ACÓRDÃO Nº 440/2019
Processo n.º 74/18
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., o primeiro veio interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua redação atual (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada LTC), de sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no âmbito de ação declarativa sob a forma de processo comum, proposta pela ora recorrida contra os proprietários do imóvel destinado a habitação, de que é arrendatária desde 1 de junho de 1966.
Os proprietários do imóvel comunicaram à arrendatária, em janeiro de 2013, a intenção de submeter o contrato ao Novo Regime de Arrendamento Urbano (adiante designado «NRAU») e de proceder à atualização da renda (conforme previsto no artigo 30.º do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, vigente à data). A ora recorrida respondeu, por carta registada expedida no mesmo mês, opondo à intenção do senhorio a sua idade, superior a 65 anos, e a circunstância de o seu agregado familiar dispor de um rendimento anual bruto corrigido (RABC) inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA). A comprovação da alegação relativa ao nível de rendimentos do agregado familiar foi feita nos termos legalmente previstos (cf. o artigo 32.º do NRAU), tendo sido emitido pelos serviços competentes, em 15 de julho de 2013, documento comprovativo do RABC de 2012, com a menção de que a declaração seria válida por um ano, «devendo ser requerida nova emissão de documento comprovativo do valor RABC do seu agregado familiar dentro deste prazo (…).»
Em maio de 2014, os proprietários do imóvel enviaram nova comunicação à arrendatária, informando que a partir do mês de julho se procederia à atualização do valor da renda, tendo por referência o limite máximo de 1/15 do valor do locado (ex vi da alínea a) do n.º 2 do artigo 35.º do NRAU), uma vez que a arrendatária já não poderia prevalecer-se da circunstância de o agregado familiar deter um RABC inferior a cinco RMNA. Segundo os proprietários, tal seria a consequência de não ter sido apresentada nova prova anual da alegação relativa ao RABC do agregado familiar até ao fim de janeiro de 2014, nos termos previstos no n.º 5 do artigo 35.º do NRAU.
Inconformada, a arrendatária recorreu ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa que julgou parcialmente procedente a ação proposta pela ora recorrida e decidiu «não aplicar, por inconstitucionalidade material por violação do princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, a norma extraída dos artigos 36.º, n.º 7, al. c) e 35.º. n.º 5, do NRAU (…), segundo a qual os arrendatários com idade igual ou superior a 65 anos, beneficiários de renda atualizada atenuada nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 35.º do NRAU, que no mês correspondente àquele em que foi invocada a circunstância em que assentou esse benefício, e pela mesma forma, não fizerem prova anual do seu rendimento perante o senhorio, ficam automaticamente impedidos de poderem prevalecer-se da mencionada circunstância, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de fazerem a aludida prova».
2. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC (cf. fls. 284-285).
3. Notificado para alegar, o recorrente apresentou as seguintes conclusões (cf. fls. 315-316):
«3. Conclusão
1 – Constitui objeto do recurso a questão de constitucionalidade da norma extraída dos artigos 36.º, n.º 7, al. c) e 35.º, n.º 5, do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, (NRAU), na redação introduzida pela Lei n.º 31/2012 de 14 de agosto, retificada pela Declaração de Retificação n.º 59-A/2012, de 12 de outubro, segundo a qual os arrendatários com idade igual ou superior a 65 anos, beneficiários de renda atualizada atenuada nos termos dos nºs 2 e 3 do artigo 35.º do NRAU, que no mês correspondente àquele em que foi invocada a circunstância em que assentou esse benefício, e pela mesma forma, não fizerem prova anual do seu rendimento perante o senhorio, ficam automaticamente impedidos de poderem prevalecer-se da mencionada circunstância, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de fazerem a aludida prova.
2 – Beneficiando o arrendatário de renda atualizada nos termos do artigo 35.º, n.ºs 2 e 3 do NRAU, se não fizer a prova anual do seu rendimento perante o senhorio, no mês correspondente àquele em que foi invocada a circunstância na qual assentou o benefício, a consequência é ter de pagar uma renda, não atenuada, até à apresentação dessa prova.
3 – Assim, diferentemente do que ocorria na situação apreciada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 277/2016, está-se perante uma consequência não excessivamente gravosa para o arrendatário, justificando-se ainda a existência desse ónus, cujo cumprimento não se revela especialmente oneroso.
4 – A comprovação da situação económica do arrendatário para poder beneficiar da renda atenuada tem de ser feita mediante a apresentação ao senhorio de documento comprovativo, emitido pelo serviço de finanças competente, do qual conste o valor do rendimento anual bruto corrigido (RABC) do seu agregado familiar.
5 – Assim, estando a apresentação daquele documento dependente da sua emissão por parte da repartição de finanças competente, o mesmo pode não ser atempadamente apresentado, por razões que não sejam imputáveis ao arrendatário.
6 – Nessa medida, a norma que constitui objeto do recurso é inconstitucional, por violação do artigo 2.º da Constituição.
7 – Termos em que deve ser negado provimento ao recurso.»
4. Embora notificada para esse efeito, a recorrida não apresentou contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. A título prévio, impõe-se delimitar com precisão o objeto do presente recurso, identificado pelo recorrente com a norma segundo a qual «os arrendatários com idade igual ou superior a 65 anos, beneficiários de renda atualizada atenuada nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 35.º do NRAU, que no mês correspondente àquele em que foi invocada a circunstância em que assentou esse benefício, e pela mesma forma, não fizerem prova anual do seu rendimento perante o senhorio, ficam automaticamente impedidos de poderem prevalecer-se da mencionada circunstância, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de fazerem a aludida prova».
5.1. Trata-se de uma interpretação normativa extraída pelo tribunal a quo da alínea c) do n.º 7 do artigo 36.º e do n.º 5 do artigo 35.º do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto (retificada pela Declaração de Retificação n.º 59-A/2012, de 12 de outubro), cuja redação é a seguinte:
«Artigo 35.º
Arrendatário com RABC inferior a cinco RMNA
1 - Caso o arrendatário invoque e comprove que o RABC [rendimento anual bruto corrigido] do seu agregado familiar é inferior a cinco RMNA [retribuições mínimas nacionais anuais], o contrato só fica submetido ao NRAU mediante acordo entre as partes ou, na falta deste, no prazo de cinco anos a contar da receção, pelo senhorio, da resposta do arrendatário nos termos da alínea a) do n.º 4 do artigo 31.º
(…)
5 - No mês correspondente àquele em que foi feita a invocação da circunstância regulada no presente artigo e pela mesma forma, o arrendatário faz prova anual do rendimento perante o senhorio, sob pena de não poder prevalecer-se da mesma.
(…)
Arrendatário com idade igual ou superior a 65 anos ou com deficiência com grau de incapacidade superior a 60 %
1 - Caso o arrendatário invoque e comprove que tem idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %, o contrato só fica submetido ao NRAU mediante acordo entre as partes, aplicando-se no que respeita ao valor da renda o disposto nos números seguintes.
(…)
7 - Se o arrendatário invocar e comprovar que o RABC do seu agregado familiar é inferior a cinco RMNA:
a) O valor da renda é apurado nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo anterior;
b) O valor da renda vigora por um período de cinco anos, correspondendo ao valor da primeira renda devida;
c) É aplicável o disposto no n.º 5 do artigo anterior.
(…)»
A questão refere-se, pois, ao regime de comprovação subsequente e anual da circunstância relativa ao valor do RABC do agregado familiar, que nos termos do NRAU os arrendatários (titulares de contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU) podem opor à atualização da renda e à transição para o NRAU por iniciativa do senhorio (v. os artigos 30.º, 31.º, n.º 4, al. a) e 35.º do NRAU).
Recorde-se que os arrendatários com idade superior a 65 anos – como a aqui recorrida – ou grau de incapacidade superior a 60%, podem também, a par destas circunstâncias, invocar o nível de rendimentos do agregado familiar para se opor àquela iniciativa do senhorio. Nesse caso, se não for possível através de negociação chegar a acordo quanto ao valor da renda atualizada, esse deverá ser apurado nos termos do n. o 2 do artigo 35.º (cf. os n.os 2 a 6 do artigo 36.º) e vigorará pelo período legalmente prescrito (na alínea b) do n.º 7 do artigo 36.º), na condição de comprovadamente se manter o nível de rendimentos que justifica a aplicação dos limites máximos especialmente previstos (cf. a alínea c) do n.º 7 do artigo 36.º, que remete para o n.º 5 do artigo 35.º).
Como tal, o NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012, impunha que durante os cinco anos em que a renda atualizada deveria vigorar, fosse feita prova anual da circunstância relativa ao RABC, da mesma forma que deveria ser feita no momento do envio de resposta ao senhorio, ou seja, através da apresentação de documento do qual constasse o valor do RABC do agregado familiar, emitido pelo serviço de finanças competente, ou de documento que atestasse que o mesmo já havia sido requerido (nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 32.º), como refere Maria Olinda Garcia, «Tal prova documental», segundo «te[ria] que ser feita todos os anos dentro do mês (ou até esse mês) correspondente àquele em que o arrendatário enviou ao senhorio a sua resposta inicial», caso contrário «fica[ria] o senhorio legitimado a exigir o pagamento do valor máximo de renda (…).», (Arrendamento Urbano Anotado – Regime Substantivo e Processual, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 151).
A prova a apresentar referia-se, no entanto, aos rendimentos auferidos no ano civil anterior ao da invocação (nos termos do n.º 3 do artigo 32.º do NRAU) e baseava-se nos elementos reunidos no âmbito do procedimento tendente à liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), tal como decorria dos artigos 4.º e 5.º do então vigente Decreto-Lei n.º 158/2006, de 8 de agosto (alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 266-C/2012, de 31 de dezembro e subsequentemente revogado pelo Decreto-Lei n.º 156/2015, de 10 de agosto).
Deste modo, este «regime legal apontava para um momento temporal que não se revelava articulado com a liquidação anual dos impostos sobre o rendimento», tal como veio a ser reconhecido na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 250/XII, que esteve na origem da Lei n.º 79/2014, de 19 de dezembro. Com a aprovação deste diploma, o n.º 5 do artigo 35.º passou a dispor que «[n]os anos seguintes ao da invocação da circunstância regulada no presente artigo, o inquilino faz prova dessa circunstância, pela mesma forma e até ao dia 30 de setembro, quando essa prova seja exigida pelo senhorio até ao dia 1 de setembro do respetivo ano, sob pena de não poder prevalecer-se daquela circunstância». Assim, a comprovação do RABC do agregado familiar, não só deixou de ter que ser feita no mês correspondente ao da invocação inicial, como também passou a ser exigível apenas mediante iniciativa do senhorio.
5.2. O tribunal recorrido considerou, todavia, que a nova lei não podia ser aplicada ao caso dos autos e interpretou o n.º 5 do artigo 35.º do NRAU (aplicável por remissão da alínea c) do n.º 7 do artigo 36.º) no sentido de exigir a «junção, decorrido um ano da invocação da condição de exceção, de novo comprovativo de RABC ou de que a sua emissão foi solicitada, sendo certo que (…) nos primeiros meses do ano o RABC ainda não pode ser calculado pois depende da declaração anual de rendimentos e liquidação por parte da Autoridade Tributária (…).». Do que decorria, segundo o tribunal a quo, que os arrendatários ficariam «automaticamente impedidos de poderem prevalecer-se de mencionada circunstância» - efeito preclusivo por força do qual, «sem que o senhorio se encontre vinculado a comunicar ao arrendatário a gravidade da não junção nesse momento do comprovativo, este último, e conforme supra referido, em regra já com alguma idade, com menores rendimentos, e com arrendamento ainda vinculístico, vê-se confrontado com um aumento exponencial de renda e eventualmente em risco o seu direito a habitação.»
Esta afirmação revela-se, aparentemente, incoerente com a delimitação do objeto do litígio que consta da sentença, identificado com o valor de renda devido «até à data de emissão de certidão do RABC da Autora relativo ao no de 2013» - o que leva o Ministério Público a pressupor que, na interpretação do tribunal a quo, a consequência da não comprovação das circunstâncias invocadas pelo arrendatário «é ter de pagar uma renda, não atenuada, até à apresentação dessa prova».
Sucede que o objeto do litígio foi definido por referência ao pedido – o qual, tendo sido formulado em momento em que ainda não havia sido emitida pelo serviço de finanças competente a declaração relativa ao RABC de 2013, salvaguardou a possibilidade de desta decorrerem alterações do nível de rendimentos que pudessem justificar um aumento de renda. Razão pela qual se pediu que fosse reconhecido que a ora recorrida não tinha que prestar valor diferente daquele que vinha pagando, «até que a certidão do RABC de 2013 da A. contenha elementos que justifiquem e permitam um aumento da renda», e só se tal acontecesse – o que determinou que o tribunal não se pronunciasse sobre as rendas devidas em período posterior «à emissão e envio do RABC de 2013», por se tratar de questão considerada «fora do âmbito efetivo do pedido». Em face dos autos e da decisão adotada, não se mostra, pois, possível concluir que o tribunal recorrido haja interpretado a norma no sentido de aquele efeito preclusivo – qualificado como «irremediável, insuprível e altamente desproporcional» - poder ser afastado por iniciativa do arrendatário, mediante a apresentação de nova prova, como defende o Ministério Público.
Não cabendo a este Tribunal tecer qualquer juízo sobre a interpretação do direito infraconstitucional adotada pelo tribunal a quo, cumpre apenas apreciar a interpretação normativa que constituiu a ratio decidendi da decisão recorrida – interpretação que não contempla, ao contrário do que alega o recorrente, a dimensão segundo a qual o aumento de renda imposto pelo senhorio, em consequência da não apresentação da prova anual do RABC, vigoraria apenas até à apresentação de nova prova documental.
6. Como tal, apesar de estar em causa a apresentação anual (e não inicial) dos documentos comprovativos dos regimes de exceção de que os arrendatários podem beneficiar, a questão de constitucionalidade ora submetida à apreciação deste Tribunal apresenta assinalável semelhança com a questão anteriormente analisada no Acórdão n.º 277/2016, em que se julgou «inconstitucional a norma extraída dos artigos 30.º, 31.º e 32.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, segundo a qual «os inquilinos que não enviem os documentos comprovativos dos regimes de exceção que invoquem (seja quanto aos rendimentos, seja quanto à idade ou ao grau de deficiência) ficam automaticamente impedidos de beneficiar das referidas circunstâncias, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de juntar os referidos documentos e das consequências da sua não junção, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição (…).» com os seguintes fundamentos:
«In casu está em causa a aplicação do princípio da preclusão, de origem processual, à possibilidade de o arrendatário, não obstante as ter invocado oportunamente, se prevalecer de certas situações preexistentes, que têm natureza objetiva – porque verificáveis por terceiros e conhecidas das autoridades públicas – e duradoura. É o caso, nomeadamente, do seu rendimento anual bruto, da sua idade ou da sua incapacidade: não sendo tais situações comprovadas documentalmente no momento da resposta a que se refere o artigo 31.º do NRAU, o arrendatário deixa de poder beneficiar do regime substantivo associado à verificação de tais situações, impedindo ou diferindo a transição para o NRAU do seu arrendamento e limitando e condicionando a atualização do valor das rendas. A preclusão em apreço ocorre, não no quadro de um processo judicial, mas de um procedimento negocial desencadeado pelo senhorio e sem que este se encontre vinculado a advertir o arrendatário para as consequências da inobservância daquele ónus de comprovação.
Por isso mesmo, devem valer aqui, ainda com mais razão, as exigências que este Tribunal tem vindo a formular a propósito do processo. Com referência ao processo civil, o Acórdão n.º 620/2013 afirmou o seguinte:
«Apesar de vigorar, na definição da tramitação do processo civil, uma ampla discricionariedade legislativa que permite ao legislador ordinário, por razões de conveniência, oportunidade e celeridade, fazer incidir ónus processuais sobre as partes e prever quais as cominações ou preclusões que resultam do seu incumprimento, isso não significa que as soluções adotadas sejam imunes a um controle de constitucionalidade que verifique, nomeadamente, se esses ónus são funcionalmente adequados aos fins do processo, ou se as cominações ou preclusões que decorram do seu incumprimento se revelam totalmente desproporcionadas perante a gravidade e relevância da falta, ou ainda, se de uma forma inovatória e surpreendente, face ao texto legal em vigor, são impostas às partes exigências formais que elas não podiam razoavelmente antecipar, sendo o desculpável incumprimento sancionado em termos irremediáveis e definitivos (vide, neste sentido, Lopes do Rego, em “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade, dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, em “Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa”, pág. 839 e seg.).»
Na verdade, sustenta Lopes do Rego, em relação aos regimes adjetivos que prescrevem requisitos de natureza estritamente procedimental ou formal dos atos das partes – «isto é, conexionados, não propriamente com a formulação essencial das pretensões ou impugnações dos litigantes, mas tão-somente com o modo de apresentação ou exposição dos respetivos conteúdos» – que os mesmos devem (além de revelar-se «funcionalmente adequados aos fins do processo, não traduzindo exigência puramente formal, arbitrariamente imposta, por destituída de qualquer sentido útil e razoável quanto á disciplina processual»):
«Conformar-se – no que respeita às consequências desfavoráveis para a parte que as não acatou inteiramente – com o princípio da proporcionalidade: desde logo, as exigências formais não podem impossibilitar ou dificultar, de modo excessivo ou intolerável, a atuação procedimental facultada ou imposta às partes; e as cominações ou preclusões que decorram de uma falta da parte não podem revelar-se totalmente desproporcionadas – nomeadamente pelo seu caráter irremediável ou definitivo, impossibilitador de qualquer ulterior suprimento – à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta imputada à parte.» (v. Autor cit., ob. cit., pp. 839-840).
Ou, segundo a síntese formulada no Acórdão n.º 96/2016:
«[O]s ónus impostos não poderão, por força dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, impossibilitar ou dificultar, de forma arbitrária ou excessiva, a atuação procedimental das partes, nem as cominações ou preclusões previstas, por irremediáveis ou insupríveis, poderão revelar-se totalmente desproporcionadas face à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta cometida, colocando assim em causa o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (cfr., sobre esta matéria, Carlos Lopes do Rego, [ob. cit., pp. 839 e ss.] e, entre outros, os Acórdãos n.ºs 564/98, 403/00, 122/02, 403/02, 556/2008, 350/2012, 620/13, 760/13 e 639/14 do Tribunal Constitucional).
O Tribunal Constitucional, procurando densificar, na sua jurisprudência, o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em questão a imposição de ónus às partes, tem reconduzido tal juízo à consideração de três vetores essenciais:
- a justificação da exigência processual em causa;
- a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado;
- e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus (cfr., neste sentido, os Acórdãos n.ºs 197/07, 277/07 e 332/07).»
Ora, é justamente em relação a este último aspeto que a norma sindicada pelo recorrente suscita dificuldades.
10. Como mencionado, o objetivo visado com tal solução é a célere definição do estatuto do contrato de arrendamento, uma vez comunicada a intenção do senhorio de o fazer transitar para o NRAU. Este fim interessa não apenas ao próprio senhorio, como, tendo em conta a apreciação feita pelo legislador relativamente à interdependência entre a reforma do regime do arrendamento concretizada no NRAU e a dinamização do mercado do arrendamento (cfr., por exemplo, a já citada Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 250/XII) – apreciação essa que não cabe a este Tribunal questionar –, a toda a comunidade. Trata-se, pois, de um fim legítimo.
Por outro lado, a solução legal de precludir a possibilidade de o arrendatário impedir ou diferir a transição para o NRAU do seu arrendamento e ou limitar e condicionar a atualização do valor das rendas não é funcionalmente inadequada para tal objetivo.
A verdade, porém, é que tal solução se revela desnecessária para o efeito. Uma vez comunicada ao senhorio a idade ou a incapacidade do arrendatário ou o seu rendimento anual bruto, aquele – que até pode ter conhecimento pessoal desses dados (ao menos quanto à idade e à incapacidade, tal até será a situação mais provável, de acordo com a experiência comum) – fica a saber que a sua intenção de fazer transitar o arrendamento para o NRAU, a menos que as alegações do arrendatário sejam falsas, está comprometida ou limitada. Mas nada impediria que, até ao momento em que tais circunstâncias pessoais do arrendatário fossem por este devidamente comprovadas, a transição prosseguisse sob condição. Agindo de boa fé, como é dever de todas as partes contratuais, o arrendatário também tem interesse numa rápida clarificação da situação. O mais tardar, no âmbito do procedimento especial de despejo referido nos artigos 15.º e seguintes do NRAU, a veracidade das alegações do arrendatário teria de ser comprovada, sem prejuízo do dever de compensação de eventuais danos causados pela demora na comprovação daquelas situações objetivas. E, de qualquer modo, opondo-se o arrendatário à transição para o NRAU, esta, mesmo abstraindo dos regimes especiais do “arrendatário com RABC inferior a cinco RMNA” (artigo 35.º) e do “arrendatário com idade igual ou superior a 65 anos ou com deficiência com grau de incapacidade superior a 60%” (artigo 36.º), só implica a imediata cessação do vínculo de arrendamento no caso de o senhorio não aceitar o valor da renda proposto, expressa ou tacitamente, pelo arrendatário e optar pela denúncia imediata do contrato mediante o pagamento de indemnização, nos termos do artigo 33.º, n.º 5, alínea a) (cfr. supra o n.º 5.3.).
A solução consubstanciada na norma objeto do presente recurso revela-se, além disso, desproporcionadamente onerosa para o arrendatário, por comparação com os benefícios que a mesma traz para o senhorio e para o interesse comum. Aliás, estes não seriam excessivamente lesados caso tal norma não vigorasse. Com efeito, o senhorio não perde nem o seu direito a promover a transição para o NRAU nem o direito a eventuais compensações devidas pela demora na efetivação dessa mesma transição. Já o arrendatário que reúna as condições que alega – RABC inferior a cinco RMNA e idade igual ou superior a 65 anos ou com deficiência com grau de incapacidade superior a 60% – sem as comprovar no momento devido e que até à comunicação da intenção do senhorio de fazer transitar o seu contrato de arrendamento para o NRAU gozava de um direito consolidado ao locado com uma certa renda, fica, por força de tal norma, numa situação muito precária, já que o seu direito à habitação no locado e a garantia de uma renda ajustada ao seu rendimento ficam dependentes da boa vontade do senhorio. Ou seja, numa fase já muito avançada da vida, e em que dificilmente encontrará soluções equivalentes à que tinha por consolidada, o arrendatário pode, contra a sua vontade, ver-se confrontado com um contrato de arrendamento com prazo certo e, portanto, sujeito a caducidade, e, ou, com uma renda de valor demasiado elevado para o seu nível de rendimentos (cfr. supra os n.ºs 5.3. e 5.4.).
7. Considera, todavia, o recorrente que a circunstância de estar em causa apenas a atualização da renda (e não a transição para o NRAU) obsta a que se considere transponível para o presente caso a fundamentação do aresto citado, por serem significativamente menos gravosas as consequências que para o arrendatário resultam de se dar por não comprovado o valor anual do RABC.
No entanto, este argumento supõe que a atualização da renda imposta in casu vigoraria, apenas, até à apresentação de nova declaração de rendimentos – pressuposto que, conforme referido supra, não pode dar-se por verificado. Ademais, não há dúvida de que – ainda que não esteja em causa a transição para o NRAU – da atualização da renda pode advir para o arrendatário que dispõe de baixos rendimentos um agravamento significativo das condições de vida, igualmente em fase em que «dificilmente encontrará soluções equivalentes à que tinha por consolidada».
Por último, é de referir que no caso apreçado no Acórdão n.º 277/2016 se deu por demonstrado o incumprimento, por parte do arrendatário, do ónus de comprovação das circunstâncias de que pretendia beneficiar. Diversamente, no caso em apreço, a arrendatária havia apresentado, em julho do ano anterior, documento comprovativo da circunstância invocada, a que foi aposto pelo serviço de finanças competente o prazo de validade de um ano. Era, pois, razoável confiar – na ausência de qualquer comunicação do senhorio a exigir a apresentação de nova prova – que, a despeito de a lei se referir ao mês correspondente àquele em foi invocada a circunstância relativa ao RABC, a apresentação de nova declaração não seria exigível antes de decorrido aquele prazo de validade.
Assim, neste caso, não só deve considerar-se desproporcionadamente onerosa para a arrendatária a consequência adveniente da inobservância do ónus em questão, como especialmente desnecessária e injustificada uma tal exigência – sobretudo quando imposta em momento em que os serviços de finanças competentes não poderiam emitir qualquer documento comprovativo do RABC relativo ao ano civil anterior, por ainda não ter sido, sequer, iniciado o procedimento tendente à liquidação e cobrança de IRS.
Até os serviços de finanças disporem dos elementos necessários para poder emitir a declaração relativa ao RABC do agregado familiar, como salienta o recorrente, por mais diligente que fosse o arrendatário, não poderia cumprir atempada e plenamente o ónus em causa por razão que não lhe seria imputável. O único documento que os serviços de finanças poderiam emitir, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 32.º do NRAU, seria o documento comprovativo de que a declaração relativa ao RABC do ano civil anterior havia sido requerida – sendo manifestamente desrazoável admitir que uma consequência, como a imposição de uma renda de valor consideravelmente superior ao anteriormente suportado pela arrendatária, pudesse resultar da falta de apresentação de um documento que se limitasse a comprovar que havia sido requerido o documento (verdadeiramente) comprovativo do RABC do agregado familiar.
8. Aderindo, pois, à fundamentação do Acórdão n.º 277/2016 transponível para o caso em apreço, e em face das razões aduzidas, resta concluir que não merece censura a decisão recorrida.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade ínsito ao princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, a interpretação normativa da alínea c) do n.º 7 do artigo 36.º e do n.º 5 do artigo 35.º do NRAU (aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, e retificada pela Declaração de Retificação n.º 59-A/2012, de 12 de outubro), segundo a qual os arrendatários a que se refere o artigo 36.º, que no mês correspondente àquele em que foi invocada a circunstância relativa ao RABC do agregado familiar, e pela mesma forma, não fizerem prova anual do seu rendimento perante o senhorio, ficam automaticamente impedidos de poder prevalecer-se desta circunstância, mesmo que não sejam alertados pelos senhorios para a necessidade de a apresentar;
e
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 15 de julho de 2019 - Lino Rodrigues Ribeiro - Gonçalo Almeida Ribeiro - Maria José Rangel de Mesquita - Joana Fernandes Costa - João Pedro Caupers