ACÓRDÃO Nº 49/2020
Processo n.º 581/17
3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, na 3.ª secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 – A., SGPS, S.A, apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral coletivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária – RJAT), em que foi requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), pedindo a declaração de ilegalidade (i) da autoliquidação do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) do exercício de 2013, e (ii) da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa que apresentou desse ato.
A requerente fundou a pretensão anulatória da autoliquidação na violação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 4.º da Lei n.º 40/2005, de 3 de agosto (alterada pelas Leis n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, e n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro) - que criou o Sistema Fiscal de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento (SIFIDE) - e do artigo 90.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), por entender que tais disposições permitem que o benefício fiscal usufruído no exercício de 2013, ao abrigo do SIFIDE, na modalidade de dedução à coleta, seja imputado à parte da coleta de IRC apurada com base nas regras da tributação autónoma.
Por acórdão de 31 de maio de 2017, prolatado pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CADA), o pedido de anulação da liquidação foi julgado improcedente com fundamento, no que releva para o presente processo, na alteração que o artigo 133.º da Lei n.º 7-A/2006, de 30 de março (LOE de 2016) fez ao artigo 88.º do CIRC – aditando-lhe o número 21 -, esclarecendo que a coleta das tributações autónomas é feita nos termos do artigo 89.º do CIRC, sem quaisquer deduções, e o artigo 135.º dessa Lei ter atribuído natureza interpretativa a esse preceito, não tendo o intérprete fiscal outra alternativa senão aplicá-lo imediatamente, por não haver objeção de normas de hierarquia superior, já que não existe uma proibição constitucional genérica de leis fiscais interpretativas.
2. A requerente interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, pedindo a fiscalização da constitucionalidade da “norma constante do número 21, do artigo 88.º do Código do IRC, nos termos estabelecidos no artigo 135.º da LOE 2016, exclusivamente na parte em que derroga por via desta norma de natureza geral (e com efeitos retroativos), as normas especiais dos números 1 e 3, do artigo 4.º da Lei do SIFIDE II, quando interpretada no sentido explanado na Decisão Arbitral”.
3. Admitido o recurso, foi a recorrente notificada para alegar, o que fez com as seguintes conclusões:
A - O SIFIDE é um benefício fiscal que opera por dedução à coleta do IRC;
B - O SIFIDE é um benefício fiscal temporário, gerando acrescidas expectativas;
C - Estando as tributações autónomas incluídas na coleta de IRC, os créditos fiscais do SIFIDE são, igualmente, dedutíveis à coleta das tributações autónomas;
D - O número 21 do artigo 88.º do Código do IRC é uma norma inovadora;
E - Como norma inovadora, o número 21 do artigo 88.º do Código do IRC está sujeito a uma ponderação do juízo de constitucionalidade à luz da proibição da retroatividade da lei fiscal, nos termos do número 3 do artigo 103.º da Constituição;
F - O facto tributário formou-se ao abrigo da lei anterior, a qual permitia a dedução dos créditos fiscais de SIFIDE à coleta das tributações autónomas;
G - A norma do número 21, do artigo 88.º do Código do IRC é uma norma oneradora;
H - Está em causa a aplicação retroativa, na sua forma autêntica;
I - Logo, a aplicação do número 21, do artigo 88.º do Código do IRC ao caso em apreço é inconstitucional, por violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, decorrente do número 3, do artigo 103.º da Constituição;
J - Nesta sequência, a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março é inconstitucional (por violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, decorrente do número 3, do artigo 103.º da Constituição), na parte em que, por efeito do caráter meramente interpretativo que lhe atribui, determina que a norma do artigo 88.º, n.º 21, 2.ª parte, do Código do IRC 21 (aditada pelo artigo 133.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março), segundo a qual - ao montante global resultante das tributações autónomas liquidadas num dado ano em sede de IRC, não pode ser deduzido o benefício fiscal apurado a título de SIFIDE - se aplique aos exercícios fiscais anteriores a 2016;
K - Face ao exposto, pelo presente se recorre da decisão a quo com fundamento no facto desta ter aplicado a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março que padece de inconstitucionalidade nos termos acima definidos no ponto J. das presentes conclusões, como também,
L - Se recorre da decisão a quo com fundamento no facto desta ter aplicado a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março que já foi julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional por via do Acórdão n.º 267/2017, com base na violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, decorrente do número 3, do artigo 103.º da Constituição;
M - Note-se ainda que, a norma do número 21 do artigo 88.º do Código do IRC é uma norma geral;
N - A norma do artigo 4.º da Lei do SIFIDE é uma norma excecional;
O - Norma geral não derroga ou revoga norma excecional;
P - A norma do número 21 do artigo 88.º do Código do IRC não derroga a norma do constante do número 1 do artigo 4.º da Lei do SIFIDE II (que corresponde com diferente numeração identificativa ao atual número 1 do artigo 38.º do Código Fiscal do Investimento);
Q - Mantém-se plenamente em vigor o entendimento anterior à LOE 2016: os créditos fiscais de SIFIDE são dedutíveis à coleta de IRC e das tributações autónomas (incluídas no próprio IRC);
R - A norma constante do número 21 do artigo 88.º do Código do IRC é inconstitucional quando interpretada nos termos efetuados pela decisão a quo no sentido que derrogue uma norma excecional estipuladora de benefício fiscal, contrariando nestes termos o princípio da legalidade tributária estatuído no número 2 do artigo 103.º da Constituição.
4 - A recorrida Autoridade Tributária e Aduaneira contra-alegou, concluindo da seguinte forma:
A - A ora Recorrente veio submeter ao Tribunal Arbitral pronúncia sobre quer o ato de indeferimento (tácito) do pedido de reclamação graciosa, quer a liquidação que pretendeu ver revista por via desse procedimento, que corresponde à autoliquidação de IRC, referente ano de 2013.
B - Em síntese a Recorrente pretendia deduzir o valor os benefícios fiscais atribuídos no âmbito do SIFIDE à coleta produzida pelas tributações autónomas.
C - Sustentou ainda, preposteramente, que, e naquilo que ora nos debruçamos, o teor do artigo 133.º, o qual aditou o número 21 ao artigo 88.º do CIRC, com os efeitos previstos no artigo 135.º, ambos constantes da Lei do Orçamento de Estado para 2016, publicado a 30.03.2016, com entrada em vigor no dia seguinte, nos quais se preconizou, com caráter interpretativo, que a «A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos do artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado», é materialmente inconstitucional, por violação da proibição da retroatividade em matéria de impostos prevista no n.º 3 do art.º 103.º da CRP, quer se tenha concluído, quer não, estar-se perante uma lei materialmente interpretativa.
D - O teor do artigo 133.º, o qual aditou o número 21 ao artigo 88.º do CIRC, com os efeitos previstos no artigo 135.º, ambos constantes da Lei do Orçamento de Estado para 2016, publicado a 30.03.2016, com entrada em vigor no dia seguinte, nos quais se preconiza, com caráter interpretativo, que «A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos do artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado.»
E - Tal norma veio clarificar positivando, como se evidenciou supra, o entendimento e prática perfilhados pacificamente pela doutrina e pelos contribuintes em geral, os quais nunca foram postos em causa pela AT.
F - Apenas vindo a tornar-se, artificialmente, uma controvérsia face às peregrinas e inenarráveis teses propugnadas no CAAD, ao abrigo de um cartel interpretativo, encabeçado por grandes grupos económicos, consultoras e escritórios de advocacia.
G - Com efeito na Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março LOE, o legislador introduziu o n.º 21 ao art.º 88.º do CIRC, com a seguinte redação: “A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no art. 89.º e tem por base os valores e taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado”.
H - No art.º 135.º da referida Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, o legislador determinou que a norma em causa teria caráter interpretativo.
I - Verificando-se que, de facto e insofismavelmente, o novo n.º 21 do art.º 88.º do CIRC tem caráter interpretativo, as disposições aí contidas integrarão a norma interpretada desde o seu início de vigência,
J - Pelo que este Colendo Tribunal terá que, inelutável e necessariamente, concluir pela conformidade da norma com a CRP.
K - Considera-se que, face à mais recente jurisprudência deste Colendo Tribunal em matéria de interpretação e delimitação da amplitude do princípio da proibição da retroatividade fiscal (Acórdão n.º 310/2012, de 20 de junho, e acórdão 399/2010, de 27 de outubro, as conclusões do acórdão n.º 172/2000, de 22-03-2000, proferido no proc. 762/98,) não justificarão uma proibição absoluta de leis interpretativas.
L - A admissibilidade constitucional de leis interpretativas em matéria fiscal – tal como relativamente a quaisquer normas de natureza fiscal – deverá ser aferida em função das matérias sobre as quais versam e do respetivo conteúdo normativo uma vez que a proibição constitucional da retroatividade da lei fiscal se cinge às matérias de incidência (objetiva, subjetiva, temporal e territorial) do imposto.
M - E a verdade é que a prática jurisprudencial, de que são exemplos os acórdãos do STA de 21- 03-2012, proc. n.º 830/11, e de 16-05-2012, proc. n.º 675/11, tem admitido a existência de leis interpretativas de âmbito fiscal.
N - Partindo-se, assim, da admissibilidade teórica de leis interpretativas em matéria fiscal, cumpre analisar se, no caso em apreço, não obstante a declaração expressa do legislador, estamos efetivamente perante uma lei interpretativa conforme as disposições constitucionais,
O - Nas avisadas palavras de Ferrer Correia
“Na ausência de outros elementos que permitam dar valor interpretativo a uma norma, o critério fundamental a utilizar para tal fim é ‘que o princípio contido na nova lei possa considerar-se ínsito na lei anterior. Ora esse requisito deve julgar-se satisfeito sempre que possa dizer-se que os tribunais decidiriam normalmente, no domínio da legislação anterior, de acordo com tal princípio. (…) É que, verificando-se este pressuposto, cessam as razões que estão na base do princípio da não retroatividade da lei, que se consubstanciam na tutela dos direitos adquiridos e das expectativas concebidas pelos particulares ao agirem ao abrigo das normas da lei precedente. Se a jurisprudência era claramente favorável a um certo entendimento da legislação anterior, e a nova lei o vem confirmar de modo expresso não se vê razão para não definir esta lei como interpretativa e como tal aplicável mesmo para o passado. Em boas contas ninguém poderá queixar-se de ofensas de direitos subjetivos ou de frustração de expectativas, já que os interessados, se tivessem recorrido aos tribunais para fazer valer um suposto direito ou ver esclarecida determinada situação, não teriam muito provavelmente obtido resultado diverso daquele que agora se tornou certo”. In Coletânea de Jurisprudência, Ano XIV, Tomo IV, p. 35
P - Este é também o entendimento de Batista Machado, que concluiu que
“a razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar uma das interpretações possíveis da lei antiga com que os interessados podiam e deviam contar, não é suscetível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas”. In Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1994, p. 246 e seguintes
Q - Nestes casos, não há verdadeira retroatividade na aplicação da lei interpretativa porque a interpretação da norma originária efetuada à luz do quadro legal em vigor levaria à mesma solução que a consagrada pelo legislador em norma posterior.
R - Em face desta posição, cuja fundamentação é ponderável, à face da legislação vigente em 2012, pode e deve aceitar-se a atribuição de natureza interpretativa que se faz no artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, conforme a CRP, ao n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, à luz dos ensinamentos de Batista Machado, porquanto a solução nele prevista de inviabilidade de dedução do pagamento especial por conta ao montante global das tributações autónomas passa o teste enunciado por este Autor, i, e:
I. a solução que resultava do teor literal do artigo 93.º, n.º 1, do CIRC era clara no sentido da não dedutibilidade á coleta produzida pelas tributações autónomas (efetivamente esta questão vertida nestes autos apenas se tornou controvertida face às peregrinas e inenarráveis teses propugnadas no CAAD, ao abrigo de um cartel interpretativo, encabeçado por grandes grupos económicos, consultoras e escritórios de advocacia) sendo claro e hialino que a solução definida pela nova lei situa-se dentro dos quadros da virtual e artificialmente controvérsia criada pelo citado cartel interpretativo;
II. o julgador ou o intérprete poderiam chegar a essa solução sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei, já que a interpretação restritiva é admissível quando há razões para concluir que o alcance do texto legal atraiçoa o pensamento legislativo ou é necessário otimizar a harmonização de interesses conflituantes que duas normas visam tutelar.
S - Ademais, não se antevê ou vislumbra que o regime que resulta do n.º 21.º do art.º 88.° do CIRC encerre qualquer contradição na medida em que, segundo esta nova norma, as normas do CIRC relativas à forma de liquidação de tributações autónomas devem ser interpretadas como aí se prevê e relativamente a essa parte da liquidação de IRC não são efetuadas deduções.
T - Aliás, foi precisamente com este sentido que foi elaborado o modelo 22 de declaração de IRC e se foi aplicando o regime agora explícito no n.º 21 do art.º 88.º que a ora Recorrente e, aliás, sublinhe-se, todos os contribuintes, sem que fosse alvitrada qualquer questiúncula, preencheram as declarações que se referem nos autos, sem qualquer contradição percetível.
U - Repise-se, a norma ora em apreço apenas veio clarificar positivando, como se evidenciou ao longo dos autos, aquilo que sempre foi o espírito da norma, bem como o entendimento e prática perfilhados pacificamente pela doutrina e pelos contribuintes em geral, os quais nunca foram postos em causa pela AT,
V - DAS TRIBUTAÇÕES AUTÓNOMAS
i. Da sua natureza,
ii. da única interpretação da Lei admissível à data dos factos e
iii. da inutilidade da Lei Interpretativa.
W - Desde a criação das Tributações Autónomas, no início da década de 90, e a sua evolução legislativa, sempre foi pacífico por que as tributações autónomas não admitiam qualquer dedução.
X - Até ao Tribunal Arbitral
Y - Ora, as deduções previstas no n.º 2 do art.º 90.º, segundo uma certa ordem de precedência (1.ª - dupla tributação jurídica internacional; 2.ª - dupla tributação económica internacional, 3.ª – benefícios fiscais; 4.ª – pagamento especial por conta; e 5.ª – retenções na fonte, insuscetíveis de compensação ou reembolso), quando aplicadas às tributações autónomas frustram os objetivos por elas visados.
Z - Com efeito, se fosse possível deduzir benefícios fiscais à coleta das tributações autónomas neutralizar-se-ia a razão de ser dessas tributações.
AA - Através desse tipo de tributos, o legislador visa evitar que os contribuintes utilizem para fins não empresariais bens que geraram custos fiscalmente dedutíveis ou que realizem despesas e encargos que representam ou possam configurar evasão fiscal ilegítima.
BB - Ora, o sentido antiabuso das tributações autónomas não seria conseguido se a coleta que delas resulta fosse sujeita àquele tipo de deduções.
CC - Se a intenção é penalizar (ou prevenir) certo tipo de despesas que diminuem a matéria tributável do IRC e a respetiva coleta, não faz sentido - e até é contraditório - permitir que a coleta das tributações autónomas se esvazie com deduções que visam direta e exclusivamente o desagravamento fiscal do lucro tributável e da coleta que ao mesmo respeita.
DD - É incoerente desincentivar as empresas à realização de despesas que diminuem a medida real do imposto sobre o rendimento, através de um encargo fiscal adicional, e por outro lado, permitir que na coleta daí resultante sejam deduzidas as quantias que incentivam os lucros (benefícios fiscais) ou que pretendam garantir uma coleta mínima de IRC (PEC).
EE - A admissibilidade destas deduções acabaria por impedir que as tributações autónomas realizassem o objetivo para que foram criadas.
FF - Assim, a natureza e a finalidade das tributações autónomas é incompatível com a dedução à correspondente coleta de benefícios fiscais e de pagamentos efetuados por conta do imposto sobre o lucro tributável.
GG - De modo que a norma do n.º 2 do art.º 90.º do CIRC, para se tornar compatível com o pensamento legislativo, deve ser interpretada no sentido de apenas permitir deduções à parte da coleta que tem por fonte o lucro tributável.
HH - Importa relevar que, na determinação do IRC, são aplicadas, no cálculo das tributações autónomas, regras diferentes das relativas à tributação do IRC em geral (artigos 88° e 89° do CIRC), dado serem realidades distintas na origem, na finalidade e na funcionalidade, dai que não se esteja perante algo unitário mas perante hibridismo, resultando a final urna fusão, sem perda da individualidade dos componentes, da sua realidade diversa, como por justaposição.
II - O elemento inicial do n.º 2 do art.º 90.° - o literal - não possibilita, sem mais, o entendimento da possibilidade de serem operadas deduções ao resultado das tributações autónomas, visto de outras disposições e sua aplicação (n.º 1 do art.º 105.º CIRC, com terminologia semelhante, e, relevando também a conexão das deduções ao lucro, o n.º 5 do art.º 90.º n.º 5, 91.º e 91.º-A do CIRC e a alínea a) do n.º 5, art.º 3.º da Lei n.º 49/2013, conjugado com o n.º 1 do art.º 69.º n.º 1 do CIRC) resultar não serem as tributações autónomas naquele consideradas.
JJ - E à mesma conclusão se chega através dos elementos teleológico e sistemático, tendo em consideração as
(1) causas,
(2) fundamentos,
(3)finalidades, nomeadamente, evitar a hipertrofia de gastos, -limitando-os -, diminuindo artificialmente a capacidade contributiva, preservação da boa gestão empresarial mediante necessidade de justificação empresarial dos gastos seja para evitar despesas excessivas ou de natureza mista privado-empresarial seja para combater a evasão fiscal, por exemplo, a distribuição oculta de lucros ou a contribuição para a economia paralela, propiciando a eliminação da opacidade face à transparência, a racionalidade de comportamentos, evitando desigualdade, repartindo mais adequadamente a carga fiscal, objetivos, portanto, que não podem ser postergados, ainda que a finalidade reditícia possa eventualmente ser considerada, mas não erigida como algo exclusivo ou nuclear, sendo, portanto, as correspondentes normas dissuasoras, compensatórias e antiabuso) e
(4) resultados
KK - das tributações autónomas em harmonização com a fundamentação das deduções estabelecidas no n.º 2 do art.º 90° do CIRC, em que estão compreendidos quaisquer benefícios fiscais operando por dedução à coleta e, consequentemente, conduzindo ao desagravamento dessa coleta.
LL - Aliás, seria revelador de grave incoerência remover-se algo com os objetivos assinalados nas tributações autónomas mediante consideração, no quantitativo implicado, de realidades ainda que visando mormente o desenvolvimento ou, no caso do PEC, atentas nomeadamente a sua origem (presunção de rendimento oculto) e finalidade (anti evasão), com a consequência de o censurável ser branqueado, prejudicando-se ou eliminando-se a assepsia fiscal.
MM - O ring fencing é, portanto, aplicável às tributações autónomas.
NN - Deverá acrescentar-se não serem, assim, procedentes argumentos como a necessidade de prevalência do interesse que justifica o benefício, visto que a respetiva hierarquização prioritária só se colocará quando não seja contrastante com o intuito legal da preservação do bom agir como o legislador preceituou e não como o intérprete, substituindo inaceitavelmente este, considera aquele.
OO - Aliás, inicialmente as tributações autónomas não foram incluídas no CIRC, quando, depois, se poderia ter tido a ideia da respetiva dedutibilidade, nunca tal aconteceu (Cfr. Lino Ribeiro in Ponto C das presentes Contra-Alegações),
PP - e só posteriormente (com o CAAD) passou a ser objeto de controvérsia, nao se tendo caído, pois, na uniformidade contrária.
QQ - Embora a tributação autónoma seja ligada a final com o IRC calculado pelas regras gerais, determinando a importância total a cobrar, não é semelhante a este último que sujeita diretamente rendimento, e, portanto, é imperioso nunca esquecer a natureza autónoma da tributação e bem revelada desde o seu início com a correspondente denominação.
RR - Não se afigura, pois, necessária qualquer lei interpretativa para se atingir o entendimento da não dedutibilidade do elencado no n.º 2 do art.º 90.º do CIRC à coleta das tributações autónomas
SS - A norma aqui sindicada, ao estabelecer o caráter interpretativo da nova redação ao do n.º 21 do art.º 88, é totalmente clara em abranger todo o n°. 21 (aliás, a respetiva parte final é que resolve a putativa e artificial controvérsia criada exclusivamente pelo CAAD), não podendo, portanto, ser limitado o seu comando, salvo se não ocorrer o condicionalismo para tal exigido,
TT - O que não sucede.
UU - Tem, portanto de se acolher o caráter interpretativo porquanto «…a solução do direito anterior…» era «…controvertida ou pelo menos incerta...» e «…a solução definida pela lei nova…» situa-se «…dentro dos quadros da controvérsia e…» é «…tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostas à interpretação e à aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir- se autorizados a adotar a solução que a LN vem consagrar, então é decididamente inovadora.» in Batista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p.247), parte final que decididamente não é aplicável ao caso.
VV - Quanto à invocada proibição do n.º 3 do art.º 103.º n.º 3 da CRP, afirmou Maria Lúcia do Amaral no seu voto no acórdão n°. 617/2012 do Tribunal Constitucional:
«Não é possível, a meu ver, defender que o n.º 3 do art.º103.º consagrou urna’ regra absoluta’ cujo sentido seja apreensível sem qualquer recurso, no plano hermenêutico ao princípio da proteção da confiança. Se se sustenta a plena autonomia de sentido do n° 3 do artigo 103° da CRP face a qualquer ponderação principal, como é que se passa logicamente da primeira proposição [regra absoluta do mencionado preceito] para a segunda [situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria não cabendo naquela regra]? Como é que se sabe que a Constituição só proíbe a retroatividade autêntica e não proíbe a inautêntica? E como é que se distingue uma da outra?»
WW - Também Cardoso da Costa,
«...entendendo que da proibição expressa da retroatividade em matéria fiscal, que consta do texto constitucional a partir da Revisão de 1997, não deve retirar-se a consequência da exclusão, em absoluto, e sem mais, de normas interpretativas nessa matéria, com a eficácia “retroativa” que lhes estará em principio associada, desde que tais normas consubstanciem uma verdadeira interpretação. Poderei de todo o modo, e em tese, concedendo urna análise casuística, admitir que em algum caso deva concluir-se por tal exclusão, quando o principio da confiança jurídica esteja posto intoleravelmente em causa. Não julgo, porém, que seja esse o caso, dos autos idêntico ao presente», in processo n.º 302/2016 – T CAAD.
XX. Em processo deste Tribunal, escreve Almeida Ribeiro
«Na verdade, a ofensa ao princípio da confiança que a retroatividade sempre importa evitará censura constitucional apenas naquelas circunstâncias em que o peso crescente de princípios no sentido contrário o justificar. É neste quadro que se deverão distinguir, por exemplo, os casos em que a retroatividade fiscal é um expediente para corrigir atrasos na aprovação da legislação fiscal que se devem à incúria do legislador ou para contrariar a má execução orçamental pelas administrações públicas - casos que não merecem qualquer tolerância constitucional -, dos casos em que as normas fiscais retroativas cumprem imperativo de equidade tributária, nomeadamente através do combate à fraude e evasão fiscal, de justiça social ou de interesse público - situações em que se justifica, pelo menos, abrir espaço para a graduação e ponderação das razões subjacentes à intervenção do legislador», in Acórdão n.º 171/2017
YY - E ainda Lino Ribeiro deste mesmo Tribunal:
«Ora não me parece que o princípio constitucional da proibição da retroatividade tenha um caráter tão absoluto que impeça a existência de leis fiscais interpretativas»
ZZ - e acrescenta, depois da necessária e indiscutível distinção dos tipos de retroatividade, completamente obnubilada no acórdão que a Recorrente aqui usa como fundamento,
«No caso das normas fiscais interpretativas materiais - as que visam solucionar a incerteza de lei anterior, situando-se dentro dos quadros da controvérsia, com um conteúdo que o julgador ou intérprete a ela pudesse chegar, sem ultrapassar os limites típicos impostos à interpretação e aplicação da lei - não se pode dizer que a confiança dos contribuintes no sentido da norma interpretada gera expectativas legítimas da sua continuidade no ordenamento jurídico. Se a norma é controversa, a única expectativa que existe é que o legislador a solucione. Se ele o faz, optando por um dos entendimentos possíveis, que até já era seguido pela jurisprudência [E PELA PRÁTICA FISCAL, SULBLINHE-SE E REITERE-SE À SACIEDADE], não se pode dizer que há frustração intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva da confiança depositada na norma interpretada», escrevendo depois e relativamente à lei disciplinadora do caso sub judice
«O caso dos autos é paradigmático da inexistência de expectativas jurídicas ou de manutenido do regime legal pretensamente controverso”,
referindo o não questionamento anterior da não dedutibilidade na coleta das tributações autónomas
«Apenas com a intervenção do tribunal arbitral é que surgiram - em 2014 e 2015 decisões do CAAD, umas no sentido de que o PEC e os benefícios fiscais podiam ser deduzidos à coleta das tributações autónomas e outras em sentido contrário. Ora, a expectativa na manutenção de uma das interpretações efetuadas pela jurisprudência arbitral não se pode confundir com as expectativas geradas pela própria lei. Se a norma era duvidosa e se foi criada uma [FABRICADA E CONGEMINADA] controvérsia quanto à admissão aplicativa da mesma, o expectável era que o legislador viesse resolver a incerteza num dos sentidos possíveis, provavelmente no sentido com a mesma sempre foi aplicada, que, como vimos, essa era a interpretação mais correta», transcrevendo a final Batista Machado acima transcrito, sobre as variações e mudanças jurisprudenciais, in Processo n°. 267/2017 deste Colendo Tribunal.
AAA - Mais, segundo a jurisprudência constitucional, conforme o respetivo acórdão 18//2011:
«Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da confiança é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados ‘expectativas’ de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões [NÃO NUMA QUALQUER INTERPRETAÇÃO ERRÁTICA E NUMA SUPOSTA CONTROVÉRSIA CRIADA ARTIFICIALMENTE PELO CAAD]; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do ’comportamento’ estadual; por último é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa (neste sentido, o acórdáo n°. 120/2009)».
BBB - Ora é patente que, no caso sub judice, face ao circunstancialismo, designadamente as divergências de opinião, não ocorrem os correspondentes requisitos necessários.
CCC -Deste modo, como resulta do escrito, nada, no caso sub judice, colide com a possibilidade do denominado caráter retroativo.
DDD - Também o Supremo Tribunal Administrativo, referindo-se à mesma lei de 2016, embora relativamente a outra disposição legal, a cuja nova redação foi atribuído também caráter interpretativo, decidiu:
«E esta norma interpretativa é aplicável imediatamente às situações anteriores uma vez que não aporta um conteúdo inovador (...), nos termos do disposto no artigo 13.º n.º1 do Código Civil» negrito do próprio texto, seguindo-se transcrição de Batista Machado também supra efetuada .
EEE - (cfr., sem intuito de exaustão, o acórdão de 03.11.2016, no processo n.º 0976/16 com repetição mutatis mutandis nos acordãos de 30.11.2016, no processo n.º 0822/16, de 18.01.2017, no processo n.º 0835/16, de 15.02.2017, no processo n.º 0669/16, de 22.02.2017, no processo n.º 0821/16, de 08.03.2017, no processo n.º 013/ 17, e de 19.04.2017, no processo n.º 01362/16).
FFF - Ora a Recorrente qualifica a norma impugnada como substancialmente retroativa, porque contraria um certo entendimento da jurisprudência arbitral quanto à admissibilidade de deduções ao montante global da coleta de IRC.
GGG - Consagra ainda a Recorrente que, no fundo, o que se julga é que as normas interpretativas (as «verdadeiramente interpretativas») são incompatíveis com a proibição da retroatividade em matéria fiscal, consagrado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, na medida em que vinculam os tribunais a uma determinada interpretação, entre várias em abstrato possíveis, elas implicam, necessariamente, uma aplicação retroativa de lei interpretanda.
HHH - Ora, não resulta da vasta jurisprudência que o princípio constitucional da proibição da retroatividade tenha um caráter tão absoluto que impeça a existência de leis fiscais interpretativas por uma propalada violação do princípio da irretroatividade das leis fiscais.
III - Como resulta do acervo interpretativo deste Colendo Tribunal, exclui-se do âmbito aplicativo desse princípio as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, o que, desde logo, significa que a norma constitucional não afasta todo e qualquer tipo de retroatividade.
JJJ - A irretroatividade fiscal é uma manifestação do princípio da segurança jurídica ou da confiança inscrito no princípio do Estado de direito (artigo 2.º da CRP).
KKK - atenta a doutrina e jurisprudência supra citadas é possível descortinar três graus ou níveis de retroatividade da lei fiscal.
A saber:
i. Retroatividade de 1.º grau, ou retroatividade própria ou autêntica, que se traduz na aplicação direta da lei nova a factos tributários ocorridos anteriormente à data de entrada em vigor;
ii. Retroatividade de 2.º grau, ou retroatividade não autêntica ou imprópria, que se traduz não na aplicação direta da lei nova a factos ocorridos anteriormente à data de entrada em vigor, mas aos efeitos daquele facto tributário que ainda não estão totalmente esgotados; e
iii. Retroatividade de 3.º grau, designada, por um segmento da doutrina, por retroatividade não autêntica ou imprópria, e, por outro segmento da doutrina, por retrospetividade, e que se traduz na aplicação da lei nova a factos que não ocorreram totalmente ao abrigo da lei antiga, antes se continuando a formar na vigência da lei nova.
LLL - Cumpre salientar, neste âmbito, e como bem nota o Tribunal Constitucional, no supra referido acórdão n.º 399/2010,
«A qualificação que a doutrina atribui a cada uma destas situações não é de todo convergente, verificando-se, todavia, um certo consenso em considerar a primeira situação descrita como retroatividade autêntica (…). Em relação aos segundo e terceiro casos enunciados, há quem considere que ambas as situações se enquadram na retroatividade inautêntica, enquanto outros apenas incluem a segunda situação nesta categoria, defendendo que o terceiro caso já não se integra em qualquer tipo de retroatividade, mas sim na retrospetividade.»
MMM - A jurisprudência deste Colendo Tribunal tem entendido que a retroatividade proibida pelo n.º 3 do art.º 103.º da CRP é a retroatividade própria ou autêntica, ou seja, que aquele preceito constitucional visa apenas proteger as situações que se traduzem na aplicação da lei nova a factos anteriores à sua entrada em vigor.
NNN - Com efeito, considera o Tribunal Constitucional que
«(…) Em suma, dos trabalhos preparatórios da revisão constitucional de 1997 retira-se, por um lado, que o legislador da revisão apenas pretendeu incluir, no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, a proibição da retroatividade autêntica, própria ou perfeita da lei fiscal, o que não é contrariado pela letra do preceito, uma vez que o texto constitucional apenas se refere à natureza retractiva tout court. Por outro lado, resulta igualmente dos trabalhos preparatórios, de forma cristalina, que não se pretenderam integrar no preceito as situações em que o facto tributário que a lei nova pretende regular não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes continuando a formar-se na vigência da lei nova, pelo menos, quando estão em causa impostos diretos relativos ao rendimento (…)».
OOO - Resulta assim insofismavelmente que a jurisprudência do Tribunal Constitucional entende que o artigo 103.º, n.º 3, da CRP, apenas proíbe a retroatividade autêntica, não abrangendo os casos em que, não obstante o facto tributário ter ocorrido ao abrigo da lei antiga, ainda continua a produzir efeitos na vigência na lei nova – retroatividade de 2.º grau –, nem tão-pouco abrangendo os casos em que o facto tributário ainda está em formação – retroatividade de 3.º grau;
PPP - Destarte, o momento relevante para a determinação do caráter retroativo da lei fiscal, à luz do preceituado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP, é o momento da verificação do facto tributário, pelo que, será de considerar retroativa a lei que atinja esse facto retrospectivamente em relação ao momento da sua entrada em vigor.
QQQ - Assim, relevante para aferição da retroatividade da lei fiscal, e por conseguinte do respetivo grau de retroatividade, é o facto tributário e o momento em que ocorre. Ora no caso em apreço a inexistência de expectativas jurídicas ou de manutenção do regime legal pretensamente controverso é incontornável, porquanto até a própria a norma em causa regula a matéria do pagamento do imposto liquidado, não contendendo com a sua incidência ou quantificação da própria coleta.
RRR - Assim, nos chamados casos de retroatividade falsa ou imprópria, o grau de confiança suscitado nos contribuintes e a relevância do mesmo não pode deixar de ser ponderado ao nível da proporcionalidade.
SSS - No caso das normas fiscais interpretativas materiais - as que visam solucionar a incerteza de lei anterior, situando-se dentro dos quadros da controvérsia, com um conteúdo que o julgador ou intérprete a ela pudesse chegar, sem ultrapassar os limites típicos impostos à interpretação e aplicação da lei – não se pode dizer que a confiança dos contribuintes no sentido da norma interpretada gera expectativas legítimas da sua continuidade no ordenamento jurídico.
TTT - Se a norma é controversa, a única expectativa que existe é que o legislador a solucione.
UUU - Se ele o faz, optando por um dos entendimentos possíveis [IN CASU APENAS UM ERA POSSÍVEL], que até já era seguida pela jurisprudência, não se pode dizer que há frustração intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva da confiança depositada na norma interpretada.
VVV - No caso dos presentes autos é paradigmático da inexistência de expectativas jurídicas ou de manutenção do regime legal pretensamente controverso.
WWW - A verdade é que, até às peregrinas e inenarráveis teses propugnadas no CAAD, ao abrigo de um cartel interpretativo, encabeçado pelo próprio CAAD, por grandes grupos económicos, consultoras e escritórios de advocacia, nunca foi questionada a não dedutibilidade da quantia adiantada na coleta das tributações autónomas.
XXX - O próprio programa informático da Administração Tributária de suporte à apresentação das declarações de IRC não possibilitava tal dedução.
YYY - Na verdade, a matéria regulada pelo novo n.º 21 do art.º 88.º do CIRC era controversa e incerta ao nível jurisprudencial (tendo dado origem aos processos arbitrais elencados pela própria Recorrida), correspondendo a solução consagrada a uma das interpretações plausíveis a que o julgador chegaria, como efetivamente chegou, por exemplo, na decisão arbitral proferida no proc. 113/2015-T, de 30-12-2015.
ZZZ - Já a nível do quadro normativo em vigor e da factualidade que enformaram ao longo de anos o procedimento de autoliquidação do imposto de IRC, nunca houve controvérsia, sendo um dado adquirido que as tributações autónomas, em face da sua própria génese hermenêutica, não seriam suscetíveis de qualquer dedução.
AAAA - Aliás, foi precisamente com este sentido que foi elaborado o modelo 22 de declaração de IRC e foi aplicando o regime agora explícito no n.º 21 do art.º 88.° que ora Recorrida (e os demais contribuintes) preencheu as declarações que se referem nos autos, sem qualquer contradição inteligível.
BBBB - É certo que a solução consagrada legalmente não deixa de ser uma solução plausível e fundamentada que encontrou aderência jurisprudencial prévia.
CCCC - Tal como já vem ante exposto, a verdade é que a solução consagrada pelo legislador corresponde a uma interpretação possível dentro dos quadros da controvérsia, sustentada logicamente noutras decisões (arbitrais), vide, entre outras, a decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 673/2015-T; processo n.º 722/2015-T; processo n.º 736/2015-T; processo n.º 745/2015-T; processo n.º 751/2015-T; processo n.º 767/2015-T; processo n.º 774/2015-T; processo n.º 783/2015-T.
DDDD - Acresce que esta conclusão quanto ao caráter interpretativo do novo n.º 21 do art.º 88.º do CIRC, com inerente aplicação da mesma nos termos do art.º 13.º do Código Civil, não viola o princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal decorrente do n.º 3 do art. 103.º da CRP, como alegado pela Recorrida por se entender que poria em causa a coleta de tributações autónomas cujos factos tributários se consumaram no ano de 2012.
EEEE - Acresce que, no entender da Recorrente a aceitação da natureza interpretativa da referida norma não viola o n.º 3 do art. 103.º da CRP porque, como supra referido, o princípio constitucional em causa proíbe a criação de impostos retroativos, cingindo, assim, o seu âmbito de aplicação às matérias de incidência subjetiva, objetiva, temporal e territorial.
FFFF - Ora, a norma em causa regula a matéria do pagamento do imposto liquidado, não contendendo com a sua incidência ou quantificação da própria coleta.
GGGG - A este propósito Tribunal Constitucional tem adotado uma interpretação restritiva do alcance desta proibição de impostos que tenham natureza retroativa, entendendo que o
«legislador da revisão constitucional de 1997, que introduziu a atual redação do artigo 103.º, n.º 3, apenas pretendeu consagrar a proibição da retroatividade autêntica, ou própria, da lei fiscal, abrangendo apenas os casos em que 0 facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente» (acórdãos n.º 18/2011, de 12-01-2011, que segue jurisprudência adotada no acórdão n.º 399/2010).
HHHH - Por fim, como também decidido no acórdão arbitral proferido no proc. 673/2015-T, não se pode concluir que a atribuição de natureza interpretativa à norma em causa ponha em causa o princípio da segurança jurídica porquanto,
“(…) não havia uma jurisprudência consolidada no sentido da sua dedutibilidade [do pagamento especial por conta]à coleta resultante das tributações autónomas e, pelo contrário, a solução perfilhada no n.º 21 do artigo 88.º, já anteriormente poderia ser adotadas pelos tribunais, como foi pelo Tribunal Arbitral que proferiu a decisão no processo do CAAD n.º 113/2015-T. Assim, não pode concluir-se que a interpretação autêntica que se faz naquele artigo 88.º, n.º 21, por força do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, seja violadora do princípio constitucional da segurança jurídica, no concerne à parte daquela norma que se reporta à indedutibilidade dos pagamentos especiais por conta à coleta das tributações autónomas.”
IIII - Neste conspecto e como bem ensina CASALTA NABAIS
«O princípio da segurança jurídica, ínsito na ideia do Estado de direito democrático, está longe, porém, de ter sido totalmente absorvido por esse novo preceito constitucional. É certo que ele deixou de servir de balança na ponderação dos bens jurídicos em presença quando estamos perante um imposto afetado de retroatividade verdadeira ou própria. Quando tal acontecer, a solução está agora ditada, urbi et orbi, na Constituição, não podendo o órgãos seus aplicadores, sem violação dela, proceder a uma ponderação casuística.
Mas o princípio em causa tem inequivocamente um lastro bem maior. É que ele também serve de critério de ponderação em situações de retroatividade imprópria, inautêntica ou falsa, bem como em situações em que, não se verificando qualquer retroatividade, própria ou imprópria, há que tutelar a confiança dos contribuintes depositada na atuação dos órgãos do Estado». in Direito Fiscal, 7.ª edição, página 151;
JJJJ - Face a tudo o que vem supra exposto supra, resta concluir pelo caráter interpretativo do n.º 21 do art.º 88.º do CIRC, introduzido pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que, sendo diretamente aplicável à situação em apreço, de acordo com o art.º 13.º do Código Civil, implicará o indeferimento da pretensão da Recorrida por determinar expressamente a referida norma que ao montante de tributações autónomas não serão efetuadas quaisquer deduções.
KKKK - É manifesto portanto que a atribuição de natureza interpretativa à referida norma não viola os princípios constitucionais da segurança jurídica e da proibição da retroatividade pelo que não se pode julgar inconstitucional o art.º 135.º do referido diploma legal.
LLLL - E sempre se dirá, com toda a propriedade, que, na tese que a Recorrida aqui sufraga e, bem assim, nos autos, o legislador, ao aditar este n.º 21 ao art.º 88.º do CIRC com o conteúdo mencionado, limitou-se a acolher e a reforçar o sentido interpretativo que já resultava das normas vigentes, como ficou demonstrado pelo raciocínio supra exposto.
MMMM - De onde que, a existência da norma ora posta em causa, e sobretudo o efeito que lhe foi atribuído, se traduz numa mera evidência clarificadora.
NNNN - Com efeito, a Recorrida ao longo dos autos demonstrou um raciocínio claro, lógico e, sobretudo coerente, em que a única conclusão lógica e pura a extrair, num raciocínio interpretativo e de integração sistemática e de coerência com o espírito da matéria em apreço (tributações autónomas) sempre levaria ao entendimento manifestado há décadas pelos contribuintes e que a Recorrida veio agora tentar contrariar.
OOOO - Entendimento e prática, que nunca foi posto em causa pela Recorrida, nem tão pouco, como pretendeu nos seus extensíssimos e prolixos excursos a Recorrente falsamente demonstrar, foi posto em causa pela esmagadora jurisprudência e fortíssima corrente jurisprudencial anterior.
PPPP - A norma interpretativa que ora se questiona visa, pois, pôr fim à controvérsia que se instalou, por mera e exclusiva vontade do CAAD, sobre o sentido que se devia dar a determinada lei, fixando ela própria o sentido que esta deve ter, a qual será vinculante.
QQQQ - Trata-se de uma interpretação autêntica que se destina a conferir uma maior certeza e igualdade na aplicação da lei.
RRRR - Com efeito, a lei ao atribuir caráter interpretativo, não se afasta das soluções que já antes se viam firmadas quer pela Lei, quer pela prática jurídico-tributária, antes sim, interpreta e esclarece a aplicação prática dos dispositivos ora controvertidos, revelando uma solução não inovatória, de forma a que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei.
SSSS - É, pois, inquestionável que o julgador e o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar outra solução que não solução que a nova lei vem interpretar e que era já aquela que os contribuintes e a Recorrente adotavam,
TTTT - Donde decorre, conclusivamente, que o aditamento ora em apreço apenas se limita a traduzir a axiomática evidência de toda a teleologia histórica da norma.
UUUU - Pese embora que, para a Recorrida, esta seja uma matéria controvertida, em total dissonância com aquilo que foi o comportamento e a interpretação reiteradamente tida em conta ao longo dos tempos, quer pelos contribuintes, quer pela Recorrente, a solução definida pela nova lei não se afasta daquilo que era a teleologia do normativo em apreço, bem pelo contrário.
VVVV - O que, em última análise, dispensaria qualquer aplicação retroativa daquela norma e, por conseguinte, tornando inócua esta discussão.
WWWW - Assim, terá de se concluir que a interpretação autêntica que se faz no n.º 21 do art.º 88.°do CIRC, na parte em que se reconduz à não dedutibilidade dos pagamentos especiais por conta nas tributações autónomas, não ofende o princípio da não retroatividade na criação de impostos, entendido como reportando-se apenas à retroatividade autêntica, reportada a factos tributários que se completaram e produziram todos os seus efeitos no passado.
II – Fundamentação
5. Impõe-se, desde já, delimitar e precisar o objeto material do presente recurso, quer porque no requerimento de interposição de recurso vem formulada uma interpretação normativa que agrega elementos que apenas parcialmente são coincidentes com o critério normativo da decisão recorrida, quer porque nas alegações do recurso a fórmula unitária foi desdobrada e autonomizada em dimensões normativas que não foram todas convocadas e aplicadas pela decisão recorrida.
No requerimento de interposição de recurso, o recorrente especificou qual foi, no seu entendimento, o critério normativo da decisão recorrida: norma constante do número 21, do artigo 88.º do Código do IRC, nos termos estabelecidos no artigo 135.º da LOE 2016, exclusivamente na parte em que derroga por via desta norma de natureza geral (e com efeitos retroativos), as normas especiais dos números 1 e 3, do artigo 4.º da Lei do SIFIDE II, quando interpretada no sentido explanado na Decisão Arbitral.
Já nas alegações desdobra esse enunciado em dois outros de sentido diferente:
(i) a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março é inconstitucional, na parte em que, por efeito do caráter meramente interpretativo que lhe atribui, determina que a norma do artigo 88.º, n.º 21, 2.ª parte, do Código do IRC (aditada pelo artigo 133.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março), segundo a qual, ao montante global resultante das tributações autónomas liquidadas num dado ano em sede de IRC, não pode ser deduzido o benefício fiscal apurado a título de SIFIDE, se aplique aos exercícios fiscais anteriores a 2016;
(ii) norma constante do número 21 do artigo 88.º do Código do IRC quando interpretada nos termos efetuados pela decisão a quo no sentido que derrogue uma norma excecional constante do número 1 do artigo 4.º da Lei do SIFIDE II (que corresponde com diferente numeração identificativa ao atual número 1 do artigo 38.º do Código Fiscal do Investimento).
Ora, a decisão recorrida julgou improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo válidos o ato de autoliquidação de IRC do ano de 2013 e a decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra ele, com os seguintes fundamentos: (i) ao ato de autoliquidação aplica-se a norma do artigo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, introduzida pelo artigo 133.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, porque o artigo 135.º da mesma Lei atribui-lhe natureza interpretativa, “correspondendo a solução consagrada a uma das interpretações plausíveis a que o julgador chegaria, como efetivamente chegou”, uma “solução plausível e fundamentada que encontrou aderência jurisprudencial previa”; (iii) e não se pode concluir que a atribuição de natureza interpretativa à norma em causa ponha em causa o princípio da segurança jurídica porque, adotando a norma uma das interpretações possíveis (o que é manifestamente o caso), não se está a violar expectativas fundadas.
Como se vê, o que foi determinante na solução dada pelo tribunal “a quo” ao pedido de anulação da liquidação do IRC do exercício de 2013 foi o juízo que fez sobre o caráter interpretativo da norma constante do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, associado à inexistência de uma proibição constitucional genérica de leis fiscais interpretativas. Considerando que a matéria regulada por essa norma era “controversa e incerta”, tendo dado origem a processos arbitrais com soluções divergentes, o acórdão recorrido julgou que a solução consagrada pelo legislador “corresponde a uma interpretação possível dentro dos quadros da controvérsia, sustentada logicamente noutras decisões (arbitrais) anteriores”, pelo que “o intérprete fiscal não tem outra alternativa que não seja a de aplicar a norma tal qual ela existe hoje como se sempre tivesse existido tal redação”.
Assim, apenas parte da dimensão normativa enunciada no requerimento que sustenta o recurso, e que foi autonomizada nas alegações - acima referida em (i) -, constitui o fundamento jurídico da decisão recorrida. O concreto sentido normativo com que a norma do artigo 21 do artigo 88.º do CIRC foi tomada na decisão arbitral foi a natureza interpretativa dessa norma, o que determinou a sua aplicação imediata, integrando a norma interpretada como se sempre tivesse existido tal previsão legal, e não a natureza derrogatória de quaisquer dos preceitos que estabelecem benefícios fiscais.
Na verdade, em parte alguma da decisão arbitral se afirma a existência de antinomia normativa entre o n.º 21 do artigo 88.º do CIRC e o n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 40/2005, de 3 de agosto, que deva ser resolvida através do critério cronológico (norma posterior revoga a anterior) ou do critério da especialidade (lei especial afasta a lei geral). Não obstante se entender que antes da alteração dada ao artigo 88.º do CIRC pela LOE 2016 também era defensável que o crédito fiscal decorrente do SIFIDE fosse deduzido à coleta das tributações autónomas, não chegou a pronunciar-se sobre a posição já defendida noutros processos arbitrais (processo n.º 673/2015) no sentido de que as normas relativas aos benefícios fiscais são «normas especiais» (ou «excecionais», como requalificou nas alegações) que, segundo a regra lex posterior generalis non derrogat legi priori speciali, têm aplicação preferente sobre a norma do n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, ou no sentido contrário de que existiu uma vontade nova legislativa que permite concluir, inequivocamente, pela prevalência em favor desta, ou seja, pela revogação da lei especial anterior por via da lei geral sucessiva.
A alegação de que o número 21 do artigo 88.º do Código do IRC é uma norma geral que derroga com efeitos retroativos as normas especiais dos números 1 e 3, do artigo 4.º da Lei do SIFIDE II tem pressuposto o entendimento de que o preceito contém uma norma materialmente inovadora que opera diretamente no âmbito dos benefícios fiscais. Porém, como se referiu, não foi esse o critério jurídico determinante do juízo de legalidade da autoliquidação do IRC de 2013 e da consequente improcedência do pedido de decisão arbitral. Após enunciar os requisitos da “lei interpretativa”, a decisão arbitral concluiu que o n.º 21 do artigo 88.º é uma disposição legislativa cujo sentido normativo é materialmente interpretativo e que a jurisprudência também só por si poderia ter adotado.
Todavia, apesar da deficiente formulação da interpretação normativa que constitui objeto do recurso, o requerimento do recurso é suficientemente explícito no sentido de que também pretende questionar a constitucionalidade da interpretação normativa que constitui a ratio decidendi do acórdão recorrido. Com efeito, ao invocar a inconstitucionalidade da norma do n.º 21 do artigo 88.º, do CIRC, «nos termos estabelecidos pelo artigo 135.º da LOE 2016» e «quando interpretada no sentido explanado na Decisão Arbitral», isto é, no sentido de impedir a dedução, “com efeitos retroativos”, dos benefícios fiscais à coleta das tributações autónomas, com fundamento na violação o princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, previsto n.º 3 do artigo 103.º da CRP, acaba por fazer coincidir o objeto do recurso com o fundamento jurídico que sustenta a decisão recorrida.
No fundo, o que o recorrente sustenta é que a eficácia retroativa da alteração legal operada pelos artigos 133.º e 135.º da LOE de 2016 ao artigo 88.º do CIRC “revoga” um dos sentidos normativos de lei anterior, segundo o qual é permitido deduzir os benefícios ficais à coleta das tributações autónomas, e por isso é inconstitucional por violação da proibição da retroatividade da lei fiscal consagrada no n.º 3 do artigo 103.º da CRP.
De modo que o objeto do recurso integra unicamente o segmento normativo do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que atribui natureza interpretativa ao artigo 133.º do mesmo diploma, na parte em que vem aditar o n.º 21 ao artigo 88.º do Código do IRC, fixando o sentido de que ao montante global resultante das tributações autónomas liquidadas em sede de IRC não pode ser deduzido o benefício fiscal apurado a título de SIFIDE nos exercícios fiscais anteriores a 2016.
6. Em causa nos autos está, pois, o facto da recorrente, na qualidade de sociedade dominante de um grupo de sociedades sujeito ao RETGS, ter pago tributações autónomas respeitantes ao exercício de 2013, sem que a AT lhe possibilitasse deduzir à parte da coleta de IRC imputável a essas tributações o montante (ou parte do montante) dos benefícios fiscais decorrentes do SIFIDE. E isto porque o artigo 133.º da LOE 2016 aditou o n.º 21 ao artigo 88.º do CIRC, que dispõe no sentido de não ser permitido quaisquer deduções à coleta das tributações autónomas, tendo o artigo 135.º do mesmo diploma orçamental atribuída «natureza interpretativa» a esse aditamento.
Importa ter presente o teor destes preceitos da LOE 2016:
O artigo 133.º adicionou ao artigo 88.º do CIRC a seguinte disposição: «21 – A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado».
E o segmento do artigo 135.º, aplicado nos presentes autos, determina que «A redação dada pela presente lei … aos números 20 e 21 do artigo 88.º … tem natureza interpretativa».
Deve referir-se que, entretanto, a redação do n.º 21 do artigo 88.º foi alterada pelo artigo 231.º da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro (LOE 2018), nos seguintes termos: «21 – A liquidação das tributações autónomas em IRC é efetuada nos termos previstos no artigo 89.º e tem por base os valores e as taxas que resultem do disposto nos números anteriores, não sendo efetuadas quaisquer deduções ao montante global apurado, ainda que essas deduções resultem de legislação especial». E relativamente a essa alteração, o artigo 233.º da mesma Lei estabeleceu também que «a redação dada pela presente lei ao n.º 21 do artigo 88.º do Código do IRC tem natureza interpretativa».
O acórdão arbitral recorrido aplicou ao ato de autoliquidação impugnado a norma do artigo n.º 21 do artigo 88.º do CIRC, na redação introduzida pelo artigo 133.º da LOE 2016, com o argumento de que o artigo 135.º da mesma Lei lhe atribuiu natureza interpretativa. O acórdão começa por referir que “tendo-se alterado a redação do artigo 88.º do CIRC com efeitos interpretativos, o intérprete fiscal não tem outra alternativa que não seja a de aplicar a norma tal como ela existe hoje, como se sempre tivesse existido tal redação”; e “só assim não seria se esta solução fosse incompatível com normas de hierarquia superior, nomeadamente constitucionais”; mas, “entende este tribunal que não existe uma proibição constitucional genérica de leis fiscais interpretativas”.
E após descrever as características fundamentais para que uma lei possa ser concebida como lei interpretativa – (i) haver uma questão controvertida ou incerta na lei em vigor; e (ii) o legislador consagrar uma solução interpretativa que resolve a incerteza a que chegaria o julgador com base no normativo anterior – o acórdão arbitral conclui o seguinte: «aplicando estes critérios à situação em apreço, somos levados a concluir que estamos, realmente, perante uma lei interpretativa. Na verdade, a matéria regulada pelo novo n.º 21 do art. 88.º do CIRC era controversa e incerta (tendo dado origem aos processos arbitrais elencados pela Requerente), correspondendo a solução consagrada a uma das interpretações plausíveis a que o julgador chegaria, como efetivamente chegou, por exemplo nas decisões arbitrais proferidas nos procs. 679 -2014-T e n.º 722/2015-T».
Diferentemente, entende a recorrente que a norma do número 21 do artigo 88.º do CIRC não é “verdadeiramente interpretativa”, tal como afirma o artigo 135.º da LOE 2016; o legislador qualificou-a expressamente como interpretativa, mas trata-se de um “disfarce da retroatividade substancial dessa lei”, já que “vem criar uma solução inovadora quanto às deduções à coleta das tributações autónomas, retirando suporte legal a anteriores decisões jurisprudenciais nos termos das quais a coleta de IRC é enformada pelas tributações autónomas”; além de que o legislador não pode “neutralizar ou esvaziar o correspondente poder de controlo dos tribunais consagrado no artigo 204.º da Constituição, por via da afirmação, na qualidade de autor formal, de que a norma legal por si aprovada tem um alcance meramente declaratório ou clarificador e não inovador”.
7. A compatibilidade das normas interpretativas com o princípio da não retroatividade fiscal consignado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP foi apreciada recentemente pelo Tribunal Constitucional em Acórdãos que versam igualmente sobre o regime de «tributação autónoma» em IRC: (i) no Acórdão n.º 267/17, que julgou inconstitucional a norma do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, na parte em que, por efeito do caráter interpretativo que lhe atribui, determina que a norma do artigo 88.º, n.º 21, 2ª parte do Código de IRC, – aditado pelo artigo 133.º da citada Lei – segundo a qual, ao montante global resultante das tributações autónomas liquidadas num dado ano em sede de IRC, não podem ser deduzidos os valores pagos a título de pagamento especial por conta nesse mesmo ano, se aplique aos anos fiscais anteriores a 2016; (ii) e no Acórdão n.º 395/2017, que julgou inconstitucional o segmento normativo do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que atribui natureza interpretativa ao artigo 133.º do mesmo diploma, na parte em que vem fixar o sentido do artigo 88.º, n.º 14, do CIRC, nos termos do n.º 20 desse artigo.
No primeiro Acórdão, o tribunal a quo havia recusado aplicar, com efeito para o passado, a norma interpretativa, por entender que ela não o era em sentido «autêntico», era antes uma norma inovadora que se aplicava a factos anteriores. Inexistindo razões para duvidar do acerto da caracterização como inovadora da solução normativa introduzida pela LOE 2016, apesar do legislador a denominar interpretativa, e não devendo ser corrigida a interpretação da norma recusada aplicar por aquele tribunal, o Tribunal Constitucional julgou-a “substancialmente retroativa” e consequentemente abrangida pela cláusula proibitiva de retroatividade do artigo 103.º, n.º 3.
Todavia, o critério que o Acórdão utilizou para qualificar a «retroatividade» da norma interpretativa foi o da natureza declarativa ou constitutiva da norma interpretativa:
«[D]o ponto de vista da Constituição, para que uma disciplina normativa autoqualificada como meramente interpretativa, basta a verificação de que à norma interpretada na sua primitiva versão pudesse ter sido imputado pelos tribunais um sentido que, na sequência da norma interpretativa, ficou necessariamente excluído»; na medida em que deixam de ser admissíveis algumas interpretações jurisdicionais de certa norma legal, «a interpretação ou esclarecimento formalmente consagrado pela lei nova não podem deixar de revestir uma natureza constitutiva e a retroatividade inerente à mesma lei ter um caráter substancial».
No Acórdão n.º 395/2017, tendo o tribunal a quo entendido que não era de afastar a natureza interpretativa da norma impugnada, escreveu-se o seguinte:
Tal juízo é insindicável pelo Tribunal Constitucional, na medida em que se situa exclusivamente no plano do direito ordinário. A única questão constitucional que a propósito dele se coloca é a de saber se, como alega a recorrente, as normas fiscais genuinamente interpretativas ─ no sentido em que esse conceito é entendido na decisão recorrida ─, na medida em que sejam ou possam ser desfavoráveis aos contribuintes, violam a proibição constitucional da retroatividade fiscal. Para responder a esta questão, é essencial determinar se as normas interpretativas são retroativas e, no caso de a conclusão ser afirmativa, se estão a coberto da previsão do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição
Entendeu-se, assim, que a questão essencial, do ponto de vista constitucional, não é a de saber se uma determinada norma a que o legislador atribui natureza interpretativa é genuinamente interpretativa – juízo de qualificação que depende dos critérios, por norma definidos num contexto de direito ordinário, que se usem para esse efeito −, mas a de saber qual o alcance da proibição da retroatividade fiscal consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, mormente no que respeita a normas fiscais que o legislador qualifica como interpretativas.
O aresto responde a tal questão nos seguintes termos:
«8. Ao contrário do que é válido para a lei em geral, que em princípio «só dispõe para o futuro» (artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil), o artigo 13.º do Código Civil estabelece que «[a] lei interpretativa integra-se na lei interpretada», no sentido de que deve ser considerada como se fizesse parte da lei interpretada desde que esta entrou em vigor. Trata-se, evidentemente, de uma ficção temporal ─ a ficção de que um facto presente (a entrada em vigor da lei interpretativa) ocorreu no passado (a entrada em vigor da lei interpretada). A retroatividade das normas interpretativas resulta dessa ficção. E é precisamente pelo facto de, através dessa ficção, atribuir eficácia retroativa às normas interpretativas, que o legislador sentiu a necessidade de acautelar ─ «ficando salvos» ─ uma série de efeitos já produzidos no momento em que a lei interpretativa entra em vigor, nomeadamente o «cumprimento da obrigação», a «sentença passada em julgado» e a «transação, ainda que não homologada».
Não parece haver qualquer dúvida, pois, de que as normas interpretativas têm natureza retroativa (neste sentido, v. os Acórdãos n.ºs 374/92 e 216/2015). Mas esta conclusão parece provar de mais. São autêntica ou verdadeiramente interpretativas ─ e assim as entende, como se viu, o Tribunal a quo ─ as normas que, perante a ambiguidade da lei interpretada e a incerteza quanto à sua aplicação, impõem ao intérprete um dos seus sentidos possíveis ou uma das posições compreendidas nos «quadros da controvérsia» que se estabeleceu a respeito da sua interpretação. A retroatividade decorre do facto de se ficcionar que essa imposição de sentido resultava já da lei interpretada, quando é exatamente a ambiguidade e controvertibilidade de sentido desta que justifica a intervenção interpretativa do legislador.
Ora, se é assim, se a interpretação legislativa de leis ambíguas e controvertidas ─ ou seja, de leis que admitem mais do que uma interpretação ─ é retroativa, parece ter de se concluir que também o são as decisões judiciais que se baseiam na interpretação e aplicação dessas leis, porque implicam igualmente a adoção, no momento presente, de um dos sentidos possíveis da lei. O problema está no facto de as propriedades das leis interpretativas com base nas quais se conclui que estas têm natureza retroativa serem propriedades de toda a interpretação das leis, pelo menos naqueles casos ─ sem dúvida numerosos ─ em que a lei interpretada é suscetível de mais do que uma interpretação. Esta conclusão suscita particular perplexidade no domínio fiscal, porque ao estabelecer que «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos…que tenham natureza retroativa», o artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, dirige a proibição da retroatividade não apenas ao legislador, mas a todos os poderes do Estado.
Sucede que, sem prejuízo da identidade de conteúdo, é necessário distinguir a interpretação legislativa da interpretação judicial, quer quanto ao seu fundamento, quer quanto ao seu processo.
Quanto ao primeiro aspeto, importa notar que, ao passo que a interpretação judicial tem por fundamento a autoridade jurisdicional dos tribunais ─ ou seja, a idoneidade destes para «dizerem o direito» ou «descobrirem o direito», nomeadamente o direito vertido nas leis ─, a interpretação legislativa baseia-se na autoridade política do legislador, o mesmo é dizer, no facto de caber ao poder legislativo determinar o que é mais justo, conveniente ou oportuno para a comunidade. Quando um tribunal interpreta uma lei, nomeadamente uma lei ambígua, num certo sentido, o fundamento da decisão é a correção jurídica desse juízo; o tribunal afirma que determinado sentido é o sentido verdadeiro e originário da lei, de tal modo que as posições jurídicas ─ os direitos, os poderes, os deveres ou os ónus ─ por ele implicadas já se encontravam definidas no momento em que a lei entrou em vigor.
É claro que os tribunais cometem necessariamente erros de interpretação e que a interpretação das leis é muitas vezes objeto de controvérsia; é ainda certo que, em muitas situações, os juízes têm dúvidas, por vezes insanáveis, sobre o sentido a dar às leis que interpretam. Mas ao decidir um caso em que se coloca um problema de interpretação difícil e controverso, o tribunal atua, por necessidade funcional, no exercício de um poder estritamente jurisdicional ─ o de decidir qual o direito consagrado na lei. Já o legislador, não tendo qualquer competência jurisdicional, atua sempre com base na sua autoridade política, ou seja, com fundamento no seu título constitucional para decidir o que é melhor para a comunidade. Significa isto que, ao interpretar a lei num certo sentido, o legislador não se arroga a idoneidade de descobrir o direito nela vertido, mas o de fixar o sentido com que ela deve valer por razões de justiça, utilidade ou oportunidade sobre as quais só ele tem autoridade constitucional para decidir; os critérios da sua decisão são, por necessidade funcional, de natureza política e não jurídica.
Esta divergência de fundamento entre interpretação legislativa e judicial traduz-se ─ e aqui reside o segundo aspeto da distinção ─ nos diversos processos através das quais uma e a outra são geradas. Na verdade, o processo judicial e o legislativo são estruturados em função da natureza do poder que através deles se exerce. Em virtude da sua natureza jurisdicional, a interpretação judicial é realizada por tribunais compostos por juízes independentes e com formação técnica específica, no âmbito de pedidos de pronúncia sobre questões concretas relativas às situações jurídicas das partes, e através de decisões fundamentadas proferidas a partir de uma posição de imparcialidade. Já a interpretação legislativa, cujo fundamento é a autoridade política do legislador, reveste a forma de ato legislativo aprovado por um órgão com legitimidade democrática para tomar decisões políticas; o titular por excelência desse poder é a Assembleia da República, em que as leis são elaboradas, discutidas e aprovadas pelos representantes eleitos pelo povo para decidirem os destinos da comunidade.
O que de tudo isto resulta é que, por força do próprio postulado da distinção e separação entre autoridade legislativa e jurisdicional, traduzida na alteridade estrutural entre o processo legislativo e o judicial, as interpretações do legislador são por natureza constitutivas, porque o juízo que lhes subjaz é de ordem essencialmente política, ao passo que as interpretações dos tribunais são por natureza declarativas, porque se baseiam exclusivamente na sua competência jurídica. E daí segue-se que, por definição, as leis interpretativas, mas já não as interpretações judiciais, são retroativas.
9. O Tribunal a quo não impugna o caráter retroativo das leis interpretativas, nomeadamente da norma do artigo 88.º, n.º 20, do CIRC. Porém, argumenta que as normas fiscais (genuinamente) interpretativas situam-se fora do âmbito de aplicação da proibição constitucional da retroatividade dos impostos, na medida em que a interpretação fixada pelo legislador, por corresponder a um dos sentidos possíveis da lei, não lesa a confiança legítima dos contribuintes.
Vale a pena recordar o passo relevante da decisão recorrida:
“A proibição constitucional de retroatividade das normas criadoras de obrigações fiscais que se retira do n.º 3 do artigo 103.º da CRP visa obstar a violações legislativas do princípio da segurança jurídica, nas suas vertentes de certeza na orientação das condutas dos contribuintes e de segurança dos efeitos criados por situações já ocorridas.
Na esteira da lição de Batista Machado, deverá entender-se que nas situações em que a interpretação que é dada na lei nova vem fixar uma das interpretações possíveis da lei antiga com que os interessados podiam e deviam contar não é suscetível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas, pelo que não se verificam as razões que justificam a proibição da retroatividade.
Como interpretações possíveis da lei antiga com que os interessados podiam e deviam contar não se poderão considerar aquelas que extravasam, restritiva ou extensivamente, o seu teor literal, pelo menos enquanto não houver posições doutrinais ou prática jurisprudencial que as adotem, mas incluem-se, seguramente, aquelas que são viáveis à face do texto legal anterior numa mera interpretação declarativa.
Como se referiu já, o teor literal do n.º 14 do artigo 88.º do CIRC permite, por mera interpretação declarativa, que tenha em mente o conceito de sujeito passivo alargado que resulta dos artigos 18.º, n.º 3, da LGT e 115.º do CIRC, corroborados pelo artigo 31.º, n.º 1 daquela Lei, atribuir a qualificação de sujeito passivo às sociedades dominantes dos grupos abrangidos pelo RETGS, pelo que a consideração dos prejuízos do grupo como facto determinante do agravamento da tributação autónoma tem de considerar-se como uma interpretação com que os contribuintes poderiam e deveriam contar anteriormente.”
Este argumento apoia-se em duas premissas. Por um lado, entende-se que a proibição da retroatividade fiscal é uma refração ou concretização do princípio da proteção da confiança, pelo que não se estende aos casos em que as leis fiscais, ainda que retroativas, não lesam as expectativas legítimas que os contribuintes terão depositado na estabilidade do regime anterior. Por outro lado, considera-se que as leis interpretativas não lesam quaisquer expectativas legítimas, na medida em que, impondo um dos sentidos possíveis e previsíveis da lei interpretada, ou uma «interpretação declarativa» do preceito a que se referem, produzem consequências com as quais os contribuintes deviam contar.
A primeira destas premissas não oferece quaisquer dúvidas. É discutível se a proibição constitucional da retroatividade fiscal consubstancia uma regra, tendencialmente absoluta, ou um princípio, aplicável sob reserva de ponderação com valores ou interesses constitucionais de sentido contrário (no primeiro sentido, largamente dominante na jurisprudência do Tribunal Constitucional, v. os Acórdãos n.os 128/2009, 617/2012 e 85/2013; no segundo sentido, com várias declarações de voto exprimindo reservas nesse ponto, v. o Acórdão n.º 171/2017). Mas já não é de duvidar que a proibição da retroatividade fiscal tem como fundamento a tutela da confiança dos contribuintes, como tem sido reiteradamente afirmado na jurisprudência do Tribunal Constitucional. E daí resulta que as normas fiscais retroativas violam a proibição constitucional da retroatividade apenas nos casos em que frustrem as expectativas legítimas dos contribuintes, razão pela qual o artigo 103.º, n.º 3, não se aplica, por exemplo, às alterações da legislação fiscal que têm um impacto tributário positivo ou neutro.
Muito mais difícil de aceitar, nos termos em que a acolhe, é a segunda premissa do argumento desenvolvido na decisão recorrida — a de que as leis genuinamente interpretativas não lesam expectativas legítimas, na medida em que consagram um dos sentidos possíveis da lei interpretada.
As interpretações legislativas, como vimos, têm a natureza própria do poder de que emanam: não se destinam a dizer ou descobrir o direito vertido na lei interpretada, atividade que pressupõe uma competência jurisdicional, mas a privilegiar o sentido que o legislador entende politicamente mais vantajoso. Sem dúvida que os cidadãos destinatários das leis, designadamente de leis com uma vocação ablativa, não devem ter qualquer expectativa de que estas sejam, ou possam vir a ser, interpretadas no sentido que lhes é mais favorável; não existe, nem sequer nos domínios penal ou fiscal, um qualquer «princípio da interpretação mais favorável» ao cidadão. Mas têm a expectativa legítima, na qualidade de destinatários da lei, de formarem uma convicção sobre o direito nela vertido e de agirem com base nessa convicção jurídica — assim como, na eventualidade de se verificar um litígio, de recorrerem aos tribunais para que estes apreciem, no uso da autoridade jurisdicional que exclusivamente lhes cabe, e no âmbito de um processo de partes com igualdade de armas, o mérito jurídico do seu ponto de vista no caso concreto. Por outras palavras, os destinatários das leis têm a expectativa legítima de que estas sejam objeto de uma interpretação jurídica, porque é nesses exatos termos — enquanto sujeitos de direito — que aquelas se lhes dirigem. Ao consagrarem um sentido por razões de ordem política — constitutivas e não declarativas de direito —, as leis interpretativas frustram essa expectativa legítima dos cidadãos na juridicidade, adversariabilidade e justiciabilidade da sua relação com a lei.
Não é outro, segundo se crê, o alcance das seguintes palavras que constam do Acórdão n.º 172/2000, referidas pelo recorrente nas suas alegações:
«[A] vinculação interpretativa que [as] leis [interpretativas] comportam, ao tornar-se critério jurídico exclusivo da aplicação do texto anterior da lei, modifica a relação do Estado, emitente de normas, com os seus destinatários. A exclusão pela lei interpretativa de outras interpretações propugnadas e já aplicadas noutros casos (como acontece na situação presente) leva a que o Estado possa a posteriori impedir que o Direito que criou funcione através da sua lógica intrínseca comunicável aos destinatários das normas, permitindo que interfira na interpretação jurídica um poder imperativo e imediato que altera o quadro dos elementos relevantes da interpretação jurídica.»
Em termos gerais, pois, e ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, as leis interpretativas devem ter-se por abrangidas pela proibição constitucional da retroatividade em matéria fiscal. Só assim não será naqueles casos em que, tendo os tribunais sido chamados a pronunciarem-se sobre a interpretação a dar a leis ambíguas e controvertidas, se tenha a propósito delas estabelecido uma controvérsia jurisprudencial. Se os tribunais, aos quais cabe a autoridade de dizer o direito ─ através de decisões juridicamente fundamentadas e no termo de um processo de partes com igualdade de armas ─, refletem e alimentam a controvérsia propiciada pela ambiguidade da lei, é inevitável concluir que a questão jurídica é, no momento presente, incerta ou insanável; os destinatários desta não têm, nessas circunstâncias, qualquer razão para formarem expectativas na prevalência de uma das posições compreendidas nos «quadros da controvérsia», e não podem, por essa mesma razão, invocar a frustração das suas expectativas legítimas contra a decisão do legislador de interpretar a lei num dos sentidos já acolhidos em decisões judiciais. O mesmo se diga, por maioria de razão, nos casos em que a jurisprudência dominante for no sentido da solução consagrada pela lei interpretativa.»
8. Como decorre do Acórdão n.º 395/2017, para que uma norma fiscal interpretativa seja constitucionalmente legítima, é necessário que a interpretação fixada não afronte o princípio da proteção da confiança. Bem pode acontecer que, ponderados os interesses em confronto, o sentido fixado pela norma interpretativa frustre, de forma intolerável, expectativas fundadas na realização jurisprudencial do direito. É que a solução imposta pela lei interpretativa pode afetar expectativas que se formaram com base em orientações e critérios que os tribunais emitiram na resolução de conflitos jurisprudenciais. É sabido que a realização jurisprudencial do direito, sobretudo pelos tribunais superiores, cria “correntes jurisprudenciais” que são suscetíveis de despertar confiança no direito que interpretam e aplicam, em termos de a sua mudança poder afetar as expectativas de quem se condicionou por elas. Ora, os afetados pela exclusão dos critérios de aplicação da lei interpretada dominantes na jurisprudência podem merecer proteção constitucional quando, ponderada a confiança frustrada e o fim de interesse publico prosseguido pela lei interpretativa, segundo um critério de proporcionalidade, se chegue a um resultado “arbitrário”, “inadmissível” ou “excessivamente oneroso”.
Resta por isso determinar se a solução, conscientemente interpretativa, imposta pela norma do n.º 21.º do artigo 88.º do CIRC, contraria uma corrente dominante no sentido de que os benefícios fiscais não podem ser deduzidos à coleta das tributações autónomas.
9. A questão de saber se há lugar em sede de IRC à dedução à coleta produzida pelas taxas de tributação autónoma dos benefícios fiscais – e de outras realidades tributárias, como o pagamento especial por conta – foi e continua a ser muito controversa no âmbito da jurisprudência arbitral.
No que se refere aos benefícios fiscais apurados no âmbito do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE), do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI) e do Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento (CFEI), a resposta àquela questão nunca foi uniforme, nem sequer se pode considerar que se formou uma «corrente dominante» num determinado sentido, em termos de despertar nos beneficiários expectativas merecedoras de proteção.
Independentemente da natureza interpretativa ou inovadora do aditamento do n.º 21 ao artigo 88.º do CIRC, à luz do regime da lei interpretada – artigos 88.º, 89.º e 90.º do CIRC –, a jurisprudência arbitral encontra-se profundamente dividida, com decisões no sentido de que o montante dos benefícios fiscais não é dedutível à parte da coleta de IRC imputável às tributações autónomas e outras em sentido contrário, ao ponto de dispensarem a aplicação do artigo 135.º da LOE 2016, que declarou interpretativa a norma que impôs o primeiro sentido.
Tal discrepância jurisprudencial não deixa de constituir um facto ou um elemento que relativiza a eventual criação de expectativas de manutenção de qualquer dos sentidos imputados à lei interpretada. Como se refere no Acórdão 395/2017:
«A circunstância de a jurisprudência se encontrar dividida depõe a favor do entendimento de que os contribuintes não podiam excluir a interpretação que veio a ser consagrada pelo legislador. Porém, para que se verifique uma controvérsia jurisprudencial, não basta que recaiam sobre uma determinada questão de interpretação decisões divergentes; é necessário que exista um corpo desenvolvido de pronunciamentos judiciais (ou arbitrais) no seio do qual se estabeleceram correntes opostas e não reconciliadas dentro da ordem jurisdicional a que respeitem. Só na base desse lastro jurisprudencial estatisticamente significativo se pode dar por assegurada a evidência de que a questão jurídica é incerta ou insanável, pelo menos no momento presente».»
Ora, mesmo que se dê relevância ao elemento quantitativo da controvérsia jurisprudencial, é de notar que antes do aditamento do n.º 21 ao artigo 88.º do CIRC, e até ao momento presente, são inúmeras as decisões arbitrais de sentido contrário, de modo que se pode falar de «lastro jurisprudencial estatisticamente significativo». Na verdade, no sítio do CAAD encontram-se publicadas as decisões arbitrais que sobre a matéria foram tomadas desde 2014, das quais se infere a existência de permanente divergência entre os árbitros designados ou escolhidos para constituir o tribunal arbitral. Tudo depende da composição do tribunal arbitral: os árbitros que defendem a dedutibilidade dos benefícios fiscais à parte da coleta proveniente de tributações autónomas, quando fazem parte do tribunal arbitral que maioritariamente entende o contrário, votam vencido; e o mesmo acontece com os que defendem a indedutibilidade dos benefícios, quando fazem parte de tribunais arbitrais maioritariamente constituídos por quem tem posição contrária.
Assim, com argumentação mais ou menos elaborada, mas que basicamente considera que: (i) a coleta das tributações autónomas integra a coleta do IRC; (ii) os benefícios fiscais são medidas de caráter excecional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais que prevalecem sobre o interesse na obtenção de receitas; (iii) e que uma interpretação restritiva de normas excecionais é contrária à ratio legis das normas dos benefícios fiscais, encontram-se as decisões tomadas nos seguintes processos: proc. n.º 769/2014, proc. n.º 219/2015, proc. n.º 369/2015, proc. n.º 370/2015, proc. n.º 637/2015, proc. n.º 673/2015, proc. n.º 740/2015, proc. n.º 749/2015, proc. n.º 784/2015, proc. n.º 5/2016, proc. n.º 326/2016, proc. n.º 360/2016, proc. n.º 456/16, proc. n,º 530/2016, proc. n.º 536/2016, proc. n.º 565/2016, proc. n.º 575/2016, proc. n.º 578/2016, proc. n.º 596/2016, proc. n.º 630/2016, proc. n.º 669/2016, proc. n.º 672/2016, proc. n.º 679/2016, proc. n.º 59/2017, proc. n.º 60/2017, proc. n.º 61/2017, proc. n.º 99/2017, proc. n.º 193/2017, proc. n.º 216/2017, proc. n.º 417/2017, proc. n.º 428/2017, proc. n.º 433/2017, proc. n.º 490/2017, proc. n.º 626/2017, proc. n.º 45/2018, proc. n.º 124/2018, proc. n.º 221/2018, proc. n.º 223/2018, proc. n.º 312/2018, proc. n.º 319/2018, proc. n.º 407/2018, proc. n.º 439/2018, proc. n.º 457/2018, proc. n.º 497/2018, proc. n.º 537/2018 e proc. n.º 661/2018.
Por outro lado, numa interpretação diferente das mesmas normas do CIRC, que se fundamenta essencialmente no facto: das (i) tributações autónomas não constituírem IRC «em sentido estrito»; (ii) sendo antes normas antiabuso específicas, que não podem ser descaracterizadas pela dedutibilidade; (iii) e que as normas que consagram benefícios fiscais só se podem referir a coleta imputável ao lucro tributável, o que não se verifica na coleta produzida pelas tributações autónomas, encontram-se as decisões tomadas nos seguintes processos: proc. n.º 697/2014, proc. n.º 722/215, proc. n.º 727/2015, proc. n.º 785/2015, proc. n.º 34/2016, proc. n.º 122/2016, proc. n.º 174/2016, proc. n.º 302/2016, proc. n.º 443/2016, proc. n.º 567/2016, proc. n.º 587/2016, proc. n.º 605/2016, proc. n.º 629/2016, proc. n.º 638/2016, proc. n.º 733/2016, proc. n.º 66/2017, proc. n.º 83/2017, proc. n.º 192/2017, proc. n.º 203/2017, proc. n.º 241/2017, proc. n.º 443/2017, proc. n.º 473/2017, proc. n.º 511/2017, proc. n.º 525/2017, proc. n.º 542/2017, proc. n.º 630/2017, proc. n.º 641/2017, proc. n.º 7/2018, proc. n.º 9/2018, proc. n.º 13/2018, proc. n.º 41/2018, proc. n.º 110/2018, proc. n.º 111/2018, proc. n.º 242/2018, proc. n.º 318/2018, proc. n.º 358/2018, proc. n.º 363/2018, proc. n.º 402/2018, proc. n.º 406/2018, proc. n.º 492/2018, proc. n.º 537/2018, proc. n.º 569/2018, proc. n.º 609/2018 e proc. n.º 108/2019.
Como se vê, não pode descortinar-se, no mundo flutuante da jurisprudência arbitral, uma corrente a repudiar ou a aceitar a dedutibilidade dos benefícios fiscais – quaisquer que eles sejam – à parte da coleta do IRC emergente das tributações autónomas. E não existe porque, não tendo o problema sido suscitado nas instâncias judiciais, o conflito de jurisprudência arbitral, traduzido na contradição entre as mencionadas decisões quanto à solução da mesma questão fundamental de direito ou da mesma matéria, nunca foi resolvido – nem podia ser – por uma decisão de uniformização de jurisprudência arbitral. É que, em caso de «conflito de jurisprudência», a estrutura e modo de funcionamento do CAAD não permitem produzir um «direito vivente» traduzido na existência de orientação jurisprudencial consolidada sobre a interpretação dos preceitos relativos à liquidação do IRC e das tributações autónomas que impusesse alguma contenção às interpretações dos tribunais arbitrais.
Apenas o Supremo Tribunal Administrativo poderia resolver esse conflito, em recurso de oposição com acórdãos proferidos pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo (cfr. artigo 25.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária – RJAT –, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro) ou, na sequência da alteração introduzida pelo artigo 17.º da Lei n.º 119/2019, de 18 de setembro (com início de vigência no dia 1 de outubro de 2019), «com outra decisão arbitral». É este o meio que o legislador previu para uniformizar a jurisprudência arbitral, garantindo assim a previsibilidade e segurança na aplicação do direito. Como se refere o Acórdão n.º 577/2019, «a alternativa representada pelos tribunais arbitrais em matéria tributária não deve ter como consequência a proliferação de entendimentos contraditórios quanto a uma dada questão jurídica a que seja aplicável um único regime jurídico. Deste modo, em caso de oposição de decisões arbitrais à jurisprudência consolidada dos tribunais superiores da ordem dos tribunais administrativos e fiscais – os dois tribunais centrais administrativos e o próprio Supremo Tribunal Administrativo, que são aqueles cujas decisões vinculam os tribunais tributários de 1.ª instância –, abre-se uma via de recursória excecional destinada a restabelecer a unidade de interpretação e aplicação do direito».
Não obstante as decisões de uniformização de jurisprudência não adquirirem a dimensão de precedente próprio de um sistema de stare decisis ou se converterem em regras ou princípios jurídicos vinculativos, a existência de um «padrão de conduta» interpretativo é o facto ou o elemento concreto que pode fazer com que os interessados acreditem que a lei poderá ser aplicada em conformidade com a interpretação uniforme que for fixada. Com efeito, perante a ambiguidade das posições jurisprudenciais, a solução do conflito através da interpretação da norma estabilizada em decisão de uniformização de jurisprudência constitui um facto capaz de gerar expectativas legítimas de aplicação futura do critério jurídico proclamado nessa decisão. Dirimido o conflito – o que apenas o poder judicial poderia fazer em recurso para uniformização de jurisprudência (artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável por força do n.º 3 do artigo 25.º do RJAT) -, e formulada a interpretação que se julgue preferível quanto ao respetivo ponto de direito, os interessados poderão então contar ou ter por seguro o sentido dessa interpretação.
Simplesmente, não é isso o que se verifica no caso sub juditio. Não obstante a intervenção que na matéria veio a ter a LOE para 2016, a questão da dedutibilidade dos benefícios fiscais à coleta de IRC proveniente das tributações autónomas continua a ser tratada desigualmente, consoante a interpretação da lei anterior perfilhada pelos árbitros que forem designados ou escolhidos para constituir o tribunal arbitral. Assim sendo, e enquanto nos tribunais arbitrais se mantiver a discrepância jurisprudencial e não for constituído um critério jurídico que possa manifestar-se através de «corrente jurisprudencial», não é possível afirmar a existência de uma situação de confiança dos atingidos pelo aditamento que a LOE 2016 fez ao artigo 88.º do CIRC, ao acrescentar-lhe o n.º 21, com caráter interpretativo.
IV - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional o segmento normativo do artigo 135.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que atribui natureza interpretativa ao artigo 133.º do mesmo diploma, na parte em que vem aditar o número 21 ao artigo 88.º do Código do IRC, fixando o sentido de que ao montante global resultante das tributações autónomas liquidadas em sede de IRC não pode ser deduzido o benefício fiscal apurado a título de SIFIDE nos exercícios fiscais anteriores a 2016;
b) Em consequência, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 303/98, de 4 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 16 de janeiro de 2020 - Lino Rodrigues Ribeiro (com declaração) - Joana Fernandes Costa - Gonçalo Almeida Ribeiro - Maria José Rangel de Mesquita - João Pedro Caupers
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Não obstante concordar com a decisão e com a parte da fundamentação determinante do juízo de não inconstitucionalidade da norma impugnada – não violação do princípio da proteção da confiança legítima -, discordo da posição que a maioria teve sobre a compatibilidade da eficácia retroativa das normas fiscais interpretativas com o princípio constitucional da não retroatividade dos impostos, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
A 3.ª Secção tomou posição sobre esta matéria no Acórdão n.º 395/2017, e por isso entendeu que parte substancial desse acórdão devia ser reafirmada no texto do presente acórdão. Porém, a orientação que aí se adotou quanto à inclusão do efeito retroativo das normas interpretativas no âmbito da cláusula constitucional da não retroatividade aproxima-se do critério que foi seguido no Acórdão n.º 267/17, da 2.ª Secção, relativamente ao qual dissenti em declaração de voto de vencido.
Por isso, impõe-se, dar nota do ponto do acórdão com o qual manifesto discordância, e que se resume na seguinte frase: «Ao consagrarem um sentido por razões de ordem política – constitutivas e não declarativas de direito -, as leis interpretativas frustram essa expectativa legítima dos cidadãos na juridicidade, adversariedade e justiciabilidade da sua relação com a lei». Neste entendimento, todas as normas fiscais interpretativas são “constitutivas”, porque excluem sempre outros sentidos possíveis da norma interpretanda, e são “substancialmente retroativas”, porque impedem que os sentidos excluídos possam ser revelados por posterior interpretação judicial como os mais adequados e válidos.
É certo que, diferentemente do que se verifica no Acórdão n.º 267/17, o Acórdão 395/2017 formula duas exceções a essa regra: (i) a criação de uma controvérsia jurisprudencial, que torna a questão jurídica incerta e insanável; (ii) existência de jurisprudência dominante no sentido consagrado pela lei interpretativa. No caso sub juditio, foi a verificação da primeira exceção que justificou o juízo de não inconstitucionalidade.
Todavia, sabendo-se que a lei interpretativa pretende esclarecer o sentido controvertido de lei anterior, não deixa de ser incoerente dizer-se que a lei interpretativa, ao excluir um dos sentidos possíveis da norma interpretanda, viola sempre expectativas legítimas e simultaneamente admitir que tal violação não existe se houver controvérsia jurisprudencial ou se for seguida a jurisprudência dominante. Também nestes casos, porque são excluídos outros possíveis sentidos, há um desvio na realização do direito através de interpretação judicial.
Por isso, o critério indicador dos limites à eficácia retroativa da lei fiscal interpretativa não pode ser apenas o da natureza constitutiva ou declarativa da lei, como resulta dos Acórdãos n.ºs 267/17 e 395/17, mas sim o da existência ou não de expectativas legítimas dos destinatários da lei interpretanda. Assim, a determinação do alcance da retroatividade da lei interpretativa deve ter como ponto de partida a interpretação da declaração, feita pelo legislador, de que certa norma tem caráter interpretativo.
2. Com efeito, o facto de o legislador dar a conhecer que procurou com essa lei interpretar lei anterior, não é bastante para emprestar à lei, mesmo só juridicamente, natureza interpretativa. Se a lei fosse interpretativa simplesmente porque como tal se denomina, sempre surgiria o problema de saber se a declaração formal do legislador não constituiu uma maneira indireta de atribuir efeito retroativo a uma disposição nova. Precisamente porque, quanto ao domínio no tempo, se reconhece às leis interpretativas eficácia jurídica idêntica à das respetivas leis interpretadas, em que se integram e, por isso, em absoluto substituem, não está excluída a possibilidade do legislador publicar leis supostamente interpretativas, e como tal por ele qualificadas, para dissimular o caráter retroativo que pretende dar a uma nova lei.
É por isso que, quando a Constituição proíbe expressamente o recurso, por parte do legislador, à retroatividade das leis, como se verifica nos artigos 18.º, n.º 3, 29.º, n.º 1 e 103, n.º 3, é lícito ao julgador negar à lei o caráter interpretativo que o legislador lhe atribui. Uma lei aparentemente interpretativa pode na realidade ser inovadora, e portanto inconstitucional deverá dizer-se a sua aplicação retroativa, por contrária ao disposto nos referidos preceitos constitucionais. Como aos tribunais é permitido apreciar a constitucionalidade material das normas jurídicas (artigo 204.º da CRP), pertence aos juízes verificar se uma lei interpretativa na forma o é igualmente quanto ao fundo, já que o poder legislativo de interpretação não pode atuar em termos de produzir efeitos contrários a princípios constitucionais.
Daí a necessidade de um critério que permita definir as leis verdadeiramente interpretativas e distingui-las das leis apenas qualificadas como tais pelo legislador. O critério da distinção entre leis interpretativas e leis inovadoras reveste de maior importância em face do problema da aplicação das leis no tempo, dada a relevância do princípio de proteção da confiança e dos limites à retroatividade das normas que dele decorrem, assim como o disposto nos artigos 12.º e 13.º do Código Civil.
Ora, como refere J. Batista Machado, o critério desta distinção há de seguramente definir-se de acordo com a razão de ser da «retroatividade» das leis interpretativas: «Fundamentalmente, a retroação destas leis justifica-se, além do mais, por não envolver uma violação de quaisquer expectativas seguras e legítimas dos interessados. Estes podiam contar com a solução fixada na LN interpretativa, visto ela corresponder a um dos vários sentidos atribuídos já pela doutrina e pela jurisprudência à LA»; pode consequentemente dizer-se que «É de sua natureza interpretativa a lei que, sobe um ponto em que a regra de direito é incerta ou controvertida, vem consagrar uma solução que a jurisprudência, por si só, poderia ter adotado». Portanto, para que uma lei seja realmente interpretativa são necessários dois requisitos: (i) que «intervém para decidir uma questão de direito cuja solução era controvertida ou incerta no domínio de vigência da LA», (ii) que consagra «uma solução a que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado no domínio da legislação anterior» (J. Batista Machado, Sobre a Aplicação no tempo do novo Código Civil. Almedina, 1968, págs. 286 e 287; e Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pág. 246 e 247).
3. A Constituição não impede que o poder de interpretação das normas legais possa ser exercido por quem as editou: se o legislador pode criar e revogar uma lei, por maioria de razão a poderá interpretar. Ainda que o sentido da lei interpretativa tenha por fundamento critérios de conveniência político-jurídica, não está excluída a hipótese da intenção determinante ter sido a de fixar à lei interpretada um dos sentidos que a jurisprudência também só por si poderia ter adotado no quadro da sua atividade hermenêutica jurídica. Com efeito, suscitadas dúvidas sobre o exato sentido e alcance de certa lei, o órgão que a editou, como é lógico, tem competência para a interpretar através de uma nova lei. A lei interpretativa nasce assim da necessidade de que o próprio órgão que promulgou uma lei obscura preste esclarecimento sobre o sentido normativo correto que lhe pretendeu dar. Por isso mesmo, a lei interpretativa material ou «por natureza» destina-se, não a criar direito novo, mas apenas a esclarecer e determinar o sentido de leis anteriores obscuras, ambíguas, controvertidas e de interpretação duvidosa. Trata-se, portanto, da chamada interpretação autêntica, que provém do mesmo poder legislativo, com índole e eficácia normativas equiparáveis à lei interpretada e que tem, por isso, a força vinculante própria da lei.
Uma lei interpretativa por «natureza» implica duas consequências características: (i) a fixação obrigatória de um certo sentido à lei interpretada com exclusão de outros possíveis; (ii) a sua eficácia retrotrai-se à data da entrada em vigor da lei interpretada. O caráter prescritivo e obrigatório da norma interpretativa não difere da força vinculativa inerente à norma inovadora de natureza imperativa: quer vise interpretar e esclarecer uma disposição anterior quer introduza uma nova disciplina, o legislador impõe sempre um determinado sentido normativo; já quanto à eficácia normativa de cada espécie de normas jurídicas há uma diferença assinalável: enquanto a norma inovadora se aplica para o futuro, quando não seja expressamente retroativa, a norma interpretada aplica-se como se, no momento da verificação dos factos passados, tivesse já o alcance que lhe fixou a norma interpretativa.
Portanto, não há qualquer dúvida que as normas interpretativas produzem efeitos retroativos. O preceito interpretativo confunde-se com o preceito interpretado, de que fica fazendo parte integrante, formando os dois, desde a origem (ex tunc), um todo único (artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil), e por isso, a entrada em vigor do sentido normativo imposto pela lei interpretativa ocorre com a entrada em vigor da lei interpretada. Trata-se, pois, como se refere no Acórdão n.º 395/2017, «de uma ficção temporal – a ficção de que um facto presente (a entrada em vigor da lei interpretativa) ocorreu no passado (a entrada em vigor da lei interpretada). A retroatividade das normas interpretativas resulta dessa ficção».
Porém, o sentido preciso da “retroatividade” que resulta dessa ficção pode ser diferente consoante a intenção que determinou a intervenção do legislador.
Se o legislador exerce abusivamente o seu legislativo poder de interpretação para impor formalmente um sentido jurídico que a lei interpretada não poderia comportar, falta à lei uma intenção interpretativa propriamente dita. A lei, aparentemente interpretativa, é na realidade materialmente inovadora, já que representa uma nova e diferente valoração jurídica dos factos regulados pela lei supostamente interpretada. As consequências jurídicas que uma lei desse tipo determina são sempre produto de nova valoração legal de factos passados enquanto factos constitutivos de um determinado efeito ou situação jurídica. Por isso, ao ligar a factos passados efeitos que estes eram insuscetíveis de produzir segundo a lei interpretada, a lei formalmente interpretativa tem caráter substancialmente retroativo. O que o legislador pretendeu foi apenas dar-lhe o âmbito de aplicação que é reconhecido às leis interpretativas materiais ou por «natureza». Nestes casos excecionais, escreve J. Batista Machado, que «a declaração, feita pelo legislador, de que certa lei tem caráter interpretativo equivale, então, a uma cláusula de retroatividade» (ob. cit. pág. 286). Assim, se o legislador, forçando a realidade, der a qualificação de interpretativa a uma lei que não tem esse caráter, os tribunais não podem deixar de a considerar substancialmente retroativa, porque tal qualificação equivale a dar à lei efeito retroativo e isso está dentro dos poderes do legislativo.
Não é esse, no entanto, o sentido da “retroatividade” das leis materialmente interpretativas. A função da lei genuinamente interpretativa é determinar o sentido e o alcance de uma lei anterior cuja aplicação não seja uniforme. Por isso mesmo, o sentido interpretativo que ela revela já está virtualmente contido no espírito da lei interpretada, não implicando a sua determinação qualquer apreciação e valoração ex novo dos factos e situações regidas pela lei interpretada, mas apenas clarificação e esclarecimento do sentido que o legislador atribui às suas próprias palavras, precisando o respetivo conteúdo. Não pode, portanto, falar-se em verdadeira retroatividade ou retroatividade “proprio sensu”, pois, como diz o referido autor, «a aplicação da lei interpretativa aos factos passados não envolve efeito retroativo em sentido verdadeiro, uma vez que não implica uma valoração nova desses factos» (ob. cit. pág. 285, nota 225).
Decerto que a interpretação fixada por lei é determinada por critérios de conveniência e oportunidade político-legislativa, já que o legislador atua sempre com base na autoridade política que a Constituição lhe confere para definir o interesse geral da comunidade. Porém, se a lei for materialmente interpretativa é arbitrário excluir dela uma intenção verdadeiramente interpretativa, sem a qual não estaríamos perante uma lei dessa natureza, mas apenas perante uma lei materialmente inovadora que se diz interpretativa para impor efeitos retroativos, mas que é incompatível com a lei interpretada e que nada tem a ver como aquela intenção interpretativa. Ora, precisamente por lhe corresponder um momento materialmente interpretativo, revelador de um sentido interpretativo que já se encontra, originariamente, impresso na norma interpretada, é que o n.º 1 do artigo 13.º do Código Civil determina a retroatividade da lei interpretativa «mediante a sua integração da lei interpretada e assim operando uma novação da fonte normativa originária» (Acórdão n.º 216/15).
Há, sem dúvida, a imposição de um dos sentidos normativos que a lei interpretada metodológica-doutrinalmente comportava, assim como a exclusão de outros possíveis. Pode assim dizer-se que a ratio da lei interpretativa é fixar obrigatoriamente um determinado sentido à lei interpretada. Não se trata, porém, da imposição de novo direito, mas de interpretação fixada em termos obrigatórios por um poder formal para tanto legalmente legitimado: ao órgão legislativo compete também o poder de interpretar as suas próprias normas jurídicas. O impedimento de se obter da lei interpretada um critério normativo de decisão do caso concreto diferente do que está explicado na lei interpretativa é, pois, uma consequência do caráter prescritivo e obrigatório desta lei.
Todavia, o caráter vinculante da interpretação imposta por leis interpretativas materiais ou «por natureza» não lhe confere a natureza de ato criador de novo direito. Se assim fosse, a lei não cumpriria a sua função de esclarecer alguma ambiguidade ou obscuridade da lei interpretada. Interpretar não é inovar: no exercício da função judicial, é investigar a «mens legis» e a «ratio legis», a fim de obter o critério jurídico da justa decisão do caso concreto; no exercício da função legislativa, é esclarecer dúvidas que se hajam suscitado na interpretação de uma norma vigente. Toda a lei que excede esta função, toda a lei que define uma regra ou um princípio que não está contido na lei que diz pretender interpretar, não é materialmente interpretativa, é inovadora, porque, nesse caso, não declara o direito existente; nesse caso, cria uma nova norma jurídica.
É por isso que as leis apenas formalmente interpretativas não podem deixar de revestir natureza constitutiva, pois o juízo que lhe subjaz é ordem exclusivamente política; já as leis materialmente interpretativas, apesar da intenção originária também ser de política legislativa, exprimem uma intenção interpretativa em sentido próprio, revestindo, por isso, natureza explicativa da lei interpretada. A natureza da lei interpretativa é, por consequência, um efeito da sua função: rigorosamente constitutiva, quando impõe um sentido que a lei interpretada nunca poderia comportar; de conteúdo declarativo, quando visa determinar o sentido e alcance da lei anterior.
A natureza constitutiva ou declarativa da interpretação realizada pelo legislador não é, porém, um critério decisivo para determinar se a «retroatividade» das leis interpretativas é substancial ou apenas aparente. As leis formalmente interpretativas são substancialmente retroativas porque, ao imporem um novo critério jurídico, produzem efeitos constitutivos; mas as leis materialmente interpretativas, apesar de não criarem direito novo, vinculam a lei interpretada a determinado sentido e nessa medida, ao pretenderem esclarecer imperativamente para o passado, também se poderia dizer que têm eficácia constitutiva. E assim sendo, contrariamente às interpretações judiciais, que são declarativas e não têm efeito retroativo, a retroatividade inerente a esse tipo de leis interpretativa também teria um caráter substancial.
Simplesmente, a comparação entre interpretação jurisprudencial e interpretação legislativa, quanto ao fundamento e ao método de realização do direito, para efeito de determinar a natureza constitutiva ou declarativa da interpretação autêntica e a consequente imposição de efeitos retroativos, não é capaz de justificar por si só a retroatividade das leis interpretativas. Com efeito, como refere Castanheira Neves, «hoje é tão inadmissível ver na interpretação só um ato de conhecimento, sem um conteúdo e um resultado normativamente constitutivos, como ver na interpretação autêntica só um ato legislativo, sem quaisquer pressupostos interpretativos»; pode assim dizer-se que «momentos interpretativos em sentido estrito (momentos hermenêuticos) e momentos normativos (normativamente constitutivos) existem em ambas as categorias de interpretação, embora possivelmente em graus variáveis» (O Instituto dos «Assentos» e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra, 1983, págs. 328 e 334).
Ora, se ambas as interpretações comportam momentos interpretativos e momentos constitutivos, então a justificação para a retroatividade das leis materialmente interpretativas há de encontra-se em razão diferente da natureza declarativa ou constitutiva da interpretação. Como já se referiu, citando J. Batista Machado, a retroação das leis verdadeiramente interpretativas justifica-se, essencialmente, «por não envolver uma violação de quaisquer expectativas seguras e legitimas dos interessados» (ob. cit, pág. 286).
Assim, os limites à retroatividade das leis interpretativas – de resto, como de quaisquer outras – decorrem do princípio da proteção da confiança: aplicam-se retroactivamente quando não afetem de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas que os interessados legitimamente fundaram com base no regime da lei interpretada.
É por isso que a lei formalmente interpretativa, que contém disposições não virtualmente contidas na lei interpretada, é substancialmente retroativa, na medida em que os destinatários da lei interpretada tinham como seguro o regime que lei interpretativa modificou com a introdução de novo critério jurídico; já a lei materialmente interpretativa, que impõe um dos sentidos comportados pela lei interpretada, só aparentemente é retroativa, na medida em que os interessados não podiam (ou não deviam) contar com qualquer um dos sentidos imputados à lei interpretada. É evidente que, quando os interessados fundaram expectativas seguras numa determinado sentido interpretativo, como ocorre nas situações enunciadas no n.º 2 do artigo 13.º do Código Civil, a retroatividade da lei interpretativa tem caráter substancial.
A retroatividade da lei materialmente interpretativa, para além de se basear no facto de não violar expectativas legítimas e fundadas dos indivíduos, assenta também em razões de justiça relativa e de certeza: por um lado, «se a nova lei (interpretativa) não se aplicasse imediatamente aos próprios factos anteriores à sua entrada em vigor, estes continuariam a ser tratado desigualmente, consoante a interpretação da lei anterior perfilhada pelo tribunal que os apreciasse»; por outro, «se a nova lei (interpretativa) não fosse imediatamente aplicada aos factos anteriores, os particulares continuariam a viver na incerteza sobre qual o regime que o tribunal viria a aplicar a esses factos quando eles porventura fossem aplicados em juízo» (Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, Vol. I, Coimbra Editora, 1961, pág. 202 e 203). Por uma e outra razão o objetivo prático da lei verdadeiramente interpretativa também é o da uniformidade de tratamento de casos idênticos e da remoção de possíveis disparidades na aplicação da lei interpretada, uma exigência formal da certeza do direito e da igualdade na sua realização.
4. Dito isto, vejamos se as leis interpretativas também estão cobertas pelo princípio da proibição da retroatividade fiscal consagrado no n.º 3 do artigo 103.º da CRP: «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos … que tenham natureza retroativa».
O significado e alcance da proibição da retroatividade fiscal - consagrado naquele preceito pela Revisão Constitucional de 1997 - têm vindo a ser determinado pelo Tribunal Constitucional atendendo à diferente gravidade com que a norma fiscal pode afetar a segurança jurídica e, do ponto de vista subjetivo, as expectativas e a confiança dos contribuintes.
O reconhecimento de que as normas fiscais podem envolver diferentes “graus de retroatividade” levou o Tribunal a estabelecer uma dicotomia entre retroatividade autêntica ou própria, quando a norma fiscal impositiva se aplica a factos tributários cujos efeitos já se produziram ou esgotaram ao abrigo de lei fiscal anterior mais favorável, e retroatividade inautêntica ou retrospetividade, quando a norma fiscal impositiva se aplica a factos tributários ocorridos ao abrigo da lei anterior, mas cujos efeitos ainda não se encontram totalmente esgotados, ou que ainda não ocorreram totalmente ao abrigo dessa lei, continuando a formar-se durante a vigência da lei nova.
É claro que, em princípio, as normas autenticamente retroativas, em relação a factos tributários já concluídos, afetam de forma mais intensa a confiança dos contribuintes na manutenção do regime vigente à data da ocorrência desses factos do que as normas retrospetivas, uma vez que, aqui, a não consolidação plena dos factos e dos respetivos efeitos gera uma diminuição do peso dos interesses relativos à proteção da confiança dos contribuintes. Do ponto de vista da eventual afetação da situação jurídica do contribuinte, é mais grave a eficácia da primeira categoria de normas do que a segunda e, por isso, a resistência à retroatividade pode apresentar maior intensidade normativa naquela do que nesta.
Daí que, atendendo à gravidade diferenciada com que as normas fiscais retroativas podem afetar a situação de confiança dos contribuintes, e socorrendo-se dos trabalhos preparatórios da 4.ª Revisão da Constituição na parte relativa ao aditamento por ela introduzido ao artigo 103.º n.º 3, a jurisprudência constitucional tenha vindo a interpretar este preceito no sentido de apenas consagrar a proibição da retroatividade autêntica ou própria da lei fiscal. Nesse sentido, uma lei nova que pretenda afetar situações fiscais já esgotadas ou estabilizadas é “automaticamente” inconstitucional, sem ser necessário avaliar se a proteção da confiança foi ou não violada; mas se a nova lei afeta direitos, situações ou posições constituídas no passado, mas que prolonga os seus efeitos no presente, o juízo de inconstitucionalidade já depende da “ponderação” de bens e interesses em confronto efetuada na análise da proteção da confiança (Acórdãos n.º 128/2009, 85/2010, 399/2010, 523/2010, 524/2010, 18/2011, 310/2012, 382/2012, 617/2012, 85/2013).
É esta a interpretação que resulta do primeiro destes arestos, e que serviu de orientação aos demais, ao referir no ponto 7 o seguinte:
“Foi na revisão constitucional de 1997 que o legislador constituinte tomou a opção de consagrar, no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, o princípio geral de proibição de cobrança, pelo Estado, de impostos retroativos. Explicitou-se, aqui, diz a doutrina, algo que já decorria do princípio da proteção de confiança e da ideia de Estado de direito nos termos do artigo 2.º da CRP (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 1092 e ss).
Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável (não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e em que medida, ser retroativas) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroativa, sendo a expressão «retroatividade» usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável.
(…)
Uma vez expresso no texto da Constituição a proibição da retroatividade em matéria fiscal, o Tribunal passou a ler esta proibição já não numa dimensão subjetiva (dependendo, em concreto, do contexto dos sujeitos da relação tributária resultante da aplicação da lei) mas antes numa dimensão objetiva. Diz o Tribunal, a este propósito, que à proibição expressa da retroatividade da lei fiscal “não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objetividade e autovinculação do Estado pelo Direito” (Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/2000, in www.tribunalconstitucional.pt)
Quer isto dizer que, atualmente, e consagrado que está o princípio geral de irretroatividade da lei fiscal, a mera natureza retroativa de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fiscal ou do particular tributado. Por outras palavras, o juízo de inconstitucionalidade decorre apenas da mera análise dos dados normativos, não dependendo, em nenhum momento, da averiguação de quaisquer elementos circunstanciais que resultem da condição, em concreto, de uma certa relação jurídico-tributária”.
Independentemente da questão de saber se a norma do n.º 3 do artigo 103.º da CRP tem natureza de regra ou de princípio e das consequências que daí resultam para delimitar o âmbito da cláusula proibitiva de impostos retroativos (Acórdão n.º 171/2017), ou de determinar se tal cláusula opera de forma automática ou se implica uma interpretação valorativa da tutela da confiança em cada caso concreto (Acórdãos n.ºs 128/2009 e 399/10), certo é que os limites à retroatividade, de uma forma ou de outra, acabam por decorrer do princípio da proteção da confiança. Desde sempre o Tribunal Constitucional afirmou que o princípio da proteção da confiança não exclui em absoluto a possibilidade de leis fiscais retroativas, excluindo-as apenas quando se se esteja perante retroatividade que afete de forma excessiva, inadmissível ou intolerável os direitos e expectativas legitimamente fundados dos contribuintes.
Por isso, também a inadmissibilidade constitucional da «retroatividade» das leis fiscais interpretativas só pode estar dependente do juízo que se faça sobre a existência de excesso na frustração das expectativas que o Estado criou com as leis interpretadas.
5. E não pode, na verdade, deixar de concluir-se que, no que toca às normas fiscais interpretativas, a proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição abrange as leis apenas formalmente interpretativas. Com efeito, as leis só pelo legislador ditas interpretativas, mas materialmente inovadoras, em sentido desfavorável, constituem uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários da norma pretensamente interpretada não podiam contar. Se o legislador declara precetivamente que a lei é interpretativa, mas na realidade ela é totalmente imprevisível e inovadora, há uma inadmissível e intolerável frustração da confiança depositada na manutenção da solução que a lei interpretada consagrava. Nesse caso, a declaração, por parte do legislador, de que a lei é interpretativa, quando na realidade não tem esse caráter, tem que ser interpretada como pretendendo impor efeito retroativo à nova lei. Isto porque, faltando-lhe uma intenção verdadeiramente interpretativa, a lei impositiva da retroatividade atua exclusivamente razões ou critérios de oportunidade politico-legislativa (Acórdãos n.ºs 644/2017, 92/2018 e 52/2019).
Mas quanto às leis que intencional e materialmente desempenham uma função rigorosamente interpretativa e que, por isso, se limitam a optar por um dos sentidos interpretativamente possíveis da lei interpretada, não se pode considerar, prima facie, que a sua aparente «retroatividade» afete de forma inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária, as expectativas legítimas dos destinatários da norma interpretada. É que, quando a norma interpretada é obscura e confusa, os seus destinatários encontram-se numa situação de incerteza sobre o critério jurídico que o tribunal aplicará aos factos que ela pretende regular. Se há uma “controvérsia jurisprudencial” sobre o sentido a dar à lei interpretada, não podem ser geradas expectativas de continuidade de um ou outro dos sentidos imputados a essa lei. Não devendo contar como certo e seguro qualquer dos sentidos normativos extraídos da lei interpretada, não há qualquer expectativa juridicamente tutelável – e muito menos um direito – à imutabilidade de qualquer um deles.
Na verdade, se foram proferidas nos tribunais decisões desencontradas, de modo que, em consequência delas, o sentido da lei se haja tornado incerto, a expectativa dos seus destinatários numa decisão judicial favorável, sem a intervenção da lei interpretativa, não tem justificação, porque o tribunal que apreciar os factos pode não extrair da norma interpretada o critério jurídico que despertou aquela expectativa. Daí que, em princípio, a lei interpretativa não frusta a confiança dos destinatários na manutenção de outros possíveis sentidos da lei interpretada. E tanto basta para termos de reconhecer que as leis materialmente interpretativas não estão abrangidas pela proibição da retroatividade fiscal, consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da CRP.
Mas também se reconhecerá, por outro lado, que a eventual afetação de expectativas criadas pelos possíveis sentidos da norma interpretada não tem intensidade equivalente à lesão causada pela “retroatividade inautêntica” de uma lei fiscal inovadora. De facto, enquanto a aplicação da lei interpretativa aos factos passados não envolve um verdadeiro efeito retroativo, por não implicar uma valoração nova desses factos, a retrospetividade visa factos anteriores ainda não concluídos ou efeitos de factos anteriores que continuam a produzir-se, valorando-os ex novo. Por isso, a legitimidade das expectativas dos contribuintes na continuidade da lei substantiva anterior, sobre a qual não se questiona o sentido, é muito mais consistente do que eventuais expectativas fundadas numa lei obscura e de interpretação duvidosa.
Ora, como já referido, a jurisprudência constitucional exclui do âmbito da cláusula constitucional de proibição da retroatividade a chamada «retroatividade inautêntica», uma vez que, nessa circunstância, a resistência à retroatividade dependerá essencialmente da ponderação entre as expectativas e os investimentos na confiança frustrados, por um lado, e o fim de interesse público prosseguido, por outro. Assim sendo, em coerência com essa jurisprudência, o valor negativo da retroatividade das leis materialmente interpretativas também deve ser delimitado através do princípio da proteção da confiança, excluindo-as da aplicação automática do princípio da proibição da não retroatividade fiscal.
6. No caso sub juditio, a decisão recorrida concluiu que o n.º 21.º do artigo 88.º do CIRC, introduzido pelo artigo 133.º da LOE 2016 contém uma norma verdadeiramente interpretativa, não porque o legislador assim a denominou no artigo 135.º do mesmo diploma, mas porque considerou que o legislador teve intenção de interpretar o direito anterior, removendo o conflito de jurisprudência que sobre ele se havia estabelecido.
Esta conclusão só por si implica a exclusão da norma impugnada do âmbito da proteção da cláusula de proibição da retroatividade dos impostos. Com efeito, não havendo razões para duvidar do acerto da sua caracterização como materialmente interpretativa, nem devendo o Tribunal Constitucional corrigir a interpretação da norma aplicada pelo tribunal a quo, só pode concluir-se – tendo em conta o que acima se disse – que tal norma não está automaticamente coberta pela garantia da não retroatividade dos impostos, consagrada no artigo 103.º, n.º 3 da CRP.
Por outo lado, como se dá conta no ponto 9 do acórdão, a controvérsia jurisprudencial que existia sobre a dedutibilidade dos benefícios fiscais à coleta das tributações autónomas não legitimava a formação de expectativas legítimas de manutenção de qualquer dos sentidos imputados à lei interpretanda, e por conseguinte, a lei interpretativa que a resolveu não ofende o princípio da proteção da confiança legítima.
Lino José Batista Rodrigues Ribeiro