ACÓRDÃO Nº 152/2020
Processo n.º 544/2019
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional,
I. Relatório
1. A. instaurou ação administrativa, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, contra o FUNDO DE GARANTIA SALARIAL, pedindo a anulação do ato de indeferimento do pedido de pagamento dos créditos emergentes da violação do seu contrato de trabalho e a sua substituição por um outro que ordene o pagamento dos referidos créditos.
Foi proferida sentença no dia 10 de abril de 2019, na qual se recusou «a aplicação, no caso concreto, por inconstitucional, dos n.º 4 e 8 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril», e se julgou procedente a ação, sendo o réu condenado a praticar o ato administrativo devido de deferir o pagamento dos créditos laborais apresentados pela autora até ao limite legalmente estabelecido.
2. O Ministério Público interpôs o presente recurso ao abrigo dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 75.º-A, n.º 1, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro [LTC]), pois «com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos princípios da igualdade, certeza e segurança jurídica e da justa remuneração, a douta sentença em apreço recusou a aplicação do artigo 2.º, n.º 4 e 8, do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril».
3. Prosseguindo os autos para alegações, o recorrente conclui do seguinte modo:
«Assim, por todas as razões invocadas ao longo das presentes alegações, julga-se que este Tribunal Constitucional deverá:
a) negar provimento ao recurso obrigatório de constitucionalidade interposto, nos presentes autos, pelo Ministério Público;
b) julgar inconstitucional a norma do n.º 4 do artigo 2º do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, na interpretação segundo a qual o Fundo apenas assegura o pagamento dos créditos previstos no n.º 1 do mesmo artigo que se tenham vencido nos seis meses anteriores à propositura da acção de insolvência, sendo este prazo insusceptível de qualquer interrupção ou suspensão;
c) julgar inconstitucional a norma do n. º 8 do artigo 2º do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, cominado naquele preceito legal é de caducidade e insusceptível de qualquer interrupção ou suspensão;
d) Confirmar, nessa medida, a sentença de 10 de Abril de 2019, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro».
4. Regularmente notificada, a recorrida não apresentou contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A) Delimitação do objeto do recurso
5. O objeto do presente recurso corresponde às normas constantes «dos n.º 4 e 8 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril».
É necessário começar, no entanto, por uma precisão. O Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, procedeu à aprovação, através do seu artigo 2.º, do «Novo regime do Fundo de Garantia Salarial» (NRFGS) que consta de um anexo ao mesmo diploma. Ora, se se atender à fundamentação da decisão recorrida facilmente se percebe – desde logo pelas transcrições que são feitas (cfr. pp. 9-10 da decisão recorrida) – que a questão de constitucionalidade analisada se reporta ao artigo 2.º do NRFGS e não ao artigo 2.º do referido Decreto-Lei. Considera-se, por isso, que foram desaplicados por esta decisão as normas constantes dos n.ºs 4 e 8 do artigo 2.º do NRFGS – sendo estas o objeto do presente processo de fiscalização da constitucionalidade.
6. Terá de se atentar, de seguida à letra do artigo 2.º do NRFGS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, em especial à redação dos referidos n.º 4 e 8, bem como do n.º 1, para onde remete o n.º 4 – que sublinhamos –, que é a seguinte:
«Artigo 2.º
Créditos abrangidos
1 – Os créditos referidos no n.º 1 do artigo anterior abrangem os créditos do trabalhador emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação.
2 – Aos créditos devidos ao trabalhador referidos no número anterior deduzem-se:
a) Os montantes de quotizações para a segurança social, da responsabilidade do trabalhador;
b) Os valores devidos pelo trabalhador correspondentes à retenção na fonte do imposto sobre o rendimento.
3 – O Fundo entrega às entidades competentes as importâncias referidas no número anterior.
4 – O Fundo assegura o pagamento dos créditos previstos no n.º 1 que se tenham vencido nos seis meses anteriores à propositura da ação de insolvência ou à apresentação do requerimento no processo especial de revitalização ou do requerimento de utilização do procedimento extrajudicial de recuperação de empresas.
5 – Caso não existam créditos vencidos no período de referência mencionado no número anterior ou o seu montante seja inferior ao limite máximo definido no n.º 1 do artigo seguinte, o Fundo assegura o pagamento, até este limite, de créditos vencidos após o referido período de referência.
6 – A compensação devida ao trabalhador por cessação do contrato de trabalho que seja calculada nos termos do artigo 366.º do Código do Trabalho, diretamente ou por remissão legal, é paga pelo Fundo, com exceção da parte que caiba ao fundo de compensação do trabalho (FCT), ao fundo de garantia de compensação do trabalho (FGCT) ou a mecanismo equivalente (ME), após o seu acionamento, salvo nos casos em que este não possa ter lugar.
7 – O disposto nos números anteriores não exime o empregador da responsabilidade pelo cumprimento das respetivas obrigações fiscais e contributivas de segurança social.
8 – O Fundo só assegura o pagamento dos créditos quando o pagamento lhe seja requerido até um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.»
O n.º 1 do artigo 1.º do NRFGS, a que se refere o n.º 2 do artigo 2.º, transcrito supra, tem a seguinte redação:
«Artigo 1.º
Situações abrangidas
1 – O Fundo de Garantia Salarial, abreviadamente designado por Fundo, assegura o pagamento ao trabalhador de créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação, desde que seja:
a) Proferida sentença de declaração de insolvência do empregador;
b) Proferido despacho do juiz que designa o administrador judicial provisório, em caso de processo especial de revitalização;
c) Proferido despacho de aceitação do requerimento proferido pelo IAPMEI - Agência para a Competitividade e Inovação, I. P. (IAPMEI, I. P.), no âmbito do procedimento extrajudicial de recuperação de empresas.»
O artigo 2.º do NRFGS, foi posteriormente alterado pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2019, com o aditamento de um n.º 9, que estabelece: «O prazo previsto no número anterior suspende-se com a propositura de ação de insolvência, a apresentação do requerimento no processo especial de revitalização e com a apresentação do requerimento de utilização do procedimento extrajudicial de recuperação de empresas, até 30 dias após o trânsito em julgado da decisão prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º ou da data da decisão nas restantes situações.» No entanto, esta disposição não se aplica ao caso, por ser posterior a ele.
7. No presente processo, a decisão recorrida procedeu à desaplicação de duas normas. Por um lado, a norma que determina que «o Fundo de Garantia Salarial cobre os pagamentos que deveriam ter sido feitos ao trabalhador pela entidade empregadora nos seis meses anteriores à data de início do processo de insolvência» – que foi o que ocorreu no presente caso –, decorrente do artigo 2.º, n.º 4, NRFGS (cfr. p. 14 da decisão a quo).
Por outro lado, a norma que estabelece que «O Fundo só assegura o pagamento dos créditos quando o pagamento lhe seja requerido até um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho», sendo que não é dito «expressamente que se trata de um prazo prescricional», decorrente do artigo 2.º, n.º 8, NRFGS (cfr. p. 14 da decisão a quo).
O tribunal a quo considerou estas normas inconstitucionais porque «a determinação de um prazo de caducidade de um direito sem se prever quaisquer causas de suspensão ou interrupção e prevendo-se (…) a necessidade de requisitos para o exercício do direito que não estão na mão do seu titular fazer preencher, de tal maneira que não está garantido que o seu titular possa ter a oportunidade legal de exercer o direito dentro do prazo (…) não é suportável constitucionalmente, designadamente não passa pelo crivo da consagração do estado de direito (artigo 2.º da Constituição), na medida em que torna aleatórios e arbitrariamente subversíveis os pressupostos de exercício de um direito social reconhecido a todos os trabalhadores» (cfr. p. 25 da decisão a quo). Considera, também, que «a sobredita aleatoriedade resulta, perante os mesmos pressupostos substantivos de facto e de direito, sem causa de discriminação alguma que não o acaso, se denegar, potencialmente a uns trabalhadores e conferir a outros uma prestação de estado social, ou seja resulta numa ofensa do princípio e do direito fundamental à igualdade de tratamento consagrado no artigo 13.º da Constituição» (cfr. p. 25 da decisão a quo). A decisão a quo também refere que se encontra violado o «direito à (justa) remuneração do trabalho, o que é atestado pela vinculação do legislador ao estabelecimento de garantias especiais para os salários (n.º 3 do artigo 59.º)» (cfr. p. 26 da decisão a quo).
B) Do mérito
8. A decisão recorrida procedeu à desaplicação de duas normas distintas, uma dizendo respeito ao período de garantia pelo Fundo dos pagamentos que deveriam ter sido feitos ao trabalhador pela entidade empregadora (artigo 2.º, n.º 4, NRFGS), estando a outra relacionada com o prazo para requerer o pagamento dos créditos salariais dos trabalhadores (artigo 2.º, n.º 8, NRFGS). Tendo em conta o seu carácter diferenciado, ambas merecem tratamento autónomo, o que se fará de seguida – começando-se por esta última.
i) Apreciação da constitucionalidade da norma que estabelece o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos salariais, certificados com a declaração de insolvência (artigo 2.º, n.º 8, NRFGS)
9. A norma que estabelece o prazo de um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho para requerer o pagamento dos créditos salariais, certificados com a declaração de insolvência, estabelecido no artigo 2.º, n.º 8, NRFGS, já foi objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional. Efetivamente, no Acórdão n.º 328/2018, da 1.ª Secção, o Tribunal veio a «julgar inconstitucional a norma contida no artigo 2.º, n.º 8, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, cominado naquele preceito legal é de caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão» (retificado pelo Acórdão n.º 447/2018).
O citado julgamento de inconstitucionalidade tem a seguinte fundamentação:
«2.3. A proteção dos trabalhadores em caso de insolvência do empregador constitui um tema recorrente no direito nacional e no direito europeu.
2.3.1. Começando pelo Direito da União (…), assinalamos a Diretiva 80/987/CEE do Conselho de 20 de outubro de 1980 relativa à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador ([…], posteriormente alterada pela Diretiva 87/164/CEE do Conselho de 2 de março de 1987 e pela Diretiva 2002/74/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de setembro de 2002) prevendo a sua aplicação ‘[…] aos créditos dos trabalhadores assalariados emergentes de contratos de trabalho ou de relações de trabalho existentes em relação a empregadores que se encontrem em estado de insolvência’ (artigo 1.º), estabelecendo que ‘[…] os Estados-Membros devem tomar as medidas necessárias para que as instituições de garantia assegurem, sob reserva do artigo 4.º, o pagamento dos créditos em dívida dos trabalhadores assalariados emergentes de contratos de trabalho ou de relações de trabalho, incluindo, sempre que o direito nacional o estabeleça, as indemnizações pela cessação da relação de trabalho”, sendo que ‘[…] os créditos a cargo da instituição de garantia consistem em remunerações em dívida correspondentes a um período anterior e/ou, conforme os casos, posterior a uma data fixada pelos Estados-Membros’ (artigo 3.º, n.ºs 1 e 2). Entretanto, foi esta Diretiva 80/987/CEE substituída pela Diretiva 2008/94/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008 (cfr. o respetivo artigo 16.º), contendo um artigo 3.º cujo teor é exatamente igual ao precedente.
Situando-nos noutro plano, cumpre referir que a Carta Social Europeia Revista, aberta à assinatura dos Estados-Membros do Conselho da Europa em Estrasburgo, em 3 de maio de 1996 (aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 64-A/2001 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 54-A/2001, de 17 de outubro, ambos publicados no Diário da República n.º 241/2001, 1.º Suplemento, Série I-A de 17/10/2001) prevê, no seu artigo 25.º, o seguinte: ‘[…] com vista a assegurar o exercício efetivo do direito dos trabalhadores à proteção dos seus créditos em caso de insolvência do seu empregador, as Partes comprometem-se a prever que os créditos dos trabalhadores resultantes de contratos de trabalho ou de relações de emprego sejam garantidos por uma instituição de garantia ou por qualquer outra forma efetiva de proteção’.
2.3.2. No ordenamento jurídico nacional, o Decreto-Lei n.º 50/85, de 27 de fevereiro, instituiu ‘um sistema de garantia salarial com o objetivo de garantir aos trabalhadores o pagamento das retribuições devidas e não pagas pela entidade empregadora declarada extinta, falida ou insolvente, […] na linha do estabelecido na Diretiva Comunitária n.º 80/787/CEE [leia-se «Diretiva 80/987/CEE», supra referida]’, garantindo aos trabalhadores o pagamento das retribuições devidas e não pagas pela entidade empregadora declarada extinta, falida ou insolvente, desde que tal declaração implicasse a cessação dos contratos de trabalho, abrangendo os últimos 4 meses compreendidos no período de 6 meses imediatamente anteriores à declaração de extinção, falência ou insolvência da entidade empregadora (artigos 1.º e 2.º).
Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 219/99, de 15 de junho, procedeu à ‘revisão do sistema de garantia salarial, instituído pelo Decreto-Lei n.º 50/85, de 27 de fevereiro’, criando, para o efeito, ‘um Fundo de Garantia Salarial que, em caso de incumprimento pela entidade patronal, assegura aos trabalhadores o pagamento de créditos emergentes de contratos de trabalho’ (artigo 1.º), consignando-se, no preâmbulo do diploma:
‘[…]
Para além dos compromissos decorrentes do acordo de concertação estratégica de 1996-1999, visa-se compatibilizar a lei nacional com o regime constante da Diretiva n.º 80/987/CEE, relativa à aproximação das legislações dos Estados membros respeitantes à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador, uma vez que algumas das disposições do Decreto-Lei n.º 50/85 não respeitavam integralmente o regime da referida diretiva. Articula-se também o novo regime com o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência.
[…]’.
O FGS assegurava o pagamento de créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua cessação, nos casos em que a entidade patronal estivesse em situação de insolvência ou em situação económica difícil e, encontrando-se pendente contra ela uma ação nos termos do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, o juiz declarasse a falência ou mandasse prosseguir a ação como processo de falência ou como processo de recuperação da empresa (artigo 2.º, n.º 1), assegurando o pagamento dos créditos emergentes de contratos de trabalho que se tivessem vencido nos seis meses que antecedessem a data da propositura da ação ou da entrada do requerimento (artigo 3.º, n.º 1).
Pelo Decreto-Lei n.º 139/2001, de 24 de abril, foi aprovado o Regulamento do Fundo de Garantia Salarial.
O Decreto-Lei n.º 219/99, de 15 de junho, foi revogado pelo Código do Trabalho de 2003 (artigo 21.º, alínea m), da Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto), que, no seu artigo 380.º, previa que “[a] garantia do pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, que não possam ser pagos pelo empregador por motivo de insolvência ou de situação económica difícil é assumida e suportada pelo Fundo de Garantia Salarial, nos termos previstos em legislação especial’, sendo esta matéria regulamentada nos artigos 316.º a 326.º do Regulamento do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 35/2004, de 29 de julho. Ali se previa que ‘o Fundo de Garantia Salarial assegura[sse], em caso de incumprimento pelo empregador, ao trabalhador o pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação” (artigo 317.º), cobrindo ‘o pagamento dos créditos […] nos casos em que o empregador seja judicialmente declarado insolvente” (artigo 318.º, n.º 1), “que se tenham vencido nos seis meses que antecedem a data da propositura da ação ou apresentação do requerimento” (artigo 319.º, n.º 1), mas apenas assegurava ‘o pagamento dos créditos que lhe sejam reclamados até três meses antes da respetiva prescrição” (artigo 319.º, n.º 3).
Por força do artigo 12.º, n.º 6, alínea o), da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, que aprovou o (atual) Código do Trabalho de 2009, os artigos 317.º a 326.º da Lei n.º 35/2004, de 29 de julho, mantiveram-se em vigor até à ‘entrada em vigor do diploma que [viesse a] regular a mesma matéria’. Tal diploma foi o Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, que, como vimos, aprovou o NRFGS.
Alcançámos, assim, o enquadramento legal em causa no presente recurso.
2.3.3. O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem-se pronunciado sobre a interpretação e aplicação da Diretiva 80/987/CEE do Conselho de 20 de outubro de 1980 relativa à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador e da Diretiva 2008/94/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, relativa à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador, que, como antes referimos, substituiu aquela.
2.3.3.1. No processo C-69/08 (Raffaello Visciano c. Istituto nazionale della previdenza sociale (INPS), acórdão de 16 de julho de 2009, ECLI:EU:C:2009:468), correspondente a um pedido de decisão prejudicial assente em três questões colocadas por um tribunal italiano, o Tribunal de Justiça formulou as seguintes respostas: “1) [o]s artigos 3.º e 4.º da Diretiva 80/987/CEE […] não se opõem a uma legislação nacional que permite qualificar de ‘prestações de segurança social’ os créditos dos trabalhadores em dívida quando os créditos são pagos por uma instituição de garantia. 2) [a] Diretiva 80/987 não se opõe a uma legislação nacional que utiliza como simples termo de comparação o crédito salarial originário do trabalhador assalariado para determinar a prestação a garantir pela intervenção de um fundo de garantia. 3) [n]o contexto de um pedido de um trabalhador assalariado para obter de um fundo de garantia o pagamento dos créditos de remuneração em dívida, a Diretiva 80/987 não se opõe à aplicação de um prazo de prescrição de um ano (princípio da equivalência). Todavia, compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar se a configuração deste prazo não torna impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício dos direitos reconhecidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efetividade).’ (sublinhado acrescentado). Na fundamentação deste acórdão pode ler-se o seguinte:
‘[…]
39. [Os] Estados-Membros têm, em princípio, a faculdade de prever no seu direito nacional disposições que fixem um prazo de prescrição para a propositura da ação de um trabalhador assalariado para obter, nas condições da Diretiva 80/987, o pagamento dos seus créditos de remunerações em dívida, desde que, no entanto, estas disposições não sejam menos favoráveis do que as respeitantes a reclamações internas de idêntica natureza (princípio da equivalência) e não sejam formuladas de modo a tornar na prática impossível o exercício dos direitos reconhecidos pela ordem jurídica comunitária […].
40. A este propósito, o órgão jurisdicional de reenvio considera que se deve verificar se a qualificação dos créditos do trabalhador em relação ao Fundo de prestações de segurança social que tenha como consequência não se aplicarem as regras da interrupção do prazo de prescrição aos créditos admitidos ao passivo da insolvência, é ou não contrária aos princípios da equivalência e da efetividade.
41. Quanto ao princípio da equivalência, deve observar‑se, desde logo, que o pedido de pagamento de remunerações em dívida do trabalhador assalariado ao Fundo e o pedido desse trabalhador ao seu empregador insolvente não são semelhantes. É esta conclusão que se extrai, nomeadamente, do artigo 4.º da Diretiva 80/987, que confere aos Estados‑Membros a faculdade de limitar a obrigação de pagamento das instituições de garantia.
42. Por consequência, a existência de regimes de prescrição diferentes não ofende o princípio da equivalência.
43. No que se refere ao princípio da efetividade, o Tribunal de Justiça já considerou compatível com o direito comunitário a fixação de prazos razoáveis de atuação judicial, sob pena de preclusão, no interesse da segurança jurídica que protege simultaneamente o contribuinte [del contribuinte, em italiano, a língua oficial do processo; le contribuable, na tradução francesa; the taxpayer, na versão inglesa] e a entidade administrativa em causa (v. acórdão de 17 de novembro de 1998, Aprile, C‑228/96, Colect., p. I‑7141, n.º 19 e jurisprudência referida). Com efeito, esses prazos não são suscetíveis de, na prática, impossibilitarem ou dificultarem excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico comunitário.
44. A este respeito, há que recordar que, no que se refere ao pagamento de créditos salariais, que, pela sua própria natureza, se revestem de grande importância para os interessados, a brevidade do prazo de prescrição não deve ter a consequência de os interessados não conseguirem, na prática, respeitar o referido prazo e, assim, não beneficiarem da proteção que a Diretiva 80/987 se destina precisamente a garantir‑lhes (v. acórdão Pflücke, já referido, n.º 37).
45. A este propósito, o Tribunal de Justiça já decidiu que um prazo de prescrição de um ano para intentar uma ação destinada a obter a reparação de um dano causado pela transposição tardia para o direito interno da Diretiva 80/987 parece razoável (v., neste sentido, acórdão de 10 de julho de 1997, Palmisani, C‑261/95, Colect., p. I‑4025, n.º 29).
46. Contudo, resulta igualmente do n.º 39 do acórdão de 11 de julho de 2002, Marks & Spencer (C‑62/00, Colect., p. I‑6325), que, para cumprir a sua função de garantia da segurança jurídica, um prazo de prescrição deve ser fixado antecipadamente. Uma situação caracterizada por uma considerável incerteza jurídica pode constituir uma violação do princípio da efetividade, uma vez que a reparação dos danos causados a particulares por violações do direito comunitário imputáveis a um Estado‑Membro pode, na prática, ser extremamente dificultada se estes não puderem determinar o prazo de prescrição aplicável, com um razoável grau de certeza (acórdão de 24 de Março de 2009, Danske Slagterier, C‑445/06, ainda não publicado na Coletânea, n.º 33 e jurisprudência referida).
47. No processo principal, deve observar‑se que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o Decreto legislativo n.º 80/92 fixa o prazo de prescrição em um ano, mas não determina o dies a quo.
48. Por outro lado, o mesmo órgão jurisdicional observa que a jurisprudência da ‘Corte suprema di cassazione’ começou por qualificar de natureza salarial as prestações pagas pelo Fundo, idêntica à dos salários pagos pelo empregador, qualificação que tinha como consequência serem aplicados os prazos de prescrição e respetivas regras de interrupção estabelecidos no processo de insolvência. Mais tarde, esse tribunal supremo considerou que a obrigação imposta ao Fundo tem por objeto uma prestação de segurança social, independente da obrigação salarial do empregador, o que tem como consequência, entre outras, a inaplicação das regras de interrupção dos prazos de prescrição já referidos.
49. Estas duas conclusões são suscetíveis de criar incertezas jurídicas que podem constituir uma violação do princípio da efetividade, se se verificar que estas incertezas jurídicas podem explicar que a ação de R. Visciano tenha sido intentada fora de prazo, o que compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar.
50. À luz de todas as considerações precedentes, deve, pois, responder‑se à terceira questão que, no contexto de um pedido de um trabalhador assalariado para obter de um fundo de garantia o pagamento dos créditos de remuneração em dívida, a Diretiva 80/987 não se opõe à aplicação de um prazo de prescrição de um ano (princípio da equivalência). Todavia, compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar se a configuração deste prazo não torna impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício dos direitos reconhecidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efetividade).
[…]’ (sublinhados acrescentados).
(…)
2.4. Estabelece o artigo 59.º da CRP:
Artigo 59.º
(Direitos dos trabalhadores)
1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:
a) À retribuição do trabalho, segundo a quantidade cia condigna;
------------------------------------------------------------------------------------.
3. Os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei.
Reafirmando, neste específico domínio, o princípio da igualdade no corpo do n.º 1, a lei fundamental afirma, na alínea a), o direito à justa retribuição do trabalho, cujo destaque encontra evidente justificação. Nas palavras do Acórdão n.º 257/2008 (ponto 13):
“[…]
Na verdade, a retribuição da prestação laboral, quer na sua causa, quer na sua destinação típica, está intimamente ligada à pessoa do trabalhador. Ela é a contrapartida da disponibilização da sua energia laborativa, posta ao serviço da entidade patronal. Ela é também, por outro lado, o único ou principal meio de subsistência do trabalhador, que se encontra numa situação de dependência da retribuição auferida na execução do contrato para satisfazer as suas necessidades vivenciais.
É esta dimensão pessoal e existencial que qualifica diferenciadamente os créditos laborais, justificando a tutela constitucional reforçada de que gozam, para além da conferida, em geral, às posições patrimoniais ativas.
É, na verdade, esta perspetiva valorativa que levou à consagração do direito à retribuição do trabalho entre os direitos dos trabalhadores enumerados no n.º 1, alínea a), do artigo 59.º da CRP, por forma a ‘garantir uma existência condigna’ – direito este já expressamente considerado pelo Tribunal Constitucional como um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (Acórdão n.º 379/91). Por outro lado, no n.º 3 do mesmo preceito estabelece-se que ‘os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei’.
Esta previsão constitucional de garantias especiais para créditos salariais seguramente que, não só justifica, como impõe, regimes consagradores da sua discriminação positiva, em relação aos demais créditos sobre os empregadores (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 777).
[…]
Como a norma [da alínea a) do n.º 1] expressamente acentua – nos seus próprios termos, tem-se em vista ‘garantir uma existência condigna’ –, o reconhecimento de tal direito exprime o valor básico da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), constituindo, no seu específico âmbito de proteção, um instrumento do preenchimento das condições materiais da realização deste valor. E o relevo nuclear do direito à (justa) remuneração do trabalho é atestado pela vinculação do legislador ao estabelecimento de garantias especiais para os salários (n.º 3 do artigo 59.º).
[…]’.
Por outro lado, ‘é pacífico na doutrina, e este Tribunal tem também afirmado, que o direito à retribuição é um direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias (v., entre muitos, os Acórdãos n.ºs 620/2007 e 396/2011), que, de resto, o Estado tem o dever de proteger (cfr. artigo 59.º, n.º 2, da Constituição)” (Acórdão n.º 510/2016).
2.4.1. A proteção da retribuição inclui, nos termos do artigo 59.º, n.º 3, da Constituição, a previsão de ‘garantias especiais’, cuja modelação cabe ao legislador, que, para o efeito, goza de “ampla liberdade” (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, p. 1166). Não obstante, a instituição do mecanismo do Fundo de Garantia Salarial (para além de – como vimos – consistir numa obrigação para o Estado Português decorrente do Direito da União) não pode deixar de ser vista como concretização de uma das garantias a que se refere aquele n.º 3 (nesse sentido, v. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2014, p. 777).
Não é inócua a apontada ligação entre o mecanismo do FGS e a norma do n.º 3 do artigo 59.º da CRP. (…) Por outro lado, tratando-se de atribuir, no apontado contexto, um direito a uma prestação pecuniária, e de limitar no tempo a efetividade desse direito pelo não exercício, tal atribuição deve operar, na compaginação destas duas vertentes, segundo regras claras, certas e objetivas – exigência decorrente do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).
2.5. Tendo presentes as linhas essenciais do NRFGS – em particular a norma objeto do presente recurso (…) – verificam-se aporias que o afastam do padrão de efetividade e certeza acabado de traçar.
De acordo com o sentido das normas relevante para a presente decisão (cfr. item 2.2., supra), a declaração de insolvência faz nascer o direito ao acionamento do FGS. Sucede que a declaração judicial constitui um momento num processo judicial contraditório, de cujos termos o trabalhador tem (ou pode ter) unicamente o domínio do impulso processual inicial, sendo que, subsequentemente, o desenvolvimento do processo como que lhe “sai das mãos”, sendo muito limitada a respetiva capacidade de determinar no elemento tempo os ulteriores passos processuais até à efetiva declaração do devedor em estado de insolvência. De facto, basta pensar que, não sendo um dos casos excecionais de dispensa da audiência do devedor (artigo 12.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante CIRE), há lugar à citação deste, que poderá ser mais ou menos demorada, podendo ser apresentada oposição e realizada audiência de julgamento, gerando-se uma dilação assinalável entre o pedido de declaração da insolvência e essa mesma declaração – circunstâncias das quais o caso dos autos constitui, aliás, exemplo vivo, tendo a declaração de insolvência ocorrido cerca de seis meses e meio após ter sido requerida pelo primeiro Recorrente. Ou seja, pegando precisamente no exemplo que os autos ilustram, observamos que se consumiu mais de metade do prazo de acionamento do FGS em vicissitudes processuais que o trabalhador credor da insolvente não esteve em condições de dominar, sendo certo que a declaração de insolvência foi pedida decorridos que foram menos de seis meses do prazo de um ano previsto no artigo 2.º, n.º 8, do NRFGS.
Não estamos – deve sublinhar-se – perante a questão, sucessivamente apreciada pela jurisprudência europeia, de saber se o legislador pode fixar prazos mais ou menos alargados para o exercício do direito ao acionamento do FGS, sob pena de caducidade ou prescrição: ninguém aqui discute a existência de prazos nem o prazo em concreto estabelecido na norma referenciada na decisão.
O que está em causa é saber se, na contagem desse prazo, é possível incluir um período temporal (que, como vimos, pode ser assinalável) especificamente determinado e tendente à criação de um pressuposto essencial do direito ao acionamento do FGS (o período entre o pedido de declaração da insolvência e a sua efetiva declaração pelo tribunal competente), cujos termos escapam por completo ao controlo do trabalhador-credor, de tal forma que o mero decurso do tempo nessa fase processual provoque a extinção do direito. Assim se cria uma evidente antinomia: o trabalhador-credor de um empregador insolvente que queira ver tutelado o direito à prestação pelo FGS vê-se obrigado a pedir a declaração de insolvência e, a partir desse momento, as vicissitudes próprias do processo que fez nascer com essa finalidade, comprometem o exercício desse mesmo direito, sem que um comportamento alternativo lhe seja exigível – rectius, possa por ele ser adotado – no sentido de evitar essa preclusão.
Ao fazer nascer, ainda que potencialmente, na própria condição de realização de um direito a causa da sua extinção, à qual o respetivo titular se vê impossibilitado de obstar, o legislador deixa de conferir à retribuição – e ao “remédio” (talvez mais até ao paliativo) para a sua perda – a tutela que lhe era devida nos termos do artigo 59.º, n.º 3, da Constituição. Sendo certo que o sistema do FGS “pressupõe um nexo entre a insolvência e os créditos salariais em dívida” (acórdão do TJUE de 28 de novembro de 2013, cfr. supra 2.3.2.3.), seria o próprio processo judicial com aptidão para estabelecer o referido nexo que constituiria causa da preclusão do direito.
Geram-se, por outro lado, diferenciações arbitrárias na concessão (na realização) daquele direito a distintos titulares, subordinado que fica este à duração maior ou menor da fase inicial dos processos de insolvência, em função de ter sido deduzida oposição, da duração das audiências de julgamento, das diferentes capacidades de resposta dos tribunais, etc. Tudo fatores alheios à vontade do trabalhador-credor e que, por isso mesmo, não suportam a afirmação de existência de algo semelhante a um “domínio do facto” por este, cujo efeito de condicionamento do respetivo direito não encontra justificação na tutela de qualquer outro valor que possamos considerar relevante no confronto com a necessidade de tutela da retribuição que se verifica no contexto apontado.
A este respeito, não releva, propriamente, de forma direta, a qualificação do prazo como de caducidade ou de prescrição – questão que, na ausência de uma opção legal expressa, se prefigura como de âmbito fundamentalmente doutrinário que, em todo o caso, nos aparece aqui ligada a uma opção interpretativa do direito infraconstitucional –, relevando antes a circunstância de, no contexto descrito, a contagem de tal prazo ocorrer sem qualquer suspensão ou interrupção, gerando um sinal – rectius, potenciando um efeito – de valor contrário ao próprio direito.
Note-se, todavia – sublinhando o sentido atuante que a qualificação jurídica do prazo aqui acabou por assumir –, que o Fundo, na fundamentação da respetiva posição de indeferimento da pretensão dos ora Recorridos (cfr. item 1.2.1. supra) – e sublinha-se, pois, que foi nesse quadro que a decisão recorrida, como não podia deixar de ser, se forjou –, qualificou expressamente o prazo em causa no artigo 2.º, n.º 8, do NRFGS como de caducidade, referindo-lhe expressamente a circunstância, que é própria do regime da caducidade nos termos do artigo 328.º do CC, de só comportar suspensão ou interrupção mediante previsão legal, no caso inexistente. E, de facto, é neste contexto que se afirma que, “[e]m matéria de contagem do prazo de caducidade[,] aplicam-se, em princípio, tal como na prescrição, as regras gerais, com uma importante diferença. Na caducidade vale muito mais plenamente o princípio segundo o qual o tempo se conta ininterruptamente”, já que, “[…] como resulta do artigo 328.º do CC, ‘o prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe, senão nos casos em que a lei o determine’. Assim, se a lei, em cada caso concreto, não admitir, expressamente, a suspensão e a interrupção do prazo de caducidade (ou algum destes institutos), o prazo corre sempre sem intermitências de qualquer ordem” (Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 4.ª ed., Lisboa, 2007, p. 703). Ora, tendo sido a invocação, por parte do FGS, desta característica do regime da caducidade que conduziu à construção do indeferimento (por inexistir previsão legal a permitir a suspensão ou a interrupção do decurso do prazo), não poderia a decisão recorrida, ao sindicar esse indeferimento, deixar de pressupor essa interpretação e construir em função dela a questão de inconstitucionalidade que constituiu a respetiva ratio decidendi.
Porém, não é irrelevante a pouca clareza do regime legal, espelhada na norma em causa, considerada em si mesma ou sistematicamente inserida no diploma que a contém. O elemento de incerteza deste regime (evidenciado à saciedade, nestes autos, pelas posições assumidas na decisão recorrida, nas alegações e contra-alegações de recurso e no item 2.2., supra) compromete seriamente a efetividade da tutela que corresponde ao mecanismo do FGS, apresentando-se o complexo normativo do NRFGS, ao gerar estas interpretações díspares, com uma consistência pouco definida – para não dizer insuportavelmente ambígua –, cuja interpretação muito dificilmente assumirá um sentido minimamente claro, gerador de segurança nos destinatários beneficiários do seu âmbito de proteção. Isto ao ponto destes não disporem, consistentemente, da possibilidade de, agindo com normal diligência, anteverem com suficiente segurança o comportamento que devem adotar para formular atempadamente a sua pretensão junto do FGS, assim se comprometendo as exigências mínimas de certeza decorrentes do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).
2.5.1. Aliás, em hipóteses como a dos presentes autos, pode mesmo dizer-se, tomando de empréstimo as palavras do acórdão do TJUE de 16 de julho de 2009, no caso Visciano (referido supra no item 2.3.2.1.), que a configuração do prazo pode tornar ‘[…] impossível na prática ou excessivamente difícil’ o exercício do direito do trabalhador credor, além de que – como justamente se assinalou naquela decisão – ‘[…] uma situação caracterizada por uma considerável incerteza jurídica pode constituir uma violação do princípio da efetividade, uma vez que a reparação dos danos causados a particulares por violações do direito comunitário imputáveis a um Estado‑Membro pode, na prática, ser extremamente dificultada se estes não puderem determinar o prazo de prescrição aplicável, com um razoável grau de certeza’.
2.6. As razões que antecedem são, pois, aptas a fundar um juízo de censura constitucional à norma sub judicio, confirmando a esse respeito a decisão recorrida. Complementarmente, justificam-se duas observações adicionais, referidas à incidência na situação do Direito da União e à referenciação da intervenção do Tribunal Constitucional exclusivamente à questão de inconstitucionalidade.
2.6.1. Assim, como primeira nota, respeitante às incidências do caso relativas ao Direito da União, cumpre-nos salientar, quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal no quadro referencial do artigo 8.º, n.º 4 da CRP (aqui relevante no trecho que estabelece que “[…] as normas emanadas das […] instituições [da União Europeia], no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos no Direito da União […]”), a ausência de justificação para que equacionemos (neste recurso) um reenvio prejudicial de interpretação ao TJUE, nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia (TFUE).
Vale esta opção – como adiante explicitaremos – em função da constatação de não se prefigurar aqui, na sequência da jurisprudência do TJUE referida ao longo deste Acórdão, uma dúvida quanto à interpretação do Direito da União que apresenta relevância no caso concreto, designadamente quanto ao sentido prescritivo dos artigos 3.º sucessivamente incluídos nas Diretivas 80/987/CEE e 2008/94/CE, referidas no item 2.3.1 supra. Estas, consubstanciando ‘atos jurídicos da União’ vinculativos do Estado português ‘[…] quanto ao resultado a alcançar […]’, na aceção do terceiro parágrafo do artigo 288.º do TFUE (‘[a] directiva vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios’), mostram-se já devidamente esclarecidas pela jurisprudência do TJUE, no seu sentido operante relativamente à norma de Direito interno aqui sujeita à apreciação do Tribunal Constitucional (o artigo 2.º, n.º 8 do NRFGS na interpretação em causa na decisão recorrida).
Aliás, conforme indicámos no item 2.5.1. supra, o ora decidido encontra-se, assumidamente, em linha com o sentido evidente dessa jurisprudência relevante na matéria aqui em causa – referimo-nos às decisões, todas proferidas em processos de reenvio, do TJUE referenciadas no item 2.3.3. supra e respetivas subdivisões (2.3.3.1 a 2.3.3.4.) –, concretamente com o ponto 46. acima transcrito, no item 2.3.3.1., constante do acórdão Visciano c. INPS, de 16 de julho de 2009 (processo C-69/08).
Com efeito, estando em causa uma obrigação de reenvio, nos termos do terceiro parágrafo do artigo 267.º do TFUE, “[…] para os órgãos jurisdicionais que julguem sem hipótese de recurso judicial previsto no direito interno” [Inês Quadros, “Acórdão do Tribunal de Justiça de 6 de Outubro de 1982 – Processo 283/81 Srl Cilfit et Lanificio di Gavardo SpA c. Ministero della sanità”, in Princípios Fundamentais de Direito da União Europeia. Uma Abordagem Jurisprudencial, Sofia Oliveira Pais (coord.), 3.ª ed., Coimbra, 2014, p. 223], verifica-se neste caso uma das circunstâncias nas quais, segundo o TJUE no acórdão Cilfit, está o tribunal nacional dispensado desse reenvio.
Referimo-nos em concreto, seguindo o ponto 14. desse acórdão de 1982 (que é invariavelmente assumido como precedente de forte valor persuasivo), às situações em que exista “[…] uma orientação jurisprudencial do Tribunal que esclareça o ponto de direito em causa, qualquer que seja a natureza do procedimento que deu lugar a esta jurisprudência, mesmo na ausência de uma estrita identidade das questões em litígio”. Nestes casos, o esclarecimento anterior pelo TJUE de uma situação equivalente, em termos aptos a suportar, consistentemente, um juízo de identidade de razão, confere à norma interpretanda a natureza de “ato clarificado” (Inês Quadros, “Acórdão do Tribunal de Justiça de 6 de outubro de 1982…”, cit. p. 229).
2.6.2. A isto acresce – como segunda nota complementar acima indicada no item 2.6. – a seguinte observação. Cabe ao Tribunal Constitucional a última palavra sobre a inconstitucionalidade da norma em questão, não lhe cabe, porém, determinar qual a melhor interpretação do direito infraconstitucional na sequência do afastamento dessa norma (dessa construção normativa). Assim, na falta de uma opção legislativa expressa, caberá aos tribunais comuns a solução das questões que o presente julgamento deixa em aberto (designadamente, se deve tratar-se de interrupção ou suspensão do prazo, se o efeito interruptivo ou suspensivo em relação a todos os credores pode depender do pedido de declaração de insolvência de um só credor ou de um credor de certa categoria ou até quando se deve verificar a suspensão ou interrupção).
Cinge-se, pois, a presente decisão, à questão de inconstitucionalidade, nos termos em que esta emergiu da decisão de recusa do Tribunal a quo.» (sublinhados conforme o original).
10. A orientação jurisprudencial no sentido da inconstitucionalidade da solução legislativa – a fixação do prazo de caducidade de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, que começava a correr a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho, embora tais créditos devessem ser certificados com a declaração de insolvência, sendo o prazo insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão – veio a ser adotada invariavelmente pelo Tribunal Constitucional. Assim, esta dimensão normativa do o 2.º, n.º 8, do NRFGS, foi julgada inconstitucional pelos Acórdãos n.º 583/2018, da 1.ª Secção, n.º 251/2019, da 3.ª Secção, n.º 270/2019, da 3.ª Secção, n.º 575/2019, da 2.ª Secção, n.º 576/2019, da 2.ª Secção, n.º 578/2019, da 2.ª Secção, bem como pelas Decisões Sumárias n.º 111/2019, da 1.ª Secção, e n.º 114/2019, da 3.ª Secção, entre outras.
11. Não se apresentam, no presente processo, quaisquer motivos para um desvio do sentido jurisprudencial traçado pelo Acórdão n.º 328/2018 e subsequentemente mantido pelo Tribunal Constitucional, que incide sobre a dimensão normativa cuja aplicação foi recusada pela decisão a quo. Assim, remetendo para os fundamentos do Acórdão n.º 328/2018, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, importa concluir no sentido de julgar inconstitucional a norma segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, é de caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão, interpretativamente extraível do artigo 2.º, n.º 8, do NRFGS.
ii) Apreciação da constitucionalidade da norma que estabelece que o Fundo assegura o pagamento de créditos laborais se tenham vencido nos seis meses anteriores à propositura da ação de insolvência (artigo 2.º, n.º 4, NRFGS)
12. A segunda norma desaplicada pela decisão a quo é a que estabelece que o Fundo assegura o pagamento de créditos do trabalhador emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação que se tenham vencido nos seis meses anteriores à propositura da ação de insolvência, decorrente do artigo 2.º, n.º 4, NRFGS.
Como enquadramento, é de referir que o Fundo de Garantia Salarial tem por objetivo assegurar o pagamento aos trabalhadores de créditos laborais emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação que se tenham vencido nos seis meses anteriores à propositura da ação de insolvência, à apresentação do requerimento no processo especial de revitalização ou à apresentação do requerimento de utilização do procedimento extrajudicial de recuperação de empresas (artigo 2.º, n.º 1 e 4, NRFGS). O artigo 3.º, n.º 1, NRFGS estabelece dois limites aos montantes garantidos pelo Fundo: um limite máximo global, equivalente a seis meses de retribuição, e um limite máximo mensal, correspondente ao triplo da retribuição mínima mensal garantida.
Os referidos créditos são garantidos desde que seja proferida a sentença de declaração de insolvência do empregador; o despacho do juiz que designa o administrador judicial provisório, em caso de processo especial de revitalização; ou o despacho de aceitação do requerimento proferido pelo IAPMEI - Agência para a Competitividade e Inovação, I. P., no âmbito do procedimento extrajudicial de recuperação de empresas (artigo 1.º, n.º 1, NRFGS).
13. Neste âmbito, aplica-se à norma aqui em causa, em grande parte, o enquadramento geral do regime constante da fundamentação do Acórdão n.º 328/2018, da 1.ª Secção, pontos 2.3. e 2.4.
Neste contexto, a referida norma também corresponde à concretização da especial proteção que é devida à retribuição do trabalho, nos termos do artigo 59.º, n.º 3, da Constituição. Como é referido no Acórdão n.º 328/2018, ponto 2.4.1.:
«Não é inócua a apontada ligação entre o mecanismo do FGS e a norma do n.º 3 do artigo 59.º da CRP. Tratando-se de uma das garantias ali previstas, ao escolher (apesar de, nessa escolha, se encontrar vinculado pelo Direito da União) instituir o FGS como uma das garantias especiais da retribuição, o legislador está vinculado à construção de um regime que lhe assegure um mínimo de efetividade, sem a qual resultaria esvaziada de sentido a norma constitucional, com respeito pela igualdade (artigos 13.º e 59.º, n.º 1, da CRP). Por outro lado, tratando-se de atribuir, no apontado contexto, um direito a uma prestação pecuniária, e de limitar no tempo a efetividade desse direito pelo não exercício, tal atribuição deve operar, na compaginação destas duas vertentes, segundo regras claras, certas e objetivas – exigência decorrente do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).» (sublinhado adicionado)
14. Por outro lado, a norma resulta da transposição da Diretiva n.º 2008/94/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, relativa à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador – que corresponde a uma codificação da legislação anterior, mais especificamente a Diretiva n.º 80/987/CEE, do Conselho, de 20 de Outubro de 1980, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador, que sofreu diversas alterações.
Estabelece a Diretiva n.º 2008/94/CE que «Os Estados-Membros devem tomar as medidas necessárias para que as instituições de garantia assegurem (…) o pagamento dos créditos em dívida dos trabalhadores assalariados emergentes de contratos de trabalho ou de relações de trabalho, incluindo, sempre que o direito nacional o estabeleça, as indemnizações pela cessação da relação de trabalho», consistindo os referidos créditos a cargo da instituição de garantia nas «remunerações em dívida correspondentes a um período anterior e/ou, conforme os casos, posterior a uma data fixada pelos Estados-Membros» (artigo 3.º).
É reconhecida aos Estados-Membros a «faculdade de limitar a obrigação de pagamento das instituições de garantia a que se refere o artigo 3.º», no respetivo artigo 4.º, n.º 1, caso em que «devem determinar a duração do período que dá lugar ao pagamento dos créditos em dívida pela instituição de garantia». Esta duração «não pode ser inferior ao período relativo à remuneração dos três últimos meses da relação de trabalho anterior e/ou posterior à data a que se refere o segundo parágrafo do artigo 3.º» - podendo ser calculada «com base num período de referência cuja duração não pode ser inferior a seis meses» (artigo 4.º, n.º 2, da Diretiva n.º 2008/94/CE). Também se permite aos Estados-Membros «estabelecer limites máximos em relação aos pagamentos efetuados pela instituição de garantia», caso em que estes limites «não devem ser inferiores a um limiar socialmente compatível com o objetivo social» da Diretiva (artigo 4.º, n.º 3, da Diretiva n.º 2008/94/CE).
Ainda no âmbito da anterior Diretiva n.º 80/987/CEE, foi colocada uma questão prejudicial pelo Tribunal Central Administrativo Norte português ao Tribunal de Justiça (TJ) precisamente sobre a compatibilidade com o Direito da UE de uma «disposição do direito nacional que garanta apenas os créditos que se vencerem [no período de] seis meses antes da propositura da ação de insolvência do seu empregador» - isto «mesmo quando os trabalhadores hajam proposto, antes do início desse período de seis meses, uma ação judicial contra o seu empregador, com vista à fixação do valor desses créditos e à sua cobrança coerciva». Esta questão deu origem ao Acórdão do TJ de 28 de novembro de 2013, Maria Albertina Gomes Viana Novo e o. c. Fundo de Garantia Salarial, I.P., Proc. n.º C‑309/12 (EU:C:2013:774), em que o TJ decidiu que a «Diretiva 80/987/CEE do Conselho, de 20 de outubro de 1980, relativa à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador, conforme alterada pela Diretiva 2002/74/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de setembro de 2002, deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que não garante os créditos salariais vencidos mais de seis meses antes da propositura da ação de insolvência do empregador, mesmo quando os trabalhadores tenham proposto, antes do início desse período, uma ação judicial contra o seu empregador, com vista à fixação do valor desses créditos e à sua cobrança coerciva». O TJ, na fundamentação, refere que:
«20. A Diretiva 80/987 (…) visa assegurar a todos os trabalhadores assalariados um mínimo de proteção, ao nível da União Europeia, em caso de insolvência do empregador, através do pagamento dos créditos em dívida resultantes de contratos ou de relações de trabalho, respeitantes à remuneração relativa a um determinado período (v. acórdãos de 4 de março de 2004, Barsotti e o., C‑19/01, C‑50/01 e C‑84/01, Colet., p. I‑2005, n.º 35; de 16 de julho de 2009, Visciano, C‑69/08, Colet., p. I‑6741, n.º 27; e de 17 de novembro de 2011, van Ardennen, C‑435/10, Colet., p. I‑11705, n.º 27).
21. É com este objetivo que o artigo 3.º da Diretiva 80/987, conforme alterada, impõe que os Estados‑Membros tomem as medidas necessárias para que as instituições de garantia nacionais assegurem o pagamento dos créditos em dívida aos trabalhadores assalariados.
22. Todavia, tanto a Diretiva 80/987, na sua versão inicial, como a Diretiva 80/987, conforme alterada, conferem aos Estados‑Membros a faculdade de limitarem a obrigação de pagamento através da fixação de um período de referência ou de um período de garantia e/ou do estabelecimento de limites máximos aos pagamentos.
(…)
25. (…) [N]os termos do segundo parágrafo [do artigo 3.º da Diretiva 80/987], os Estados‑Membros passaram a fixar livremente a data anteriormente e/ou, tal sendo o caso, posteriormente à qual se situa o período durante o qual os créditos correspondentes a remunerações em dívida são tomados a cargo pela instituição de garantia (v., neste sentido, acórdão de 18 de abril de 2013, Mustafa, C‑247/12, n.ºs 39 a 41).
26. Ao abrigo do artigo 4.º, n.ºs 1 e 2, da Diretiva 80/987, na sua versão inicial, quando os Estados‑Membros optassem por limitar a garantia assegurada pela instituição, podiam situar a garantia mínima de três meses no período de seis meses anterior à data de referência. Após a entrada em vigor das alterações à Diretiva 80/987, na sua versão inicial, introduzidas pela Diretiva 2002/74, é também possível situar esse período posteriormente a esta data de referência. Os Estados‑Membros têm também a faculdade de prever uma garantia mínima limitada a oito semanas, desde que este período de oito semanas se situe num período de referência mais longo, de dezoito meses, no mínimo.
27. Nestas condições, há que constatar que a Diretiva 80/987, conforme alterada, não se opõe a que um Estado‑Membro fixe como data de início do cálculo do período de referência a data da propositura da ação de insolvência do empregador. De igual modo, se um Estado‑Membro decidir fazer uso da faculdade de limitar a garantia através da fixação de um período de referência, pode escolher limitar este período de referência a seis meses, desde que garanta o pagamento da remuneração dos três últimos meses da relação de trabalho.
28. Dado que, no âmbito do litígio no processo principal, a legislação nacional garante a remuneração referente aos três últimos meses da relação de trabalho, há que constatar que o legislador nacional, ao adotar disposições que preveem que o FGS assegura o pagamento dos créditos salariais vencidos seis meses antes da propositura da ação de insolvência do empregador e, em certas condições, mesmo após essa data, pode fazer uso da faculdade de limitar a obrigação que incumbe às instituições de garantia, que lhe é conferida pelos artigos 3.º e 4.º da Diretiva 80/987, conforme alterada.
29. Como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça recordada no n.º 20 do presente acórdão, a Diretiva 80/987, conforme alterada, visa apenas uma proteção mínima dos trabalhadores assalariados, em caso de insolvência do seu empregador. As disposições relativas à faculdade oferecida aos Estados‑Membros de limitarem a sua garantia demonstram que o sistema estabelecido pela Diretiva 80/987, conforme alterada, tem em consideração a capacidade financeira desses Estados e procura preservar o equilíbrio financeiro das suas instituições de garantia.
30. Esta consideração manifesta‑se designadamente na faculdade concedida aos Estados‑Membros de encurtarem o período de garantia, se o período mínimo de referência for prolongado, como prevê o artigo 4.º, n.º 2, segundo parágrafo, da Diretiva 80/987, como alterada, bem como na faculdade de estabelecerem limites máximos aos pagamentos, nos termos do artigo 4.º, n.º 3, desta diretiva.
31. Importa recordar que os casos em que é permitido limitar a obrigação de pagamento das instituições de garantia, previstos no artigo 4.º da Diretiva 80/987, conforme alterada, devem ser objeto de interpretação estrita (v., neste sentido, acórdão van Ardennen, já referido, n.º 34).
32. Todavia, a interpretação restritiva destes casos não pode ter por efeito esvaziar de conteúdo a faculdade expressamente reservada aos Estados‑Membros de limitarem a referida obrigação de pagamento.
33. Ora, há que constatar que tal seria o caso se se devesse interpretar a Diretiva 80/987, conforme alterada, no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que não garante os créditos salariais vencidos mais de seis meses antes da propositura da ação de insolvência do empregador.
34. Além disso, sublinhe‑se que, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça recordada no n.º 20 do presente acórdão, a Diretiva 80/987 visa assegurar aos trabalhadores uma proteção em caso de insolvência do empregador. Daí decorre que o sistema instituído por esta diretiva pressupõe um nexo entre a insolvência e os créditos salariais em dívida.» (sublinhado adicionado)
No mesmo sentido, foi pronunciado o Despacho do TJ de 10 de abril de 2014, Joaquim Fernando Macedo Maia e o. c. Fundo de Garantia Salarial, I.P., no Proc. n.º C‑511/12 (EU:C:2014:268).
Já ao abrigo da Diretiva n.º 2008/94/CE, o TJ pronunciou-se no mesmo sentido, no Acórdão de 25 de julho de 2018, Virginie Marie Gabrielle Guigo c. Fond «Garantirani vzemania na rabotnitsite i sluzhitelite», Proc. n.º C‑338/17 (EU:C:2018:605), relativo à Bulgária, concluindo que «A Diretiva 2008/94/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, relativa à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador, deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional (…) que não garante os créditos salariais dos trabalhadores cuja relação de trabalho tenha cessado mais de três meses antes da inscrição no registo comercial da decisão judicial de abertura do processo de insolvência do empregador». Fundamenta essa conclusão referindo que:
«28. Segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, a finalidade
social desta diretiva consiste em assegurar a todos os trabalhadores
assalariados um mínimo de proteção ao nível da União Europeia em caso de
insolvência do empregador através do pagamento dos créditos em dívida
emergentes de contratos ou de relações de trabalho, respeitantes à remuneração
relativa a um determinado período (Acórdãos de 28 de novembro de
2013, Gomes Viana Novo e o., C‑309/12, EU:C:2013:774,
n.º 20, e de 2 de março de 2017, Eschenbrenner, C‑496/15, EU:C:2017:152,
n.º 52 e jurisprudência referida).
29. É à luz deste objetivo que o artigo 3.º da referida diretiva
impõe que os Estados‑Membros tomem as medidas necessárias para que as
instituições de garantia nacionais assegurem o pagamento dos créditos em dívida
aos trabalhadores
30. Contudo, como o Tribunal de Justiça já salientou, a Diretiva 2008/94
confere aos Estados‑Membros a faculdade de limitarem a obrigação
de pagamento através da fixação de um período de referência ou de um período de
garantia e/ou do estabelecimento de limites máximos aos pagamentos (v.,
por analogia com a Diretiva 80/987, Acórdão de 28 de novembro de
2013, Gomes Viana Novo e o., C‑309/12, EU:C:2013:774,
n.º 22, e Despacho de 10 de abril de 2014, Macedo Maia
e o., C‑511/12,
não publicado, EU:C:2014:268,
n.º 21).
31. Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, as disposições da
Diretiva 2008/94 relativas à faculdade conferida aos Estados‑Membros de
limitarem a sua garantia demonstram que o sistema estabelecido pela referida
diretiva tem em conta a capacidade financeira desses Estados‑Membros
e que procura preservar o equilíbrio financeiro das suas instituições de
garantia (v., por analogia, Acórdão de 28 de novembro de
2013, Gomes Viana Novo e o., C‑309/12, EU:C:2013:774,
n.º 29, e Despacho de 10 de abril de 2014, Macedo Maia
e o., C‑511/12,
não publicado, EU:C:2014:268,
n.º 21).
32. Assim, por um lado, o artigo 3.º, segundo parágrafo, da Diretiva 2008/94 prevê que os créditos a cargo da instituição de garantia consistem em remunerações em dívida correspondentes a um período anterior e/ou, conforme os casos, posterior a uma data fixada pelos Estados‑Membros.
33. Por outro
lado, por força do artigo 4.º, n.º 1, da Diretiva 2008/94, os Estados‑Membros
têm a faculdade de limitar a obrigação de pagamento das instituições de
garantia a que se refere o artigo 3.º da diretiva. Segundo o
artigo 4.º, n.º 2, da referida diretiva, quando os Estados‑Membros
fizerem uso desta faculdade, devem determinar a duração do período que dá lugar
ao pagamento dos créditos em dívida pela instituição de garantia sendo que,
contudo, esta duração não pode ser inferior ao período relativo à remuneração
dos três últimos meses da relação de trabalho anterior e/ou posterior à data a
que se refere o artigo 3.º, segundo parágrafo, desta diretiva. Estas
disposições concedem igualmente aos Estados‑Membros a faculdade de
inserirem este período mínimo de três meses num
período de referência cuja duração não pode ser inferior a seis meses, bem como
de preverem uma garantia mínima limitada a oito semanas, desde que este período
de oito semanas se insira num período de referência mais longo, de dezoito
meses, no mínimo (v., por analogia, Acórdão de 28 de novembro de
2013, Gomes Viana Novo e o., C‑309/12, EU:C:2013:774,
n.º 26).
34. Importa recordar que os casos em que é permitido limitar a obrigação
de pagamento das instituições de garantia, conforme previstos no
artigo 4.º da Diretiva 2008/94, devem ser objeto de interpretação estrita
(v., por analogia, Acórdãos de 17 de novembro de 2011, van Ardennen, C‑435/10, EU:C:2011:751,
n.º 34, e de 28 de novembro de 2013, Gomes Viana Novo
e o., C‑309/12, EU:C:2013:774,
n.º 31). Todavia, tal interpretação restritiva não pode ter por efeito
esvaziar de conteúdo a faculdade expressamente reservada aos Estados‑Membros
de limitarem a referida obrigação de pagamento (v., neste sentido, Acórdão de
28 de novembro de 2013, Gomes Viana Novo e o., C‑309/12, EU:C:2013:774,
n.º 32).
(…)
36. Ora, por força do artigo 4.º, n.º 1, e do artigo 4.º, n.º 2, primeiro parágrafo, da referida diretiva, os Estados‑Membros têm a faculdade de limitar a tomada a cargo pela instituição de garantia, caso a relação de trabalho tenha cessado antes dessa data de referência, apenas a concedendo aos trabalhadores cuja relação de trabalho tenha cessado durante os três meses que precedem essa data (…). Com efeito, a exclusão dos trabalhadores cuja relação de trabalho tenha cessado antes deste período não viola a proteção mínima prevista no artigo 4.º, n.º 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/94, uma vez que estes trabalhadores não têm, face ao empregador insolvente, créditos em dívida decorrentes do seu contrato de trabalho ou da relação de trabalho que tenham nascido nos três meses anteriores à referida data de referência.»
Resulta, assim, claro, da jurisprudência do TJ, que a norma portuguesa sob análise não é desconforme com a Diretiva n.º 2008/94/CE.
15. Cumpre ainda analisar se a fixação do referido período de garantia viola a Constituição.
É necessário, desde logo, distinguir a presente norma daquela que foi objeto de julgamento de inconstitucionalidade pelo Acórdão n.º 328/2018. Efetivamente, neste caso não estamos perante a determinação de um prazo para solicitar o pagamento dos créditos laborais, relativamente ao qual se possa discutir a previsão de causas de suspensão ou interrupção. A norma objeto de apreciação fixa o período de garantia dos créditos laborais emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação pelo Fundo – ou seja, o período durante o qual o Fundo é responsável pelo pagamento dos referidos créditos, com os limites estabelecidos no artigo 3.º NRFGS.
O período de referência tem a duração de 6 meses e tem como pontos iniciais para a sua contagem a propositura da ação de insolvência, a apresentação do requerimento no processo especial de revitalização ou do requerimento de utilização do procedimento extrajudicial de recuperação de empresas (artigo 2.º, n.º 1 e 4, NRFGS). A norma desaplicada, tal como delimitada pelo processo, reporta-se à garantia de 6 meses anteriores à propositura da ação de insolvência.
A legitimidade para apresentar o pedido de declaração de insolvência inclui, nos termos do artigo 20.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), «qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito», verificando-se algum de um conjunto de factos, nomeadamente, a «suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas», a «falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações», ou o «incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos: i) Tributárias; ii) De contribuições e quotizações para a segurança social; iii) Dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato; iv) Rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência» (sublinhado aditado). Isto significa que os trabalhadores e os possuidores de créditos laborais sobre uma pessoa coletiva têm legitimidade para apresentar o pedido de declaração de insolvência, cumpridas certas condições, assim determinando decisivamente qual o período de garantia assegurado pelo Fundo. Findos seis meses de incumprimento, por exemplo, de não pagamento de retribuição, podem os trabalhadores apresentar o referido pedido, garantindo o Fundo o pagamento dos créditos laborais durante esse período. Existe, assim, uma correspondência tendencial entre o tempo necessário para apresentar o pedido de declaração de insolvência e o período de garantia que justifica a coerência do regime. Aliás, no presente caso, a recorrida foi uma das requerentes da declaração de insolvência.
É verdade que, para requerer o pagamento dos créditos pelo Fundo, o trabalhador terá que aguardar pela verificação de uma das situações previstas no artigo 1.º, n.º 1, NRFGS, nomeadamente que seja proferida sentença de declaração de insolvência do empregador. No entanto, isso não condiciona a fixação do período de garantia que permanece tendo como referência a propositura da ação, que pode ser exercida por si, autonomamente.
16. Assim, neste âmbito do prazo de garantia, não estamos perante uma situação em que o titular do crédito fica sujeito ao preenchimento de requisitos que não estão nas suas mãos ou que escapam ao seu controlo. Nesse caso, não se trata de uma situação comparável com a analisada no Acórdão n.º 328/2018, pois é possível ao credor, agindo com normal diligência, antever com suficiente segurança o comportamento que deve adotar para que o seu crédito seja coberto pelo período de garantia do Fundo – e adotá-lo, de facto, sem constrangimentos externos. Não está, assim, comprometido o princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).
Nesse domínio é necessário ter presente que o prazo de seis meses do período de garantia não é um prazo de caducidade ou prescrição relacionado com o exercício de um direito – mas sim o prazo que delimita a responsabilidade do Fundo por créditos ocorridos num período de tempo que é contado retroativamente a partir da ocorrência de um facto jurídico. Isso significa que, prima facie, não fará sentido falar neste caso em interrupção ou suspensão do prazo. De qualquer forma, não existe a invocação de qualquer facto externo que tenha impedido, dificultado ou impossibilitado a trabalhadora de propor a ação de declaração de insolvência do empregador num momento anterior, pelo que não fará sentido explorar essa via para o presente julgamento de inconstitucionalidade.
Por outro lado, na medida em que não se verifica uma situação em que o trabalhador titular do crédito fica sujeito a uma situação que foge ao seu controlo também não é possível encontrar aqui uma violação do princípio da igualdade (artigo 13.º, n.º 1, da Constituição). Não estamos perante uma situação de discriminação arbitrária de trabalhadores que, colocados na mesma situação, cumprindo os mesmos pressupostos, recebem tratamento diferente pelo sistema jurídico.
17. Por fim, não pode ser esquecido que o Fundo foi criado, em parte, para concretizar o mandamento constitucional constante do n.º 3 do artigo 59.º da Constituição, dirigido ao legislador da República, para que este institua “garantias especiais” para proteger os salários. Nessa medida, configurando uma das garantias especiais da retribuição, o regime do Fundo tem de ser efetivo, como referido no Acórdão n.º 328/2018, ponto 2.4.1., mas também terá de ser sustentável. Assim, é de aceitar que não resulta do texto constitucional a imposição de um Fundo de Garantia sem prazo, a todo o tempo.
De facto, o regime desenhado pela UE e transposto nacionalmente «tem em consideração a capacidade financeira» dos Estados-Membros, neste caso Portugal, e «procura preservar o equilíbrio financeiro das suas instituições de garantia» (cfr. Acórdãos do TJ de 28 de novembro de 2013, Gomes Viana Novo e o., Proc. n.º C-309/12, EU:C:2013:774, n.º 29, e de 25 de julho de 2018, Guigo, Proc. n.º C‑338/17, EU:C:2018:605, n.º 31). É, pois, de aceitar que exista um prazo de garantia que delimite as responsabilidades do Fundo de Garantia, desde que respeite as restantes imposições constitucionais, nomeadamente as decorrentes do princípio da proporcionalidade. Nesse contexto, um prazo que abrange os créditos laborais emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação que se tenham vencido nos seis meses anteriores à propositura da ação de insolvência não é desproporcionado.
Para além disso, o regime em causa «pressupõe um nexo entre a insolvência e os créditos salariais em dívida» (cfr. Acórdão do TJ de 25 de julho de 2018, Guigo, Proc. n.º C‑338/17, EU:C:2018:605, n.º 34) – o que se enquadra no dever do Estado de assegurar “garantias especiais” para proteger os salários nesse contexto especialmente complexo que é a insolvência do empregador. Assim, não é desrazoável que esse prazo tenha como ponto de referência para o início da sua contagem a propositura da ação de insolvência. Verifica-se, aliás, como já se referiu, uma tendencial correspondência temporal entre este período de garantia de seis meses e os seis meses de incumprimento de dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato, que legitimam os trabalhadores a apresentar um pedido de declaração de insolvência. Nesta leitura integrada do regime, trata-se de um prazo adequado para a prossecução das finalidades a que o legislador se propôs.
18. Não se encontra, por isso, no presente caso, fundamento para o julgamento de inconstitucionalidade da norma que estabelece que o Fundo assegura o pagamento de créditos do trabalhador emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação que se tenham vencido nos seis meses anteriores à propositura da ação de insolvência, decorrente do artigo 2.º, n.º 4, NRFGS.
III – Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar inconstitucional a norma segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência é de caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão, interpretativamente extraível do artigo 2.º, n.º 8, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril;
b) Não julgar inconstitucional a norma que estabelece que o Fundo assegura o pagamento de créditos do trabalhador emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação que se tenham vencido nos seis meses anteriores à propositura da ação de insolvência, decorrente do artigo 2.º, n.º 4, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril; e,
c) Em consequência, conceder provimento parcial ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas ex vi artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais.
Lisboa, 4 de março de 2020 - Maria de Fátima Mata-Mouros - João Pedro Caupers - José Teles Pereira - Manuel da Costa Andrade