ACÓRDÃO N.º 591/2007
Processo
n.º 965/07
2.ª
Secção
Relator:
Conselheiro Mário Torres
Acordam,
em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A.
apresentou reclamação para a
conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98,
de 26 de Fevereiro (LTC), contra a decisão
sumária do relator, de 29 de Outubro de 2007, que, no uso da faculdade
conferida pelo n.º 1 desse preceito, negou provimento ao recurso interposto
pelo recorrente, por não julgar inconstitucional a norma constante do artigo
170.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção resultante da Lei n.º 65/98, de 2 de
Setembro.
1.1. A decisão sumária reclamada tem a seguinte fundamentação:
“1. A.
interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98,
de 26 de Fevereiro (LTC), contra o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
(STJ), de 5 de Setembro de 2007, que negou provimento ao recurso por ele
interposto contra o acórdão do Tribunal Colectivo do Círculo Judicial de Vila
Nova de Famalicão, de 9 de Janeiro de 2007, que o condenara, pela co‑autoria
de um crime de lenocínio, previsto e punido pelo artigo 170.º, n.º 1, do Código
Penal, na pena de dois anos de prisão.
No
requerimento de interposição de recurso, refere o recorrente:
«Inconstitucionalidade
do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, por ofensa do princípio da fragmentariedade ou subsidiariedade
do direito penal, plasmado no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, e previsto no artigo
40.º, n.º 1, do Código Penal, quando
interpretado à letra prescindindo da exigência de prova de uma situação de
exploração de necessidade económica ou de abandono, bem como por ofensa dos
direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade
pessoal, à liberdade de consciência, liberdade de escolha de profissão e
direito ao trabalho, previstos nos artigos 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 40.°, n.º
1, 47.º, n.º 1, e 58.º, n.º 1, da CRP.
O arguido recorrente suscitou no
decurso do processo a inconstitucionalidade da actual norma do artigo 170.º,
n.º 1, do Código Penal, quando interpretada literalmente sem exigir para o
preenchimento do tipo a verificação de uma situação de exploração de necessidade
económica ou de abandono das pessoas que se prostituem, carecendo, destarte,
de ser interpretada restritivamente, de modo a conformar‑se com a
Constituição, no sentido de se exigir para o preenchimento do tipo a
verificação das sobreditas circunstâncias.
Na motivação de recurso interposto
para o Supremo Tribunal de Justiça, o arguido alegou que, conforme já invocava
na contestação, contrariamente ao doutamente explanado no acórdão proferido
pelo Tribunal Colectivo, a actual norma do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal protege valores que
nada têm que ver com direitos e bens consagrados constitucionalmente, que não
cabe ao Direito Penal proteger; sendo que as alterações derivadas do Decreto‑Lei
n.º 48/95 eliminaram do tipo legal a exploração de situações de ‘abandono ou de
necessidade económica’ das mulheres em causa, não se podendo, por isso,
concluir, como resulta do aresto posto em crise, que ‘as situações de prostituição
relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são
situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída’.
Com a actual incriminação, o bem
jurídico protegido não é a liberdade de expressão sexual da pessoa mas uma
certa ideia de ‘defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade’, que não é
encarada hoje como função do direito penal, o que justifica uma eventual
descriminalização, neste sentido Figueiredo Dias, citado por Anabela Miranda
Rodrigues, in Comentário Conimbricense
do Código Penal, tomo I, pág. 518, § 2.
A incriminação do lenocínio prevista
no artigo 170.º, n.º 1, protege bens jurídicos transpersonalistas de étimo
moralista por via do direito penal, o que se tem hoje por ilegítimo. Nesta
perspectiva, o crime de lenocínio do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal constituirá um crime sem
vítima, salientando‑se aí que o bem jurídico protegido pela incriminação,
já à luz do direito anterior – e que a versão actual do Código não faz senão reforçar
– não é a liberdade sexual da pessoa, mas um bem jurídico transpessoal que não
cabe ao direito penal defender.
O tipo legal de crime introduzido no
n.º 1 do artigo 170.º do Código Penal, com a revisão de 1998,
protege bens jurídicos que não são eminentemente pessoais, ficando deste modo
previsto um tipo legal de crime que não se coaduna com a sistematização do
Código Penal, uma vez que se encontra inserto no capitulo V – ‘dos crimes contra a
liberdade e autodeterminação sexual’.
Na formulação
de Anabela Miranda Rodrigues, in
Comentário Conimbricense do Código Penal,
‘uma proposta coerente com o pressuposto de que se partiu – de só se
considerar legítima a incriminação de condutas do foro sexual se e na medida em
que atentem contra um específico bem jurídico eminentemente pessoal – leva a
que o direito penal só deva intervir em dois grupos de casos: quando está em
causa o desenvolvimento sexual dos menores ..., ou quando, em relação a
adultos, se utilize a violência, ameaça grave, se provoque o erro ou se
aproveite o seu estado de pessoa indefesa. Tudo o mais – a incriminação do
lenocínio prevista no artigo 170.º, n.º 1
– é proteger bens jurídicos
transpersonalistas de étimo moralista por via do direito penal, o que se tem
hoje por ilegítimo – aproximando‑nos perigosamente de um direito penal de
“fachada”’.
Acresce que a alteração verificada
com a sobredita revisão do Código Penal eleva à categoria de crimes condutas
que se consubstanciam em simples comparticipação em actos lícitos e livres.
Pois, como parece decorrer da actual
formulação do tipo do n.º 1 do
artigo 170.º do Código Penal, fomentar,
favorecer ou facilitar a prática por outrem da prostituição reconduz‑se a
comparticipação numa conduta alheia, desenvolvida livremente pela prostituta.
Sendo, destarte, incriminado aquele que auxilia, favorece ou facilita outrem à
prática do exercício de um direito próprio. Não servindo aqui o argumento
esgrimido no acórdão da primeira instância que existem outros casos em que a
conduta não é incriminada e são incriminados os terceiros participantes, como
sucede com o auxílio ao suicídio (artigo 135.º do Código Penal) ou com a
incriminação da divulgação de pornografia infantil (artigo 172.º, n.º 3,
alínea e), do Código Penal), dado
que nestes casos os bens jurídicos protegidos são, no primeiro caso, a vida
humana, mais concretamente a vida de outra pessoa, à semelhança do que sucede
com o crime de homicídio a pedido da vítima, e, no segundo caso, dado que,
atenta a pouca idade da vítima que por via disso não dispõe de liberdade sexual
positiva, protege‑se assim a autodeterminação sexual, dado que tal
conduta típica prejudica, consequentemente, de modo grave o livre
desenvolvimento da sua personalidade.
Assim, ao incriminar o fomento,
favorecimento ou facilitação da prostituição de pessoa livre e
autodeterminada, o n.º 1 do artigo 170.º ofende o princípio da fragmentariedade
ou subsidiariedade do direito penal, plasmado no artigo 18.º, n.º 2, da CRP e
previsto no artigo 40.º, n.º 1, do
Código Penal, bem como os
direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade
pessoal, à liberdade de consciência, liberdade de escolha de profissão e
direito ao trabalho, previstos nos artigos 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 40.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e
58.º, n.º 1, da CRP.
Direitos estes, de liberdade de
escolha de profissão e direito ao trabalho, que não impedem sejam exercidos,
como efectivamente o são, na prática, com auxílio e comparticipação de
terceiros.
Encontrando‑se, assim, aquela
disposição normativa (artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal)
inquinada de inconstitucionalidade material, que apenas pode ser afastada
através do recurso a uma interpretação restritiva do preceito que repristine a
exigência de que os actos descritos no tipo legal de crime apenas sejam
passíveis de o constituir quando reportando‑se a pessoas ‘em situação de
abandono ou de extrema necessidade económica’.
Pelo que o recorrente deveria ser
absolvido do crime de lenocínio, seja pela declaração de inconstitucionalidade
ou seja pela interpretação restritiva do preceito legal.
Não obstante o alegado, o Supremo
Tribunal de Justiça, no douto aresto ora recorrido, entendeu que a questão
sobre a pretensa inconstitucionalidade do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal já foi equacionada e decidida
pelo Tribunal Constitucional, designadamente no Acórdão n.º 144/2004, de 10 de
Março, processo n.º 566/2003, da 2.ª Secção, que considerou não ser
inconstitucional, nem admite interpretação restritiva no sentido de ser
tipicamente exigível a verificação de uma ‘situação de abandono ou de extrema
necessidade económica’.
Afigura‑se‑nos, todavia,
que, como assertivamente refere o Conselheiro Eduardo Maia Costa, no seu voto
de vencido, cujo fundamentação, por corresponder à única possível de forma a
coadunar o tipo legal de crime com a Constituição, se tem aqui por
integralmente reproduzida, exaustivamente esgrime argumentos que implicam a
necessária interpretação restritiva do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal,
sob pena de violação do artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
Com efeito, como refere o
Conselheiro Eduardo Maia Costa, é sem
dúvida o Parecer de M. Costa
Andrade e Maria João Antunes que analisa mais exaustivamente a questão agora em
análise, concluindo, a partir do conceito de bem jurídico nos crimes sexuais,
pela violação frontal pelo artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal do artigo 18.º,
n.º 2, da CRP.
De acordo com
o referido pelo Conselheiro Eduardo Maia Costa, é notória a preocupação do
Tribunal Constitucional, nos acórdãos referidos no douto aresto do STJ, de
justificar a incriminação do artigo 170.º, n.º 1, do CP com a violação de um
bem jurídico, mas acaba por vacilar entre a protecção da dignidade humana (sem
especificação de qual o bem jurídico subjacente) e a protecção do risco de
verificação de situações de exploração da pessoa que se prostitui, concebendo
assim, de certa forma, a infracção como crime de perigo abstracto.
Constituindo
a motivação fundamental do legislador com as alterações introduzidas pela
reforma penal de 1998 a luta contra a exploração de pessoas, então haverá
sempre que obter prova dessa situação, e não que presumi‑la, recuando a
protecção penal de forma a abranger situações que nela manifestamente não
cabem, por não se verificar a violação do bem jurídico dos crimes sexuais: a
violação da liberdade, ou autodeterminação, sexual. A exploração só existe nas
situações em que quem pratica a prostituição o faz com uma vontade
condicionada, com o consentimento viciado ou pela extrema necessidade económica
ou por uma situação de abandono, pois, então (e só então), a decisão não é
verdadeiramente livre, e, portanto, o bem jurídico protegido é ofendido. A
protecção do ‘risco’ de exploração acaba por ‘renegar’ o pretenso bem jurídico
subjacente ao crime.
A perspectiva da prostituição em que
assentam os acórdãos proferidos pelo Tribunal Colectivo e pelo Supremo
Tribunal de Justiça denuncia um pré‑compreensão estigmatizante e redutora
do fenómeno, de rejeição do mesmo em nome de ‘valores’, não vertidos em bens
jurídicos concretos.
Na verdade, não obstante as acções
de auxílio remunerado à prática de actos constitutivos da prostituição terem
sido criminalizados com a entrada em vigor do Decreto‑Lei n.º
44 579, de 18 de Setembro de 1962, e legislação subsequente, a prática de
tais actos não diminuiu, pelo contrário, cada vez se torna mais visível nas
cidades, vilas e estradas de Portugal. A prostituta que pratica voluntária e
livremente os actos sexuais de relevo contra remuneração é, na opinião de uma
corrente de pensamento, atentatória da dignidade da pessoa humana e, não
obstante a ideia da dignidade humana se ter enraizado na nossa cultura por
influência do Cristianismo, não se concebe que, quando esses actos são
praticados livre e voluntariamente, fora de qualquer coacção ou exploração de
uma situação de necessidade, atentem contra a dignidade da pessoa humana. Com
efeito, enquanto o tratamento explícito dos antigos pensadores cristãos se
processava em termos ontológicos, os modernos, de um modo geral, estudam a
Pessoa e os seus direitos mais nas suas manifestações mundanas e intersubjectivas
do que na sua relação com o ser, mais, portanto, o homem entendido como
natureza em devir e plurifacetada.
A prática da prostituição é uma realidade
que ninguém pode escamotear, ao serem proibidos estabelecimentos comerciais
que tinham por objecto facilitar a prática da prostituição, passaram os mesmos
a ser clandestinos, aumentou a prostituição de rua e surgiu uma nova forma de a
praticar e favorecer, em apartamentos privados, com anúncios a ocuparem cada
vez maior número de páginas nos jornais diários de maior tiragem. Reconduzindo‑se,
destarte, à prática de uma actividade que de facto existe e movimenta milhões
de euros por ano, sobre os quais não incide qualquer imposto ou taxa. Associado
a esta actividade sem o devido licenciamento, a segurança, higiene e, sobretudo, a saúde dos utentes,
maioritariamente casados, que consequentemente presenteiam os respectivos
cônjuges com doenças sexualmente transmissíveis, está seriamente ameaçada, o
que não sucederia se a referida actividade se encontrasse regulamentada, sendo
que o controlo médico seria uma sua consequência. Sem qualquer hipocrisia
diríamos que a prostituição praticada na rua e em apartamentos mediante anúncio
em jornais diários ofende a moral e moralidade sexual da sociedade, o que não
sucederia com a prática de tais actos em estabelecimentos comerciais para tal
licenciados em que as prostitutas e/ou prostitutos exerceriam aí uma
actividade também ela regulamentada. Os benefícios compensariam a coragem
política de regulamentar uma actividade que desde sempre existiu e que, em
Portugal, há quatro décadas atrás encontrava‑se regulamentada. Existindo
de facto, por que razão não podem as prostitutas exercer os direitos fundamentais
contidos nos artigos 47.º e 58.º da CRP, ou seja, liberdade de escolha de
profissão e direito ao trabalho?
O argumento do aproveitamento
económico por terceiros como ‘utilização de uma dimensão especificamente
íntima de outro não para fins dele próprio, mas para fins de terceiro’
denuncia, objectivamente, uma condenação tipicamente moral do fenómeno da
prostituição, uma perspectiva que considera chocante e indigna a ‘venda do
corpo’, ainda que voluntária, consciente e praticada por adultos, uma posição
que nada tem a ver com o bem jurídico protegido, tal como é entendido pelo
legislador. Por isso, tenta‑se presumir (ou melhor ficcionar) uma situação
de exploração, de aproveitamento, de extorsão, quando intervêm terceiros.
Ao ser interpretada no sentido
explanado nos arestos do Tribunal Colectivo e Supremo Tribunal de Justiça, a
norma, ao ser interpretada à letra, prescindindo da exigência de prova de uma
situação de exploração de necessidade económica ou de abandono, é
inconstitucional, por ofender o princípio da fragmentariedade ou
subsidiariedade do direito penal, plasmado no artigo 18.º, n.º 2, da CRP e
previsto no artigo 40.º, n.º 1, do
Código Penal, bem como os
direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade
pessoal, à liberdade de consciência, liberdade de escolha de profissão e
direito ao trabalho, previstos nos artigos 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 40.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e
58.º, n.º 1, da CRP. Direitos estes, de liberdade de escolha de profissão e
direito ao trabalho, que não impedem sejam exercidos, como efectivamente o
são, na prática, com auxílio e comparticipação de terceiros.
Encontrando‑se assim, reafirma‑se,
aquela disposição normativa (artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal)
inquinada de inconstitucionalidade material, que apenas pode ser afastada
através do recurso a uma interpretação restritiva do preceito, que repristine a
exigência de que os actos descritos no tipo legal de crime apenas sejam passíveis
de o constituir quando reportando‑se a pessoas ‘em situação de abandono
ou de extrema necessidade económica’. Ademais, o Tribunal de Justiça das
Comunidades Europeias já considerou como uma prestação de serviços remunerada
e abrangida pelo conceito de ‘actividades económicas’.
Resultando dos autos, na matéria de
facto provada, a inexistência de qualquer facto que revele ou porventura
indicie vagamente alguma situação de exploração, nenhuma suspeita razoável se
pode formar de que ocorresse um aproveitamento de situações de carência
económica ou de abandono em que as prostitutas se encontrassem.
De facto, a única conclusão que se
extrai da matéria de facto é que a prática da prostituição era inteiramente
livre da parte das prostitutas que ali exerciam o seu modo de vida, à sua
ocupação de onde retiravam os proventos necessários à sua subsistência, por
elas livremente escolhida.
Perante tal quadro factual, a única
conclusão possível seria e é a da exclusão da ilicitude, pois, não obstante se
tratar de uma empresa de diversão nocturna que assentava a sua actividade
económica na organização da actividade de prostituição por parte de um grupo
de mulheres que a ela se dedicava por escolha livre e informada. Constituindo
uma actividade profissional e com intuito lucrativo que recaem, numa
interpretação literal, inequivocamente, na previsão contida no artigo 170.º,
n.º 1, na redacção actual,
todavia, tal incriminação, para se conformar com a Constituição, deve ser
interpretada no sentido de se exigir a concreta verificação de uma situação de
exploração de necessidade económica ou de abandono das pessoas que se
prostituem.
Assim, e em conclusão,
O artigo 170.º, n.º 1, do Código
Penal encontra‑se inquinado de inconstitucionalidade material, que apenas
pode ser afastada através do recurso a uma interpretação restritiva do preceito
que repristine a exigência de que os actos descritos no tipo legal de crime
apenas sejam passíveis de o constituir quando reportando‑se a pessoas ‘em
situação de abandono ou de extrema necessidade económica’.
Nestes termos e nos demais de
direito, sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá o
presente recurso merecer provimento, decretando‑se a
inconstitucionalidade do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, por ofensa do
princípio da fragmentariedade ou subsidiariedade do direito penal, plasmado no
artigo 18.º, n.º 2, da CRP, bem como os direitos à livre expressão da
sexualidade, à vida privada, à identidade pessoal, à liberdade de consciência,
liberdade de escolha de profissão e direito ao trabalho, previstos nos artigos
26.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 40.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e 58.º, n.º 1, da CRP, com
todas as consequências legais.»
2. Estão reunidos os requisitos de admissibilidade do recurso
interposto, já que, por um lado, o recorrente suscitou, de modo adequado, na
motivação do recurso interposto para o STJ, a questão da inconstitucionalidade
da norma do artigo 170.º, n.º 1, do Código
Penal, na dimensão identificada no transcrito requerimento de interposição de
recurso, e, por outro lado, o acórdão recorrido fez efectiva aplicação, como ratio decidendi, da norma impugnada. Ao
pronunciar‑se sobre essa questão, o acórdão ora recorrido, após
referenciar a jurisprudência do Tribunal Constitucional e do próprio STJ sobre
a constitucionalidade da norma em causa, ponderou:
«Não se ignora o carácter fragmentário, subsidiário, do
direito penal de hoje, assumindo‑se funcionalisticamente como ultima ratio de salvaguarda e tutela de bens jurídicos
fundamentais à convivência comunitária, sendo o crime entendido numa
perspectiva teleológico‑racional, em que numa sociedade livre,
secularizada e pluralista, a legitimação do direito penal assenta na
necessidade de protecção de bens jurídicos fundamentais da pessoa e da
comunidade.
Mas
o direito penal não pode arredar‑se da sociedade que serve, axiologicamente
fundada na matriz constitucional.
A
axiologia jurídico‑constitucional é a barreira intransponível da dogmática
jurídico‑penal, e os bens jurídicos de tutela penal são afinal explicitação
referenciadora da axiologia constitucional, em que a norma penal garante a sua
protecção, restabelecendo a confiança da comunidade na estabilização
contrafáctica da norma violada.
Por
outro lado, há que não esquecer ‘que a extensão, o sentido e, enfim, a
aplicação do direito penal ficam em última análise dependentes da teleologia,
das valorações e das proposições político‑criminais inerentes ao
sistema’ (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 26).
Pesquisando
a evolução legislativa, a partir de 1982, verifica‑se:
Versão
originária (1982)
Artigo
215.º
Lenocínio
‘1
– Quem fomentar, favorecer ou facilitar a prática de actos contrários ao pudor
ou à moralidade sexual, ou de prostituição relativamente:
a) A pessoa menor ou portadora de anomalia psíquica;
b) A qualquer pessoa, explorando situação de abandono ou de extrema
necessidade económica;
será
punido com prisão até 2 anos e multa até 100 dias.
2
– Na mesma pena incorre quem explorar o ganho imoral de prostituta, vivendo,
total ou parcialmente, a expensas suas.’
Artigo
216.º
Lenocínio agravado
‘Relativamente
aos comportamentos descritos no artigo anterior, a pena será:
a) A de prisão de 2 a 4 anos e multa até 150 dias se o agente os realizar
com intenção lucrativa;
b) A de prisão de 2 a 6 anos e multa até 180 dias se os realizar profissionalmente;
c) A de prisão de 2 a 8 anos e multa até 200 dias se usar fraude, violência
ou ameaça grave;
d) A de prisão de 2 a 8 anos e multa até 200 dias se a vítima for
cônjuge, ascendente, descendente, filho adoptivo, enteado ou tutelado do
agente, ou lhe foi entregue em vista da sua educação, direcção, assistência,
guarda ou cuidado.’
Versão
revista (1995)
Artigo
170.º
Lenocínio
‘1
– Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou
facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos
sexuais de relevo, explorando situações de abandono ou de necessidade
económica, é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
2
– Se o agente usar de violência, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta,
ou se aproveitar de incapacidade psíquica da vítima, é punido com pena de
prisão de 1 a 8 anos.’
Versão
da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro
Artigo
170.º
(…)
‘1
– Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou
facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos
sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
2
– …’
Versão
da Lei n.º 99/2001, de 25 de Agosto
Artigo
170.º
(…)
‘1
– …
2
– Se o agente usar de violência, ameaça grave, ardil, manobra fraudulenta, de
abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica,
económica ou de trabalho, ou se aproveitar de incapacidade psíquica da vítima
ou de qualquer outra situação de especial vulnerabilidade, é punido com pena
de prisão de 1 a 8 anos.1
Como
escreve Anabela Rodrigues, in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte
Especial, tomo I, Coimbra Editora, 1999,
p. 518 (I. A construção do tipo e o bem jurídico – 1. O artigo 170.º, n.º 1, e
o problema da eventual descriminalização da conduta nele contida § 1.): ‘Com
a entrada em vigor do CP de 1982, operou‑se a revogação da disposição
legal incriminadora contida no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º
44 579, de 19 de Setembro de 1962, de acordo com a qual bastava que o
agente “favorecesse” ou “de algum modo facilitasse” o exercício da
prostituição para poder ser punido pela prática do crime de lenocínio (sobre
esta concepção de lenocínio cf. Beleza dos Santos, RLJ, 60.º, p. 97; era também esta concepção tradicional a vazada no
ProjPE, artigo 263.º, n.º 1, Actas,
1979, p. 212). Não se exigia, como o passou a fazer o artigo 215.º, n.º 1,
alínea b), do referido CP de 1982,
que o agente, ao “fomentar, favorecer ou facilitar”, na linguagem do
legislador de então, “a prática de actos contrários ao pudor ou à moralidade
sexual” (…) por qualquer pessoa, estivesse a explorar uma “situação de abandono
ou extrema necessidade económica” em que tais pessoas se encontrassem. Esta
orientação manteve‑se na versão do CP de 1995 que, com as transformações
devidas no teor verbal da incriminação (cf. comentário ao artigo 169.º),
continuou a exigir, para que de lenocínio se pudesse falar, que o agente
fomentasse, favorecesse ou facilitasse “o exercício da prostituição ou a
prática de actos sexuais de relevo, explorando situações de abandono ou de necessidade
económica” (artigo 170.º, n.º 1). É, de novo, a primitiva orientação que, de
alguma forma, consagra agora a Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, deixando de
exigir a verificação deste elemento típico e alargando, assim, o âmbito da
incriminação.’
É
diversa a doutrina sobre o crime de lenocínio (v., v. g., Beleza dos Santos, ‘O Crime de
Lenocínio’, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 60.º, n.ºs 2332 a 2344, 2346, 2347,
2349 e 2351 a 2353; Código Penal: Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993, maxime Acta n.º 24, pp. 229 a 270; Karl Prelhaz
Natscheradetz, Direito Penal Sexual: Conteúdo e Limites (Dissertação), Almedina; Sénio Alves dos Reis, Crimes
Sexuais: Notas e Comentário aos artigos 163.º a 179.º do Código Penal, Almedina, 1995, pp. 67 a 70; José António
Rodrigues Marques, ‘O Crime de Lenocínio no Direito Penal Português’, Estudos
Comemorativos do 150.º Aniversário do Tribunal da Boa Hora, Ministério da Justiça, 1995, pp. 175 a 183; Teresa Beleza, ‘Sem Sombra
de Pecado. O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código Penal’, in
Jornadas de Direito Criminal/Revisão do Código Penal, I volume, Centro de Estudos Judiciários, 1996, pp. 157 a 183; Anabela
Miranda Rodrigues, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte
Especial, tomo I, Coimbra Editora, 1999,
pp. 518 a 532; ‘O papel dos sistemas legais e a sua harmonização para a
erradicação das redes de tráfico de pessoas’, in Revista do Ministério
Público, n.º 84 (Out./Dez. 2000), pp. 15
a 29).
Há
hoje quem entenda dever encontrar‑se descriminalizado o referido artigo
170.º, n.º 1, do Código Penal, porquanto, como sintetiza Anabela Rodrigues, ibidem § 2, p. 519: ‘Com esta incriminação o
bem jurídico protegido não é, como devia, a liberdade de expressão sexual da
pessoa, mas persiste aqui uma certa ideia de “defesa do sentimento geral de
pudor e de moralidade”, que não é encarada hoje como função do direito penal e,
de qualquer modo, não presidiu ao novo enquadramento dos “crimes contra a
liberdade sexual” no título mais vasto dos crimes contra as pessoas e como uma
forma que assumem os atentados contra a liberdade (…)’.
Nesta
ordem de ideias, mesmo quando o artigo 170.º, n.º 1, exigia a verificação de
situações ‘de abandono ou de necessidade económica’, pressupunha situações de
‘miséria e de exclusão social’, que, no dizer de Figueiredo Dias, não
justificaria a intervenção do Direito Penal, por se tratar ‘de um problema
social e de polícia’, o que conduzia à descriminalização.
Nesta
perspectiva, seria contraditória a solução actual ao eliminar a verificação
do elemento ‘exploração de situações de abandono ou de necessidade económica’,
resultando num alargamento da incriminação.
Verdadeiramente
digno de tutela penal seria o comportamento tipificado no artigo 170.º, n.º 2,
do Código Penal.
Com
o devido respeito, não perfilhamos tal entendimento.
Não
é exclusivamente o aspecto estrito de liberdade e autodeterminação sexual,
como bem pessoal, que subjaz à criminalização.
Embora
a vítima do crime de lenocínio, constante do artigo 170.º do Código Penal,
possa ser, em qualquer das formas, qualquer pessoa adulta, homem ou mulher, tem
sido a nível da vítima mulher que o tema intensamente tem incidido.
Em
anotação ao artigo 170.º, escreve Maia Gonçalves (in Código Penal
Português, anotado e comentado, 17.ª
edição, p. 598, nota 3): ‘Integra-se na orientação seguida pelo Código, na
sequência da Convenção Internacional sobre a Repressão do Tráfico de Seres Humanos,
de 2 de Dezembro de 1949, de, em matéria de prostituição e de actos contrários
à moralidade sexual, só punir quando forem postos em causa, por forma
relevante, os valores da comunidade e as concepções ético‑sociais
dominantes, e de que a reacção criminal contra a prostituição deve dirigir‑se
menos à prostituta do que à engrenagem de que ela tantas vezes é vítima.’
Aliás, já o Decreto‑Lei n.º
44 579, de 19 de Setembro de 1962 (que proibia o exercício da
prostituição a partir de 1 de Janeiro de 1963), explicitava no preâmbulo:
‘Não se espera que as
medidas preconizadas levem ao desaparecimento de prostitutas, pois as
continuará a haver em Portugal, como, na prática, as há por todo o Mundo, no
momento presente. Mas, além do mais, dar‑se‑á o grande passo de
proibir e colocar sob a alçada da lei toda a complicada engrenagem que
actualmente as explora, o que já se afigura muito importante.’
Na
actualidade, o crime de lenocínio surge ainda como dimensão do tráfico de
pessoas, em que o tráfico de mulheres é um fenómeno em crescimento,
nomeadamente na União Europeia.
Como
refere Anabela Rodrigues, in ‘O papel dos
sistemas legais e a sua harmonização para a erradicação das redes de tráficos
de pessoas’, Revista do Ministério Público, ano 21.º, n.º 84, p. 21 e seguintes:
‘As forças judiciais e
policiais de vários Estados‑membros têm também notado o aparecimento de
grandes redes criminosas neste domínio.
Aparentemente existem ligações com
outras formas de criminalidade.
Os elevados ganhos conseguidos pelas
organizações criminosas envolvidas no tráfico de mulheres levam obviamente a
actividades de branqueamento de capitais e implicam a criação de empresas
fictícias envolvidas em actividades ilícitas. Algumas fontes também têm indicado
que as mulheres vítimas de tráfico são frequentemente deslocadas de um Estado‑membro
para outro de forma a satisfazer clientes com novas prostitutas e a dificultar
que as vítimas sejam detectadas pela polícia ou pelos serviços sociais.
(…)
Depois de as mulheres serem
transportadas para o país de destino existem várias formas para as forçar a
iniciarem e /ou continuarem uma actividade de prostituição.’
Na
União Europeia, os Estados‑membros aprovaram a Acção Comum de Fevereiro
de 1997 com vista a ‘aperfeiçoar as disposições penais dos Estados‑membros
e a sua cooperação judicial no contexto do combate ao tráfico de seres
humanos’.
No
que diz respeito às medidas a adoptar no plano nacional, os principais
elementos contidos nesta Acção Comum são os seguintes:
–
Criminalização de comportamentos tais como a exploração sexual de uma pessoa
com fins lucrativos utilizando coação, ou falsas promessas, ou abuso de
autoridade ou outra pressão que não permitia uma verdadeira opção a essa
pessoa;
–
Tráfico de pessoas para obtenção de ganhos com vista a uma exploração sexual.
(idem,
ibidem).
Como
refere a mesma Distinta Professora, ‘No âmbito da incriminação, no Código Penal, do
tráfico de pessoas (artigo 169.º) e do lenocínio (artigo 170.º), a recente
alteração ao CP (Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro) veio retirar dos tipos legais
o elemento “exploração de situação de abandono ou necessidade”. Esta alteração
correspondeu às exigências de alargar, tornando‑a mais fácil, a
incriminação de certas condutas ligadas ao tráfico de pessoas para fins de
exploração sexual.» (idem, ibidem, p. 26).
Aliás,
bem se compreende o alargamento de tal incriminação uma vez que as exigências
probatórias são elevadas, é normalmente escassa a colaboração das vítimas, não
sendo também ‘descurável a circunstância de que algumas das vítimas, por ânsia
de lucro ou necessidade de sustento de dependências tóxicas, preexistentes ou
entretanto adquiridas, vencida a relutância inicial, adiram ou se conformem
com a situação de exploração a que são submetidas e se neguem assim a qualquer
acção de colaboração com as autoridades’ – Euclides Dâmaso Simões, ‘Tráfico de
Seres Humanos, A lei portuguesa e a importância da cooperação judiciária
internacional’, in
Polícia e Justiça, III série, n.º 4, pp.
260 e 261 (v. ainda a análise deste autor na sequência da Convenção de Palermo
e Protocolo Adicional à mesma, ratificados por Portugal e publicados no Diário
da República, de 2 de Abril de 2004, bem
como a Decisão Quadro 19-72002, da União Europeia).
Como
se disse em determinada altura, na discussão parlamentar, na Assembleia da
República, aquando da revisão do Código Penal:
‘O ritmo de mutações
sociais que hoje vivemos traz consigo novas formas de criminalidade e agravamento
quantitativo e qualitativo de certas formas de comportamentos criminosos a
exigirem resposta não só dos aparelhos de investigação criminal como dos
próprios textos básicos de política criminal.
(…)
Especial atenção devem merecer por
parte do Estado a protecção de certo tipo de vítimas, particularmente
indefesas face às agressões, as mais diversas, de que podem ser objecto. Daí o
essencial das alterações que agora propomos e que, aliás, colhem consenso,
muitas delas, nas bancadas da oposição.
Assim, no que respeita à parte
especial, as alterações propostas visam basicamente: (…) a intensificação do
combate aos crimes de exploração sexual de pessoas objecto de prostituição e de
tráfico; (…)
(…)
Nos crimes de tráfico de pessoas e
de lenocínio alargar‑se a incriminação, retirando‑se das
descrições típicas a exigência de exploração de situações de abandono ou de
necessidade. Na verdade, bastará, nestes casos, o constrangimento à
prostituição ou à actividade sexual de relevo em país estrangeiro, através de
violência, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta ou a exploração sexual de
outra pessoa (desenvolvida profissionalmente ou com intenção lucrativa) para
que as condutas já possuam indispensável relevância ético‑penal, e para
que, como tal, devam ser punidas.’ (Diário
da Assembleia da República, I Série, n.º
48, de 13 de Março de 1998, pp. 1625 e 1626).
Nesta
sequência, a diferença entre o crime de tráfico de pessoas (artigo 169.º do
Código Penal) e o crime de lenocínio, nas várias modalidades, será de ordem
territorial.
Salienta
Maia Gonçalves (ibidem, p. 596, nota 2) em anotação ao artigo
169.º (tráfico de pessoas) do Código Penal: ‘É elemento típico deste crime
a circulação de pessoas para país estrangeiro para a prática da prostituição ou
de actos sexuais de relevo, não estando, portanto, aqui incriminada a
circulação dentro do mesmo país, para as aludidas práticas. Neste caso, a
incriminação só será possível através dos artigos 170.º (…), se se verificarem
os outros elementos constitutivos desses crimes’.
Dâmaso
Simões (ibidem, p. 265) assinala: ‘(…) sempre deveria
perspectivar‑se a hipótese de aplicação do regime plasmado no artigo
170.º do Código Penal para o crime de lenocínio, primordialmente vocacionado, a
meu ver, para os casos de “tráfico nacional” (isto é, de arrastamento para a
prática de prostituição ou de actos sexuais de relevo dentro do País, sem
cruzamento de fronteiras).’
O
artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal insere‑se, pois numa opção de política
criminal, tendo em conta a necessidade de combater o tráfico de pessoas para
exploração sexual, assentando o bem jurídico na protecção da dignidade da
pessoa no modo de explicitação comunitária da sua liberdade e autodeterminação
sexual.
E,
como refere Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 24:
‘Parafraseando uma
afirmação antecipadora de Kohlrausch, dir‑se‑á que uma ciência
jurídico‑penal que nada tenha a oferecer às necessidades correctamente
entendidas da política criminal não só se torna em peça decorativa inútil, como
é falsa.
A esta luz, numa palavra, todas as
categorias e todos os conceitos da dogmática jurídico‑penal devem
apresentar‑se funcionalmente determinados pelas (e ligados às)
finalidades eleitas pela política criminal. (…)’
E,
mais adiante, a pág. 25, escreve o mesmo Ilustre Professor: ‘(…) as finalidades e as
proposições político‑criminais devem, elas também, ser procuradas e
estabelecidas no interior do quadro de valores e de interesses que integram o
consenso comunitário mediado e positivado pela Constituição do Estado. Somente
desta maneira poderá de resto a política criminal, como deve, conceder uma
importância primária à protecção dos direitos, das liberdades e das garantias
da pessoa – de toda e qualquer pessoa, só por o ser.’
O
artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal protege um bem jurídico, de natureza
constitucional, que é a dignidade da pessoa humana, constitutiva de um dos
princípios fundamentais da República Portuguesa, conforme artigo 1.º da Constituição
da República. Assumindo‑se o artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal como
uma dimensão de tutela jurídico‑penal da garantia da dignidade humana,
constitucionalmente consagrada e protegida constitucionalmente pelo artigo
26.º, n.º 2, da Constituição, aqui na vertente da dignidade ínsita à auto‑expressividade
sexual, co‑determinando tal inciso, axiológico‑normativamente, a
expressividade comunitária do modo de exercício do direito à liberdade e
autodeterminação sexual, ou, dito de outro modo, vinculando esse exercício de
autodeterminação sexual, com projecção e relevância ético‑sociais, à
dignidade da pessoa, de forma a que esta não constitua mera mercadoria, res possidendi, mero instrumento de prestação sexual,
ainda que com o consentimento da vítima, explorada profissionalmente ou com
intenção lucrativa por outrem.
Para
se verificar o crime de lenocínio, previsto e punido no artigo 170.º, n.º 1, do
Código Penal, basta que – como, aliás, da sua redacção resulta – o agente
pratique alguma das condutas ali previstas (fomentar, favorecer ou facilitar o
exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de
relevo), ‘profissionalmente ou com intenção lucrativa’.
Não
é elemento típico do crime previsto e punido no n.º 1 do artigo 170.º do Código
Penal a existência de uma situação de exploração de necessidade económica ou
de abandono da vítima.
Nem
a exigência dessa situação tem o mínimo apoio literal no n.º 1 do artigo 170.º
do Código Penal (v., aliás, artigos 1.º do Código Penal e 9.º, n.ºs 2 e 3, do
Código Civil).
A
existência de uma situação de exploração de necessidade económica ou de
abandono da vítima constitui, outrossim, uma circunstância qualificativa do
crime de lenocínio, como resulta do n.º 2 do mesmo artigo 170.°
Também
a Proposta de Lei (de alteração do Código Penal) n.º 98/X, no seu artigo 169.º,
n.º 1, não contempla a exigência de tal situação de exploração, a qual
continua a integrar uma das qualificativas do crime, nos termos do n.º 2,
alíneas c) e d),
do referido artigo 169.º
O
artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal não é assim, inconstitucional, nem admite
interpretação restritiva no sentido de ser tipicamente exigível o que a lei
eliminou.
A
admitir‑se uma interpretação restritiva, em tal âmbito, seria fazer
entrar pela janela o que se fez sair pela porta (revisão de 1998).
Uma
interpretação restritiva do referido artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, no
sentido de que a inexistência de uma situação de exploração de necessidade
económica ou de abandono da vítima se traduz em descriminalização da conduta
do agente ainda que verificada a factualidade típica descrita no mesmo n.º 1,
é que será inconstitucional, porque contende com a definição dos pressupostos
do crime, que é da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da
República, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República.»
3. A questão que constitui objecto do presente recurso já
foi objecto de anteriores decisões do Tribunal Constitucional, o que possibilita
a prolação de decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º‑A da
LTC.
Na verdade, pelos Acórdãos n.ºs 144/2004, 196/2004,
303/2004, 170/2006, 396/2007 e 522/2007 (os dois primeiros, da 2.ª Secção,
subscritos pelo ora relator; os terceiro, quinto e sexto da 1.ª Secção; e o
quarto da 3.ª Secção), o Tribunal Constitucional pronunciou‑se
reiteradamente no sentido da não inconstitucionalidade da norma em causa.
No Acórdão n.º
144/2004 foram tratadas as alegadas violações do princípio da proporcionalidade,
consagrado no artigo 18.º, n.º 2, e dos artigos 41.º (liberdade de consciência)
e 47.º, n.º 1 (liberdade de profissão), da Constituição da República
Portuguesa (CRP), explanando‑se, a esse propósito, o seguinte:
«4. Está em causa, no presente
processo, a eventual inconstitucionalidade da norma contida no artigo 170.º,
n.º 1, do Código Penal, por violação dos artigos 41.º e 47.º, n.º 1, conjugados
com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição.
Tem o citado artigo 170.º, n.º 1, do
Código Penal, o seguinte teor: ‘Quem,
profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o
exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de
relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.’
5. O ponto de vista que a
recorrente apresenta ao Tribunal Constitucional consubstancia‑se no
seguinte:
– os bens jurídicos protegidos pela
norma em crise são, em primeira linha, ‘sentimentalismos transpessoais’,
valores de ordem moral e não bens pessoais como a liberdade e autodeterminação
sexual;
– não sendo a prostituição em si
punível, incriminar‑se a actividade comercial ou lucrativa que tem por
base a prostituição ou ‘actos similares’ corresponde a privar os cidadãos de
exercer uma actividade profissional por imposição de regras morais.
A pergunta a que importa responder
é, portanto, a de saber se fere alguma norma ou princípio constitucional a
incriminação das condutas que constituem a factualidade típica do artigo 170.º
6. Não se terá, aqui, de
responder à questão geral sobre se o Direito Penal pode, constitucionalmente,
tutelar bens meramente morais, questão que não pode ser resolvida sem o
esclarecimento prévio do que se entende por bens puramente morais e que não
pode deixar de tomar em consideração que há valores e bens tidos como morais e
que relevam, inequivocamente, no campo do Direito. A relação entre o Direito e
a Moral ou o Ethos tem sido objecto de uma controvérsia muito
importante, sendo uma das questões fundamentais da Filosofia do Direito. Com
efeito, desde a tradição liberal radicada em Stuart
Mill (On liberty, 1859) ou
mesmo do pensamento de Kant (Metaphysik
der Sitten, 1797), em que o Direito se
situa apenas no plano do dano ou do prejuízo dos interesses ou da violação dos
deveres (externos) para com os outros até às concepções de uma total fusão
entre o Direito e a Moral, em que se reconhece que o Direito tem legitimidade
para impor colectivamente valores morais (assim, por exemplo, no pensamento
anglo‑saxónico, Patrick Devlin,
em The Enforcement of Morals, 1965,
em nome da manutenção da identidade da sociedade), tem‑se mantido acesa
a discussão. Apesar das duas posições extremas – a da separação absoluta entre
o Direito e a Moral e a da total coincidência entre Direito e Moral – é amplamente
aceite que o Direito e a Moral, embora a partir de perspectivas diferentes,
fazem parte de uma unidade mais vasta (assim, Arthur
Kaufmann, Recht und Sittlichkeit,
1964, p. 9, e, de modo introdutório à questão, J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso
Legitimador, 1990, p. 59 e seguintes).
Assim, tanto quem procure em valores
morais a legitimação do Direito, como quem acentue a distinção entre Moral e
Direito, reconhecerá, inevitavelmente, que existem bens e valores que participam
das duas ordens normativas [partindo de concepções diversas sobre o Direito,
mas coincidindo neste último ponto, cf. Radbruch,
Filosofia do Direito (trad. port. de L. Cabral de Moncada), 6.ª
ed., 1979; e Kelsen, Teoria
Pura do Direito (trad. port. de Baptista
Machado), 1979 – este último, apesar da separação radical entre Direito e
Moral, não deixa de reconhecer que o Direito pode tutelar valores morais, sem
que, por isso, Direito e Moral se confundam; também Hart o reconhece em ‘Positivism and the Separation of Law
and Morals’, Harvard Law Review,
1958; ver ainda, do mesmo autor, Conceito de Direito (trad. port. de A. Ribeiro Mendes), 1986]. Mesmo as posições mais
favoráveis à autonomia do Direito não negam que possam existir valores morais
tutelados também pelo Direito, segundo a lógica deste e por força dos seus
critérios (sobre toda a problemática da relação entre a Moral e o Direito, veja‑se,
por exemplo, Arthur Kaufmann, Rechtsphilosophie, 2.ª ed., 1997, Kurt Seelmann, Rechtsphilosophie, 1994). Porém, questão prévia a tal problemática e decisiva no
presente caso é a de saber se a norma do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal
apenas protege valores que nada tenham a ver com direitos e bens consagrados
constitucionalmente, não susceptíveis de protecção pelo Direito, segundo a
Constituição portuguesa.
Ora, a resposta a esta última
questão é negativa, na medida em que subjacente à norma do artigo 170.º, n.º
1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na História, na Cultura e
nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de prostituição
relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são
situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída (cf. sobre
a prostituição, nas suas várias dimensões, mas caracterizando‑o como
‘fenómeno social total’ e, depreende‑se, um fenómeno de exclusão, José Martins Bravo da Costa, ‘O crime
de lenocínio. Harmonizar o Direito, compatibilizar a Constituição’, em Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 3, 2002, p. 211 e seguintes;
do mesmo autor e Lurdes Barata Alves,
Prostituição 2001 – O Masculino e o Feminino de Rua, 2001). Tal perspectiva não resulta de preconceitos morais mas do
reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e
assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir,
enquanto expressão de liberdade de acção, situações e actividades cujo
‘princípio’ seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a
intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro
instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o
artigo 1.º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual
dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal
ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres (Lei
n.º 23/80, em Diário da República, I
Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em 1991, a Convenção para a
Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (Diário da República, I Série, de 10 de Outubro de 1991).
É claro que a esta perspectiva
preside uma certa ideia cultural e histórica da pessoa e uma certa ideia do
valor da sexualidade, bem como o reconhecimento do valor científico das
análises empíricas que retratam o ‘mundo da prostituição’ (e note‑se que
neste terreno tem sido longo o percurso que conduziu o pensamento sociológico
desde a caracterização da prostituição como anormalidade ou doença – assim, C. Lombroso e G. Ferro, La femme
criminelle et la prostituée, 1896, e, no
caso português, os estudos de Tovar de
Lemos, A prostituição. Estudo anthropologico da prostituta
portuguesa, 1908, e, sobre as concepções
da ciência acerca da prostituição no início do século, cf. Maria Rita Lino Garnel, ‘A loucura da
prostituição’, em Themis, ano III,
n.º 5, 2002, p. 295 e seguintes – até ao reconhecimento de que as prostitutas
são vítimas de exploração e produto de uma certa exclusão social). Mas tal
horizonte de compreensão dos bens relevantes é sempre associado a ideias de
autonomia e liberdade, valores da pessoa que estão directamente em causa nas
condutas que favorecem, organizam ou meramente se aproveitam da prostituição.
Não se concebe, assim, uma mera
protecção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional particular ou
mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores
da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem, valores
esses protegidos pelo Direito enquanto aspectos de uma convivência social
orientada por deveres de protecção para com pessoas em estado de carência
social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um
significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspectiva moral, sem
correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas
finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é assumido
pelo legislador penal é, antes, o da protecção da liberdade e de uma ‘autonomia
para a dignidade’ das pessoas que se prostituem. Não está, consequentemente,
em causa qualquer aspecto de liberdade de consciência que seja tutelado pelo
artigo 41.º, n.º 1, da Constituição, pois a liberdade de consciência não
integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar das carências alheias ou de
lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por outro lado, nesta
perspectiva, é irrelevante que a prostituição não seja proibida. Na realidade,
ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma
expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o
aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma
interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da
prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando‑o
em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente
íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros.
Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de
uma conduta não é incriminado e são incriminados os terceiros
comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao suicídio (artigo
135.º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de pornografia
infantil (artigo 172.º, n.º 3, alínea e), do Código Penal), sempre com fundamento na
perspectiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em
determinados actos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie,
instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao relacionamento
com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não interferir com
a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que derivam do
princípio da dignidade da pessoa humana.
7. Por outro lado, que
uma certa ‘actividade profissional’ que tenha por objecto a específica negação
deste tipo de valores seja proibida (neste caso, incriminada) não ofende, de
modo algum, a Constituição. A liberdade de exercício de profissão ou de
actividade económica tem obviamente, como limites e enquadramento, valores e
direitos directamente associados à protecção da autonomia e da dignidade de
outro ser humano (artigos 47.º, n.º 1, e 61.º, n.º 1, da Constituição). Por isso
estão particularmente condicionadas, como objecto de trabalho ou de empresa,
actividades que possam afectar a vida, a saúde e a integridade moral dos
cidadãos (artigo 59.º, n.º 1, alíneas b) e c),
ou n.º 2, alínea c), da
Constituição). Não está, assim, de todo em causa a violação do artigo 47.º,
n.º 1, da Constituição. Nem também tem relevância impeditiva desta conclusão a
aceitação de perspectivas como a que aflora no pronunciamento do Tribunal de
Justiça das Comunidades (Sentença de 20 de Novembro de 2001, Processo n.º
268/99), segundo a qual a prostituição pode ser encarada como actividade
económica na qualidade de trabalho autónomo (cf., em sentido crítico, aliás, Massimo Luciani, ‘Il lavoro autonomo
della prostituta’, em Quaderni Costituzionali, anno XXII, n.º 2, giugno 2002, p. 398 e seguintes). Com efeito, aí
apenas se considerou que a permissão de actividade das pessoas que se
prostituem nos Estados membros da Comunidade impede uma discriminação quanto
à autorização de permanência num Estado da União Europeia, daí não decorrendo
qualquer consequência para a licitude das actividades de favorecimento à
prostituição.
8. As considerações
antecedentes não implicam, obviamente, que haja um dever constitucional de
incriminar as condutas previstas no artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal.
Corresponde, porém, a citada incriminação a uma opção de política criminal
(note‑se que tal opção, quanto às suas fronteiras, é passível de
discussão no plano de opções de política criminal – veja‑se Anabela Rodrigues, Comentário Conimbricense, I, 1999, p. 518 e seguintes), justificada, sobretudo, pela normal
associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração
da necessidade económica e social das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo
desta um modo de subsistência. O facto de a disposição legal não exigir,
expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não
significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da
incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de
quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social
de exploração de uma situação de carência e desprotecção social.
Tal opção tem o sentido de evitar já
o risco de tais situações de exploração, risco considerado elevado e não
aceitável, e é justificada pela prevenção dessas situações, concluindo‑se
pelos estudos empíricos que tal risco é elevado e existe, efectivamente, no
nosso país, na medida em que as situações de prostituição estão associadas a
carências sociais elevadas (sobre a realidade sociológica da prostituição,
cf., por exemplo, Almiro Simões
Rodrigues, ‘Prostituição: – Que conceito? – Que realidade?’, em Infância e Juventude, Revista da Direcção‑Geral
dos Serviços Tutelares de Menores, n.º 2,
1984, p. 7 e seguintes, e José Martins
Barra da Costa e Lurdes Barata
Alves, Prostituição 2001 ...,
ob. cit., supra), não é tal opção
inadequada ou desproporcional ao fim de proteger bens jurídicos pessoais
relacionados com a autonomia e a liberdade. Ancora‑se esta solução legal
num ponto de vista que tem ainda amparo num princípio de ofensividade, à luz de
um entendimento compatível com o Estado de Direito democrático, nos termos do
qual se verificaria uma opção de política criminal baseada numa certa percepção
do dano ou do perigo de certo dano associada à violação de deveres para com
outrem – deveres de não aproveitamento e exploração económica de pessoas em
estado de carência social [cf., com interesse para a questão da construção do
conceito de dano nesta área e independentemente da posição sobre a pornografia
aí defendida, matéria que não tem relevância no contexto do presente acórdão, Catherine Mackinnen, ‘Pornography: On
Morality in and Politics’, em Toward a Feminist Theory of State, 1989, que defende a incriminação da pornografia
em face da sua ofensividade contra a imagem da mulher e a construção da
respectiva identidade como pessoa. Também sobre tal lógica de construção do
dano, cf. Sandra E. Marshall,
‘Feminism, Pornography and the Civil Law’, em Recht und Moral (org. Heike
Jung e outros), 1991, p. 383 e seguintes, defendendo a autora que, na
pornografia, o dano consistiria na negação da humanidade da mulher, sendo
relevante para o tema do presente Acórdão a perspectiva de que ‘a perda da
autonomia não é um assunto meramente subjectivo ... a autonomia é negada mesmo
que não se reconheça. Aqui pode ser traçado um paralelo com a escravatura ...
A própria condição da escravatura requer que o escravo não se veja a si
próprio como alguém que possui ou a quem falta autonomia ... Isto pode ser
formulado dizendo que uma tal pessoa não se pode ver a si própria
completamente. Como item da
propriedade não possui um em si mesma’].
O entendimento subjacente à lei penal radica, em suma, na protecção por meios
penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência,
protecção directamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana.
Questão diversa que não está suscitada nos presentes autos é a que se relaciona
com a possibilidade processual de contraprova do perigo que serve de
fundamento à incriminação em casos como o presente ou ainda, naturalmente, com
a prova associada à aplicação dos critérios de censura de culpa do agente e da
atenuação ou eventual exclusão de culpabilidade, em face das circunstâncias
concretas do caso.
9. Em face do exposto,
não se pode considerar que estejam violados pela norma em crise quaisquer
normas ou princípios constitucionais.”
Este entendimento foi reiterado no Acórdão n.º 196/2004, que expressamente considerou a fundamentação
expendida no Acórdão n.º 144/2004 inteiramente transponível para o recurso
então em apreço, «e, designadamente,
para o confronto da norma em causa com os outros parâmetros invocados pelo
agora recorrente: os artigos 58.º (direito ao trabalho), 26.º, n.º 1 (direitos
à livre expressão da sexualidade, à vida privada e à identidade pessoal), e
27.º, n.º 1 (direito à liberdade), da Constituição da República», aduzindo,
complementarmente, que:
«Não
se vê que, pelo confronto com estes direitos constitucionalmente consagrados,
haja de chegar‑se a solução diversa daquela por que se concluiu nesse
aresto, no qual se confrontou já a norma em questão, designadamente, com o
artigo 18.º da Constituição (confronto no qual se centra também o parecer
jurídico junto aos autos), concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade.
Assim,
no presente caso há apenas que, remetendo para os fundamentos desse Acórdão n.º
144/2004 (…), reiterar o juízo de não inconstitucionalidade do artigo 170.º,
n.º 1, do Código Penal, na redacção resultante da Lei n.º 65/98, de 2 de
Setembro, e, consequentemente, negar provimento ao recurso.»
Esta orientação foi continuada pelos Acórdãos n.ºs 303/2004 (que, além de remeter para a
fundamentação dos dois anteriores acórdãos, inovatoriamente se pronunciou pela
não violação do artigo 1.º da CRP), 170/2006,
396/2007 e 522/2007.
É esse entendimento que ora se reitera.
Refira‑se, por último, que a recente revisão do
Código Penal, operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, manteve, no
artigo 169.º (correspondente ao anterior artigo 170.º), n.º 1, a incriminação
de «quem, profissionalmente ou com
intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra
pessoa de prostituição», sem restringir a incriminação às hipóteses de
exploração de «situações de abandono ou
de necessidade económica».
4. Em face do exposto, decide‑se, ao abrigo do
artigo 78.º‑A, n.º 1, da LTC:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção resultante da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso,
confirmando‑se a decisão recorrida, na parte impugnada.”
1.2. A reclamação para a conferência apresentada pelo recorrente é do
seguinte teor:
“O
ora reclamante reitera todos os fundamentos por si invocados nas alegações de recurso,
designadamente que, apesar de o Supremo Tribunal de Justiça, no douto aresto
ora recorrido, entender que a questão sobre a pretensa inconstitucionalidade do
artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, já foi equacionada e decidida pelo
Tribunal Constitucional designadamente no Acórdão n.º 144/2004, de 10 de Março, processo n.º 566/2003, da 2.ª Secção, que considerou não
ser inconstitucional, nem admite interpretação restritiva no sentido de ser
tipicamente exigível a verificação de uma «situação de abandono ou de extrema
necessidade económica». Todavia, que como assertivamente refere o Conselheiro
Eduardo Maia Costa, no seu voto de vencido, cujo fundamentação, por
corresponder à única possível de forma a coadunar o tipo legal de crime com a
Constituição, se tem aqui por integralmente reproduzida, exaustivamente esgrime
argumentos que implicam a necessária interpretação restritiva do artigo 170.º,
n.º 1, do Código Penal, sob pena de violação do artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
Com efeito,
como refere o Conselheiro Eduardo Maia Costa, é sem dúvida o Parecer de M.
Costa Andrade e Maria João Antunes que analisa mais exaustivamente a questão
agora em análise, concluindo, a partir do conceito de bem jurídico nos crimes
sexuais, pela violação frontal pelo artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal do
artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
De
acordo com o referido pelo Conselheiro Eduardo Maia Costa, é notória a
preocupação do Tribunal Constitucional, nos acórdãos referidos no douto aresto
do STJ, de justificar a incriminação do artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal
com a violação de um bem jurídico, mas acaba por vacilar entre a protecção da
dignidade humana (sem especificação de qual o bem jurídico subjacente) e a
protecção do risco de verificação de situações de exploração da pessoa
que se prostitui, concebendo assim, de certa forma, a infracção como crime
de perigo abstracto.
Constituindo
a motivação fundamental do legislador com as alterações introduzidas pela
reforma penal de 1998, a luta contra a exploração de pessoas, então haverá
sempre que obter prova dessa situação, e não que presumi‑la, recuando a
protecção penal de forma a abranger situações que nela manifestamente não
cabem, por não se verificar a violação do bem jurídico dos crimes sexuais: a
violação da liberdade, ou autodeterminação, sexual. A exploração só existe nas
situações em que quem pratica a prostituição o faz com uma vontade
condicionada, com o consentimento viciado ou pela extrema necessidade económica
ou por uma situação de abandono, pois, então (e só então), a decisão não é
verdadeiramente livre, e, portanto, o bem jurídico protegido é ofendido. A
protecção do «risco» de exploração acaba por «renegar» o pretenso bem jurídico
subjacente ao crime.
A
perspectiva da prostituição em que assentam os acórdãos proferidos pelo
Tribunal Colectivo e pelo Supremo Tribunal de Justiça denuncia um pré‑compreensão
estigmatizante e redutora do fenómeno, de rejeição do mesmo em nome de
«valores», não vertidos em bens jurídicos concretos.
Na
verdade, não obstante as acções de auxílio remunerado à prática de actos
constitutivos da prostituição terem sido criminalizados com a entrada em vigor
do Decreto‑Lei n.º 44 579, de 18 de Setembro de 1962, e legislação
subsequente, a prática de tais actos não
diminuiu, pelo contrário, cada vez se torna mais visível nas cidades,
vilas e estradas de Portugal. A prostituta que pratica voluntária e livremente
os actos sexuais de relevo contra remuneração é, na opinião de uma corrente de
pensamento, atentatória da dignidade da pessoa humana e, não obstante a ideia
da dignidade humana se ter enraizado na nossa cultura por influência do
Cristianismo, não se concebe que, quando esses actos são praticados livre e
voluntariamente, fora de qualquer coacção ou exploração de uma situação de
necessidade, atentem contra a dignidade da pessoa humana. Com efeito, enquanto
o tratamento explícito dos antigos pensadores cristãos se processava em termos
ontológicos, os modernos, de um modo geral, estudam a Pessoa e os seus direitos
mais nas suas manifestações mundanas e intersubjectivas do que na sua relação
com o ser, mais, portanto, o homem entendido como natureza em devir e
plurifacetada.
A
prática da prostituição é uma realidade que ninguém pode escamotear, ao serem
proibidos estabelecimentos comerciais que tinham por objecto facilitar a
prática da prostituição, passaram os mesmos a ser clandestinos, aumentou a
prostituição de rua e surgiu uma nova forma de a praticar e favorecer, em
apartamentos privados, com anúncios a ocuparem cada vez maior número de páginas
nos jornais diários de maior tiragem. Reconduzindo‑se, destarte, à
prática de uma actividade que de facto existe e movimenta milhões de euros por
ano, sobre os quais não incide qualquer imposto ou taxa. Associado a esta
actividade sem o devido licenciamento, a segurança, higiene e, sobretudo, a
saúde dos utentes, maioritariamente casados que consequentemente presenteiam
os respectivos cônjuges com doenças sexualmente transmissíveis, está
seriamente ameaçada, o que não sucederia se a referida actividade se
encontrasse regulamentada, sendo que o controlo médico seria uma sua
consequência. Sem qualquer hipocrisia diríamos que a prostituição praticada na
rua e em apartamentos mediante anúncio em jornais diários, ofende a moral e
moralidade sexual da sociedade, o que não sucederia com a prática de tais actos
em estabelecimentos comerciais para tal licenciados em que as prostitutas e/ou
prostitutos exerceriam aí uma actividade também ela regulamentada. Os benefícios
compensariam a coragem política de regulamentar uma actividade que desde sempre
existiu e que, em Portugal, há quatro décadas atrás encontrava‑se
regulamentada. Existindo de facto, por que razão não podem as prostitutas
exercer os direitos fundamentais contidos nos artigos 47.º e 58.º da CRP, ou
seja, liberdade de escolha de profissão e direito ao trabalho?
O
argumento do aproveitamento económico por terceiros como «utilização de uma
dimensão especificamente íntima de outro não para fins dele próprio, mas para fins
de terceiro» denuncia, objectivamente, uma condenação tipicamente moral do
fenómeno da prostituição, uma perspectiva que considera chocante e indigna a
«venda do corpo», ainda que voluntária, consciente e praticada por adultos,
uma posição que nada tem a ver com o bem jurídico protegido, tal como é
entendido pelo legislador. Por isso, tenta‑se presumir (ou melhor ficcionar)
uma situação de exploração, de aproveitamento, de extorsão, quando intervêm
terceiros.
Ao
ser interpretada no sentido explanado nos arestos do Tribunal Colectivo e
Supremo Tribunal de Justiça, a norma, ao ser interpretada à letra, prescindindo
da exigência de prova de uma situação de exploração de necessidade económica
ou de abandono, é inconstitucional por ofender o princípio da fragmentariedade
ou subsidiariedade do direito penal, plasmado no artigo 18.º, n.º 2, da CRP e
previsto no artigo 40.º, n.º
1, do Código Penal, bem
como os direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade
pessoal, à liberdade de consciência, liberdade de escolha de profissão e
direito ao trabalho, previstos nos artigos 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 40.º, n.º 1, 47.º, n.º 1 e 58.º, n.º 1, da CRP. Direitos
estes, de liberdade de escolha de profissão e direito ao trabalho, que não
impedem sejam exercidos, como efectivamente o são, na prática, com auxílio e
comparticipação de terceiros.
Encontrando‑se
assim, reafirma‑se, aquela disposição normativa (artigo 170.º, n.º 1, do
Código Penal) inquinada de inconstitucionalidade material, que apenas pode ser
afastada através do recurso a uma interpretação restritiva do preceito que
repristine a exigência de que os actos descritos no tipo legal de crime apenas
sejam passíveis de o constituir quando reportando‑se a pessoas «em
situação de abandono ou de extrema necessidade económica». Ademais, o Tribunal
de Justiça das Comunidades Europeias já considerou como uma prestação de
serviços remunerada e abrangida pelo conceito de «actividades económicas».
Resultando
dos autos, na matéria de facto provada, a inexistência de qualquer facto que
revele ou porventura indicie vagamente alguma situação de exploração, nenhuma
suspeita razoável se pode formar de que ocorresse um aproveitamento de
situações de carência económica ou de abandono em que as prostitutas se
encontrassem.
De
facto, a única conclusão que se extraí da matéria de facto é que a prática da
prostituição era inteiramente livre da parte das prostitutas que ali exerciam o
seu modo de vida, a sua ocupação de onde retiravam os proventos necessários à
sua subsistência, por elas livremente escolhida.
Perante
tal quadro factual, a única conclusão possível seria e é a da exclusão da
ilicitude, pois, não obstante se tratar de uma empresa de diversão
nocturna que assentava a sua actividade económica na organização da actividade
de prostituição por parte de um grupo de mulheres que a ela se dedicava por
escolha livre e informada. Constituindo uma actividade profissional e com
intuito lucrativo que recai, numa interpretação literal, inequivocamente na previsão
contida no artigo 170.º, n.º 1, na redacção actual, todavia, tal incriminação,
para se conformar com a Constituição, deve ser interpretada no sentido de se
exigir a concreta verificação de uma situação de exploração de necessidade
económica ou de abandono das pessoas que se prostituem.
Assim,
e em conclusão,
O
artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, encontra‑se inquinado de inconstitucionalidade
material, que apenas pode ser afastada através do recurso a uma interpretação
restritiva do preceito que repristine a exigência de que os actos descritos no
tipo legal de crime apenas sejam passíveis de o constituir quando reportando‑se
a pessoas «em situação de abandono ou de extrema necessidade económica».
Nestes
termos e nos demais de direito, sempre com o douto suprimento de Vossas
Excelências, deverá a presente reclamação, e consequentemente o recurso,
merecer provimento, decretando‑se a inconstitucionalidade do artigo
170.º, n.º 1, do Código Penal por ofensa do princípio da fragmentariedade ou subsidiariedade
do direito penal, plasmado no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, bem como dos direitos
à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade pessoal, à
liberdade de consciência, liberdade de escolha de profissão e direito ao
trabalho, previstos nos artigos 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 40.º, n.º 1,
47.º, n.º 1, e 58.º, n.º 1, da CRP, com todas as consequências legais.”
1.3. O representante do Ministério
Público no Tribunal Constitucional apresentou resposta em que considera a reclamação “manifestamente improcedente”, por “a reiteração da tese do recorrente em nada afecta[r] os fundamentos
da decisão reclamada e da corrente jurisprudencial que lhe subjaz”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2.
Na presente reclamação, que, aliás, constitui substancialmente mera reprodução
do aduzido no requerimento de interposição de recurso, o recorrente não avança
um único argumento novo que não tivesse sido considerado na anterior
jurisprudência deste Tribunal sobre a questão.
Aderindo‑se a essa jurisprudência,
essencialmente por não se considerar constitucionalmente proibida a
incriminação do lenocínio nos termos constantes da norma impugnada, impõe‑se
a confirmação da decisão sumária reclamada.
3. Em
face do exposto, acorda‑se em:
a) Não
julgar inconstitucional a norma constante do artigo 170.º, n.º 1, do Código
Penal, na redacção resultante da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro; e,
consequentemente,
b)
Indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando‑se a
taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 5 de Dezembro de 2007.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos