesmo que os interessados atuassem de acordo com os deveres de uma conduta processual diligente e observassem os ditames de prudência técnica. É neste enquadramento que devemos analisar a norma que qualifica como nula a apresentação (dentro do prazo) do requerimento de recurso através de correio eletrónico – num cenário de incerteza interpretativa –, o que tem como consequência inexorável a sua rejeição por extemporaneidade, pois apenas viria a ser considerada a data da apresentação dos duplicados (já fora do prazo). Note-se igualmente que a sanção do não recebimento do recurso é determinada, de uma forma inovatória e surpreendente, sem que seja dada aos recorrentes uma específica oportunidade para cumprir o ónus em causa, sendo o incumprimento sancionado em termos irremediáveis e definitivos, privando o arguido de exercer o seu direito ao recurso.
14. A garantia da via judiciária estatuída no artigo 20.º da Constituição, conferida a todos os cidadãos para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, abrange não só a atribuição do direito de ação judicial, mas também a garantia de que o processo, uma vez iniciado, deve seguir as regras de um processo equitativo, conforme impõe o n.º 4 do referido artigo 20.º, da Constituição.
Como o Tribunal Constitucional assinalou no Acórdão n.º 620/2013, da 2.ª Secção, ponto 2:
«A expressão constitucional um processo equitativo é premeditadamente aberta, estando dotada de uma força expansiva que lhe permite alcançar aqueles casos, como o presente, em que o incumprimento de um ónus imprevisível é sancionado com a perda definitiva de um importante direito processual, como é o direito ao recurso (vide, neste sentido, Lopes do Rego, na ob. cit., pág. 846-849).
Aliás o Tribunal Constitucional em situações semelhantes não tem deixado de intervir, recorrendo quer a este parâmetro constitucional quer ao princípio da proteção da confiança, imanente a um Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), como ocorreu nos Acórdãos n.º 431/02 e 213/12 (acessíveis no site www.tribunalconstitucional.pt).»
A imposição de um ónus que não resulta claro perante a letra de lei, sendo por isso de difícil cumprimento pelas partes, cuja inobservância é a perda imediata e irremediável de um importante direito de defesa processual, como é o direito ao recurso, não respeita, com efeito, o processo justo. Note-se que, no domínio penal, onde nos movemos, o direito ao recurso tem especial proteção constitucional, como garantia de defesa, nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
O Tribunal Constitucional já sublinhou que, em situações em que o não cumprimento, ou o cumprimento defeituoso, de certos ónus processuais pelo arguido é suscetível de implicar a perda definitiva de direitos ou a preclusão irremediável de faculdades processuais, se deveria equacionar a prévia formulação de convite ao arguido para suprimento da deficiência (cfr. os já citados Acórdão n.º 215/2007, 2.ª Secção, ponto 2.4., e Acórdão n.º 485/2008, 2.ª Secção, ponto 2.3.). Neste contexto, o Tribunal também já ressalvou que, «em geral, e tendo por parâmetro o direito a um processo equitativo, “não beneficia de tutela constitucional um genérico, irrestrito e ilimitado ‘direito’ das partes à obtenção de um sistemático convite ao aperfeiçoamento de todas e quaisquer deficiências dos atos por elas praticados em juízo”, sendo certo que “o convite – que não tem que ser sucessivamente renovado ou reiterado – só tem sentido e justificação quando as deficiências notadas forem estritamente ‘formais’ ou de natureza secundária” e que “não será constitucionalmente exigível nos casos em que a deficiência formal se deva a um ‘erro manifestamente indesculpável do recorrente’” (CARLOS LOPES DO REGO, “O direito de acesso aos tribunais na jurisprudência recente do Tribunal Constitucional”, em Estudos em Memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, Coimbra, 2007, pp. 846‑847)» (cfr. Acórdão n.º 215/2007, 2.ª Secção, ponto 2.4.).
15. Assim, transpondo as considerações constantes da jurisprudência citada do Tribunal Constitucional para a análise da solução normativa em apreciação teremos de concluir que cominar, sem mais, com o vício de nulidade, o ato de apresentação, tempestivo, através de correio eletrónico, do recurso, em sede de processo penal, se afigura desproporcionado.
A desproporção não resulta propriamente da consequência (rejeição do recurso), mas sim do seu caráter imediato, com efeitos definitivos, sem intermediação de uma oportunidade de suprimento. Neste caso, o convite à apresentação do requerimento de recurso pela via considerada exigível configura uma medida de adequação do processado apta a suprir uma omissão estritamente formal, não comprometendo o equilíbrio de obrigações e direitos inerente a um processo justo e equitativo. Assim, diante da existência de alternativas válidas e adequadas, a imposição de uma consequência traduzida na desconsideração definitiva do requerimento de recurso, funda o juízo de desproporcionalidade da solução normativa que não admite aquele convite.
Uma vez que a decisão de inconstitucionalidade a formular é limitada a essa dimensão normativa, emite-se um julgamento de inconstitucionalidade parcial.
Deve, por isso, o recurso ser julgado procedente e a norma que, ao tempo dos autos, cominava com nulidade o recurso apresentado pelo arguido a juízo, por correio eletrónico, dentro do prazo, no âmbito do processo penal, sem prévio convite à apresentação daquela peça processual pela via considerada exigível, resultante da interpretação extraída da conjugação do artigo 4.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, do artigo 144.º, n.ºs 1, 7 e 8, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, com o disposto nos artigos 286.º, 294.º e 295.º do Código Civil, e artigo 195.º do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, ser julgada inconstitucional por ferir, de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, na modalidade de direito a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, e artigo 18.º da Constituição).
III – Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar inconstitucional a interpretação normativa extraída da conjugação do artigo 4.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, do artigo 144.º, n.ºs 1, 7 e 8, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, com o disposto nos artigos 286.º, 294.º e 295.º do Código Civil, e artigo 195.º do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho segundo a qual é nulo o recurso apresentado pelo arguido a juízo, por correio eletrónico, dentro do prazo, no âmbito do processo penal, sem prévio convite à apresentação daquela peça processual pela via considerada exigível;
b) E, consequentemente, revogar a decisão recorrida, ordenando a sua substituição em conformidade com o decidido supra.
Sem custas, atenta a procedência do recurso.
Lisboa, 11 de março de 2020 - Maria de Fátima Mata-Mouros - João Pedro Caupers - José Teles Pereira - Manuel da Costa Andrade