ACÓRDÃO N.º 659/2011
Processo n.º 670/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura
Mariano
Acordam na 2.ª
Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Por sentença
proferida no Processo n.º 344/08.3GBFLG, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de
Felgueiras, foi decidido, além do mais, condenar o arguido A. como autor
material de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos
203.º, 204.º, n.ºs 1, alínea a),
e 2, alínea e), ambos do Código Penal, na pena de 2
anos e 6 meses de prisão, e a arguida B. como autora material de um crime de
furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, 204.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, alínea
e), ambos do Código Penal, na pena de 2
anos de prisão, suspensa por igual período.
Inconformados,
os arguidos recorreram desta decisão para o Tribunal da Relação de Guimarães
que, por Acórdão de 14 de Dezembro de 2010, confirmou as penas aplicadas pela
decisão recorrida.
Notificados
desta decisão, os arguidos vieram arguir nulidades do mesmo e, em 11 de Abril
de 2011, foi proferido novo Acórdão que julgou improcedentes as nulidades
invocadas.
Não se
conformando, recorreram os arguidos para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso
esse que não foi admitido através de despacho proferido em 17 de Maio de 2011.
Os arguidos
reclamaram da não admissão do recurso e, por decisão de 1 de Julho de 2011, do
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, foi indeferida a reclamação.
Os arguidos recorreram
então para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento
e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
«A. e B., arguidos/recorrentes nos autos à margem referenciados,
não se conformando com a douta decisão de fls. 61 a 66 dos autos, que veio a
indeferir a reclamação por si apresentada, não conhecendo do recurso do acórdão
da Relação interposto para o Supremo Tribunal de Justiça considerando-o
irrecorrível, vêm
INTERPOR
RECURSO, para o VENERANDO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, ao abrigo do disposto no nº
1 b) do artigo 70º da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, com as alterações que lhe
foram introduzidas.
Os arguidos/recorrentes
pretendem que o Venerando Tribunal Constitucional, aprecie da
inconstitucionalidade do artigo 400º nº 1 f) do C.P.P., “ Não é admissível
recurso de acórdãos condenatórios proferidos em recurso, pelas relações, que
confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8
anos.”, na acepção de não permitir o recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça em caso de arguição de nulidades de acórdão.
Os
arguidos/recorrentes consideram, salvo devido respeito por opinião em contrário,
que tal norma - artigo 400º nº1 f) do C.P.P.- viola o
disposto no artigo 20º da Constituição ao dispor no sentido da
irrecorribilidade, quando são suscitadas nulidades de acórdão.
Os
arguidos/recorrentes dão ainda conhecimento que suscitaram a questão da
constitucionalidade de tal norma na reclamação por si apresentada junto do
Supremo Tribunal de Justiça e dirigida ao Ex.mo
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, constante dos autos»
Os recorrentes
apresentaram alegações, concluindo da seguinte forma:
«1 - Os
arguidos/recorrentes pretendem que o Venerando Tribunal Constitucional,
aprecie da inconstitucionalidade do artigo 400º nº 1 f) do C.P.P., “Não é
admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos em recurso, pelas
relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não
superior a 8 anos.”, na acepção de não permitir o
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em caso de arguição de nulidades de
acórdão.
2 - Passaremos
a explicar os motivos subjacentes: Os recorrentes,
interpuseram recurso para o Venerando Tribunal da Relação, da sentença
proferida em primeira instância e que decidiu condenar:
- O
arguido/recorrente A. como autor material de um crime de furto qualificado, p.
e p. pelos artigos 203º, 204º nºs al. a) e 2 al. e), ambos do Código Penal, na
pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- A
arguida/recorrente B. como autora material de um crime de furto qualificado, p.
e p. pelos artigos 203º, 204º nos al. a) e 2 al. e), ambos do Código Penal, na
pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa por igual período de 2 (dois) anos;
- Condenar os
mesmos arguidos nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3
(três) UC, a que acresce o adicional do artigo 13º do DL. nº
423/91 de 30 de Outubro, em ¼ de procuradoria e, bem assim, nos respectivos
honorários a favor da sua defensora oficiosa;
- Determinar
que se proceda à entrega ao ofendido da quantia em dinheiro apreendida nos
autos até ao valor que foi espoliado. Para o efeito deverá o mesmo ser notificado
para, no prazo de três meses, vir aos autos requerer o levantamento de tal
quantia sob pena de, não o fazendo em tal prazo, ser a mesma declarada
prescrita a favor do Estado;
- Declarar
perdidos a favor do estado todos os demais bens apreendidos, incluindo dinheiro
restante, pois que se entende face ás condenações por furto do arguido e aos
rendimentos conhecidos do agregado serem provenientes da prática de furto.
3 - Alegaram
os recorrentes que a douta sentença recorrida padecia de erro notório na
apreciação da prova, inaplicabilidade do princípio in dubeo pro reo, nulidade da sentença por falta de fundamentação
da decisão que declarou perdida a favor do Estado a quantia monetária
apreendida nos autos, com excepção da quantia furtada ao ofendido, erro na
qualificação jurídica, não havendo lugar à qualificação pelo arrombamento, com
a consequente pena pelo crime simples e erro na qualificação jurídica quanto ao
crime imputado à arguida B., com a eventual e consequente pena por cumplicidade,
tudo conforme flui do articulado de recurso junto aos autos.
4 - O acórdão
proferido veio a julgar parcialmente procedente o recurso, revogando a sentença
recorrida na parte em que declarou perdido a favor do Estado o dinheiro
restante, mantendo no restante a sentença recorrida.
5 - Os recorrentes não se conformando com tal acórdão,
apresentaram reclamação invocando que o douto acórdão padecia de nulidades,
alegando que não foram apreciadas as questões postas em causa pelos arguidos
recorrentes em sede de recurso, assim como carecia o mesmo de fundamentação da
decisão.
6 - Os
recorrentes basearam a sua reclamação no facto de o Venerando Tribunal, se ter
olvidado de se pronunciar quanto à inaplicabilidade do princípio in dubio pro reo, ao erro na
qualificação jurídica, não havendo lugar à qualificação pelo arrombamento, com
a consequente pena pelo crime simples, nenhuma referência fazendo o douto
acórdão a tais aspectos, o que consubstancia uma nulidade nos termos do
disposto no artigo 379º nº 1 c) do C.P.P. e por outro lado, e por também se ter
limitado a aderir na sua plenitude à sentença recorrida, transpondo para o
mesmo os factos dados como provados, olvidando-se da fundamentação de facto e
de direito, perante os factos aduzidos pelos arguidos/recorrentes em sede de
recurso.
7 - No
entender dos recorrentes tal fundamentação é essencial para se aferir da
bondade e justeza da manutenção da sentença recorrida, sendo que a sua falta
constitui violação do disposto no artigo 97º nº 5 do C.P.P., o que nos termos do disposto no artigo 379º nº 1 a)
do C.P.P e por remissão do artigo 4º do C.P.P., o 668º nº 1 b) do C.P.P.,
constitui uma nulidade que expressamente invocaram.
8 - Os
recorrentes peticionaram a reformulação do douto acórdão, tendo por
consideração todo o vertido no articulado de recurso junto aos autos, de forma
a ser expurgado o vício de omissão de pronúncia sobre as questões suscitadas
em sede de recurso.
9 - Veio a ser
proferido douto acórdão a 11 de Abril de 2011, que julgou improcedentes as
nulidades invocadas pelos recorrentes em sede da referida reclamação ao acórdão
de fls. 31.
10 - Daquele
modo, os recorrentes, interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
do douto acórdão a 11 de Abril de 2011, que julgou improcedentes as nulidades
invocadas pelo arguido/recorrente em sede da referida reclamação ao acórdão de
fls. 31 e o acórdão de fls. 313 acórdão esse que julgou parcialmente procedente
o recurso que havia sido interposto da sentença proferida em primeira instância
a 1 de Abril de 2009 e que condenou o arguido, A. pela prática, em co-autoria
de um crime de furto qualificado p. e p. pelo artº
203º e 204º nº 1 a) e nº 2 e) do Código Penal na pena de dois anos e seis meses
de prisão e a arguida B., como autora material de um crime de furto qualificado
p. e p. pelo artº 203 e 204 nº 1 a) e nº 2 e) do
Código Penal, na pena de dois anos de prisão suspensa por igual período.
11 - Sobre o
recurso interposto, recaiu o seguinte despacho: “Não admito o presente recurso para o S.T.J, porquanto a decisão da
Relação confirma a decisão de lª instância quanto a
pena de prisão não superior a 8 anos que tinha sido aplicada pelo Tribunal “a
quo” (artigo 400 nº1 al. f) do C.P.Penal.).
Por outro lado não há outra disposição legal especial (nem ela é
invocada ou aflorada nas doutas alegações) que permitam a possibilidade
excepcional de recurso para o S.T.J.
“Assim indefiro por inadmissibilidade o recurso ora apresentado a fl.
332 e seguintes.”
12 - Do
indeferimento do recurso apresentado, os recorrentes apresentaram reclamação
dirigida ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a qual veio ser indeferida.
13 - Na
fundamentação e sustentação legal dos despachos que foram proferidos, no
sentido da irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão
proferido pelo Tribunal da Relação e que confirmou parcialmente a sentença
proferida em primeira instância que condenou os ora recorrentes, esteve
subjacente o normativo contido no artigo 400º nº 1 f) do Código de Processo
Penal,
14 - No
modesto entender dos recorrentes o artigo 400º nº 1 f) do Código de Processo
Penal é inconstitucional, quando interpretado no sentido de não permitir o
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em caso de arguição de nulidades de
acórdão.
15 - Os
recorrentes consideram, salvo o devido respeito por opinião diversa que no caso
em apreço, atentas as nulidades de acórdão invocadas, tendo os mesmos interposto
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando a nulidade do acórdão
proferido pelo Venerando Tribunal da Relação, tal recurso era e é sempre
admissível, sob pena de violação do disposto nos artigos 20º e 32º da
Constituição da República Portuguesa.
17 - Se é
verdade que o citado artigo 400º nº 1 f) do C.P.P
dispõe no sentido de irrecorribilidade, considera-se que não poderia ter sido
feita a interpretação no sentido de indeferimento de recurso, sob pena de
violação de direitos e garantias constitucionalmente consagradas.
18 - De facto,
dispõe o artigo 425º nº 4 do C.P.P, o seguinte “É correspondentemente
aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto no artigo 379º e artigo
380º, sendo o acórdão ainda nulo quando for lavrado contra vencido, ou sem
necessário vencimento.”.
18 - Assim
como dispõe o artigo 379º o
seguinte: “É nula a sentença... quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre
questões que devesse apreciar.”.
19 - Conforme
supra se explanou os fundamentos invocados no douto recurso interposto para o
Supremo Tribunal de Justiça é a (nulidade de acórdão).
20 - Dispõe o
artigo 379º nº 2 que “As nulidades de sentenças, devem ser arguidas ou
conhecidas em recurso, sendo licito ao Tribunal supri-las, aplicando-se com as
necessárias adaptações, o disposto no artigo 414º nº 4 do C.P.P.”.
21 - Os
recorrentes apresentaram reclamação com vista a verem supridas as nulidades que
consideram estarem patentes no douto acórdão, não obstante, não se logrou
efeito, tendo sido apreciadas pelo mesmo Tribunal.
22 - Atento o
vertido nos supra invocados preceitos legais, consideram os recorrentes que não
deveria ter sido proferido despacho de indeferimento do recurso interposto
para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, sob pena de se fazer tábua rasa
dos referidos normativos.
23 - Os
recorrentes entendem que, não deveria ter sido feita a interpretação que foi
feita do artigo 400º nº 1 f) do C.P.P., sob pena de se estar a violar o
disposto no artigo 20º e 32º da Constituição da República Portuguesa.
24 - Tal
norma, é claramente atentatória contra os direitos e garantias do recorrente,
enfraquecendo, significativamente os direitos do recorrente, designadamente o
direito ao recurso, em caso de nulidade de acórdão, colidindo com os direitos
liberdades e garantias plasmadas na Lei Fundamental.
25 - Ao não se
admitir e vedar a possibilidade de análise de nulidades emanadas por uma
decisão proferida por instância de recurso, por um Tribunal Superior, possibilitando-se
apenas a reclamação para o mesmo Tribunal, depaupera, de forma significativa e
expressiva, o direito ao recurso, não sendo satisfeitas as razões subjacentes e
justificativas do direito ao recurso, com o sistema que advém do Código de
Processo Penal.
26 - Pelo que,
consideram os recorrentes que, no artigo 400º nº 1 f) do C.P.P., deverá ler-se
“Não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferido, em recurso,
pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão
não inferior a oito anos, com excepção de arguição de nulidades do acórdão nos
termos previstos nos artigos 379º e 425º
nº 4 do C.P.P., tudo em clara observância dos direitos consagrados na
Constituição da República Portuguesa, designadamente do estatuído nos artigos
20º e 32º da C.R.P..
27 - Deverá,
assim, ser declarada a inconstitucionalidade da norma vertida no artigo 400 nº
1 f), n acepção de impossibilidade de recurso para o supremo Tribunal de Justiça
quando há arguição de nulidades de acórdão, por forma a garantir os direitos
consagrados na Constituição da Republica Portuguesa”.
O Ministério
Público apresentou contra-alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
«1.º A norma
constante do artigo 400º, nº 1, alínea f), do CPP, ao restringir o acesso ao
Supremo Tribunal de Justiça, em função da gravidade das penas aplicadas aos
arguido – e nos casos em que já foi exercitado o segundo grau de jurisdição
quanto à decisão condenatória - não afronta o direito
ao recurso em processo penal, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição.
2.º Sendo a
decisão proferida pela Relação irrecorrível face ao regime aplicável, a
possibilidade de o arguido reclamar, perante o Tribunal que proferiu a decisão,
as nulidades pretensamente cometidas – aí se incluindo as constantes do artigo
379º, aplicável por força do artigo 424º, nº 4, ambos do CPP – garante o
cumprimento daquele direito constitucional.
3.º Assim, a
norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP, na interpretação segundo a qual
não é admissível recurso dos acórdãos condenatórios proferidos em recurso pelas
Relações, que confirmem decisão da 1.ª instância e apliquem pena de prisão não
superior a oito anos, mesmo quando são arguidas nulidades daquele acórdão, não
é inconstitucional
4.º Termos em
que deve ser negado provimento ao recurso.»
Fundamentação
Os Recorrentes
pretendem ver sindicada a constitucionalidade da norma constante do artigo
400.º, n.º 1, alínea f), do Código
de Processo Penal, quando interpretada no sentido de não ser admissível o
recurso de acórdão condenatório proferido, em recurso, pelo Tribunal da
Relação, que confirme a decisão de 1.ª instância e aplique pena de prisão não
superior a 8 anos, mesmo no caso de terem sido arguidas nulidades de tal
acórdão.
O artigo
400.º, n.º 1, alínea f), do Código
de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto,
dispõe o seguinte:
«Artigo 400.º
Decisões que
não admitem recurso
1 – Não é
admissível recurso:
[…]
f) De acórdãos
condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de
1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
[…]».
Esta norma da
alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de
Processo Penal, não tinha paralelo na versão primitiva do Código, tendo sido
aditada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, com a seguinte redacção:
«Artigo 400.º
Decisões que
não admitem recurso
1 – Não é
admissível recurso:
[…]
f) De acórdãos
condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de
1ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não
superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções;
[…]».
Conforme
consta da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII (publicada no
Diário da Assembleia da República, II Série A, n.º 27, de 29 de Janeiro de
1998), que veio a dar origem à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que alterou o
Código de Processo Penal, esta norma teve em vista limitar o duplo grau de
recurso. Refere-se aí, a propósito desta alteração ao regime dos recursos: “Faz-se um uso discreto do princípio da «dupla
conforme», harmonizando objectivos de economia processual com a necessidade de
limitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça a casos de maior
gravidade”.
Neste mesmo
sentido escreve José Manuel Vilalonga (em “Direito de
Recurso em Processo Penal”, em “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos
Fundamentais”,
pág. 371, da ed. de 2004, da Almedina), referindo-se às alíneas c), d), e) e f), do n.º 1,
do artigo 400.º, do Código de Processo Penal (na redacção dada pela Lei n.º
59/98, de 25 de Agosto), que a irrecorribilidade consagrada nestas disposições “reporta-se a decisões proferidas em processos nos
quais foi interposto recurso, ou seja, em processos nos quais o direito de
recurso foi, nos termos gerais, reconhecido e efectivamente exercido” e “visa
genericamente obstar a que ao Supremo Tribunal de Justiça sejam submetidas
questões que, ou pela sua menor relevância (aferida pela eficácia da decisão no
processo ou pela medida da pena) ou por terem sido objecto de apreciação por
duas instâncias decisórias num sentido favorável à defesa, não justificam a
intervenção de uma terceira instância.”
Esta questão
da dupla conforme em função do limite abstracto da moldura penal do crime não
foi pacífica depois da revisão do Código de Processo Penal de 1998, sendo
defendidas na doutrina e na jurisprudência teses diferentes a propósito da
definição do que se deveria considerar “pena aplicável” (Sobre a interpretação da alínea f) do n.º 1, do
artigo 400.º, do CPP na redacção introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de
Agosto, cfr. Manuel da Costa Andrade, Maria João
Antunes e Susana Aires de Sousa, em “Tempestividade e admissibilidade de
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça - Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça de 6 de Fevereiro de 2003”, in Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 13, N.º 3, Julho-Setembro
2003, págs. 424 e ss., e Maria João Antunes, Nuno
Brandão e Sónia Fidalgo, em “A reforma do sistema de recursos em processo penal
à luz da jurisprudência constitucional”, in Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 15, N.º 4, Outubro-Dezembro
2005, págs. 617 e ss.).
Assim, através
da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o legislador decidiu proceder a nova
alteração da norma da alínea f) do n.º 1 do
art. 400.º do Código de Processo Penal, tendo como objectivo “restringir o
recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de
maior merecimento penal” (cfr. exposição de motivos
da proposta de lei n.º 109/X, que veio a dar origem à Lei n.º 48/2007, de 29 de
Agosto), conferindo-lhe a actual redacção, nos termos da qual não admitem
recurso os acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que confirmem
decisão da 1.ª instância e que apliquem pena de prisão não superior a oito
anos.
No entender
dos Recorrentes, esta norma, interpretada no sentido aqui sob fiscalização, ao
não admitir a possibilidade de análise, por um tribunal superior, da nulidade
de uma decisão proferida por uma instância de recurso – possibilitando apenas a
reclamação para o próprio tribunal que proferiu a decisão –, depaupera, de
forma significativa e expressiva, o direito ao recurso.
Concluem,
assim, os Recorrentes que a referida norma, assim interpretada, é claramente
atentatória dos direitos e garantias do arguido recorrente, designadamente o
direito ao recurso, sendo por isso inconstitucional, por violação do disposto
nos artigos 20.º e 32.º da Constituição.
Vejamos se
lhes assiste razão.
O Tribunal
Constitucional tem reiteradamente entendido que no n.º 1, do artigo 32.º, da
Constituição, se consagra o direito ao recurso em processo penal, como uma das
mais relevantes garantias de defesa do arguido. Por outro lado, tem sido também
entendimento deste Tribunal que a Constituição não impõe, directa ou
indirectamente, o direito a um duplo recurso ou a um triplo grau de jurisdição
em matéria penal, cabendo na discricionariedade do legislador definir os casos
em que se justifica o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, desde que não
consagre critérios arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados. E mais se
tem entendido que não é arbitrário nem manifestamente infundado reservar a
intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais
graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser
aplicada (Cfr., entre outros, os acórdãos n.º
189/2001, 451/03, 495/03, 640/2004, 255/2005, 64/2006, 140/2006, 487/2006,
682/2006, 645/09 e 174/2010 disponíveis na Internet em www.tribunalconstitucional.pt).
Acresce que o
Tribunal Constitucional foi também por diversas vezes chamado a pronunciar-se
sobre a conformidade constitucional da norma da alínea f)
do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, mesmo na redacção
anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, na perspectiva da violação do
direito ao recurso, tendo decidido reiteradamente no sentido da não
inconstitucionalidade de dimensões normativas em que estava em causa a
restrição do direito ao recurso, traduzida na limitação do acesso a um duplo
grau de recurso ou triplo grau de jurisdição.
O fundamento
da não inconstitucionalidade tem uma linha comum nas diversas decisões do
Tribunal nesta matéria e pode resumir-se no entendimento de que a Constituição não impõe um triplo grau de jurisdição ou um
duplo grau de recurso em Processo Penal, devendo apenas apurar-se se
será desrazoável, arbitrário ou desproporcionado não admitir o recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça na hipótese em questão, tendo em consideração que é
legítimo limitar em termos razoáveis o acesso a este tribunal (v.g. os Acórdãos n.º 49/2003, 255/2005, 2/2006, 32/2006,
64/2006 487/2006, 682/06, 20/2007 424/2009 e 385/2011, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Num caso
semelhante ao que está em causa nos presentes autos, este Tribunal já entendeu
que a circunstância de o fundamento do recurso ser constituído por nulidades
do acórdão da Relação não exige a abertura da via de recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça. A esse propósito, no acórdão n.º 390/2004 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt)
escreveu-se o seguinte:
“ […. ] não decorre forçosamente da garantia constitucional de
um duplo grau de jurisdição que haja de ser sempre admissível o recurso para o
tribunal superior nos casos em que o tribunal de recurso se pronuncie, pela
primeira vez, sobre questões que influam na decisão da causa (ressalvando-se o
recurso de constitucionalidade para o órgão jurisdicional específico não
enquadrado na hierarquia dos tribunais) ou nos de, ao proferir a decisão,
incorrer na violação de lei processual ou procedimental
que seja sancionada com o estigma da nulidade.
Nada impõe que
se leve a autonomização da questão da nulidade da decisão em relação à questão
de fundo tão longe que seja constitucionalmente exigível a existência de um 2º
grau de jurisdição especificamente para esta questão, considerando o regime de
arguição e conhecimento das nulidades em processo penal por via de recurso, a
possibilidade de arguir as nulidades perante o órgão que proferiu a decisão,
quando aquele recurso não existir, e, como no presente caso, a existência de
duas decisões concordantes em sentido condenatório (o Tribunal da Relação
confirmou a decisão da 1ª instância nesse sentido).
É claro que o
legislador poderia, na sua discricionariedade legislativa, admitir esse
recurso, mesmo nas hipóteses em que o fundamento deste resida na arguição de
nulidades processuais, assim ampliando o âmbito material do direito de
recurso, mas a sua inadmissibilidade não será constitucionalmente intolerável.
Nesta
perspectiva, poder-se-á dizer que, em caso de recurso relativo a decisão
condenatória, seja com fundamento em nulidades processuais, seja com fundamento
em erros de julgamento atinentes ao fundo da causa, o seu objecto apelante de
um terceiro grau de jurisdição será sempre o acórdão condenatório em si
próprio. É certo que, quando o fundamento do recurso se consubstancie em uma
causa de nulidade do acórdão condenatório, não poderá afirmar-se ter sido
exercida a garantia do duplo grau de jurisdição por uma forma definitiva. Mas
uma tal situação apenas demanda, numa perspectiva de garantia constitucional do
acesso aos tribunais que o recorrente convoca (art.º 20º da CRP), que esse
mesmo grau de jurisdição se possa (deva) pronunciar de modo formalmente válido
sobre o objecto do recurso. Nesta perspectiva ganha todo o sentido a
possibilidade de o tribunal recorrido poder suprir as nulidades e de o tribunal
ad quem apenas conhecer delas quando, sendo admissível o
recurso, aquele o não tenha feito ou não as haja atendido (art.º 379º, n.º 2, e
414º, n.º 4, do CPP; cf., no domínio do processo civil, o art.º 668º, n.º 3 do
Código de Processo Civil). Deste modo, a apreciação de nulidades de acórdão
condenatório não postula a necessidade de existência de mais um grau de
recurso. A reclamação perante o órgão jurisdicional que exerce o segundo grau
de jurisdição configura-se, assim, como um instrumento jurídico adequado de
garantir o acesso aos tribunais, na sua dimensão de direito a obter uma decisão
formalmente válida, que é a dimensão que o recorrente aqui questiona.
Aliás,
admitindo-se a constitucionalidade das normas que prevêem a existência apenas
de um duplo grau de jurisdição, mesmo quando está em causa a “bondade” do
julgamento efectuado, maiores razões existem para não se terem por desconformes
com a Lei Fundamental aquelas disposições que limitam o recurso ao mesmo
segundo grau de jurisdição em caso de existência de nulidades da decisão, que
advêm essencialmente da violação de regras processuais ou procedimentais,
quando está aí garantido o direito de reclamação para apreciação dessas
nulidades para o órgão jurisdicional que exerceu o último grau de jurisdição.”
Também no caso
dos autos, tendo sido assegurado aos arguidos um duplo grau de jurisdição (uma
vez que tiveram a possibilidade de, face à mesma imputação penal, defender-se
perante dois tribunais: o tribunal de 1.ª instância e o tribunal da Relação), a
questão que se coloca é a de saber se, tendo sido arguidas nulidades do acórdão
proferido pelo Tribunal da Relação, é inconstitucional limitar a possibilidade
de um triplo grau de jurisdição, por aplicação da regra da dupla conforme,
prevista na alínea f) do n.º 1 do
artigo 400.º do Código de Processo Penal.
Note-se que
não cabe a este Tribunal aferir se esta situação configura ou não um caso de
“dupla conforme”, para efeitos de aplicação da referida limitação ao acesso ao
Supremo Tribunal de Justiça, mas apenas verificar se a não admissibilidade de
uma nova instância de recurso, nestas circunstâncias, configura uma violação do
direito ao recurso garantido pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Importa, antes
de mais, ter em consideração o regime de arguição e conhecimento das nulidades
em processo penal, que garante, mesmo em caso de irrecorribilidade, a
possibilidade de serem arguidas nulidades da decisão perante o tribunal que a
proferiu (como, aliás, aconteceu no presente caso), tendo este poderes para
suprir as eventuais nulidades cuja existência reconheça (cfr.
artigos 379.º, n.º 2, e 414.º, n.º 4, do Código de Processo Penal).
Ora, sendo
certo, conforme se disse, que o artigo 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental, não
consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição em relação a quaisquer
decisões penais condenatórias, resta verificar se, nos casos em que o Tribunal
da Relação profere acórdão em que mantém a decisão condenatória da 1.ª instância
e é arguida a nulidade de tal acórdão, se mostra cumprida a garantia
constitucional do direito ao recurso, quando exige que o processo penal faculte
à pessoa condenada pela prática de um crime a possibilidade de requerer uma
reapreciação do objecto do processo por outro tribunal, em regra situado num
plano hierarquicamente superior.
Com uma
reapreciação jurisdicional, independentemente do seu resultado, revela-se
satisfeito esse direito de defesa do arguido, pelo que a decisão do tribunal de
recurso já não está abrangida pela exigência de um novo controle
jurisdicional. E o facto de, na sequência dessa reapreciação, terem sido
arguidas nulidades do acórdão do Tribunal da Relação não constitui motivo para
se considerar que estamos perante uma primeira decisão sobre o thema decidendum, relativamente à qual é necessário
garantir também o direito ao recurso.
Com efeito, a
circunstância de os recorrentes terem arguido nulidades do acórdão do Tribunal
da Relação não modifica o objecto do processo uma vez que, tal como a decisão
da 1.ª instância, o acórdão do Tribunal da Relação que sobre ela recai
limita-se a verificar se o arguido pode ser responsabilizado pela prática do
crime que estava acusado e, na hipótese afirmativa, a definir a pena que deve
ser aplicada, o que se traduz num reexame da causa.
O Acórdão do
Tribunal da Relação constitui, assim, já uma segunda pronúncia sobre o objecto
do processo, pelo que não há que assegurar a possibilidade de aceder a mais uma
instância de controle, a qual resultaria num duplo recurso, com um terceiro
grau de jurisdição.
Por outro
lado, existindo sempre a possibilidade de arguir as referidas nulidades perante
o tribunal que proferiu a decisão, mesmo quando esta seja irrecorrível, a
apreciação de nulidades do acórdão condenatório não implica a necessidade de
existência de mais um grau de recurso, tanto mais em situações, como a dos
autos, em que existem duas decisões concordantes em sentido condenatório (uma
vez que o Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1ª instância nesse sentido).
Acresce que,
se fosse entendido que a arguição da nulidade de um acórdão proferido em
recurso implicaria, sempre e em qualquer caso, com fundamento no direito ao
recurso em processo penal, a abertura de nova via de recurso, ter-se-ia de
admitir também o recurso do acórdão proferido na terceira instância, com
fundamento na sua nulidade, e assim sucessivamente, numa absurda espiral de
recursos.
Impõe-se,
pois, concluir que não é constitucionalmente censurável, neste caso, a exclusão
do terceiro grau de jurisdição e que a interpretação normativa
objecto de fiscalização não viola o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição.
Alegaram ainda
os recorrentes que a interpretação normativa sindicada é também ofensiva do
artigo 20.º da Constituição.
Este preceito
garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus
direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se
efective através de um processo equitativo (n.º 4) e que, para defesa dos direitos,
liberdades e garantias pessoais, a lei assegure aos cidadãos procedimentos
judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela
efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos (n.º 5).
Os Recorrentes
não referem, de forma clara, qual a dimensão da garantia da tutela
jurisdicional efectiva, consagrada no artigo 20.º da Constituição, que
consideram ter sido violada pela interpretação normativa sindicada,
depreendendo-se, no entanto, que em seu entender tal violação resulta de lhes
ter sido negado o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, mediante recurso.
A
jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso
aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma protecção
jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva, cujo âmbito normativo
abrange, nomeadamente, o direito de agir em juízo através de um processo equitativo,
o qual deve ser entendido não só como um processo justo na sua conformação
legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos
princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais.
A exigência de
um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, não
afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do
processo. Impõe, no entanto, que no seu núcleo essencial os regimes adjectivos
proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou
interesses legalmente protegidos, bem como uma efectiva igualdade de armas
entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar
obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada,
o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva.
Na
interpretação normativa sob fiscalização não estamos perante uma situação de
negação de acesso aos tribunais, mas sim de restrição do acesso, em via de
recurso, a um determinado tribunal – o Supremo Tribunal de Justiça.
Conforme se
referiu, a arguição de nulidade do acórdão proferido em recurso pelo Tribunal
da Relação não tem de ser superada pela abertura de nova via de recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça, sendo legítimo, como tem sido entendimento do
Tribunal Constitucional, reservar a intervenção do Supremo Tribunal de
Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade
relevante pela pena que, no caso, tenha sido aplicada. Por isso, o
estabelecimento de um critério normativo que exclui o recurso nas aludidas
situações, fundado em razões justificativas racionalmente inteligíveis, não
contraria de forma alguma os princípios do acesso ao direito e aos tribunais e
de um processo equitativo.
Assim sendo, e
pelas razões expostas, impõe-se concluir que interpretação normativa objecto
de fiscalização também não viola o disposto no artigo 20.º da Constituição ou
qualquer outro parâmetro constitucional, pelo que o presente recurso não merece
provimento.
Decisão
Nestes termos,
decide-se:
a) Não julgar
inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f),
do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de não ser admissível o
recurso de acórdão condenatório proferido, em recurso, pela Relação, que
confirme a decisão de 1.ª instância e aplique pena de prisão não superior a 8
anos, mesmo no caso de terem sido arguidas nulidades de tal acórdão;
b)
Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pelo
Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte) unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 21 de
Dezembro de 2011.- João Cura Mariano –
Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Rui
Manuel Moura Ramos.