ACÓRDÃO Nº 670/2019[1]
Processo n.º 260/2019
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro
Acordam na 3ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do despacho daquele Tribunal, de 29 de novembro de 2018.
2. O ora recorrido, na condição de executado nos autos de execução movidos pela B., S.A. (referida adiante pela sigla «B.»), de contrato de empréstimo de consolidação de dívida resultante de operações de crédito pessoal ao consumo, deduziu embargos de executado, inter alia contestando a força executiva do título.
Por sentença datada de 21 de março de 2018, o Tribunal de 1.ª instância julgou a oposição à execução totalmente improcedente e determinou o prosseguimento da instância de ação executiva.
O embargante recorreu de tal sentença para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, através do acórdão ora recorrido, «negou força executiva ao título que a exequente deu à execução», recusando a aplicação do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, na interpretação «segundo a qual se revestem de força executiva os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela B., S.A., prevejam a existência de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras formalidades», com fundamento na violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição.
Pode ler-se na fundamentação de tal aresto:
«Assim sendo, é de concluir que nº 4 do artigo 9º do Dec-Lei 287/93, de 20 de agosto, é uma das disposições especiais previstas pela alínea d), do nº1 do artigo 703º, do CPC, que confere força executiva ao contrato de mútuo dado à execução. É o entendimento da jurisprudência das Relações: v.g. Ac. do TRP de 26 de janeiro de 2015, Ac. do TRL de 25 de junho de 2015; e acs do TRC de 16 de fevereiro de 2017, e de 17 de Abril de 2017, e a posição defendida por Lebre de Freitas, in Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª ed. pág. 80, e por Marco Carvalho Gonçalves, in Lições de Processo Civil Executivo, 2016, pág. 120.
Mas essa interpretação enferma de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade ínsito no artigo 13º, nº1, da Constituição da República Portuguesa.
O artigo 2º do Dec-Lei DL nº 48 953, de 05.04.1969 definia a B. como “uma pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, com património próprio, competindo-lhe o exercício dos funções de instituição de crédito do Estado e a administração das instituições a que se referem os artigos 4º e 6º”, incumbindo-lhe, “como instituto de crédito do Estado”, “colaborar na realização da política de crédito do Governo e, designadamente, no incentivo e mobilização da poupança paro o financiamento do desenvolvimento económico e social, na ação reguladora dos mercados monetário e financeiro e na distribuição seletiva do crédito” (Art. 3º).
Em função desse estatuto e interesses públicos que visava prosseguir, tal como refere o citado acórdão do TC nº. 65/2009 não se mostrava “abusivo, arbitrário ou manifestamente desproporcionado, que, simultânea e diferentemente do que se passa relativamente às outras entidades bancárias, o tenho aliviado de certos encargos processuais com a cobrança dos créditos com que, pelo menos em parte, satisfazia essas necessidades públicas. De resto, a atribuição dessas prerrogativas processuais não deixa de constituir, precisamente, uma expressão de afirmação da subordinação constitucional do poder económico ao poder político, no medida em que elas representam uma contrapartida pelo prosseguimento por parte da B. dos interesses públicos que são predeterminadamente definidos pelo legislador, em concretização de valores que a Constituição de 1976 não deixou de igualmente assumir como direitos sociais ou como injunções constitucionais (cf., artºs 65º e 101º, da CRP, na versão atual).”
Com a transformação operada pelo Dec-Lei 287/93, a B. deixou de constituir uma pessoa coletiva de direito público e passou a reger-se pelas regras do direito privado, i.é., não subsistem desde então os fundamentos que justificavam a atribuição à B. de especiais e prerrogativas que as demais instituições de crédito não tinham, como a força executiva conferida aos documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela B., prevejam a existência de uma obrigação de que a B. seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras formalidades.
E a força executiva desses atos ou contratos previstos no nº4, do artigo 9º do referido Decreto-Lei 287/93, dispensa o processo declarativo tendo em vista o reconhecimento do direito e permite desde logo medidas coercivas para cobrança dos créditos, v.g. a penhora de bens, ou seja, os devedores são colocados em condições manifestamente mais desfavoráveis relativamente aos devedores doutras instituições de crédito que tenham celebrado contratos da mesma natureza, sem que exista razão objetiva que justifique essa desigualdade de tratamento de situações substancialmente iguais.
Ademais, a revisão do elenco dos títulos executivos operada pelo regime introduzido pela Lei nº. 41 /2013, de 26 de junho, como refere no seu preâmbulo, é precisamente o de reduzir o risco de execuções injustas “risco esse potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório”.»
3. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional.
4. O recorrente produziu alegações, que concluiu do seguinte modo:
«V - Conclusões
51. O Ministério Público interpôs, em 21 de Dezembro de 2018, a fls. 127 e 128 dos autos supra-epigrafados, recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor do douto Acórdão de fls. 135 a 144, proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no âmbito do Processo n.º 2438/17.5T8GMR-A, “(…) ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, nºs 1, alínea a), e 3 da Lei do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas, além do mais, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (…)”.
52. Com a interposição deste recurso, pretende o Ministério Público que o Tribunal Constitucional proceda à apreciação da constitucionalidade da “(…) interpretação do normativo do n.º 4 do artigo 9º do DL nº. 287/93, de 20.08, segundo o qual se revestem de força executiva os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela B. S.A, prevejam a existência de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras formalidades (…)”.
53. O parâmetro de constitucionalidade cuja violação é invocada é “o princípio da igualdade do artigo 13º, nº 1, da CRP (Constituição da República Portuguesa”.
54. Conforme tivemos ocasião de observar, a douta decisão impugnada constata a inconstitucionalidade material da interpretação normativa extraível do disposto no n.º 4, do artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, resultante da violação do princípio da igualdade, da verificação do tratamento discriminatório dos devedores da B., S.A., face aos devedores “doutras instituições de crédito que tenham celebrado contratos da mesma natureza” dos celebrados por aqueles.
55. Com efeito, conforme também já observáramos, os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela B., S.A., prevejam a existência de uma obrigação de que a B. seja credora e estejam assinados pelo devedor beneficiam, dispensando o processo declarativo, da força executiva que não é reconhecida a idênticos documentos que titulem ato ou contrato celebrado por qualquer outra instituição bancária.
56. Ora este tratamento legislativo discriminatório resulta, para além do mais, de um específico contexto histórico-jurídico, qual seja, o de a B. ter constituído até 1993, ou seja, até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 287/93, uma pessoa coletiva de direito público, o que justificava um tratamento legal especial no confronto com as instituições bancárias de direito privado, tendo passado, desde aquela data, a estar submetida, como estas, a um estatuto de direito privado.
57. Ora, a norma contida no n.º 4, do artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto, que agora é contestada, parece configurar um resquício legal da anterior natureza jurídica da B., ao atribuir-lhe um privilégio que é negado às restantes instituições bancárias (e, bem assim, à generalidade das pessoas jurídicas) e que se manifesta numa mais intensa oneração dos devedores que com ela negoceiem, em comparação com o que ocorre, em situações idênticas, com os devedores das restantes instituições financeiras.
58. Esta discriminação negativa, identificada pelo douto aresto impugnado, não pode, consequentemente, deixar de ser apreciada à luz da sua compatibilidade com o princípio constitucional da igualdade.
59. Ora, sem necessidade de excessivo aprofundamento, facilmente concluímos que, no caso que nos ocupa, perante situações da mesma categoria essencial - a existência de documento que, titulando ato ou contrato realizado por uma instituição bancária, preveja a existência de uma obrigação de que esta seja credora e esteja assinado pelo devedor -, decidiu o legislador conceder-lhes tratamento diferenciado, atribuindo força executiva, sem necessidade de quaisquer outras formalidades, àqueles em que a B., S.A., se apresenta como credora mas recusando tal prerrogativa a documentos idênticos que titulem créditos das demais instituições bancárias.
60. Face à verificação da ocorrência do descrito tratamento desigual de cidadãos, cumpre, ainda, apurar se tal desigualdade se apresenta destituída de justificação racional ou se, pelo contrário, evidencia uma qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional, que impeça qualificá-la como meramente arbitrária.
61. Ora, no caso que nos ocupa, ainda que nos guiemos por uma visão minimalista e obsoleta do conceito operativo do princípio da igualdade, deveremos concluir que a diferenciação contestada não se revela racionalmente compreensível, uma vez que não existe qualquer distinção entre os devedores da B. S.A., e os das restantes instituições bancárias, que a justifique, revelando-se, inapelavelmente, arbitrária e, consequentemente, inadmissível em Estado de Direito.
62. Isto é, esta diferenciação de tratamento e a norma jurídica que a sustenta tem que ser entendida como violadora do princípio constitucional da igualdade, plasmado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
63. Aqui chegados, e concordando com o teor da douta decisão recorrida, ousamos, ainda assim, acrescentar um argumento adicional que visa, no essencial, reforçar a inferência alcançada.
64. Com efeito, a argumentação aduzida pelos Venerandos Desembargadores “a quo” preocupou-se com a perceção da compatibilidade constitucional da norma ínsita no n.º 4, do artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, na ótica da desigualdade criada entre os devedores da B., S.A., face aos devedores das restantes instituições bancárias. Todavia, a desigualdade identificada não pode deixar de ser considerada, igualmente, na perspetiva da comparação entre o tratamento privilegiado atribuído à B., S.A. no confronto com as restantes instituições bancárias suas concorrentes no mercado financeiro e, consequentemente, da sua desconformidade com o princípio constitucional da igualdade.
65. Ou seja, a desvendada violação do princípio da igualdade tanto se revela no tratamento discriminatório a que se encontram sujeitos os devedores da B. S.A., no que concerne à força executiva que, arbitrariamente, é legalmente atribuída aos documentos que, com a mera assinatura do devedor, adquirem força executiva, como se revela no tratamento discriminatório das instituições bancárias concorrentes da B. S.A., que, em circunstâncias equiparadas não veem concedida aos mesmos documentos a força executiva incorporada nos do banco estatal com o qual concorrem no mesmo mercado livre.
66. Conforme já aventámos anteriormente e agora completamos, o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro (com última alteração introduzida pela Lei n.º 23/2019, de 13 de Março) criou o quadro legal que permitiu a publicação do já referido Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto, que, por sua vez, transformou a B. numa sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, de que só o Estado pode ser detentor, tendo por objeto o exercício da atividade bancária, de acordo com as regras da concorrência e do equilíbrio da sua gestão.
67. Ora, o tratamento discriminatório que resulta da atribuição de força executiva, sem necessidade de outras formalidades, aos documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela B., S.A., prevejam a existência de uma obrigação de que a B. seja credora e estejam assinados pelo devedor, com prejuízo, em situação idêntica, das restantes entidades bancárias, para além de lesivo das regras da concorrência, viola, igualmente, na parte aqui relevante, embora numa ótica distinta da previamente abordada, o princípio da igualdade.
68. Sintetizando, verificamos, indubitavelmente, que as realidades cotejadas no caso vertente, embora essencialmente iguais, recebem, arbitrária e injustificadamente, um tratamento diferenciado, quer na perspetiva do distinto tratamento entre os devedores, quer na do tratamento discriminatório entre entidades bancárias.
69. Assim, de acordo com o acabado de explanar, não poderemos deixar de sustentar a inconstitucionalidade material da norma ínsita no n.º 4, do artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, a desaplicada nos presentes autos, por violação do princípio constitucional da igualdade, plasmado no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa.
70. Por força do exposto, deverá o Tribunal Constitucional, em nosso entender, julgar inconstitucional a norma contida no artigo 9.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, negando, assim, provimento ao presente recurso.
Nos termos do acabado de explanar, deverá o Tribunal Constitucional negar provimento ao presente recurso, assim fazendo a costumada JUSTIÇA.»
5. Tomando em consideração a posição assumida pelo Ministério Público, no sentido do não provimento do recurso, o relator notificou a exequente embargada, B. – que, apesar de ser parte vencida, nos termos que relevam para efeitos de aplicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 72.º, da LTC, não interpôs recurso de constitucionalidade do aresto prolatado pelo Tribunal da Relação de Guimarães −, para se pronunciar sobre o objeto do recurso, por forma a assegurar um substancial exercício do contraditório, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto no artigo 69.º da LTC.
A B. respondeu através de peça processual de que constam as seguintes conclusões:
A- O Decreto-Lei 287/93 de 20 agosto, que transformou a B. em sociedade anónima com capitais exclusivamente públicos teve como génese na sua criação que o Estado assumisse um lugar preponderante no conjunto do sistema bancário para contribuir de forma saliente para o progresso económico e social do País
B- Tal como o previsto no preâmbulo do Decreto-Lei 260/76, de 8 de abril e ao qual a B., S.A. está sujeita dispõe a definição dos princípios fundamentais a que devem obedecer os estatutos das empresas públicas, prevendo no entanto uma moldura entre o qual se admite a diferenciação nos estatutos de forma a permitir a sua adaptação às características de atividades de cada empresa.
C- Tem, na sua atividade bancária a B., S.A. linhas de crédito específicas para projetos de iniciativas do Estado sendo a aqui Recorrida o único banco envolvido, o que a diferencia das restantes.
D- As definições de gestão de prioridades da B., S.A. são em primeiro lugar os Contribuintes em, segundo lugar os depositantes e em terceiro lugar e último o acionista, ou seja, o Estado,
E- Ao contrário dos bancos privados que têm como principal prioridade de gestão criar valores para os acionistas.
F- O Princípio da Igualdade, abrange três vertentes sendo, uma delas a proibição de arbítrio, significando a imposição de igualdade de tratamento para situações iguais e a interdição de tratamento igual para situações desiguais, ou seja, tratar igual o que é igual; tratar diferentemente o que é diferente.
G - As diferenças entre a B., S.A. e os bancos privados surge na sua génese, na sua constituição, e na sua finalidade em relação às restantes instituições bancárias, tendo e reitera-se no seu objetivo prioritário o interesse público.
H- Esta diferenciação explica a não revogação da norma prevista no Art.º 9º nº 4 do DL 287/93 de 20 agosto, aquando a entrada em vigor da Lei nº 41/2013, de 26 junho, sendo que não há qualquer intenção do legislador ao não revogar esta norma, nomeadamente, pelo Artº 4º da Lei 41/2013 em beneficiar a B., S.A, mas “olhar” para esta com as diferenças que são notórias.
I- Não havendo naquela norma, nem da sua aplicação, qualquer violação do Direito Constitucional da Igualdade plasmado no Artº 13º da nossa Constituição da República
Nestes termos e nos melhores de Direito, V. Exas MUI, doutamente, decidirão requer a negação ao provimento do pedido de inconstitucional da norma contida no Art.º 9º nº 4 do Decreto-Lei 287/93 de 20 de agosto.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. A questão de constitucionalidade colocada nos presentes autos incide sobre o n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, que dispõe o seguinte:
«Os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela B., prevejam a existência de uma obrigação de que a B. seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades [ênfase acrescentado].»
Este preceito conjuga-se com o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil, que inclui no elenco dos títulos executivos a categoria residual «[d]os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva». A atribuição de força executiva significa que a lei dispensa a B., nas condições muito amplas nela previstas (qualquer ato ou contrato assinado pelo devedor), de propor ação declarativa contra o devedor. O documento assinado pelo devedor é, neste aspeto, um sucedâneo da sentença condenatória, eximindo o credor do ónus de demonstrar o seu crédito num processo declarativo, regulado pelos princípios do contraditório e da igualdade de armas, e sujeitando o devedor à imediata ablação do seu património, mormente através da penhora de bens. Sem prejuízo da real magnitude da diferença depender das particularidades do processo de execução, o certo é que o regime especial consagrado no n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, constitui, quando comparado com o regime-regra que faz depender a execução de prévio reconhecimento judicial, uma vantagem para o credor e uma desvantagem para o devedor.
De acordo com o quadro legal em vigor, os demais credores, designadamente as outras instituições de crédito que não a B., não gozam de tal vantagem, e os correlativos devedores não sofrem a desvantagem simétrica. Com efeito, ao contrário do «velho» Código de Processo Civil, na versão que resultou da aprovação do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, o «novo» Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, não atribui força executiva à generalidade dos documentos particulares assinados pelo devedor. A Proposta de Lei n.º 113/XII, que esteve na origem do diploma que aprovou o novo regime processual civil, esclarece os motivos da opção legislativa de restringir a classe dos títulos executivos:
«É conhecida a tendência verificada nas últimas décadas, com especial destaque para a reforma de 1995/1996, no sentido de reduzir os requisitos de exequibilidade dos documentos particulares e, com isso, permitir ao respetivo portador o imediato acesso à ação executiva. Se é certo que tal solução teve por efeito reduzir significativamente a instauração de ações declarativas, a experiência mostra que também implicou o aumento do risco de execuções injustas, risco esse potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório. Associando-se a isto uma realidade que, embora estranha ao processo civil, não pode ser ignorada, como seja o funcionamento um tanto desregrado do crédito ao consumo, suportado em documentos vários cuja conjugação é invocada para suportar a instauração de ações executivas, é fácil perceber que a discussão não havida na ação declarativa (dispensada a pretexto da existência de título executivo) acabará por eclodir mais à frente, em sede de oposição à execução. Afigura-se incontroverso o nexo entre o progressivo aumento do elenco de títulos executivos e o aumento exponencial de execuções, a grande maioria das quais não antecedida de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida de contraditório.»
Com a alteração legislativa, a norma sindicada nos presentes autos deixou de constituir uma redundância, por conter uma solução individual substancialmente idêntica à solução geral de atribuir força executiva aos documentos particulares assinados pelo devedor, para passar a consubstanciar um benefício específico da B. e um prejuízo específico para os respetivos devedores. Coloca-se, assim, a questão de saber se o tratamento privilegiado da B. relativamente aos demais credores, nomeadamente instituições de crédito, ou – o que é dizer o mesmo sob o ponto de vista simétrico – o tratamento prejudicial dos devedores da B. relativamente aos demais devedores, nomeadamente os devedores de instituições de crédito, ofende o princípio da igualdade.
7. Sobre o alcance do princípio geral da igualdade enquanto norma de controlo judicial do poder legislativo, escreveu-se no Acórdão n.º 409/99:
«O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. O princípio da igualdade enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio.»
Trata-se precisamente de sindicar a racionalidade da vantagem de que goza a B. e da desvantagem simétrica que sofrem os seus devedores, quando comparados com a classe geral dos credores e devedores, ou mesmo com a classe menos extensa das instituições de crédito e respetivos devedores. «Para responder a tal questão», afirmou-se no Acórdão n.º 195/2017:
«[É] indispensável que se determine qual o ponto de vista ou termo de comparação entre os sujeitos a tratamento diferenciado pela norma sindicada. Uma distinção legal é racional se for ditada pela própria finalidade da lei; atente-se na distinção entre automóveis ligeiros e pesados no regime que estabelece os limites de velocidade na circulação rodoviária. E será arbitrária se não tiver qualquer relação, ou uma relação minimamente comensurável, com a ratio legis, como seria o caso se a lei fixasse limites de velocidade diversos consoante a proveniência geográfica do construtor do automóvel. Chega-se a estas conclusões, como é bom de ver, através da determinação, ainda que implícita, de um termo de comparação entre as situações diferenciadas pela lei; no caso dos limites de velocidade, cuja finalidade é mitigar o risco de acidentes e dos danos emergentes da sua ocorrência, o tertium comparationis é o conjunto das propriedades dos veículos que os tornam mais ou menos perigosos e mais ou menos aptos a provocar danos em caso de acidente − contando-se entre tais propriedades a massa do veículo, mas não a origem do seu construtor.»
O termo de comparação entre os dois regimes – o regime geral que não dispensa os créditos titulados por documentos particulares assinados pelo devedor de reconhecimento judicial através da ação declarativa e o regime especial que atribui força executiva a documentos em igualdade de circunstâncias que titulem créditos da B. – não pode deixar de ser a idoneidade de tal documento como meio de acertamento do direito exequendo. Esta constitui a propriedade de um título em virtude da qual se pode concluir pela verosimilhança da situação jurídica nele documentada. A sentença condenatória é o título executivo paradigmático (artigo 703.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil), visto que a função essencial da ação declarativa é precisamente a de «acertar», «demonstrar» ou «verificar» a relação jurídica obrigacional, através de um processo de partes com igualdade de armas, decido por um terceiro imparcial cuja pronúncia, uma vez esgotadas as vias de recurso, faz caso julgado quanto ao objeto do litígio. O acertamento jurisdicional, como é bom de ver, constitui o ponto de chegada da ação declarativa e o ponto de partida da ação executiva.
A atribuição de força executiva a títulos diversos de sentenças condenatórias, designadamente documentos exarados ou autenticados por notário ou títulos de crédito (alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil), baseia-se no juízo de o legislador de que aqueles possuem características tais que a situação jurídica neles documentada é verosímil ao ponto de justificar a dispensa do acertamento comum no processo declarativo. Por outras palavras, entende-se, nesses casos, que o sacrifício das garantias processuais que a ação declarativa confere ao devedor é compensado pela maior celeridade na satisfação dos créditos, sendo certo que o devedor tem a possibilidade – mitigadora do efeito restritivo do regime – de, através da oposição à execução, discutir a existência do direito exequendo num processo declarativo que corre por apenso à acção executiva. O legislador goza seguramente, em todo este domínio, de uma ampla margem de conformação política, que encontra o seu limite na proibição constitucional da restrição excessiva dos direitos a um processo equitativo e a tutela jurisdicional efetiva.
Não é esta, porém, a questão que se coloca nos presentes autos. O problema de constitucionalidade identificado na decisão recorrida não se prende com a opção do legislador de, restringindo mais ou menos intensamente direitos fundamentais em matéria processual, atribuir força executiva a certa classe de títulos, abstraindo da qualidade dos respetivos sujeitos. Prende-se com o facto, que releva do princípio da igualdade, de ter atribuído a títulos de determinado sujeito a força executiva que as regras gerais negam à generalidade dos títulos da mesma natureza. Para que esta opção seja racional – para que não viole a proibição do arbítrio –, é necessário que se identifique uma qualidade do sujeito privilegiado pelo legislador em virtude da qual seja plausível afirmar-se que os documentos assinados pelo devedor que titulam os créditos daquele possuem uma vocação de acertamento diferenciada. Ora, tal qualidade não parece existir.
Vejamos.
8. Como bem assinala o Ministério Público, a solução legal contestada nos presentes autos tem a sua origem no artigo 61.º do Decreto-Lei n.º 48953, de 5 de abril de 1969, que aprovou um novo regime orgânico da então denominada B., Crédito e Previdência, definida no artigo 2.º como «uma pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, com património próprio, competindo-lhe o exercício das funções de instituto de crédito do Estado e a administração das instituições a que se referem os artigos 4.º [B. e Montepio de Servidores do Estado] e 5.º [Caixa Nacional de Crédito].» O artigo 3.º dispunha que, «[c]omo instituto de crédito do Estado, incumbe à B. colaborar na realização da política de crédito do Governo e, designadamente, no incentivo e mobilização da poupança para o financiamento do desenvolvimento económico e social, na ação reguladora dos mercados monetário e financeiro e na distribuição seletiva do crédito.» E a respeito dos funcionários da B., preceituava o n.º 2 do artigo 31.º que, «[o] referido pessoal continua sujeito ao regime jurídico do funcionalismo público, com as modificações exigidas pela natureza específica da atividade da B. como instituição de crédito, de harmonia com o disposto no presente diploma e nos restantes preceitos especialmente aplicáveis ao estabelecimento.»
Entretanto, o diploma em que se insere a norma cuja aplicação foi recusada na decisão recorrida – o Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto – transformou a B. numa sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, com o propósito expresso de a colocar em igualdade de circunstâncias com as demais instituições de crédito que operam no sistema financeiro português.
O preâmbulo do diploma é esclarecedor a esse respeito:
«Diversas e significativas modificações verificadas no sistema financeiro português desde a data da publicação dos acuais diplomas orgânicos e a alteração dos condicionalismos interno e externo em que a instituição exerce a sua atividade recomendam agora a sua profunda revisão.
Atendo-nos, unicamente, aos eventos mais marcantes dos últimos anos, impõe-se, em primeiro lugar, uma referência à adesão de Portugal às Comunidades Europeias, com a consequente aplicação das regras do direito comunitário.
No plano interno, o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, veio equiparar a B. aos bancos no que respeita às atividades que está autorizada a exercer.
Todo o circunstancialismo referido aponta deste modo para a sujeição da B. a um regime de direito privado ou, mais rigorosamente, para a aplicação à instituição de regras idênticas às que regem as empresas privadas do sector.
O mesmo objetivo de aproximação da B. às restantes empresas do sector levou à adoção da forma de sociedade anónima.
Ao contrário do que se estabeleceu noutros casos, considerou-se no caso da B., dada a natureza da atividade exercida, a posição e o papel que a empresa ocupa no mesmo sector, que deveria ser apenas o Estado, e não qualquer outra pessoa coletiva de direito público, o detentor do capital.
No que respeita ao pessoal, o novo regime consagra a aplicação à B. do regime jurídico do contrato individual de trabalho, sem prejuízo, à semelhança de solução adotada em casos idênticos, da possibilidade concedida aos trabalhadores atualmente ao serviço da instituição de optarem pela manutenção do regime a que estavam sujeitos.»
Atenta a natureza que a lei então atribuiu à B., aproximando-a das demais instituições de crédito, submetendo-a a regras de direito privado e aplicando ao seu pessoal o regime do contrato individual de trabalho, nada justifica a conclusão de que os documentos abrangidos pelo artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, possuem um grau diferenciado de idoneidade de acertamento dos créditos neles representados.
A B. alega que é ainda uma empresa pública destinada a servir o interesse público, ao contrário das instituições de crédito privadas, que «têm como prioridade de gestão criar valor para os acionistas». Porém, não se vê de que modo tal influi no juízo sobre a maior ou menor vocação de acertamento dos documentos que titulam os seus créditos, o tertium comparationis relevante para se determinar se a solução legal é arbitrária. Na verdade, decisiva não é a finalidade prosseguida pela B., mas a forma escolhida para o efeito; sob esse ponto de vista, nada distingue os documentos a que se refere o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, de documentos particulares homólogos detidos por outras instituições de crédito, e aos quais o legislador processual civil veio a negar, com a aprovação do «novo código», força executiva.
Sublinhe-se, por último, que os documentos aqui em causa carecem da força probatória que decorreria do reconhecimento de uma especial fé pública em que estivessem investidos os funcionários da B. que os outorgam – fé pública essa que poderia justificar uma analogia com os documentos autênticos ou autenticados referidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil, dado que a exequibilidade destes, por comparação com os equivalentes documentos particulares simples constitutivos de obrigações e assinados pelo devedor, aos quais atualmente não é reconhecida exequibilidade, radica precisamente numa especial qualidade do sujeito que os outorga ou que os certifica.
Ora, para que se pudesse falar de fé pública – ou qualidade equivalente – seria indispensável que a mesma integrasse o estatuto dos funcionários da B.. Não é esse o caso: o estatuto dos trabalhadores da B. não os distingue, nos termos da lei, dos trabalhadores das instituições de crédito privadas. Do facto de a B., enquanto sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, estar adstrita à prossecução do interesse público, não se segue que os seus funcionários, designadamente aqueles que intervêm na outorga dos documentos a que se refere o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, gozem de uma qualquer fé pública, suscetível de comunicar aos contratos abrangidos pela norma sindicada um grau de acertamento do direito exequendo que justifique a sua exequibilidade imediata, em contraste com contratos da mesma natureza celebrados por outros credores, designadamente as demais instituições de crédito.
Por tudo quanto se disse, resta concluir que a norma sindicada nos presentes autos é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição.
9. Tratando-se de recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, não há lugar ao pagamento de custas, nos termos do artigo 84.º, n.º 1, do mesmo diploma.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição, a norma do n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, segundo a qual se revestem de força executiva os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela B., S.A., prevejam a existência de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras formalidades.
b) Negar provimento ao recurso.
Sem custas, por não serem devidas.
Lisboa, 13 de novembro de 2019 - Gonçalo Almeida Ribeiro - Maria José Rangel de Mesquita - Joana Fernandes Costa - Lino Rodrigues Ribeiro - João Pedro Caupers