ACÓRDÃO Nº 104/2020
Processo n.º 474/2019
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Inconformado com a Decisão Sumária n.º 375/2019, que decidiu não julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, alínea e), e 432.º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal (CPP), na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, no sentido de é irrecorrível o acórdão proferido, em recurso, pelo Tribunal da Relação, que aplique pena privativa da liberdade não superior a cinco anos, quanto o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, dela veio o recorrente A. deduzir reclamação, ao abrigo do n.º 4 do artigo 78.º-A da LTC.
2. Para melhor compreensão, releva que o aqui recorrente/reclamante foi condenado em 1.ª instância, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante regime de prova, e na pena acessória de proibição de contacto com a vítima.
Apenas o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, julgando procedente o recurso, decidiu alterar a decisão em matéria de facto relativamente aos antecedentes criminais do arguido, revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido como autor de um crime de violência doméstica e lhe impôs pena de prisão suspensa na sua execução, e condenar o arguido pela prática, como reincidente, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão (efetiva).
O arguido não se conformou e recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, peticionando a manutenção da medida punitiva em que fora condenado na primeira instância e invocando a verificação de «erro e má aplicação do direito» na aplicação de pena privativa da liberdade, em vez de pena de substituição.
O STJ, por decisão singular do relator proferida em 06/02/2019, decidiu rejeitar o recurso, com os seguintes fundamentos:
«A questão prévia que veio a ser suscitada é a de precisar se é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça face ao disposto na al. e) do n.º 1 do art. 400.º do CPP onde é estabelecida a irrecorribilidade dos acórdãos das relações proferidos em recurso que hajam aplicado pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, como é o caso dos autos.
A atual redação da norma foi introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, no seguimento da jurisprudência fixada [no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 14/2013] no domínio da Lei n.º 48/2007 no sentido de ser irrecorrível a decisão da relação que revogando a suspensão da pena fixada pela 1.ª instância aplicasse ao arguido pena de prisão não superior a 5 anos.
A situação agora em apreço difere de modo essencial daquela outra que deu origem à declaração de inconstitucionalidade lavrada inicialmente no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 429/2016 e que, com força obrigatória geral, veio a ser sufragada no Acórdão n.º 595/2018.
Aí, colocava-se a questão da irrecorribilidade do acórdão da relação que inovatoriamente, face à decisão de absolvição proferida em primeira instância, condenasse o arguido a pena de prisão efetiva não superior a 5 anos.
Não é o caso.
Em situações como a presente, ou seja, em que o arguido é condenado em pena de prisão com a respetiva execução suspensa, por conseguinte, numa pena de substituição e em que essa pena é alterada – em que se decide somente não haver lugar à substituição – mercê do recurso interposto pelo Ministério Público, o Tribunal Constitucional vem reiteradamente afirmando não ser inconstitucional a mencionada alínea e) do n.º 1 do art. 400.º do CPP interpretada no sentido de, em tal caso, não ser admissível recurso para o STJ.
Assim sucedeu mormente nos Acórdãos 101/2018, 243/2018 e 476/2018.
Na verdade, do que se tratou não foi de reverter uma decisão absolutória numa decisão condenatória mas somente [de] modificar a espécie da pena derivando essa modificação de uma alteração da matéria de facto.
Em relação a ambas – alteração da matéria de facto e reapreciação das consequências do crime ao nível da modificação da espécie da pena – teve o recorrente a oportunidade de assegurar os seus direitos de defesa designadamente quando lhe foi conferida a oportunidade de, ao abrigo do art. 413.º, n.º 1 CPP, contrariar com os seus argumentos a proposta do recurso interposto pelo Ministério Público.
O que vai de encontro à necessidade de salvaguarda da intervenção do tribunal que ocupa o [topo] da hierarquia da organização judiciária para os casos de maior merecimento penal, como vem sendo frisado pela doutrina e pela jurisprudência.»
O recorrente deduziu reclamação para a conferência do STJ, o qual, por acórdão de 28 de março de 2019, decidiu confirmar na íntegra o sumariamente decidido.
3. É este o acórdão recorrido para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, questionando a conformidade constitucional da norma extraída dos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, alínea e), e 432.º, alínea c), do CPP, com o sentido de que é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade não superior a cinco anos, quanto o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos.
4. A decisão sumária reclamada concluiu por julgamento negativo de inconstitucionalidade e pela improcedência do recurso. A sua fundamentação foi a seguinte:
«5. O recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma extraída dos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, alínea e), e 432.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, com o sentido de que “é irrecorrível o acórdão proferido pelas Relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade”.
Embora o recorrente não explicite e até remeta para os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 591/2012, 324/2013 e 845/2017, que apreciaram interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007 de 29 de agosto, resulta da leitura do acórdão recorrido que o Supremo Tribunal de Justiça aplicou, sem margem para dúvidas, a norma enunciada, mas extraída dos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, alínea e), e 432.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro.
Deste modo, o presente recurso tem por objeto a norma extraída dos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, alínea e), e 432.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, no sentido de que é irrecorrível o acórdão proferido, em recurso, pelo Tribunal da Relação que aplique pena privativa da liberdade não superior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade.
6. Este sentido normativo foi já apreciado por este Tribunal, conduzindo invariavelmente à emissão de juízo de não inconstitucionalidade. Assim sucedeu nos Acórdãos n.ºs 245/2015, 357/2017, 683/2017, 804/2017, 22/2018, 101/2018 e 476/2018 (acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
No citado Acórdão n.º 804/17, o Tribunal Constitucional, confirmando decisão sumária, reiterou a fundamentação expendida na Decisão Sumária n.º 37/2017, onde se escreveu:
“7. A Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no quadro de uma vasta reforma do Código de Processo Penal, conferiu nova redação à alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, que passou então a ter o seguinte teor: «Não é admissível recurso: (…) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade».
No âmbito da apontada redação, este Tribunal, através do Acórdão n.º 324/2013, tirado em Plenário, veio a julgar «inconstitucional a interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade.».
Fê-lo, todavia, exclusivamente com fundamento na violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), por entender que o inciso «que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos», quando o tribunal de 1.ª instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, ultrapassa manifestamente o sentido possível da letra da lei, nomeadamente da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, situando-se “fora do âmbito da interpretação” desse preceito, e consubstanciando, por essa razão, uma decisão por analogia, em matéria em que tal é constitucionalmente inadmissível por força do disposto nos mencionados preceitos da Constituição da República Portuguesa.
Desta forma, o juízo de inconstitucionalidade então alcançado ficou restrito à redação dada à alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, na medida em que a Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, veio conferir a atual redação a esse preceito, prevendo agora precisamente a irrecorribilidade dos acórdãos das Relações que, em recurso, venham a aplicar pena de prisão não superior a cinco anos.
8. Importa, todavia, notar que o aludido acórdão não deixou de se pronunciar sobre a norma em questão – e que corresponde àquela que constitui objeto do presente recurso –, mas agora na perspetiva da sua conformidade constitucional no confronto com as garantias de defesa em processo penal e o direito ao recurso, nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Escreveu-se no citado acórdão:
“A norma que tem sido aplicada, como razão de decidir, no sentido de que é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações que aplique pena de prisão não superior a 5 anos, em recurso de decisão de primeira instância que tenha aplicado pena não privativa da liberdade, já foi apreciada por este Tribunal, que a não julgou inconstitucional face ao disposto nos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP (Acórdãos n.ºs 424/2009, 419/2010 e 589/2011, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). O julgamento de não inconstitucionalidade funda-se no entendimento de que o acórdão da Relação consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição, tendo em conta que perante ela o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa, entroncando os fundamentos do direito ao recurso verdadeiramente na garantia do duplo grau de jurisdição. Ou seja, o direito ao recurso constitucionalmente consagrado satisfaz-se, atento o seu âmbito de proteção, com a garantia de um duplo grau de jurisdição.
Com efeito, este Tribunal tem vindo a entender, de forma reiterada, que não é constitucionalmente imposto o duplo grau de recurso em processo penal, sustentando-se que “mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição”, existindo, consequentemente, “alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 189/2001 e, entre outros, Acórdãos n.ºs 178/88, 189/2001, 640/2004 e 645/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Entendendo, também, que, muito embora se aceite que o legislador possa fixar um limite acima do qual não é admissível um terceiro grau de jurisdição, preciso é que “com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido”, devendo a limitação dos graus de recurso ter “um fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado”. Porquanto a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota naquela dimensão. Esta garantia, “conjugada com outros parâmetros constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não adote soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades de recorrer – mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e não constitucionalmente obrigatórios” (Acórdãos n.ºs 189/2001 e 628/2005. E, ainda, Acórdão n.º 64/2006, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).”
9. Trata-se de fundamentação que aqui importa reiterar, por ser inteiramente aplicável à questão de constitucionalidade posta no presente recurso e por constituir orientação sedimentada da jurisprudência deste Tribunal, justificando-se a prolação da presente decisão, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
10. Em qualquer caso, sumariamente se dirá que não procede a argumentação apresentada pelo recorrente, segundo a qual a decisão tomada em recurso pela Relação, que determinou a não suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido pelo Tribunal de 1.ª instância, é uma decisão surpresa, impossibilitadora ou pelo menos gravemente compressora do direito de defesa, o qual não pode ser cabalmente exercido na resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público.
Improcede, em primeiro lugar, porquanto uma decisão do Tribunal da Relação que aplique pena de prisão não superior a 5 anos, em recurso de decisão de primeira instância que tenha aplicado pena não privativa da liberdade, designadamente pena de prisão suspensa na sua execução, não pode ser considerada uma decisão surpresa, no sentido de o recorrido com ela não poder fundadamente contar. Com efeito, uma tal decisão corresponde diretamente ao provimento do recurso interposto pelo Ministério Público e/ou pelo Assistente e que teria, necessariamente, por objeto a aplicação efetiva de uma pena de prisão não superior a 5 anos. Sendo precisamente esse o objeto do recurso, não se pode afirmar seriamente que a decisão tomada em sua apreciação possa constituir surpresa para o recorrido.
E improcede, em segundo lugar, porquanto a decisão tomada no acórdão da Relação, que condena em pena de prisão não superior a 5 anos, resulta da reapreciação do caso por esse Tribunal superior, perante o qual o arguido recorrido tem ampla possibilidade de expor a sua defesa através da faculdade processual de resposta ao recurso. Possibilidade essa que é efetiva, na medida em que, face a uma mesma imputação penal e à pretensão de aplicação de uma pena privativa de liberdade manifestada pelo recorrente, o arguido recorrido tem a oportunidade de defender perante o tribunal superior o seu direito à liberdade, sabendo antecipadamente que é precisamente esse o objeto do recurso que será julgado e que o tribunal superior está limitado na sua decisão quer pelo princípio da proibição da reformatio in pejus, quer pelo que tiver sido pedido pelo recorrente.
Nessa medida, a decisão que, em recurso, venha a aplicar pena de prisão não superior a 5 anos, consubstancia a própria garantia do duplo grau de jurisdição, indo ao encontro direto dos fundamentos do direito ao recurso.
11. Também não procede o argumento segundo o qual o direito de defesa apenas está assegurado quando o arguido possa, ele próprio, recorrer da decisão que, pela primeira vez, o condene em pena privativa da liberdade.
Tal entendimento, não só encara o direito ao recurso desligado dos seus fundamentos substanciais, como levaria também, em bom rigor, a resultados inaceitáveis. Se o direito ao recurso em processo penal não for entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição, sendo antes perspetivado como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da primeira decisão aplicadora de pena privativa da liberdade, ainda que proferida em recurso, deveria então haver recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que aplicasse pena privativa da liberdade, na sequência de recurso interposto de decisão da Relação, que mantivesse a condenação mas não aplicasse uma tal pena. Resultado que ninguém aceitará, por razões que seria ocioso explicitar (cf. o Acórdão n.º 424/2009).
12. Importa ainda frisar que as razões que estiveram na base do julgamento de inconstitucionalidade alcançado no Acórdão 429/2016 não são transponíveis para a avaliação da norma ora em análise, precisamente porque existe uma diferença substancial entre as questões colocadas ao Tribunal Constitucional. Como se salientou no aludido acórdão, «os elementos caracterizadores da norma que cumpre apreciar são o facto de, no caso presente, ter existido uma decisão absolutória da primeira instância que é revertida pela decisão do Tribunal da Relação e essa reversão resultar na condenação em pena de prisão efetiva».
Considerou então o Tribunal que, num caso de reversão de absolvição para condenação em pena de prisão efetiva, o julgamento do recurso não assegura plenamente a reapreciação da matéria relativa às consequências jurídicas do crime, por a mesma constituir um segmento inovador do acórdão condenatório.
Enquanto que nos casos abrangidos pela norma sindicada no Acórdão n.º 429/2016, o direito de resposta ao recurso não permite um exercício efetivo do direito de defesa, já que exige do arguido absolvido em primeira instância um elevadíssimo grau de antecipação de todos os juízos e argumentos que podem conduzir a uma condenação – v.g. eventual alteração da matéria de facto, discussão do enquadramento jurídico dos factos e operações de determinação judicial da pena concreta e demais consequências do crime – para os poder contraditar, nas situações subsumíveis à norma em apreciação nos presentes autos o quadro é radicalmente distinto.
De facto, no caso de recurso de decisão de primeira instância condenatória, que tenha aplicado pena não privativa da liberdade e em que o recorrente Ministério Público e/ou Assistente pugnem perante a Relação pelo agravamento daquela, o objeto do recurso encontra-se perfeitamente delimitado, balizando-se a possível decisão do mesmo dentro de apertados limites: a moldura penal abstrata aplicável ao crime imputado, a proibição da reformatio in pejus e o pedido do recorrente.
Nestes casos, existe uma efetiva reapreciação do segmento da decisão condenatória relativo às consequências do crime, cujos termos, âmbito e consequências, são perfeitamente antecipáveis pelo arguido. O objeto do recurso e os assinalados limites intrínsecos e extrínsecos à decisão a tomar pelo tribunal superior no julgamento daquele, permitem concluir que a faculdade de responder ao recurso, prevista no artigo 413.º do Código de Processo Penal, assegura um efetivo exercício do direito de defesa, permitindo ao arguido expor perante o tribunal superior os motivos – de facto ou de direito – que sustentam a posição jurídico-processual da defesa, em termos idóneos a persuadir o julgador da sua justeza e a influenciar o curso do seu processo decisório (veja-se, em termos análogos, o recente Acórdão n.º 652/2016).
Em conclusão, a norma que constitui objeto do presente recurso não é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 29.º, n.os 1 e 3 e 32.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.”
7. Mantendo-se inteiramente válida a referida jurisprudência, não havendo nada de específico nos presentes autos que justifique posição diversa, cumpre proferir idêntico julgamento negativo de inconstitucionalidade, em decisão sumária, remetendo inteiramente para a fundamentação dos citados arestos, nos termos admitidos pelo n.º 1 do artigo 78.º-A, da LTC.»
5. Na peça de reclamação, o recorrente invoca a fundamentação do Acórdão n.º 598/2018, que transcreve extensamente, dizendo ainda o que segue:
«Ora, como já se escreveu em motivações de outros recursos, que deram origem a declaração de inconstitucionalidade na anterior redação,
“O recorrido ora recorrente, não recorreu da douta sentença de 1ª instância, por se conformar, a final, com a pena aplicada suspensa na sua execução, com regime de prova, independentemente do quantum encontrado.
Na verdade quer fosse a pena de prisão de 1 ou de 5 anos, desde que fosse não privativa da liberdade, como o foi, o ora recorrente conformava-se com a mesma, porquanto é pena não privativa da liberdade com regime de prova.
Ou seja, através desta interpretação do artigo 400º nº 1 al. e) do CPP, jamais poderia prevalecer-se do direito ao recurso constitucionalmente garantido, na medida em que ao conformar-se com a decisão em 1ª Instância, depois em caso de revogação dessa decisão para «pena privativa da liberdade», teria imediatamente de se “conformar com ela”
Na verdade seria o mesmo que dizer que só neste caso, o MP. tinha direito a recorrer e já não o arguido se visse alterada a decisão de (quer em caso de absolvição ou pena não privativa da liberdade), de uma pena que implicasse a sua imediata reclusão!
Salvo o devido respeito a norma do citado artigo é violadora do direito ao recurso previsto no artigo 32º nº 1 da CRP, e mesmo violadora do artigo 29º nº 5 da mesma Lei Fundamental.
E nem se diga que existiu duplo grau de jurisdição e que ao fim e ao cabo se trata em ambas de condenação, porquanto na primeira instancia trata-se de uma condenação, é certo, mas «não privativa da liberdade» e naquela que ora se recorre, é, sem margem para duvidas, condenação em «pena privativa da liberdade», mas em recurso interposto pelo MP. para a Relação,
E, na verdade, no caso concreto, o arguido/recorrente, ora reclamante, não exerceu o direito ao recurso por se conformar com a decisão, aliás douta, da 1ª Instância que embora o condenando o foi numa pena «não privativa da liberdade».
E no mundo das coisas e mais a mais no Direito, não se diga que as consequências jurídicas das condenações são iguais quer sejam penas privativas da liberdade ou não?!...
É evidente que não.
Na verdade, as primeiras são exequíveis as segundas poderão ser, conforme se verifique, ou não, a causa suspensiva da execução das mesmas.
Daí o legislador ter expresso que só os acórdãos proferidos em recurso, pelas relações, que apliquem penas «não privativas da liberdade», são irrecorríveis, e não aqueles que revogam penas não privativas da liberdade em penas efetivas de prisão.
O que bem se compreende.
Tivesse sido o arguido condenado em pena de prisão efetiva na sua execução, portanto privativas da liberdade, mesmo em pena inferior àquela que lhe foi aplicada em 1ª instância e, em princípio, teria recorrido.
Não o fez, e agora que a mesma é convertida em pena de privação da liberdade, já não o pode fazer, logo já não pode recorrer de uma «nova» decisão que lhe é inteiramente desfavorável.
Cremos que não deve ser assim.
Desde logo porque o artigo 32º nº 1 da nossa Lei Fundamental «garantias de processo criminal» assegura «todas» as garantias de «defesa», incluindo o «recurso».
Ora dizer que a norma do artigo 400º nº 1 al. e) do CPP não é inconstitucional por ter de ser enquadrada com o duplo grau de jurisdição, em que o arguido pode aduzir argumentos que abalem aqueles produzidos pelo MP, é o mesmo que dizer, nesta ótica, que a constituição até podia permitir ab initio vários graus de jurisdição, mas, quando pela primeira vez, vê a decisão convertida de pena não privativa da liberdade, para pena efetiva de prisão, - como é óbvio - só possível por recurso interposto pelo MP… já não o podia fazer por o «inimigo», entretanto ter esgotado todas as jurisdições possíveis no nosso ordenamento jurídico.
Se é esta a interpretação conforme a nossa Constituição, no sentido de menosprezar a liberdade individual, quando confrontado, com a possibilidade de ser encarcerado, sem possibilidade de poder recorrer, - reafirma-se – pela primeira vez contra uma decisão de que, mais do que desfavorável, o obriga a cumprir imediatamente pena de prisão, então, é o mesmo de corrermos o risco de retrocedermos até à época anterior, à revisão Constitucional de 1997!.
Melhor seria, uma nova revisão constitucional, em que se aditava que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa ao arguido e de acusação ao MP, incluindo o recurso….
Pois com o devido respeito que aliás, sempre é muito, é efetivamente disso que atualmente se trata com a alteração preconizada pela Lei nº 20/2013 de 21 de Fevereiro, na esteira, aliás, e à medida da interpretação adotada no Ac. (AUJ) do Supremo Tribunal com o n.º 14/2013 (publicado no DRE 1.ª série n.º 219 de 12 de novembro de 2013) que fixou a seguinte jurisprudência:
“Da conjugação das normas do artigo 400.º alíneas e) e f) e artigo 432.º n.º 1 alínea c), ambos do CPP, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão”.
Na verdade, e, resumidamente, o juízo de não inconstitucionalidade das normas em apreço operada pela, aliás, mui douta decisão sumária, é «meter» nas garantias de defesa em processo criminal que os arguidos constitucionalmente gozam, «incluindo o recurso» o direito/dever a «resposta» a um recurso interposto, exclusivamente, contra o arguido, pelo MP, em que implica a privação da sua liberdade, correndo-se até o risco dessa alteração da pena substituída, não o ser pelos argumentos, de facto e de direito, invocados pelo MP, mas por outros, até novos, que nem o arguido os podia «adivinhar» no contexto do recurso interposto.
Mais uma vez citamos o Douto Acórdão com força obrigatória geral, que não indo, para já tão longe, ainda assim, face ao nosso caso tem umas passagens interessantíssimas
[...]
Ora nesta esteira, da fundamentação do ponto 10 da decisão sumária, apesar de referir a proibição, ao caso em concreto, da reformatio in pejus em que só foi pedido pelo MP a revogação da suspensão da pena já o STJ através do recente acórdão nº 13/17.3 SWLSL.l1 da 3ª secção decidiu que:
“De conformidade com o exposto – louvando-nos na argumentação do próprio TC, nos termos citados- entende-se que a norma que se extrai das disposições conjugados do art. 432º n.º 1 al.ª b) e 400º n.º 1 al.ª e) do CPP, no sentido de não admitir recurso para o STJ de acórdão da Relação que agravou a pena de prisão aplicada na decisão condenatória da 1ª instância, aumentando a medida e decretando a efetividade da prisão, não padece de inconstitucionalidade material, não ofendendo o direito ao recurso, o direito de defesa nem o princípio da igualdade perante a lei.”
Ou seja, atualmente, bem vistas as coisas e perante, por exemplo, uma condenação em pena não privativa da liberdade, seja ela qual for, admoestação, multa, trabalho a favor da comunidade, e perante, recurso para a relação interposto pelo MP (aliás um direito constitucionalmente garantido), e passar de multa para pena de prisão efetiva de 5 anos, já não pode recorrer, posto que o MP «lhe queimou» essa etapa de garantia de defesa, «incluindo o recurso», pelo 2º grau de jurisdição.
Salvo o devido respeito não nos parece que essa norma satisfaça na plenitude esses comando constitucionais, basta pensar o que interessava ao arguido o legislador «conceder-lhe» o triplo grau de jurisdição se fossem sempre utilizados pelo MP para «prender» efetivamente o arguido e depois de esgotadas essas fases e, consumado o propósito, já o mesmo não podia reagir.
Daí, e apesar dos mui doutos argumentos da douta decisão sumária continuamos a propender para a inconstitucionalidade da mesma.
Na verdade esta norma, nesta fase processual, conflitua de uma forma clara com o princípio da presunção da inocência e direito ao recurso da decisão, consagrado no artigo 32.º n.º 1 e 2 da nossa Lei Fundamental.
Conflitua ainda com o subprincípio das garantias processuais e procedimentais ou no justo procedimento, aflorado em diversos preceitos da CRP, segundo o qual a todos é garantido um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito.
Do sub principio do Estado Constitucional ou da Constitucionalidade consagrado no art.º 3 º nº 3 da CRP, segundo o qual e para além do mais, a validade das leis e demais atos do estado depende da sua conformidade com a constituição;
Sub principio da independência dos tribunais e do acesso á justiça consagrado nos artigos 20º e 205 e seguintes da CRP, segundo o qual, e para além do mais, a todos é garantido o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, incumbindo aos tribunais, na administração da justiça, a defesa desses mesmos direitos e interesses legalmente protegidos;
Sub principio da prevalência da lei segundo o qual a lei deliberada e aprovada pelo Parlamento tem superioridade e preferência relativamente a atos da administração que está proibida de praticar atos contrários à Lei Fundamental;
Sub princípio da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos que significa que o cidadão tem o direito de poder confiar que às decisões públicas relativo aos seus direitos serão aplicadas as normas legais vigentes e os respetivos efeitos, dentro dos limites da nossa Lei Fundamental.»
6. Por seu turno, o Ministério Público pronunciou-se pela improcedência da reclamação, entendendo que o recorrente não adianta novos fundamentos ou argumentos que justifiquem o prosseguimento dos autos, com a apresentação de alegações e o posterior pronunciamento pelo pleno da secção.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
7. Vem o recorrente reclamar da decisão sumária, discordando do julgamento negativo de inconstitucionalidade nela proferido e, inerentemente, da orientação jurisprudencial seguida.
Em suporte da pretendida reversão do sumariamente reclamado, argumenta essencialmente com a gravidade da pena privativa da liberdade, aplicada em recurso interposto por outro sujeito processual, convocando para tanto as ponderações inscritas no Acórdão n.º 595/2018. Mais sustenta que se vê privado de recorrer dessa condenação em resultado do impulso deduzido pelo Ministério Público e que a norma questionada importa a sua indefesa perante o risco da alteração em recurso da pena imposta pela 1.ª instância, por fundamentos de facto e de direito que não podia antecipar nesse contexto.
Adiante-se que, como refere o Sr. Procurador-Geral Adjunto, o recorrente, ora reclamante, não apresentou argumentos suscetíveis de justificar ou impor a reponderação do julgamento constante da decisão sumária reclamada.
8. A tese avançada pelo recorrente na peça em apreço assenta primacialmente no valor da liberdade, entendendo que a Lei Fundamental impõe o acesso a um outro (segundo) grau de recurso sempre que o arguido seja confrontado, em resultado da cognição de impugnação recursória apresentada por outro sujeito processual, com a imposição ex novo de pena privativa da liberdade.
Não há como duvidar da primacialidade e relevo axiológico-normativo do direito à liberdade, bem jurídico-constitucional de primeira grandeza, cuja preservação encontra na Lei Fundamental garantias especialmente intensas, nas quais se inscrevem nuclearmente as garantias de defesa em processo criminal, incluindo, com valor basilar e autónomo – mas não único -, o direito ao recurso. Assim o tem considerado a jurisprudência constitucional que se pronunciou sobre diversas soluções normativas em matéria de (ir)recorribilidade pelo arguido de decisões condenatórias proferidas em recurso, de que é exemplo mais recente o Acórdão n.º 595/2018, invocado pelo recorrente, onde se lê:
«Independentemente de se poder ou não retirar do texto constitucional uma ordenação rígida de bens jurídicos, é incontestável que a Constituição dispensa uma tutela especialmente intensa ao direito à liberdade, que aprofunda o regime geral aplicável a todos os direitos fundamentais, contido no artigo 18.º São reveladoras desta posição de destaque do direito à liberdade as disposições contidas nos artigos 27.º e 31.º da Constituição. Desta forma, a Constituição perspetiva a pena de prisão - qualquer pena de prisão - como uma restrição muito grave do direito à liberdade do arguido. Do princípio da preferência pelas reações criminais não privativas da liberdade, corolário do princípio constitucional da necessidade e subsidiariedade da intervenção penal, resulta que a pena de prisão é uma sanção que só deve ser aplicada como ultima ratio, em concretização da ideia essencial da reintegração social e socialização do arguido condenado - que a jurisprudência constitucional identifica, na falta de disposição constitucional expressa, a partir do princípio da dignidade da pessoa humana (artigos 1.º e 25.º, n.º 1) e das normas constitucionais constantes dos artigos 2.º, 9.º, alínea d), e 18.º, todos da Constituição (v., entre outros, os Acórdãos n.os 336/2008 e 427/2009, ponto 4). As disposições em questão revelam igualmente que a Constituição é tributária de uma tradição humanista e liberal em matéria político-criminal que rejeita tanto a pena de morte (no que Portugal foi pioneiro), como a pena de prisão perpétua (artigos 24.º, n.º 2, e 30.º, n.º 1) e tem horror à privação injusta de liberdade. São emanações claras desse postulado de princípio a consagração expressa do mecanismo do habeas corpus e da indemnização por privação de liberdade ilegal (artigos 31.º e 27.º, n.º 5, da Constituição).»
Contudo, resulta igualmente da jurisprudência constitucional que o respeito pelo direito ao recurso não significa que o legislador esteja constitucionalmente vinculado a assegurar a impugnabilidade pelo arguido de todas as decisões condenatórias proferidas em recurso, mesmo quando imponham reação sancionatória privativa da liberdade e imediatamente exequível. Constitui entendimento consolidado do Tribunal que o direito ao recurso, assegurado pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, não garante ao arguido um segundo grau de recurso em matéria penal, assistindo ao legislador democrático margem de liberdade na modelação do acesso por via de recurso ao tribunal judicial supremo, enquanto via de prossecução de outros direitos e interesses constitucionalmente tutelados, como sucede com a própria eficácia do sistema penal, que tem como condição a emissão de um julgamento final e definitivo em tempo razoável.
É de reconhecer, assim, como interesse público legitimador da restrição do direito ao recurso, a necessidade de racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, por forma a impedir a paralisação do órgão, reservando a intervenção do tribunal cimeiro da orgânica judicial aos casos de maior merecimento penal, desde que preservado o núcleo essencial das garantias de defesa. Como se sublinhou no Acórdão n.º 324/2013 (que se debruçou sobre a mesma dimensão normativa aqui em análise, embora no quadro do regime anterior à Lei n.º 20/2013, a qual censurou com fundamento unicamente nas exigências do princípio da legalidade em matéria criminal), em trecho referido na decisão sumária reclamada:
«Entendendo, também, que muito embora se aceite que o legislador possa fixar um limite acima do qual não é admissível um terceiro grau de jurisdição, preciso é que “com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido”, devendo a limitação dos graus de recurso ter “um fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado”. Porquanto a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota naquela dimensão. Esta garantia, “conjugada com outros parâmetros constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não adote soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades de recorrer – mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e não constitucionalmente obrigatórios” (Acórdãos n.ºs 189/2001 e 628/2005. E, ainda, Acórdão n.º 64/2006, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
9. O argumentário esgrimido na reclamação assenta na transposição das ponderações avançadas no Acórdão n.º 595/2018 para a dimensão normativa em análise, o que, na ótica do recorrente, justifica que se afirme a imposição constitucional da admissibilidade de recurso do arguido em todos os casos de agravação das consequências jurídicas do crime pelo tribunal de recurso, mormente nos casos em que é substituída a pena de suspensão de execução da pena de prisão por pena de prisão, imediatamente exequível.
Acontece que a dimensão normativa em análise não comporta o elemento caracterizador essencial da fundamentação daquele aresto: a substituição em recurso de decisão absolutória por outra condenatória.
Na verdade, não se está perante uma reversão de decisão absolutória, substituída pelo tribunal de recurso por decisão condenatória, no âmbito da qual, e por decorrência da declaração de culpabilidade e punibilidade do acusado, é apreciada e decidida pela primeira vez a questão da determinação da sanção. Esse elemento, central ao juízo formulado pelo Tribunal no referido Acórdão, não se encontra presente na dimensão normativa aqui em apreço, uma vez que, quer a 1.ª instância, quer o tribunal de recurso, proferiram decisões condenatórias, existindo dupla conforme decisória quanto à declaração de culpabilidade do arguido, o que significa que ambas as decisões conheceram da questão da determinação da sanção. E, ademais, a divergência decisória decorre da modificação do decidido relativamente a outras questões, seja quanto aos fundamentos de facto, por decorrência da procedência da impugnação em matéria de facto (artigo 431.º, alínea b), do CPP), seja quanto aos fundamentos de direito, por via do juízo positivo formulado pela segunda instância relativamente aos pressupostos da reincidência, cujo efeito agravante conduziu o tribunal a quo a uma diferente ponderação das consequências jurídicas do crime, maxime quanto à espécie da pena aplicada: pena de suspensão da execução da prisão com a duração de cinco anos, imposta pela 1.ª instância, enquanto a relação decidiu pela condenação em pena de prisão (efetiva), com a mesma duração.
Não são, então, transponíveis para a apreciação da dimensão normativa em apreço as ponderações inscritas no referido aresto em função da cognição pelo tribunal de recurso de questão não apreciada pela 1.ª instância.
10. Também não colhe o argumento de que o aqui recorrente não teve acesso à interposição e modelação de recurso sobre a sua condenação e que se vê prejudicado, nesse plano, pelo recurso interposto pelo Ministério Público - na expressão do recorrente, por aquele ter, entretanto, «esgotado todas as jurisdições possíveis no nosso ordenamento jurídico».
Contrariamente que sucede em caso de decisão absolutória, em que não assiste ao arguido interesse em agir, o regime processual vigente não comporta restrição ao direito ao recurso sobre a decisão condenatória proferida em 1.ª instância, que não se encontra limitado em função da sanção imposta, ou mesmo pela dispensa de pena (cfr. artigos 375.º, n.º 3, e 399.º do CPP). Naturalmente, a dimensão normativa pressupõe que o reexame seja pedido outro sujeito processual, assumindo este interesse contraposto ao do arguido, no sentido do agravamento das consequências jurídicas antes impostas. Mas desse facto não decorre um qualquer efeito restritivo, e muito menos ablativo, das garantias de defesa do arguido, mormente do direito deste a impulsionar a reapreciação em recurso da declaração de culpabilidade e/ou da questão do sancionamento.
Na verdade, em caso de decisão condenatória, a legitimidade conferida ao Ministério Público para recorrer, estatuída na alínea a) do n.º 1 do artigo 401.º do CPP, seja no sentido do agravamento da posição do arguido, seja no seu exclusivo interesse, convive, no sistema normativo processual penal, com a legitimidade também conferida ao arguido para impugnar as decisões contra ele proferidas [alínea c) do mesmo número e preceito]. Nessa medida, a decisão do arguido sobre o exercício ou não do direito ao recurso de decisão condenatória proferida em 1.ª instância não depende, nem é condicionada pela conduta de outros sujeitos processuais - apenas de si depende. Por assim ser, não podia o arguido deixar de estar consciente de que, escolhendo não impugnar a sua condenação, mormente por com ela se conformar, essa sua opção não operava, por si só, a consolidação do julgamento, pois poderia ser confrontado, como veio a acontecer, com a interposição de recurso in pejus pelo Ministério Público.
Não procede, pois, a alegação de que, na hipótese normativa em presença, o ambiente normativo em que se inscreve a norma sindicada impede o arguido de impugnar por via de recurso a decisão proferida em 1.ª instância, estando o Ministério Público legitimado a fazê-lo, ou que atribui um qualquer efeito restritivo do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça à opção do arguido de não interpor recurso de tal decisão condenatória, inexistindo nessa matéria um qualquer favorecimento da acusação em detrimento dos meios de defesa do arguido.
11. É certo que o julgamento do recurso comportou um agravamento da posição processual do arguido relativamente ao antes decidido, mas daí não decorre uma situação de indefesa do sujeito processual, constitucionalmente proibida. No âmbito do recurso da decisão condenatória proferida em 1.ª instância, ciente da pretensão de modificação da reação penal e da natureza fundamentalmente substitutiva do julgamento proferido pela 2.ª instância, pôde o arguido, para além de refutar os argumentos do recorrente, perspetivar as eventuais consequências sancionatórias - à semelhança com o que acontece frequentemente no momento da apresentação na 1.ª instância da contestação e rol de testemunhas (artigo 315.º do CPP), ou nas alegações orais proferidas em audiência de julgamento (artigo 360.º do CPP) - e desse modo influenciar decisivamente o julgamento do recurso.
No quadro em presença, a limitação das garantias de defesa, na dimensão do exercício do direito ao recurso e do acesso a um terceiro grau de jurisdição, não se mostra desrazoável ou desproporcionada, em atenção ao interesse público relevante prosseguido pelo legislador democraticamente legitimado, impondo-se afastar a violação do artigo 32.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, ou outros parâmetros de constitucionalidade, designadamente os demais invocados na parte final da reclamação, os quais, enquanto princípios estruturantes do Estado de direito democrático, são pressupostos da garantia de defesa do arguido em processo penal, não se mostrando por qualquer forma lesados pela norma sindicada.
12. Impõe, por tais razões, manter o julgamento negativo de inconstitucionalidade proferido pela decisão sumária reclamada e indeferir a reclamação.
III. Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação e condenar o reclamante A. nas custas, fixando-se, de acordo com o impulso processual em apreço e a valoração seguida pelo Tribunal em casos similares, a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Notifique.
Lisboa, 12 de fevereiro de 2020 - Fernando Vaz Ventura - Mariana Canotilho - Manuel da Costa Andrade