ACÓRDÃO Nº 543/2019
Processo n.º 392/18
1.ª Secção
Relator: Conselheiro João Pedro Caupers
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
Por Acórdão de 26 de abril de 2017, o pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol confirmou, em sede de recurso, a decisão de 14 de março de 2017, do mesmo órgão disciplinar, que aplicou ao A., SAD, as seguintes sanções disciplinares: a) sanção principal de repreensão e sanção acessória de multa, no montante de €306,00, pela prática da infração prevista e punida no artigo 119.º, n.º 2, do Regulamento de Disciplina das Competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional – RDLPFP (atraso no início ou reinício dos jogos); b) sanção de multa, no montante de €765,00, pela prática da infração prevista e punida no artigo 127.º, n.º 1, do mesmo Regulamento Disciplinar (inobservância de outros deveres); c) sanção de multa, no montante de €2.296,00, pela prática da infração prevista e punida no artigo 187.º, n.º 1, alínea b), do mesmo regulamento (comportamento incorreto do público); e d) sanção de multa, no montante de €765,00, pela prática da infração prevista e punida na alínea a) do n.º 1 deste último preceito regulamentar (comportamento incorreto do público).
A referida sociedade desportiva, inconformada, recorreu desse acórdão para o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), que fixou o valor da causa em €3.827,00. Posteriormente, o colégio arbitral constituído para a apreciação do recurso decidiu, por Acórdão de 8 de setembro de 2017, julgar procedente o pedido de anulação da multa aplicada ao abrigo do artigo 187.º, n.º 1, alínea a), do RDLPFP, e parcialmente procedente o pedido de anulação da multa aplicada ao abrigo do artigo 127.º do RDLPFP, cujo valor fixou em cinco unidades de conta, julgando improcedente o demais peticionado. Considerando «o valor da causa fixado no despacho de 27/06/2017 e a procedência parcial [do pedido]», decidiu-se, ainda, condenar as partes no «pagamento em partes iguais das custas do processo no total de 4150,00 euros, sendo 1500,00 euros a título de taxa de arbitragem e 2650 euros a título de encargos do processo (que incluem honorários dos árbitros e encargos administrativos), montantes a que acresce IVA à taxa legal».
O A., SAD, ainda inconformado, recorreu da decisão final do TAD para o Tribunal Central Administrativo Sul, ao abrigo do artigo 8.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, na redação introduzida pela Lei n.º 33/2014, de 16 de junho, que aprovou a Lei do TAD, e dos artigos 144.º e 147.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, invocando, além do mais, a inconstitucionalidade das normas do artigo 76.º da referida Lei n.º 74/2013 e do artigo 2.º, n.º 5, da Portaria n.º 301/2015, de 22 de setembro, em conjugação com o disposto no Anexo I deste último diploma, «na medida em que conduzem ao apuramento de custas processuais substancialmente mais elevadas em sede de arbitragem necessária do que as decorrentes do Regulamento das Custas Processuais (vide artigo 6.º e tabela I)». A seu ver, introduz-se desse modo «uma clara discriminação entre os administrados que se vêem forçados, por imposição legal, a recorrer à jurisdição do TAD e os demais cidadãos»; «essa diferenciação infundada ofende clamorosamente o princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), porque impõe injustificadamente a determinados administrados uma justiça mais cara dos que aos demais, nessa medida dificultando também o exercício do direito de acesso a um tribunal (artigo 20.º CRP)».
Por Acórdão de 15 de fevereiro de 2018, o Tribunal Central Administrativo Sul concedeu parcial provimento ao recurso, decidindo, além do mais, recusar a aplicação das normas do artigo 2.º, n.ºs 1 e 4, da Portaria n.º 301/2015, e da primeira linha da tabela do seu Anexo I, com fundamento em violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e do acesso à justiça.
O Ministério Público interpôs desta última decisão recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), que foi admitido pelo tribunal a quo. Nas alegações que apresentou, já nesta instância, concluiu pela inconstitucionalidade das normas legais a que o Tribunal recorrido recusou aplicação, por conduzirem a «um montante [de custas] manifestamente desproporcionado», em face da «natureza e complexidade do processo, bem como, particularmente, em relação ao valor da causa e à utilidade que da arbitragem retiram os que nela litigaram», violando, assim, o princípio da proporcionalidade, tal como julgado na decisão recorrida. Por tal razão, pugna pela improcedência do recurso e confirmação do julgado.
O A., SAD, e a Federação Portuguesa de Futebol, notificadas para o efeito, não apresentaram contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
Como relatado, o A., SAD, recorrente no processo base, arguiu perante o Tribunal Central Administrativo Sul a inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição), das normas do artigo 76.º da Lei do TAD e do artigo 2.º, n.º 5, da Portaria n.º 301/2015, conjugadas com o Anexo I desta portaria, «na medida em que conduzem ao apuramento de custas processuais substancialmente mais elevadas em sede de arbitragem necessária do que as decorrentes do Regulamento das Custas Processuais».
O tribunal, confrontado com tal questão de inconstitucionalidade, decidiu recusar a aplicação, com fundamento em violação do princípio da proporcionalidade e do direito de acesso aos tribunais, não das referidas normas legais e regulamentares, mas das normas do artigo 2.º, n.ºs 1 e 4, da Portaria n.º 301/2015, conjugadas com a primeira linha da tabela do seu Anexo I.
Este juízo final de inconstitucionalidade, aproveitando embora ao arguente no plano prático, desvia-se, assim, da arguição de inconstitucionalidade, quer no que respeita ao objeto, quer no que respeita ao parâmetro de constitucionalidade. Nesta perspetiva, poderá configurar uma decisão implícita de não inconstitucionalidade das normas do artigo 76.º da Lei do TAD e do artigo 2.º, n.º 5, da Portaria n.º 301/2015, conjugadas com o Anexo I deste último diploma, a que o mesmo clube desportivo dirigira a alegação de inconstitucionalidade.
Ora, não tendo o A., SAD, interposto recurso de constitucionalidade dessa decisão, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, não pode o Tribunal Constitucional conhecer da específica questão de inconstitucionalidade por si suscitada nos autos, que não corresponde, em rigor, àquela que constitui objeto do recurso do Ministério Público.
Face a este recurso – o único interposto nos autos -, a presente pronúncia recairá, assim, exclusivamente, sobre a questão da inconstitucionalidade das normas do artigo 2.º, n.ºs 1 e 4, da Portaria n.º 301/2015, conjugadas com o disposto na primeira linha da Tabela constante do Anexo I, à luz do princípio constitucional da proporcionalidade e do direito de acesso aos tribunais, sem prejuízo do disposto no artigo 79.º-C da LTC.
2. Apreciação do mérito do recurso
2.1. A Portaria n.º 301/2015, em que se inserem as normas julgadas inconstitucionais pelo Tribunal a quo, foi aprovada ao abrigo, designadamente, do artigo 76.º da Lei n.º 74/2013, alterada pela Lei n.º 33/2014, que criou o Tribunal Arbitral do Desporto, e tem por objeto, para o que agora releva, o estabelecimento da taxa de arbitragem e dos encargos do processo arbitral no âmbito da arbitragem necessária (artigo 1.º).
O referido artigo 76.º da Lei n.º 74/2013 enquadra-se no título da lei especificamente dedicado às «custas processuais no âmbito da arbitragem necessária» (título IV), isto é, às custas devidas nos processos que respeitam a «litígios emergentes dos atos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina» (artigo 4.º, n.º 1), e nos processos que têm origem em recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem (artigo 5.º).
Relembre-se que, por opção do legislador, inovatoriamente consagrada no ordenamento jurídico português a partir da entrada em vigor da Lei n.º 74/2013, a competência para apreciar e decidir essa particular categoria de litígios, que antes pertencia aos tribunais estaduais (administrativos), foi transferida para os colégios arbitrais que funcionam no âmbito do Tribunal Arbitral do Desporto. Deste modo, o recurso a este tribunal arbitral por quem queira impugnar a validade dos atos praticados pelas entidades desportivas, no uso de poderes públicos delegados pelo Estado, não decorre de uma opção livre do particular, mas de uma imposição do legislador (arbitragem necessária). Nesta medida se distingue do sistema de arbitragem voluntária - igualmente consagrado na citada lei para os demais litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou sejam relacionados com a prática do desporto (artigos 1.º, n.º 2, e 6.º, n.º 1) -, sistema que, participando da matriz originariamente privada da arbitragem, reconhece desde logo aos litigantes a faculdade de escolher entre o recurso aos tribunais do Estado e o recurso ao Tribunal Arbitral do Desporto.
Em consonância com a génese pública da arbitragem necessária, é o legislador, e não as partes do litígio e os árbitros, quem determina o valor das custas dos respetivos processos, vigorando, nesta matéria, as regras dos artigos 76.º a 80.º da Lei n.º 74/2013, e da Portaria n.º 301/2015, na redação introduzida pela Portaria n.º 314/2017, 24 de outubro.
O artigo 76.º da Lei do TAD, ao abrigo do qual foi aprovada a portaria ora sob sindicância (parcial), integra no conceito de custas processuais a «taxa de arbitragem» e os «encargos do processo arbitral» (n.º 1).
De acordo com o mesmo normativo legal, «a taxa de arbitragem corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada em função do valor da causa, por portaria dos membros do Governo responsáveis pela área da justiça e do desporto» (n.º 2). Por seu lado, os encargos do processo arbitral incluem «todas as despesas resultantes da condução do mesmo, designadamente os honorários dos árbitros e as despesas incorridas com a produção de prova, bem como as demais despesas ordenadas pelos árbitros» (n.º 3).
Integrando o quadro legal diretamente aplicável às custas do processo arbitral necessário, o n.º 3 do artigo 77.º da Lei do TAD determina, na parte relevante, que a taxa de arbitragem é integralmente suportada pelas partes (e por cada um dos contrainteressados, se os houver), devendo ser paga por transferência para a conta bancária do TAD aquando da apresentação do requerimento inicial e da contestação (e da pronúncia dos contrainteressados). A fixação do montante das custas finais do processo arbitral e a eventual repartição pelas partes deve ser feita na decisão arbitral (n.º 4), devendo cada uma delas pagar, no prazo de dez dias contado da respetiva notificação, as quantias que eventualmente acrescem à taxa já paga (n.º 5). Finalmente, cumpre registar que as custas processuais devidas pelos processos arbitrais (necessários ou voluntários) constituem receitas próprias do TAD, definido por lei como entidade jurisdicional independente, quer dos órgãos da administração pública do desporto, quer dos organismos que integram o sistema desportivo, e dotada de autonomia administrativa e financeira (artigo 1.º, n.ºs 1 e 3, da Lei do TAD).
Apesar da alusão restrita à taxa de arbitragem constante do n.º 2 do artigo 76.º da Lei do TAD, certo é que a Portaria n.º 301/2015 fixou, não apenas o respetivo valor (a pagar por cada sujeito processual no momento da apresentação do respetivo articulado), mas também o montante dos encargos do processo arbitral (a pagar após a prolação da decisão final), autonomizando, neste âmbito, as quantias devidas a título de honorários dos árbitros e a título de encargos administrativos, em conformidade com o disposto no n.º 3 do citado artigo 76.º (cfr. Anexo I).
Para todas as parcelas das custas processuais, a Portaria n.º 301/2015 estabeleceu, como critério de determinação das quantias devidas a esse título, o do valor da causa, adotando, assim, com tal amplitude, no domínio da arbitragem necessária, um dos principais factores de determinação do montante da taxa de justiça devida nos processos judiciais (cfr. artigos 529.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, e 6.º do Regulamento das Custas Processuais - RCP).
Com efeito, sob a epígrafe «taxa de arbitragem no âmbito da arbitragem necessária», o artigo 2.º da mesma portaria, na redação introduzida pela Portaria n.º 314/2017, determina o seguinte:
«1- A taxa de arbitragem necessária corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada pelo presidente do Tribunal Arbitral do Desporto em função do valor da causa, nos termos do anexo I à presente portaria que dela faz parte integrante.
2-Compete ao tribunal arbitral definir o valor da causa, nos termos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
3- Se a arbitragem terminar antes da sentença final, o Presidente do Tribunal Arbitral do Desporto pode reduzir a taxa de arbitragem tomando em consideração a fase em que o processo arbitral foi encerrado ou qualquer circunstância que considere relevante.
4- São encargos do processo arbitral todas as despesas resultantes da condução do mesmo, designadamente os honorários dos árbitros e as despesas incorridas com a produção de prova, bem como as demais despesas ordenadas pelos árbitros.
5- A fixação do montante das custas finais do processo arbitral e a eventual repartição pelas partes é efetuada na decisão arbitral que vier a ser proferida pelo tribunal arbitral, em função do valor da causa, nos termos do anexo I».
Em conformidade, a tabela constante do Anexo I da Portaria n.º 301/2015, na redação introduzida pela Portaria n.º 314/2017, fixa os montantes respeitantes à taxa de arbitragem e aos encargos do processo arbitral em função do valor da causa, estabelecendo, para o efeito, onze escalões: o primeiro escalão aplica-se aos processos arbitrais cujo valor não ultrapassa os €30.000,00, a que corresponde uma taxa fixa de arbitragem de €750,00, honorários coletivos dos árbitros no montante de €2.500,00 e encargos administrativos no montante de €75,00, sendo a taxa de arbitragem e os encargos administrativos da responsabilidade individual de cada sujeito processual; o último escalão integra os processos cujo valor se situa entre os €450.000,01 e os €500.000,00, a que se aplica uma taxa fixa de arbitragem de €5000,00, honorários coletivos dos árbitros de €30.000.00 e encargos administrativos de €500,00. Para além dos €500.000,00, ao valor da taxa de arbitragem, dos honorários dos árbitros e dos encargos administrativos acresce por cada €50.000,00 ou fração, €500,00, €5000,00 e €50,00, respetivamente. Porém, se o valor da causa atingir ou ultrapassar os €2000.000,00 a taxa de arbitragem e os encargos do processo arbitral passam a ter um valor fixo, não podendo ultrapassar os montantes apurados em função da regra de majoração até aí aplicada.
A decisão de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal a quo, ora em reapreciação, tem precisamente por objeto as normas do artigo 2.º, nºs. 1 e 5, da Portaria n.º 301/2015, acima destacadas em itálico, na parte em que, por remissão para o disposto no primeiro escalão da tabela constante do seu Anexo I, fixam em €750,00, €2500,00 e €75,00, respetivamente, a taxa de arbitragem, os honorários coletivos dos árbitros e os encargos administrativos devidos em processos arbitrais de valor igual ou inferior a €30.000,00.
Defende o Tribunal recorrido, por remissão para o acórdão do TCA Sul de 6 de dezembro de 2017, proferido no processo n.º 155/17.5BCLSB, que «há ali um condicionamento excessivo e injustificado do acesso aos tribunais por via tributária ou paratributária, por causa do elevado valor das custas processuais, que podem ser concretamente – e aqui foram – muito superiores ao valor do processo, processo que tem natureza arbitral ou forçada». Por isso, conclui que, «[t]endo aqui – numa arbitragem forçada – aplicado tais regras desproporcionais e injustas, resultando num valor de custas processuais muitíssimo superior ao valor processual e num valor relativamente elevado tendo presente o valor da causa, o colégio arbitral do TAD violou, no caso concreto, os princípios constitucionais da proporcionalidade e do acesso à justiça».
Vejamos se assim é.
2.2. Como é sabido, o Tribunal Constitucional foi chamado a apreciar, no Acórdão n.º 230/2013, proferido em processo de fiscalização preventiva, a inconstitucionalidade da opção de política legislativa, consagrada na norma constante da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 8.º, conjugada com as normas dos artigos 4.º e 5.º, todos do Anexo ao Decreto n.º 128/XII, de reservar exclusivamente ao TAD a competência para julgar os litígios emergentes dos atos praticados pelas federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no exercício dos poderes públicos que lhe foram transferidos pelo Estado através da atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva, sem possibilidade de recurso para os tribunais estaduais.
Estando exclusivamente em causa nesse aresto o problema da irrecorribilidade para os tribunais do Estado das decisões proferidas pelo TAD no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária, o Tribunal Constitucional não deixou, então, de abordar a questão prévia da própria admissibilidade constitucional da criação de tribunais arbitrais necessários, tendo por referência fundamental o disposto nos artigos 20.º, 202.º, n.º 4, e 209.º, n.º 2, da Constituição.
A este respeito, lê-se no Acórdão n.º 230/13 o seguinte:
«A Constituição prescreve, a propósito da função jurisdicional, que a lei poderá institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos (artigo 202º, nº 4), e faz expressa referência, no artigo 209º, n.º 2, aos tribunais arbitrais e aos julgados de paz.
Qualquer litígio que não respeite a direitos indisponíveis pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros por si designados, podendo a convenção de arbitragem ter por objeto um litígio atual, ainda que se encontre afeto a um tribunal judicial (compromisso arbitral), ou litígios eventuais emergentes de uma determinada relação jurídica contratual ou extracontratual (cláusula compromissória) (artigo 1º, n.º 3, da LAV).
Os tribunais arbitrais estão previstos como uma categoria autónoma de tribunais e encontram-se submetidos a um estatuto funcional similar ao dos tribunais judiciais, e as suas decisões têm natureza jurisdicional, mas não são órgãos estaduais, correspondendo a sua atividade a um verdadeiro exercício privado da função jurisdicional (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/86).
Mais problemática é a questão de saber se a cobertura constitucional dos tribunais arbitrais abrange apenas os tribunais voluntários (isto é, os instituídos por vontade dos interessados) ou também os tribunais necessários (ou seja, os impostos por lei), visto que estes implicam que os litigantes fiquem impedidos de recorrer diretamente aos tribunais ordinários que seriam competentes, podendo, por isso, pôr em causa não apenas o direito de acesso aos tribunais, mas também o princípio da igualdade (expressando esta dúvida, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4ª edição, Coimbra, pág. 551; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra, 2007, pág. 17).
Todavia, o Tribunal Constitucional tem extraído do expresso reconhecimento constitucional da possibilidade de existirem tribunais arbitrais, o entendimento de que, não só os cidadãos podem, no exercício da sua autonomia de vontade, constituir tribunais arbitrais para resolução de determinados litígios, como o próprio legislador pode criá-los para o julgamento de determinada categoria de litígios, impondo aos cidadãos neles implicados o recurso necessário a essa via de composição jurisdicional de conflitos (acórdãos nºs. 52/92, 757/95 e 262/98).
No entanto, a arbitragem necessária não releva da autonomia de vontade das partes e, nesse plano, apresenta contornos diversos dos simples tribunais arbitrais voluntários. Neste último caso, o litígio é cometido pelos interessados à decisão de árbitros, mediante uma convenção de arbitragem, desde que estejam apenas em causa interesses de natureza patrimonial ou as partes possam transacionar sobre o direito controvertido. A função jurisdicional dos tribunais arbitrais tem aqui natureza privada, na medida em que o seu fundamento imediato radica na liberdade contratual e na autonomia privada (PEDRO GONÇALVES, ob. cit., págs. 566 e 569). Isso explica que as partes possam determinar, por acordo, que o julgamento seja feito segundo o direito constituído ou segundo a equidade, ou por apelo à composição do litígio na base do equilíbrio dos interesses em jogo, e que só haja lugar a recurso da decisão arbitral se as partes tiverem previsto expressamente essa possibilidade e a causa não tiver sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável (artigo 39º da LAV).
Ao contrário, se por lei especial o litígio for submetido a arbitragem necessária, a decisão de recorrer à jurisdição arbitral não se baseia num negócio jurídico celebrado entre as partes, mas no ato legislativo que impõe essa forma de composição do litígio, ficando os interessados impedidos de aceder quer à jurisdição estadual, quer à arbitragem voluntária» - itálico acrescentado.
Considerou-se, assim, que, fora das matérias constitucionalmente sujeitas a uma reserva de jurisdição pública, também o Estado, no exercício da sua liberdade de avaliação do interesse público e de escolha das medidas de política legislativa que melhor garantam a sua prossecução, pode constituir tribunais arbitrais para o julgamento de determinado tipo de litígios e impor aos cidadãos o recurso a tais instâncias jurisdicionais. No caso do TAD, as razões de interesse público concretamente invocadas para a sua constituição prendem-se com a «necessidade de o desporto possuir um mecanismo alternativo de resolução de litígios que se coadune com as suas especificidades de justiça célere e especializada» (cfr. exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 84/XII, que esteve na origem da Lei n.º 74/2013), configurando, pois, uma medida de adequação que, sendo imposta por razões de defesa e promoção do sistema desportivo (artigo 79.º da Constituição), aproveita diretamente àqueles que operam no seu seio.
O julgamento de inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso aos tribunais e do princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição), proferido pelo Tribunal Constitucional no citado acórdão e, posteriormente, no Acórdão n.º 781/2013, não recaiu, pois, sobre a opção legal de impor às partes o recurso ao TAD para resolução dos litígios abrangidos pela sua competência arbitral necessária, mas apenas sobre a solução que, nas sucessivas formulações normativas então apreciadas, negava às mesmas partes o direito de sindicar o mérito da decisão arbitral junto dos tribunais do Estado, julgados indispensáveis à efetivação da garantia consagrada nos mencionados preceitos constitucionais.
É, pois, no pressuposto da conformidade constitucional da opção de fundo tomada pelo legislador no âmbito do sistema desportivo de atribuir ao TAD competência exclusiva para controlar, em primeira apreciação (instância), a legalidade de atos praticados pelas federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no exercício de poderes públicos – pressuposto não controvertido nos presentes autos –, que se devem apreciar todos os aspetos normativos do respetivo regime jurídico, mormente aquele que respeita à conformação normativa das custas dos processos que necessariamente devem correr termos nesse tribunal arbitral.
Dando por assente esse dado jurídico-constitucional, o da legitimidade dos tribunais arbitrais necessários, importa destacar da transcrita jurisprudência duas ideias que, sendo fruto de uma reflexão iniciada muito antes no Tribunal Constitucional sobre a temática geral dos tribunais arbitrais, encontrou na figura recém-criada do TAD, que cruza características orgânicas e funcionais de natureza pública e privada, particular evidência: i) a ideia de que, na perspetiva da Constituição, os tribunais arbitrais, voluntários e necessários, são «verdadeiros tribunais»; ii) e a ideia de que, sendo-o, não são, em determinados aspetos, «tribunais como os outros» (Acórdão n.º 230/1986).
2.3. A primeira asserção assenta no reconhecimento da natureza materialmente jurisdicional das funções exercidas pelos tribunais arbitrais e no estatuto de independência e imparcialidade dos árbitros. Verificando-se estes dois traços, um relacionado com o tipo de atividade exercida, essencialmente dirigida à composição de litígios (objeto), e outro respeitante às características exigíveis a que tem a seu cargo o exercício dessa atividade (sujeito), é possível concluir que estamos perante um verdadeiro tribunal, não relevando para efeitos constitucionais a natureza pública ou privada da entidade que reúne estruturalmente essa dupla dimensão orgânica e funcional.
Como se afirma no Acórdão n.º 230/86, «embora a administração da justiça caiba em exclusivo aos tribunais, tal não significa que esse exclusivo respeite apenas aos tribunais estaduais; abrange também os tribunais arbitrais que, não podendo considerar-se órgãos de soberania, são verdadeiros tribunais» (cfr, no mesmo sentido, Acórdãos n.ºs 419/87, 33/88, 98/88, 250/96 e 465/97).
Ora, sendo os tribunais arbitrais «verdadeiros tribunais» não se lhes pode deixar de aplicar também o regime garantístico consagrado no artigo 20.º da Constituição, nos aspetos que possam implicar com o exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos e, desde logo, com o próprio direito de acesso aos tribunais aí consagrado.
Em desenvolvimento desse quadro garantístico comum, a Lei da Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, enuncia uma série de princípios de estruturação do processo arbitral e obrigações dirigidas aos árbitros, na apreciação e decisão do litígio submetido à sua apreciação, que têm no direito fundamental ao processo equitativo a sua fonte de legitimação material – princípios e obrigações cuja violação constitui fundamento de anulação da decisão arbitral invocável perante os tribunais estaduais [cfr., designadamente, artigos 30.º, n.º 1, 42.º, n.ºs 1 e 3, e 46.º, n.º 2, alíneas ii) e vi)].
E é também nessa perspetiva que devem ser interpretadas as normas que, no âmbito da arbitragem cometida ao TAD, impõem na tramitação dos respetivos processos a observância dos valores da igualdade e do contraditório garantidos pelo princípio constitucional do processo equitativo (cfr. artigo 34.º da Lei n.º 74/2013).
O princípio da equivalência constitucional dos tribunais arbitrais e tribunais estaduais, na perspetiva das garantias dos cidadãos, sendo aplicável à arbitragem voluntária, não sofre desvios quando aplicado aos tribunais arbitrais necessários, antes pelo contrário. Como vimos, a criação destes últimos decorre de um ato do poder público, que simultaneamente impõe aos particulares o recurso necessário a essa via de composição de conflitos, o que materialmente representa uma transferência para o domínio privado de uma função que originariamente pertence ao Estado – a de administrar a justiça (artigo 202.º, n.º 1, da Constituição).
Ora, tratando-se de uma obrigação do Estado a que corresponde um direito fundamental dos cidadãos (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição), parece claro que a regulamentação legal dos processos que correm termos nos tribunais arbitrais necessários deve estar sujeita aos mesmos princípios constitucionais que regem as normas respeitantes aos processos judiciais, competindo ao Estado assegurar, em qualquer caso, os valores tutelados pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição.
Assim sendo, tal como sucede com os tribunais do Estado, o acesso aos tribunais arbitrais por este criados não pode ser denegado por insuficiência de meios económicos (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição) e as custas dos processos arbitrais que aí correm termos não devem atingir valores tais que inviabilizem na prática o acesso ao serviço de justiça, impondo-se também neste domínio o respeito pelo princípio constitucional da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).
A ideia de que o padrão constitucional de controlo dos valores de tributação fixados pelo legislador em relação ao serviço de justiça não sofre substanciais variações em função da natureza da entidade competente para a sua prestação foi recentemente sublinhada, ainda que em diferente contexto normativo, no Acórdão n.º 803/2017. Estava em causa nesta decisão a inconstitucionalidade de norma, ou interpretação, que estabelecia para os honorários notariais devidos em processo de inventário de valor superior a €275.000,00 acréscimos tributários crescentes por cada €25.000,00 ou fração, sem qualquer limite máximo, não permitindo que o montante dos honorários fosse fixado de acordo com a complexidade e tempo gasto.
Considerou o Tribunal Constitucional que, havendo similitude entre a tributação processual a título de taxa de justiça e a fixação de honorários notariais, as normas que fixam o valor destes últimos «devem ser orientadas pelos mesmos critérios jurídico-constitucionais que determinam o valor das custas judiciais», pois que «do ponto de vista dos interessados, o facto de o processo de inventário ter, por decisão do legislador democrático, sido transferido dos Tribunais para os Cartórios Notariais, não tem qualquer consequência na natureza dos custos que lhes cabem; mantém-se uma contraprestação pela utilização dos serviços de justiça – uma taxa – independentemente da configuração dos poderes públicos materialmente conferidos ao notário». Neste quadro de argumentação, concluiu-se que, «não importando a desjudicialização do processo de inventário a modificação da sua substância», era de convocar a jurisprudência constitucional desenvolvida acerca das normas de fixação da taxa de justiça, designadamente no que respeita ao controlo dos concretos resultados tributários produzidos por aplicação de critérios exclusivamente assentes no valor da ação.
Afigura-se que idêntica solução se impõe, por maioria de razão, em relação aos tribunais arbitrais instituídos pelo Estado, como é o caso do TAD, os quais não só exercem uma atividade materialmente jurisdicional, como assumem do ponto de vista orgânico-funcional uma estrutura global equivalente à dos tribunais estaduais.
Na verdade, tanto as custas dos processos judiciais como as custas dos processos arbitrais (necessários) condicionam o exercício do direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º da Constituição), categoria que, por expressa determinação constitucional, inclui os tribunais estaduais e os tribunais arbitrais (artigo 209.º, n.ºs 1 e 2, da mesma Lei Fundamental), cuja atividade material participa dessa teleologia garantística comum. Por isso, o critério de determinação do respetivo valor não pode conduzir, num e noutro caso, a montantes manifestamente desproporcionados à complexidade da causa e à utilidade que as partes dela retiram, sob pena de violação das exigências de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido restrito também aplicáveis neste domínio normativo.
Por isso, é de aplicar às custas dos processos arbitrais necessários o essencial da parametrização constitucional que a jurisprudência constitucional tem desenvolvido em matéria de custas judiciais.
2.4. Registando as principais linhas de força dessa jurisprudência, com interesse para o objeto do presente recurso, cumpre salientar que o Tribunal Constitucional nunca pôs em causa a constitucionalidade de soluções de tributação exclusivamente assentes no valor da causa, como se sublinha no Acórdão n.º 803/2017. Tais soluções são ditadas pelo legislador democraticamente eleito, no exercício da liberdade de conformação normativa que lhe assiste também em matéria de fixação do preço do serviço público de justiça, sendo certo que a Constituição não consagra, neste domínio, uma regra de gratuidade, nem fixa valores de cobrança. Indispensável é que a aplicação de um tal critério de determinação do montante de custas não conduza à cobrança de taxas de justiça manifestamente desproporcionais ao custo do concreto serviço de justiça prestado, atento o grau de complexidade do processo judicial e a utilidade que o cidadão dele retirou, sob pena de descaracterização da natureza necessariamente bilateral e sinalagmática desse específico meio de tributação.
É, pois, também a esta luz que se deverá aferir a inconstitucionalidade das normas a que o Tribunal a quo recusou aplicação.
Com uma ressalva, porém, que se relaciona com a segunda ideia fundamental acima destacada - a de que os tribunais arbitrais, sendo tribunais, não são, em certos aspetos, tribunais «como os outros», o que decorre essencialmente do facto de «não [serem] órgãos estaduais, correspondendo a sua atividade a um verdadeiro exercício privado da função jurisdicional», como se esclarece no Acórdão n.º 230/13.
Com efeito, nos tribunais arbitrais, sejam eles voluntariamente constituídos pelas partes, sejam eles instituídos pelo Estado, a decisão do litígio é cometida a árbitros, os quais, embora exerçam uma atividade materialmente jurisdicional, não têm o estatuto de juízes de carreira, nem fazem parte da organização do poder político do Estado.
A criação do TAD, tal como as medidas previstas designadamente na Lei n.º 6/2011, de 10 de março, que sujeitou a arbitragem necessária os conflitos de consumo entre os utilizadores e os prestadores de serviços públicos essenciais, e na Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, entretanto revogada, que submeteu à arbitragem necessária os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial relacionados com medicamentos de referência e medicamentos genéricos, integram-se num fenómeno mais geral de «desintegração do carácter estadual dos tribunais» (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, pág. 16), e constituem sinais de «erosão da estadualidade enquanto característica distintiva do poder judicial» (Paulo Rangel, Repensar o Poder Judicial, pp. 291-292).
Em todos esses casos, está em causa a prestação de um serviço público de justiça por entidades (árbitros) que, mesmo quando inseridos num centro de arbitragem institucionalizado pelo Estado, têm natureza privada. Por isso, embora reconhecendo que «o tribunal arbitral, como tribunal que é, faz parte da própria garantia de acesso ao direito e aos tribunais» (Acórdãos n.ºs 250/96 e 506/96), nunca o Tribunal Constitucional defendeu que a garantia constitucional consagrada nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição, se esgota com a intervenção de tribunais arbitrais. Como resulta do teor das declarações de voto apostas nos Acórdãos n.ºs 230/13 e 781/13, o julgamento de inconstitucionalidade que aí fez vencimento parece revelar o entendimento contrário, o de que os tribunais do Estado são o último baluarte de defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não sendo constitucionalmente aceitáveis soluções legais imperativas que proíbam em absoluto o acesso à justiça pública para esse efeito.
Ora, estando em causa nos presentes autos o problema da inconstitucionalidade do valor das custas dos processos arbitrais que correm termos no TAD, no âmbito da sua competência arbitral necessária, não é possível desconsiderar, também para este efeito, o facto de este não ser um tribunal público especializado em matéria desportiva mas um centro de arbitragem de caráter institucionalizado que não faz parte da organização do Estado e apenas tem por fonte de receitas as custas processuais cobradas nos respetivos processos e os recursos financeiros gerados pela sua restante atividade, designadamente no âmbito da consulta jurídica e mediação (artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 74/2013).
A jurisdição do TAD, no âmbito da sua competência arbitral necessária, é exercida por um colégio de árbitros, de entre os constantes da lista do Tribunal (artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 74/2013), cuja atividade jurisdicional, sendo materialmente equivalente à prestada pelos juízes dos tribunais administrativos, é remunerada por via de honorários. Compreende-se, assim, que as custas processuais fixadas para os correspondentes processos arbitrais incluam, não apenas a taxa de arbitragem, mas também os honorários dos árbitros, que constitui a um encargo permanente do TAD decorrente da sua própria estrutura arbitral (artigo 76.º, n.ºs 1 e 3, da mesma lei) – custo que não existe nos tribunais do Estado e, por isso, não é refletido nas custas judiciais, que diferentemente apenas integram a taxa de justiça, outro tipo de encargos e as custas de parte (artigos 3.º, n.º 1, e 16.º do RCP).
Esta diferença de base, que é incontornável e consentida pela própria Constituição, que não veda a possibilidade de o próprio Estado constituir tribunais arbitrais, não pode deixar de ser considerada no controlo de proporcionalidade a que também estão sujeitas, por força da mesma Lei Fundamental, as custas dos processos arbitrais em causa no presente recurso.
É este controlo que se fará de seguida, considerando as especificidades constitucionalmente relevantes dos tribunais arbitrais necessários, refletidas nas normas sindicadas, e o resultado tributário que a aplicação destas últimas produziu no concreto processo arbitral que esteve na origem dos autos.
2.5. O Tribunal recorrido não questiona, nem se afigura questionável, a necessidade e adequação da medida legal que impõe aos operadores desportivos o pagamento de custas nos processos arbitrais que integram o âmbito da competência material necessária do TAD.
Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, no contexto de apreciação das custas judiciais, a Constituição não garante uma justiça gratuita mas uma justiça economicamente acessível à generalidade dos cidadãos, sem necessidade de recurso ao sistema de apoio judiciário (cfr., entre outros, Acórdãos n.ºs 1182/96 e 70/98). Ora, se o Estado pode exigir aos cidadãos que recorrem aos tribunais públicos o pagamento de taxas de justiça em contrapartida do serviço público de justiça que lhes é individualmente prestado nos processos judiciais, por maioria de razão poderá exigir aos operadores desportivos o pagamento do serviço especializado de justiça desportiva que lhes é especificamente prestado pelo TAD, que é um centro de arbitragem de natureza privada criado para responder às necessidades de uniformização, celeridade e especialização impostas pela especificidade do litígio desportivo (Acórdão n.º 230/13).
Sublinhe-se ainda que, nem mesmo relativamente ao direito à saúde (artigo 64.º da Constituição), o princípio da gratuitidade é absoluto, admitindo a previsão de taxas moderadoras para acesso ao Serviço Nacional de Saúde. Como resulta do Acórdão n.º 330/89, «(…) o conceito de gratuitidade (…) será compatível [com] a exigência (ou a exigência em certos casos) aos utentes do SNS de “taxas moderadoras” (…). Tais taxas visam tão-só “racionalizar a utilização das prestações” facultadas pelo serviço em causa: o seu objectivo (…) é unicamente o de “moderar a procura de cuidados de saúdes, evitando assim a sua utilização para além do razoável”».
O mesmo raciocínio será transponível para as custas judiciais – e para as custas cobradas no TAD -, dado que também nesta área, onde nem sequer impera idêntico princípio, se procura a racionalização na utilização da justiça, uma vez que os recursos são limitados e se pretende reservá-los para aqueles que mais deles careçam.
Independentemente de outras ponderações, trata-se aqui de aplicar um princípio geral de cobertura e imputação de custos, sendo legítima a adoção de medidas aptas a assegurar a sustentabilidade económica de um serviço público prestado por entidades privadas e a imputação do respetivo custo sobre quem, concluindo pela necessidade da utilização desse serviço público, especialmente dele beneficia.
Não questionando tais premissas, o que o Tribunal recorrido defende é que o montante das custas cobradas no TAD por processos arbitrais necessários de valor até €30.000,00 é demasiado elevado, em si mesmo e por comparação com o montantes cobrados nos tribunais estaduais, podendo atingir montantes muito superiores ao valor da causa, como se considerou ser o caso, o que constitui «um condicionamento excessivo e injustificado do acesso aos tribunais por via tributária ou paratributária», especialmente censurável porque as partes não têm a possibilidade de optar, em alternativa, pelo recurso aos tribunais do Estado, que deixaram de ter competência na matéria.
O problema levantado situa-se, pois, ao nível do princípio constitucional da proibição do excesso aplicável em matéria de restrição de direitos fundamentais dos cidadãos (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).
É a seguinte a argumentação concretamente desenvolvida pelo Tribunal Central Administrativo Sul em apoio dessa jurisprudência, aliás transcrita doutro aresto do mesmo tribunal:
«(…), [N]o presente caso, a taxa de arbitragem, arbitragem, aliás, forçada, é de 750 euros, os encargos administrativos são de 75 euros e, mais importante, os honorários do colégio arbitral são de 2500 euros.
Por exemplo, se este mesmo processo corresse nesta Jurisdição, o autor eventualmente perdedor pagaria um total de 408 euros no TAC de taxa de justiça, ou seja, cerca de 9 vezes menos do que no TAD, e de 204 euros de custas neste tribunal superior, mais alguns custos ou encargos administrativos (fotocópias, etc.) – cf. RCP.
Reconhece-se, porém, que tais custos – segundo o RCP – seriam os mesmos caso o valor da pena (o valor processual) fosse de apenas 100 ou 50 euros. Mas a dimensão do problema, a dimensão dos valores e as diferenças de valores são bem diferentes, quando comparando com o caso em apreço.
O cerne do problema está, obviamente, (i) nos honorários e (ii) na ‘taxa de arbitragem (forçada), mesmo podendo ou não ser casuisticamente reduzida. Assim, temos, por um lado, os honorários numa arbitragem forçada, que não existem nos TACs, e, por outro lado, temos a taxa de arbitragem (forçada), equivalente à taxa de justiça pelo impulso processual no RCP, cujo valor no RCP seria aqui de 2 UCs, 204 euros, muito inferior à do TAD. Dois aspectos distintos e relevantes para a questão em apreço.
Assim, aqui, para o TAD arbitrar um litígio no valor de cerca de 3000 euros ou de 100 euros, as custas, onde se incluem nesta sede os honorários dos árbitros, serão sempre superiores a 3000 euros.
E é este o problema concreto que o recorrente levanta no presente recurso.
Ora, esta situação paratributária não faz sentido, ou melhor, não tem lógica de justiça, nem de proporcionalidade, justiça e proporcionalidade exigidos pelos artigos 2.º e 18.º/2 da CRP também quanto ao acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva (cf. artigos 20.º e 268.º da CRP). Não é justificável, justo ou equilibrado condicionar o acesso à justiça com custas processuais de valor muito superior ao valor processual. O que, aliás, adquire particular gravidade quando se trata de arbitragem necessária ou forçada, como foi o caso presente (…).
Portanto, ao contrário do direito objectivo invocado pelo recorrente, o cerne do problema não está nos artigos 76.º e 77.º da Lei do TAD, mas na cit. Portaria. Assim, o artigo 2.º/1/4 da cit. Portaria n.º 301/2015 e a 1.ª linha da tabela do seu Anexo I violam, no caso presente, os princípios constitucionais da proporcionalidade e do acesso à justiça.
Há ali um condicionamento excessivo e injustificado do acesso aos tribunais por via tributária ou paratributária, por causa do elevador valor das custas processuais, que podem ser concretamente – e aqui foram – muito superiores ao valor do processo, processo que tem natureza arbitral ou forçada.
Tendo aqui – numa arbitragem forçada – aplicado tais regras desproporcionais e injustas, resultando num valor de custas processuais muitíssimo superior ao valor processual e num valor relativamente elevado tendo presente o valor da causa, o colégio arbitral do TAD violou, no caso concreto, os princípios constitucionais da proporcionalidade e do acesso à justiça».
Como decorre da passagem acima transcrita, embora o Tribunal recorrido não tenha concluído pela violação do princípio constitucional da igualdade, como invocado pelo A., SAD, não deixou de fazer uma ponderação comparativa dos regimes vigentes, em matéria de custas processuais, nos processos arbitrais necessários que correm termos no TAD e nos processos judiciais. A conclusão a que este respeito se chegou, por comparação de valores, é a de que a transferência de competências jurisdicionais dos tribunais administrativos para o TAD, na matéria em apreço (cfr. artigos 4.º e 5.º da respetiva lei), redundou num encarecimento dos valores cobrados pelo serviço público de justiça prestado em processos de valor igual ou inferior a €30.000,00.
E efetivamente assim é, como decorre da comparação do montante global fixado na primeira linha da tabela constante do Anexo I da Portaria n.º 301/2015 (€3.325,00) e o montante máximo da taxa de justiça fixado na tabela I do RCP para a generalidade dos processos judiciais de valor não superior a €30.000,00 (cinco unidades de conta, que equivale a €510,00), situando-se a diferença em cerca de seis vezes mais o valor das custas dos processos arbitrais necessários (€510,00 x 6 = €3060,00).
Sucede que, como se antecipou no ponto anterior, há razões constitucionalmente aceitáveis para essa diferença de valores, que se prendem com a natureza privada do TAD - que tem nas custas processuais a sua principal fonte de financiamento (artigo 1.º, n.º 3, da Lei do TAD) -, o nível médio de rendimentos das entidades desportivas envolvidas nos litígios que integram a competência necessária desse tribunal arbitral, sensivelmente superior ao nível médio de rendimentos dos cidadãos em geral, e as próprias características do serviço de justiça prestado pelo TAD.
Note-se, quanto ao primeiro ponto, que a capacidade de auto-financiamento do TAD é essencial para assegurar a sua independência e imparcialidade, quer em relação à administração pública do desporto, quer em relação aos organismos que integram o sistema desportivo – cfr. artigo 1.º, n.º 1, da referida lei. A redução do preço do serviço especializado de justiça prestado pelo TAD para níveis equivalentes aos que vigoram na justiça estadual comportaria o risco de comprometer, ou a subsistência do TAD, considerando os custos tendencialmente mais elevados da atividade de arbitragem, ou a sua independência e imparcialidade, que necessariamente passam pela garantia de um estatuto de efetiva autonomia económico-financeira em relação a todas as partes potencialmente envolvidas nos litígios que compete àquele tribunal decidir.
Por outro lado, se é certo que tanto pode recorrer para o TAD um praticante desportivo como uma sociedade anónima desportiva, como é o caso do A., SAD (artigo 52.º da Lei n.º 74/2013), com diferenciados níveis de rendimentos, é razoável que o nivelamento do valor das custas processuais se faça de modo a permitir a viabilização, em condições de independência, de uma entidade jurisdicional que tem por função prestar um serviço de justiça compatível com as necessidades próprias do sistema desportivo, assegurado que esteja, como está, que ninguém será impedido de aceder à justiça desportiva por insuficiência de meios económicos (cfr. artigo 4.º da Portaria n.º 301/2015, na redação da Portaria n.º 314/2017).
Finalmente, não é possível ignorar que o serviço de justiça desportiva prestado pelo TAD, também no âmbito da sua jurisdição arbitral necessária, está normativamente estruturado em termos que garantem a competência e qualificação especializada dos árbitros, por um lado, e a prolação de decisões em tempo compatível com a natureza específica do tipo de litígios abrangidos pela sua jurisdição, por outro.
Com efeito, o TAD integra na sua composição o Conselho de Arbitragem Desportiva (CAD), órgão que é composto por 11 membros, sendo 2 deles designados pelo Comité Olímpico de Portugal, 2 designados pela Confederação de Desporto de Portugal e 1 pelo Conselho Nacional do Desporto, de entre juristas de reconhecido mérito e idoneidade, com experiência na área do desporto (artigos 9.º e 10.º, n.º 1, alíneas a) a c), da Lei do TAD). Compete ao CAD, designadamente, estabelecer a lista de árbitros do TAD, com base em propostas apresentadas por entidades com responsabilidades institucionais no sistema desportivo (artigo 21.º), e promover o estudo e a difusão da arbitragem desportiva, bem como a formação específica de árbitros, nomeadamente estabelecendo relações com outras instituições de arbitragem nacionais ou com instituições similares estrangeiras ou internacionais (artigos 11.º, alíneas a) e g), da mesma lei). Essa lista de árbitros é integrada, no máximo, por 40 árbitros, designados de entre juristas de reconhecida idoneidade e competência e personalidades de comprovada qualificação científica, profissional ou técnica na área do desporto (artigo 20.º, n.º 2). Acresce que a competência arbitral necessária é sempre exercida por um colégio de três árbitros, podendo cada parte designar um árbitro, devendo os árbitros assim designados escolher o terceiro, que atuará como presidente do colégio (artigo 28.º, n.ºs 1 e 2).
Por outro lado, em atenção às exigências próprias do sistema desportivo, a tramitação do processo arbitral obedece a um padrão comum de simplicidade, celeridade e eficácia, que se manifesta, por exemplo, na regra da continuidade dos prazos processuais, que não se suspendem aos sábados, domingos e feriados, nem em férias judiciais (artigo 39.º, n.º 1), na possibilidade da redução dos prazos legalmente previstos (artigo 40.º), já por si muito curtos, sendo de 5 dias o prazo geral para a prática de atos processuais (artigo 39.º, n.º 3) e de 15 dias o prazo de prolação da decisão final, que se conta da data do encerramento do debate da causa (artigo 58.º, n.º 1), incorrendo os árbitros que obstem a que a decisão seja proferida dentro do prazo legal em responsabilidade pelos danos causados (artigo 45.º).
O serviço de justiça prestado pelo TAD revela, assim, um nível de especialização e rapidez que, sendo imposto por razões de interesse público com relevância constitucional (artigo 79.º da Constituição), beneficia diretamente os operadores do sistema desportivo. É, pois, razoável que o maior custo necessariamente implicado na prestação desse serviço seja suportado por quem, tendo condições económicas para tanto, como é manifestamente o caso do A., SAD, e da Federação Portuguesa de Futebol, dele objetivamente beneficia.
Conforme é referido no Acórdão n.º 155/2017, «[p]ara que se possa considerar existir uma clara desproporção que afeta o carácter sinalagmático de um tributo não se pode atender apenas ao carácter fortemente excessivo da quantia a pagar relativamente ao custo do serviço (acórdãos nºs. 640/95 e 1140/96); ela há-de igualmente ser aferida em função de outros fatores, designadamente da utilidade do serviço para quem deve pagar o tributo (cfr. acórdãos nºs. 1140/96; 115/02 e 349/02).»
Ora, estando em causa a prestação do serviço público de justiça, como é o caso, a utilidade do serviço não deve ser aferida tendo em consideração apenas o valor da causa, mas todos os benefícios com expressão económica que decorrem das características específicas do serviço prestado, designadamente quanto ao (menor) tempo de resposta e o (maior) grau de especialização.
Por todas essas razões, não se afigura que a apontada diversidade objetiva de valores vigentes para as custas dos processos arbitrais necessários e para as custas judiciais seja, só por si, passível de um qualquer juízo de censura constitucional.
2.6. Defende ainda o Tribunal recorrido, aqui residindo o aspeto central da argumentação invocada em fundamento da decisão de inconstitucionalidade, que as custas globais fixadas na primeira linha do Anexo I da Portaria para processos arbitrais de valor não superior a €30.000,00, não só são mais elevadas que as custas judiciais aplicáveis a processos de idêntico valor que correm termos nos tribunais administrativos, como podem atingir montantes muito superiores ao valor da causa, pois que é sempre superior a €3000,00, quer se trate de um processo de €100 euros ou de €3000,00.
O denunciado risco de desproporção decorrerá do facto de a referida portaria incluir no primeiro escalão tributário todos os processos que tenham um valor até €30.000,00, cobrando por qualquer deles o mesmo (€750,00, a título de taxa individual de justiça, €2500,00, a título de encargos com os honorários coletivos dos árbitros, e €75,00, a título de encargos administrativos), independentemente de se tratar de um processo de valor muito reduzido ou de um processo de valor próximo ou igual a esse limite máximo.
Comparando esse regime com o consagrado na Tabela I-A do Regulamento das Custas Processuais, verifica-se que aqui se autonomizaram 13 escalões tributários, sendo as taxas de justiça fixadas nos 5 primeiros escalões no valor de 1, 2, 3, 4 e 5 unidades de conta, respetivamente aplicáveis a processos até €2000,00, de €2000,01 a €8000,00, de €8000,01 a €16.000,00, de €16000,01 a €24.000,00 e de €24.000,01 a €30.000,00. A partir daqui, à medida que o valor dos processos aumenta, aumenta também o âmbito de aplicação das taxas de justiça fixadas em cada escalão, aplicando-se a mesma taxa de justiça a processos cujo valor varia em cerca de €20,000,00 ou €50.000,00.
Reconhece-se que a redução do campo de aplicação processual de cada um dos escalões tributários permite afastar a possibilidade de aplicação da mesma taxa de justiça a processos que apresentem valores absolutos muito distintos.
Todavia, como o próprio RCP parece pressupor, a partir de determinados montantes a diferença de valor entre as ações não tem um impacto expressivo nos custos (e benefícios) da sua resolução, sendo irrelevante, para efeitos tributários, uma diferença de 20.000 ou 50.000 euros que possa haver entre ações de muito elevado valor. Estando em causa ações de muitos milhares de euros, diferenças de valor dessa ordem não têm impactos economicamente relevantes nem ao nível da complexidade do processo, nem ao nível da utilidade que as partes dele retiram. Inversamente, estando em causa ações de reduzido valor processual, a diferença de valor entre elas pode já assumir significado tributário, senão tanto ao nível da complexidade do processo e dos custos envolvidos na sua apreciação, seguramente ao nível da utilidade que as partes retiram da resolução jurisdicional do litígio. Nestes casos, a fixação de escalões tributários com um amplo campo de abrangência processual pode, de facto, gerar alguma assimetria interna de resultados, como decorre dos exemplos dados pelo Tribunal a quo.
Porém, também em relação a este aspeto do problema de inconstitucionalidade levantado pelo Tribunal recorrido não se deve ignorar a especificidade da justiça arbitral (necessária) face à justiça estadual, nem a especificidade do tipo de litígios integrados na competência necessária do TAD face à generalidade dos demais litígios carecidos de resolução jurisdicional, sendo necessariamente diferentes as variáveis de ponderação que o legislador deve atender na fixação do valor das custas de processos que genericamente envolvem federações desportivas, ligas profissionais e clubes desportivos, e são decididos por uma entidade que, tendo natureza jurisdicional, não é pública, nem financiada pelo Estado, e tem a seu cargo custos próprios permanentes que decorrem da sua específica estrutura arbitral de funcionamento.
Neste enquadramento, não se afigura constitucionalmente censurável a fixação de um valor mínimo de custas processuais que reflita a maior capacidade económica presumida dos potenciais litigantes e permita cobrir os custos específicos mais elevados do serviço de justiça prestado pelos tribunais arbitrais, como sucede com o valor concretamente fixado na primeira linha da tabela anexa à Portaria n.º 301/2015 (€3325,00).
Os eventuais excessos que o sistema de custas processuais legalmente estabelecido possa comportar, por força da amplitude do primeiro escalão tributário, devem ser sinalizados caso a caso em função do concreto valor processual da causa e do concreto valor das custas processuais cobradas. Esta tem sido, aliás, a perspetiva de análise que o Tribunal Constitucional tem adotado no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade de normas que fixam o montante das custas processuais exclusivamente em função do valor da causa, sindicando à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, não o critério em si, mas o resultado tributário concreto a que a sua aplicação conduziu no processo que deu origem ao recurso de constitucionalidade.
Como expressivamente se afirma no Acórdão n.º 301/2009, «estando em causa o apuramento da proporcionalidade ou não de um valor quantitativamente determinado, as configurações casuísticas, no plano da fiscalização concreta da constitucionalidade, contam como elemento de valoração, sem pôr em cheque a natureza normativa do nosso sistema de controlo. Daí a admissibilidade, sem contradição, de juízos discordantes sobre o mesmo critério normativo, dada a sua diferente projecção consequencialista sobre distintas realidades, do ponto de vista da natureza e do valor do serviço prestado».
Como relatado, o processo arbitral que deu origem ao presente recurso de constitucionalidade foi instaurado pelo A., SAD, contra a Federação Portuguesa de Futebol, para impugnação de uma deliberação tomada pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina dessa federação desportiva, que a condenou numa sanção de repreensão e no pagamento de multas no valor global de €4132,00. O processo foi julgado parcialmente procedente, tendo ambas as partes sido condenadas «no pagamento, em partes iguais, das custas do processo no total de 4150,00 euros, sendo 1500,00 euros a título de taxa de arbitragem e 2650 euros a título de encargos do processo (que incluem honorários dos árbitros e encargos administrativos), montantes a que acresce IVA à taxa legal». Cada uma das partes foi assim condenada a pagar a quantia total €2075,00 (€750, a título de taxa de justiça, €1250,00, a título de honorários dos árbitros e €75,00 de encargos administrativos), acrescida de IVA.
Ora, cotejando o valor do processo arbitral (€4132,00) e o valor das custas processuais em que cada uma das partes foi condenada (€2075,00) não há, no caso concreto, qualquer desproporção e muito menos manifesta entre o valor da causa e o valor das custas a pagar pelo benefício económico proporcionado a cada uma das partes com a sua resolução arbitral. E claramente também não decorre das custas, atento o seu valor e a capacidade económica dos sujeitos processuais envolvidos, um condicionamento excessivo e injustificado do acesso ao TAD por via tributária ou paratributária.
Impõe-se, por isso, a procedência do recurso e a revogação da decisão que, no pressuposto não verificado da violação do princípio constitucional da proporcionalidade e do direito de acesso aos tribunais, recusou a aplicação das normas do artigo 2.º, n.ºs 1 e 4, da Portaria n.º 301/2015, conjugadas com a primeira linha da tabela do seu Anexo I.
III - Decisão
Termos em que se decide:
a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 2.º, n.ºs 1 e 4, da Portaria n.º 301/2015, de 22 de setembro, em conjugação com a primeira linha da tabela do seu Anexo I;
b) Conceder, em consequência, provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 16 de outubro de 2019 - João Pedro Caupers - Claudio Monteiro - José Teles Pereira - Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida, segundo a declaração que junto) - Manuel da Costa Andrade
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencida por discordar não apenas do julgamento de não inconstitucionalidade da norma como também, e desde logo, da metodologia adotada na sua delimitação.
2. O presente Acórdão decide «Não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 2.º, n.ºs 1 e 4, da Portaria n.º 301/2015, de 22 de setembro, em conjugação com a primeira linha da tabela do seu Anexo I». Ora, antes do mais, um tal enunciado não permite desvendar qual a concreta norma, resultante dos preceitos citados, que foi considerada como conforme à Constituição.
Na verdade, os preceitos indicados como suporte da norma julgada estatuem o seguinte:
Artigo 2.º da Portaria n.º 301/2015
«1 – A taxa de arbitragem necessária corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada pelo presidente do Tribunal Arbitral do Desporto em função do valor da causa, nos termos do anexo I à presente portaria que dela faz parte integrante.
(…)
5 – A fixação do montante das custas finais do processo arbitral e a eventual repartição pelas partes é efetuada na decisão arbitral que vier a ser proferida pelo tribunal arbitral, em função do valor da causa, nos termos do anexo I.»
Por sua vez, da primeira linha do Anexo I da Portaria n.º 301/2015, resulta que nas causas de valor até 30.000 euros, a taxa de arbitragem é sempre de 750 euros, os honorários do coletivo de árbitros somam 2.500 euros e os encargos administrativos 75 euros.
Diante da conjugação de vários preceitos legais invocados como suporte legal da norma desaplicada pelo tribunal a quo, importava, primeiro que tudo, definir qual o concreto enunciado normativo resultante dos mesmos que foi recusado com fundamento em inconstitucionalidade. Até porque várias normas podem decorrer do complexo de preceitos citados. O Acórdão é silente neste ponto essencial, mas era por aí que se impunha começar. Faltando o enunciado normativo não é sequer possível delimitar o alcance do julgamento de constitucionalidade proferido.
3. Tomando por base a delimitação do recurso feita pelo recorrente e o teor e fundamentos da decisão recorrida, percebe-se que o problema de constitucionalidade que o tribunal a quo identificou – por remissão para a fundamentação de outra decisão já anteriormente proferida – foi o seguinte: «(...) para o TAD arbitrar um litígio no valor de cerca de 3000 euros ou de 100 euros, as custas, onde se incluem nesta sede os honorários dos árbitros, serão sempre superiores a 3000 euros». Foi, com efeito, partindo desta regra, que o Tribunal recorrido considerou que uma tal «situação paratributária não faz sentido», não tendo «lógica de justiça nem de proporcionalidade exigidas pelos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da Constituição também quanto ao acesso à justiça e tutela jurisdicional efetiva (artigos 20.º e 268.º da Constituição)», não sendo «justificável, justo ou equilibrado condicionar o acesso à justiça com custas processuais de valor muito superior ao valor processual. O que, aliás adquire particular gravidade quando se trata de arbitragem necessária ou forçada, como foi o caso presente (...)». Em consequência, recusou a aplicação das normas extraídas dos preceitos legais dos artigos 2.º, n.ºs 1 e 4 da Portaria n.º 301/2015, e a primeira linha da tabela do seu Anexo I, por violarem os princípios constitucionais da proporcionalidade e do acesso à justiça, na medida em que permitem conduzir a montantes de custas manifestamente desproporcionados, em face da natureza e complexidade do processo, bem como, e particularmente, em relação ao valor da causa e à utilidade que da arbitragem retiram os que nela litigaram, como identificou o Ministério Público nas alegações que produziu no recurso.
4. Era, portanto, aquele critério normativo assente na automaticidade do apuramento das custas por referência ao valor da causa – em especial nas causas de valor até 30.0000 Euros – sem possibilidade de conformação pelo julgador em função das especificidades do caso concreto, que importava apreciar à luz do princípio constitucional da proporcionalidade.
Em vez disso o presente Acórdão, suportando-se da jurisprudência anteriormente afirmada no Acórdão n.º 301/2009, ocupou-se de sindicar à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, não o critério em si, mas o resultado tributário concreto a que a sua aplicação conduziu no processo que deu origem ao recurso de constitucionalidade (ponto 2.6). Parte, aliás, neste contexto, de considerações que estão por demonstrar.
Uma tal metodologia de apreciação parece, no entanto, confundir contencioso de normas – que é aquele que deveria ter ocupado o Tribunal – com contencioso de decisões judiciais. Além disso, ao concentrar-se no resultado do caso concreto, e não no preciso critério normativo que foi desaplicado na decisão, o presente Acórdão não permite antecipar as futuras decisões em questões conexas.
5. Diferentemente do Acórdão, entendi que era o critério normativo que esteve na base da recusa de aplicação do regime contido no artigo 2.º n.ºs 1 e 4 da Portaria n.º 301/205 e primeira linha da tabela do seu Anexo I que cumpria apreciar à luz do princípio da proporcionalidade e do direito à tutela jurisdicional efetiva, e isto independentemente de, no caso dos autos, o valor final envolvido das custas aplicadas – € 4.150,00 – representar ou não um valor particularmente significativo para qualquer dos envolvidos nesta concreta arbitragem em apreciação.
É necessário fazer uma referência inicial ao facto de estarmos perante um tribunal arbitral necessário. Os tribunais arbitrais são, nos termos do seu artigo 209.º, n º 2, um dos tipos de tribunal admitido pela nossa Constituição como integrando a nossa ordem jurídica. Neste âmbito, e com alguns limites, o legislador pode consagrar regimes de arbitragem necessária. Quando o faz, no entanto, deve ter o cuidado de garantir que os tribunais arbitrais necessários têm um regime que assegure independência, imparcialidade e qualidade de decisão pelo menos equivalente à dos tribunais estaduais. Da mesma forma, é necessário garantir que a instituição de um regime de arbitragem necessária não redunda num caso de restrição constitucionalmente inadmissível do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição). Efetivamente, não me parece adequado recorrer nestes casos a uma fundamentação que diga respeito à arbitragem voluntária, como a celeridade dos julgamentos ou a qualidade dos árbitros já que, no caso da arbitragem necessária, os cidadãos não têm escolha a não ser recorrer ao tribunal arbitral, logo essa fundamentação não procede. Este limite – a garantia de acesso à tutela jurisdicional efetiva – é especialmente importante nas situações em que é instituído um regime de arbitragem necessária no âmbito do controlo jurisdicional de atos materialmente administrativos, como é o caso de (pelo menos) alguns dos atos praticados pelas federações desportivas abrangidos pela jurisdição do TAD (artigo 268.º, n.º 4, da Constituição). O que é relevante aqui será, assim, ponderar se a introdução de um nível obrigatório de custas apurado, nas causas de valor inferior a 30.0000 euros, de forma automática e cega às diferenças, sem possibilidade de conformação pelo julgador em função das especificidades do caso concreto, é compatível com o princípio da proporcionalidade.
Empreendendo a necessária ponderação dos interesses envolvidos, e na linha do que tem sido a jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria de custas judiciais – aqui necessariamente aplicável por se tratar da única via jurisdicional aberta aos cidadãos –, concluí que a circunstância de a definição do montante das custas resultante dos referidos preceitos assentar num critério de indexação automática ao valor da causa, sem consideração da concreta natureza e complexidade do processo, bem como da utilidade que da arbitragem retiram os que nela litigaram, omitindo a possibilidade de o tribunal reduzir as custas a fixar, a não ser no caso de a arbitragem terminar antes da sentença final, não respeita o princípio da proporcionalidade, podendo mesmo ter um efeito injustificadamente inibidor do acesso à justiça arbitral necessária.
Para a ponderação da afetação do direito de acesso à tutela jurisdicional efetiva pela norma em causa, é indiferente que o TAD tenha «nas custas processuais a sua principal fonte de financiamento» (ponto 2.5). Não está em causa a opção do legislador por criar, neste âmbito, um tribunal arbitral necessário, mas o regime de custas aplicável. Se o Tribunal Constitucional concluir que este regime é inconstitucional, por restringir excessivamente o acesso à justiça, então deverá o legislador encontrar uma forma de financiamento alternativo que assegure a independência e imparcialidade dos juízes arbitrais. Não cabe ao juiz constitucional ponderar opções de política legislativa.
Diga-se, também que, no juízo de proporcionalidade realizado, está igualmente por demonstrar, que «o nível médio de rendimentos das entidades desportivas envolvidas nos litígios que integram a competência necessária desse tribunal arbitral, [seja] sensivelmente superior ao nível médio de rendimentos dos cidadãos em geral». Poder-se-á afirmar que qualquer jovem praticante de desporto federado (na Federação Portuguesa de Natação, na Federação de Andebol de Portugal, na Federação Portuguesa de Judo, por exemplo), a quem seja aplicada uma sanção, tem um nível médio de rendimentos superior aos outros jovens da sua idade? Um clube desportivo da segunda divisão distrital tem um nível médio de rendimentos superior a uma associação equivalente? É que a mesma norma da tabela de custas é aplicável indiferenciadamente a todos estes casos – o que poderá ter um forte efeito inibidor do acesso à justiça por motivos meramente económicos. Existe o risco de criação de um sistema judicial desportivo apenas para os agentes que tenham capacidade financeira elevada, ficando os restantes arredados do acesso à justiça, sem possibilidade de tutela.
Concluí, assim, que seria de confirmar o juízo de inconstitucionalidade por violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição) e do princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição) efetuado pela decisão recorrida, julgando-se improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público.
Maria de Fátima Mata-Mouros