ACÓRDÃO
Nº 90/84
Processo
nº 82/83.
2.ª
Secção.
Relator:
Conselheiro Cardoso da Costa.
Acordam
na 2a Secção do Tribunal Constitucional:
A., com
os sinais dos autos, interpôs recurso para este Tribunal do despacho do
Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido, sob promoção do
respectivo Procurador-Geral-Adjunto, cm 23 de Junho do ano transacto, que
legalizou e manteve a detenção da recorrente, efectuada «ao abrigo do disposto
no artigo 27º, nº 3, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, e nos
artigos 1º, nº 1, 2º e 12º todos do Decreto-Lei nº 437/75, de 16 de Agosto»
(despacho de fls. 20). Como fundamento invocou a «inconstitucionalidade
material superveniente» tanto deste último artigo 12º como ainda do artigo 11º
do dito Decreto-Lei nº 437/75 (diploma que define, no direito interno
português, o regime jurídico da extradição, e bem pode designar-se, pois, por
Lei da Extradição), emergente da sua incompatibilidade com o disposto
justamente na alínea b) do nº 3 do artigo 27º da
Constituição.
Em alegações,
a recorrente desenvolveu amplamente a sua tese e os respectivos fundamentos.
Uma e outros foram contraditados nas alegações do Ministério Público,
apresentadas pelo Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal. Este magistrado,
todavia, para além e antes disso, suscitou a questão prévia da inutilidade
superveniente do recurso, entendendo, consequentemente, que do mesmo não deve
tomar-se conhecimento. Argumenta, a tal respeito, e em resumo: que, depois de
proferido o despacho recorrido, o Governo já decidira autorizar o
prosseguimento do processo de extradição da recorrente (resolução do Conselho
de Ministros de 28 de Julho, publicada no Diário
da República, 2ª série, de 9 de Agosto de 1982); que, no seguimento dessa resolução, o
dito processo entrara na fase judicial, isto é, na fase em que o Tribunal da
Relação iria decidir sobre a concessão ou não da extradição da recorrente; e,
que, em face disso, se tornara irrelevante a situação de detenção da mesma
recorrente (visto o preceituado nos artigos 41º, 42º e 25º e seguintes do
Decreto-Lei nº 437/75), pelo que parecia já não interessar à decisão do caso
concreto saber se tal detenção fora feita ao abrigo de um regime jurídico
arguido de inconstitucionalidade.
Convidada
a pronunciar-se, veio a recorrente contrapor que, não obstante a pendência do
processo de extradição, em fase judicial, o seu interesse em que se conheça do
objecto do recurso se mantém, em vista da «expectativa de fazer funcionar o
disposto no nº 5 do artigo 27º da Constituição da República - direito de
indemnização». E a isto acrescenta que um juízo de constitucionalidade,
independentemente do caso concreto, «tem interesse juridicamente relevante,
atento o disposto na alínea f) do artigo 70º e no artigo
89°, ambos da Lei nº 28/82». Conclui, assim, no sentido de que deve julgar-se
improcedente a questão suscitada.
Posteriormente,
foi junta aos autos cópia do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14 de
Setembro de 1983, em que se decretou a extradição da recorrente A. para o reino
da Noruega - cópia essa remetida a este Tribunal por iniciativa do
Procurador-Geral Distrital naquela Relação.
Corridos
os vistos legais, cumpre então decidir a questão prévia levantada.
1 - No artigo
12º do Decreto-Lei nº 437/75 dispõe-se que «é lícito às autoridades da polícia
judiciária efectuar a detenção dos indivíduos que, segundo informações
oficiais, designadamente da Interpol, sejam procurados por autoridades
competentes estrangeiras para o efeito de procedimento criminal ou de
cumprimento de pena por factos que notoriamente justifiquem a extradição». Foi
ao abrigo deste preceito - que prevê uma das modalidades de «detenção
antecipada» ao pedido de extradição: a chamada (na própria epígrafe legal)
«detenção não solicitada» - que a recorrente A. foi detida em 22 de Junho do
ano transacto (fls. 22), no seguimento de uma informação, fornecida de Oslo
pela Interpol, de que contra ela, por ter sido acusada da prática do crime
previsto no § 162 do Código Penal norueguês, fora emitido na Noruega um mandado
de captura, e de que a sua extradição seria pedida por via diplomática se
viesse a ser presa no nosso país (fls. 18). Uma vez detidas - e nos termos do
artigo 42º, nº 1, do mesmo citado diploma, que justamente prevê sobre a
legalização da «detenção não solicitada» - foi a recorrente apresentada ao
Procurador-Geral Distrital da Relação de Lisboa, e foi por ele promovida
decisão do Presidente deste tribunal sobre a legalidade e a manutenção da
detenção: tal decisão, que efectivamente manteve a detenção, é o despacho
recorrido de 23 de Junho de 1983.
A
detenção da recorrente efectuada nos termos expostos poderia prolongar-se até
quinze dias - aguardando-se informação da autoridade estrangeira interessada
sobre a efectivação ou não da extradição - e, recebida informação positiva a
tal respeito, até ao máximo de quarenta dias - prazo durante o qual o pedido de
extradição deveria ser aceite (citado artigo 42º, nº 3). No caso, porém, nem
sequer foram esgotados estes prazos: de facto, logo em 7 de Julho dava entrada
no Ministério dos Negócios Estrangeiros o pedido de extradição (fls. 50) - com
ele se abrindo a «fase administrativa» do respectivo processo -, e ainda a 28
do mesmo mês era tal pedido «aceite» pelo Governo (já citada resolução do Conselho
de Ministros, publicada em 9 de Agosto).
Com
isto, abriu-se a «fase judicial» do processo de extradição da recorrente, fase
em que se seguiram os trâmites dos artigos 27º e seguintes, com as especialidades
previstas no artigo 4lº, aplicável à situação em causa ex vi do nº 4 do artigo 40º,
todos do Decreto-Lei nº 437/75. Desse modo, foi a recorrente apresentada
imediatamente, e de novo, ao Tribunal da Relação de Lisboa, a fim de ser
confirmada ou não, pelo juiz relator do processo, no despacho liminar, a sua
detenção (artigo 28º do diploma citado).
Não
contêm os presentes autos de recurso cópia do despacho liminar acabado de
referir; mas fornecem elementos suficientes para se poder inquestionavelmente concluir
que no mesmo despacho foi confirmada a detenção da recorrente (atente-se,
nomeadamente, na circunstância de o processo de extradição não haver sido
arquivado, e antes haver dado lugar ao acórdão cuja cópia se encontra a fls. 81
e seguintes, conjugada essa circunstância com o disposto nos nºs 3 e 4 do já
citado artigo 28º; e atente-se, bem assim, nas referências que no mesmo acórdão
se fazem a essa detenção, a fls. 84 e 88 vº). Sendo assim, a partir do momento
em que foi proferido o despacho liminar do juiz relator do processo de
extradição a detenção da recorrente deixou de ter o seu fundamento no disposto
no artigo 12º do Decreto-Lei nº 437/75, e no despacho do Presidente da Relação
que «legalizou» o recurso à faculdade prevista nessa disposição (despacho ora
recorrido), e passou a tê-lo antes nesse despacho liminar, e no disposto no
artigo 28º, nº 3 ou nº 4, in fine, do mesmo diploma. Dizer
isto, porém, é dizer que a detenção da recorrente ao abrigo daquele artigo 12º
se consumou sem remédio, e passou a constituir um «facto histórico» inapagável
por qualquer decisão judicial.
Nestas
circunstâncias, é indiscutível que o presente recurso já não pode ter o efeito
útil (se devesse proceder) de fazer cessar, por «ilegal», a detenção da
recorrente A. efectuada nos termos do artigo 12º do Decreto-Lei nº 437/75, e
de, consequentemente, fazê-la restituir à liberdade. E isto o que, embora por
outras palavras, veio no fundo dizer - e nesta parte, há-de reconhecer-se,
pertinentemente - e digno representante do Ministério Público.
Daqui,
porém não pode sem mais concluir-se - como ainda pretende o mesmo ilustre
Magistrado - que o recurso em apreço deva, logo, ter--se por inútil, por facto
superveniente à sua interposição. E que, se ele não pode surtir o seu efeito ou
objectivo por assim dizer «principal» - a restituição à liberdade da recorrente
-, não está excluído ainda que não possa surtir outro ou outros efeitos,
porventura secundários, mas de todo o modo juridicamente relevantes, e
susceptíveis, por isso, de justificarem que se aprecie a correcção jurídica (sub-specie da constitucionalidade) do despacho recorrido.
É
justamente isto - que o recurso ainda pode surtir outros efeitos úteis - o que
sustenta a recorrente. Vejamos, pois, se lhe assiste razão.
2 - A
argumentação da recorrente, relativa ao seu interesse no prosseguimento do
recurso, abrange, como se deixou relatado, duas ordens de considerações: uma,
respeitante ao direito de indemnização previsto no artigo 27º da Constituição;
outra, respeitante aos efeitos que uma decisão do tribunal no caso sub
judice poderia de qualquer modo surtir, face ao disposto no artigo 70º, alínea f), e no artigo 89º da Lei nº
28/82. Pode desde já dizer-se, no entanto, que esta segunda patte
da sua argumentação é de todo improcedente.
É
certamente por lapso que na sua resposta a recorrente invoca o artigo 89° da
Lei nº 28/82, o qual nada tem a ver com a fiscalização concreta da
constitucionalidade; e como não é possível ao tribunal determinar com segurança
a que outro preceito da referida lei desejaria a recorrente referir--se (ao
artigo 80º?), de tal invocação não há, pura e simplesmente, que curar. Fica só
o disposto no artigo 70º, alínea f). Este preceito, porém,
reporta-se a um efeito das decisões (aliás, de certas decisões) do Tribunal Constitucional que se produz
«independentemente do caso concreto» - ou seja um efeito que está para além do
caso concreto em que tais decisões hajam sido proferidas: trata-se, em suma,
de um efeito extraprocessual das mesmas decisões.
Ora,
afigura-se manifesto que ele é, por si só, insuficiente para fundamentar a
utilidade ou o interesse de uma decisão concreta sobre a constitucionalidade
de certa norma jurídica. Basta a tal respeito recordar que o controlo concreto
da constitucionalidade - isto é, o controlo que dá origem a tal espécie de
decisão - só pode exercer-se em vista justamente da resolução
de um caso concreto, e onde a resolução deste caso imponha o
conhecimento da questão da constitucionalidade (cf. desde logo, o artigo 207º em
conjugação com o artigo 281º da Constituição). Há-de ser, por conseguinte, no
contexto do caso concreto onde se suscitou e enxerta essa questão, e só
nesse contexto, que cabe averiguar da utilidade processual da decisão sobre a
constitucionalidade solicitada ao Tribunal Constitucional, ou seja, da
utilidade processual dos recursos interpostos para este Tribunal. Tudo o mais -
os efeitos do artigo 70º, alínea f), ou do artigo 82º da Lei nº
28/82, v. g. - só pode vir por acréscimo.
Entender
as coisas de outro modo - isto é, sustentar que ainda que só para se poderem
colher estes outros efeitos o Tribunal Constitucional sempre deveria decidir os
recursos para ele interpostos, mesmo os que se houvessem entretanto tornado
inúteis para a resolução do caso concreto - implicaria a conclusão de que este
Tribunal teria também de pronunciar-se sobre, e de «decidir», meros «casos»
académicos - o que desde logo seria contrário ao sentido da função jurisdicional
que lhe
é cometida. É óbvio que não pode ser.
3 -
Posto isto, resta o primeiro argumento da recorrente: o de que o presente
recurso conserva o interesse de lhe permitir exercer ulteriormente o direito
consignado no artigo 27º, nº 5, da Constituição da República.
Efectivamente,
neste preceito constitucional garante-se aos cidadãos que «a privação da
liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no
dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer». Atenta esta
garantia, dir-se-ia, pois, que estava sem mais assegurado o interesse ou a
utilidade processual do presente recurso: o prosseguimento dele visaria agora
apreciar tão só, e justamente, a constitucionalidade da prisão da recorrente
ao abrigo do disposto no artigo 12º do Decreto-Lei nº 437/75, já que tal
apreciação seria um pressuposto indispensável do eventual exercício do direito
previsto no artigo 27º, nº 5, da lei fundamental.
As
coisas, porém, não podem tomar-se tão apressadamente.
E não
podem, antes de mais, porque, a concluir-se no caso pela existência de uma
privação «inconstitucional» da liberdade da recorrente, ela terá sido produzida
por um acto judicial (por acto de um juiz) - o despacho sub judice do Presidente da Relação
de Lisboa. Tal detenção, na verdade, não poderá ser imputada a outro acto do
poder público, e nomeadamente ao despacho do Director-Adjunto da Polícia
Judiciária que primeiro a ordenou (fotocópia de fls. 22), pois que este último
acto não surtiu mais do que uma eficácia «provisória» (não foi mais, se se
quiser, do que um «acto preparatório»), que só se consolidou com aquele
despacho judicial. Não é outra, com efeito, a natureza dos actos do Ministério
Público e das autoridades da Polícia Judiciária que ordenem a prisão preventiva:
não se trata de actos (administrativos) definitivos, sujeitos apenas a um
controlo contencioso extrínseco, mas de actos de carácter provisório,
dependentes
da intervenção subsequente de um juiz que, revendo-os não apenas do ponto de
vista dos pressupostos (exteriores) da sua validade, mas ainda, e sobretudo,
do seu mérito e justificação intrínsecas, os
assuma (ou não) como seus. Que é assim, de resto, logo resulta do artigo 28º da
Constituição.
Por
outro lado, ainda que no presente recurso (prosseguindo ele) o despacho em
causa do Presidente da Relação venha a ser revogado por este Tribunal, não
perderá tal despacho o carácter de um acto judicial lícito - pois que proferido no
uso de uma competência legal (a do artigo 42º, nº 1, do Decreto-Lei nº 437/75)
e com respeito pelos princípios deontológicos que regem o exercício da função
judicial (o que não está posto em causa). É que os recursos judiciais visam
apenas o controlo «material» do conteúdo das decisões, e não o controlo
«funcional» da conduta dos juízes. Ou seja: visam permitir que a questão
contenciosa seja reapreciada por outro tribunal, suposto melhor qualificado ou
habilitado para o seu julgamento, mas sem que tal reapreciação afecte a
legitimidade «funcional» da decisão do tribunal inferior (observadas que tenham
sido as exigências deontológicas antes referidas): este tribunal, tal como o
tribunal de recurso, não deixou de exercer a função que constitucionalmente
lhe cabe de «administrar a justiça» (artigo 205º) com plena e integral
«independência» (artigo 208º), isto é, a função de dizer o
direito (tanto que, não fora o recurso, e a sua definição do direito do caso teria
adquirido carácter definitivo). A revogação da decisão do tribunal inferior
apenas significa que o tribunal de recurso emitiu sobre o facto ou sobre o
direito um juízo diverso do daquele (no caso, que o Tribunal Constitucional
teria ajuizado diferentemente da constitucionalidade da norma questionada), e
que este segundo juízo vai prevalecer, obviamente, sobre o primeiro.
Mas,
sendo assim (e não se vê como possa ser de outra maneira), na hipótese de este
Tribunal vir a revogar o despacho sub judice por considerar
inconstitucional a norma do artigo 12º do Decreto-Lei nº 437/75, por ele
aplicada, e de, em seguida, a recorrente vir exercer, invocando o artigo 27º, nº
5, da Constituição, o seu direito à indemnização pela prisão «inconstitucional»
que nesse caso haverá sofrido, o que teremos é a exigência ao Estado de uma
indemnização por danos causados pelo acto de um juiz agindo licitamente
em tal
veste - ou seja, por um acto lícito do poder público, enquanto «poder» ou
«função» judicial. Ora, justamente aqui recomeçam os problemas
relativos à utilidade do presente recurso.
4 - É
que a Constituição, no seu artigo 27º, nº 5, devolve
para a lei a definição dos «termos» em que haverá lugar a indemnização em consequência
de uma privação inconstitucional ou ilegal da liberdade, e o legislador ainda
não se pronunciou ex professo a tal respeito. Não
deverá, pois, concluir-se daí que, afinal, a garantia indemnizatória prevista
nesse preceito constitucional não se encontra ainda institucionalizada, e que o
respectivo direito não pode ainda ser exercido?
Uma tal
radical conclusão, no entanto, afigura-se excessiva. E isto porque, quanto a
todo um tipo de situações possíveis de privação inconstitucional ou ilegal da
liberdade, bem pode (e decerto deve) sustentar-se que no nosso ordenamento
jurídico existe já lei a que recorrer para o efeito da regulamentação do
direito à indemnização: tratar-se-á das situações em que a prisão ou detenção
tenham tido como exclusivo fundamento o acto de um órgão ou agente
administrativo, situações às quais será directamente aplicável o Decreto-Lei nº
48 051, de 21 de Novembro de 1967, sobre a responsabilidade extracontratual do
Estado no domínio dos actos de gestão (administrativa) pública (assim, Eliana
Gersão, La détention avant jugement au Portugal, Coimbra, 1971, p. 40).
Só que,
na hipótese em apreço não se tratará - vimo-lo antes - da responsabilidade do
Estado por um acto dessa natureza, mas sim por um acto da função judicial,
e um
acto lícito dessa função. Ora, neste domínio, não só já não é directamente aplicável o
Decreto-Lei nº 48 051, como o não é qualquer outra lei (mormente o Código
Civil, cujas regras sobre responsabilidade têm apenas aplicação directa aos
actos de gestão privada do Estado, conforme ensinamento generalizado da
doutrina): o que se passa é antes que o legislador português, salvo o disposto
no § 1º do artigo 690º do Código de Processo Penal (restrito ao caso, que não é
o nosso, de absolvição do réu em revisão de sentença penal), e o preceituado
no Código das Custas Judiciais quanto à indemnização devida (v. g., a
testemunhas) pelo cumprimento do dever público de colaboração com a justiça,
não prevê e não regula em geral, nem tão pouco no limitado âmbito de aplicação
do artigo 27º, nº 5, da Constituição, a responsabilidade do Estado por actos,
lícitos ou ilícitos, dos juízes, no exercício da respectiva função. Não
estaremos então em face, pelo menos, de uma omissão legislativa parcial, que
inviabiliza nessa parte (na parte em que a privação da liberdade seja imputável
a um acto judicial) a possibilidade de exercício do direito a indemnização
reconhecido naquele preceito constitucional - e que, consequentemente,
conduzirá afinal à inutilidade do presente recurso?
Mesmo
posta a questão nestes termos mais limitados, pensa-se, porém, que ela não
implicará semelhante conclusão - atentas as razões que passam a expor-se.
5 - Prima facie dir-se-ia logo que a uma tal conclusão se oporia,
sem mais, o princípio da aplicabilidade directa dos preceitos constitucionais
respeitantes aos direitos, liberdades e garantias (artigo 18º, nº 1, da
Constituição) - pois que, não podendo duvidar-se de que a garantia em causa se
inclui nessa categoria de direitos fundamentais, haveria consequentemente de
beneficiar de todo o respectivo regime (cf. artigo 17º, ainda da Constituição).
Sendo assim - acrescentar-se-ia - não poderão os tribunais escudar-se na falta
de lei para deixar de reconhecê-la a quem dela pretenda prevalercer-se:
têm a Constituição, pelo que lhes cumprirá, sim, torná-la efectiva, suprindo a
lacuna legal através do recurso aos meios em geral admitidos para tanto (v. g.,
os do artigo 10º do Código Civil).
A
objecção está longe, porém, de ser decisiva e insuperável, como aparenta. É
que, mesmo sem discutir o princípio,
tem de reconhecer-se que a possibilidade de suprimento de omissões
legislativas, inclusive em sede de direitos, liberdades e garantias, pelo modo
acabado de indicar, sofre necessariamente limites (sobre o ponto, cf.,
nomeadamente, Jülicher, Die
Verfassungsbeschwerde gegen
Urteile bei gesetzgeberischem Unterlassen,
Berlin, 1972, pp. 40 segs.; e, entre nós, as formulações cautelosas de Gomes
Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, pp. 320 e segs., e 481).
Sofre,
desde logo, um limite imposto pela «natureza das coisas», por assim dizer, e
que é o das possibilidades do próprio ordenamento jurídico, no quadro do qual tem
de mover-se o juiz - ou, considerada a questão de outro ângulo, o limite das
possibilidades do próprio poder ou
função judicial. Tal sucederá, v. g., com as omissões ocorrentes no domínio de
direitos fundamentais cujo exercício pressupunha necessariamente uma estrutura
organizatório-institucional mais ou menos complexa,
que o legislador ainda não edificou. Porto isto, poderia logo perguntar-se se
não seria justamente esse o caso da garantia do artigo 27º, nº 5, da
Constituição.
Mas,
além do referido, sofre a faculdade de suprimento judicial de omissões
legislativas um outro limite, que é
o das situações em que a Constituição deixa deliberada e intencionalmente
dependente do legislador - dito de outro modo: em que remete para o legislador - a efectivação
de um certo princípio, ou do direito por este reconhecido. Trata-se de
princípios relativamente aos quais, atentas as suas implicações e a complexidade
da sua concretização, o legislador constitucional entende impor-se uma nova
ponderação normativa - complementar da que ele próprio fez, mas da qual não
quis tirar (ou permitir que se tirassem) logo todas as possíveis consequências.
Ou seja: trata-se de hipóteses em que, pelo facto de a concreta conformação do
princípio exigir a consideração de diferentes tópicos ou pontos de vista e uma delicada ponderação de soluções e
resultados, a Constituição comete a respectiva incumbência ao órgão primariamente
vocacionado e legitimado para a tarefa política de reelaborar e desenvolver a
ordem jurídica. O que significa que, ao fazê-lo, o legislador constitucional
não apenas atribui ao legislador ordinário um específico encargo, mas,
verdadeiramente, lho reserva. Numa hipótese destas, se porventura a matéria
respeitar a «direitos, liberdades e garantias», o que teremos, pois, é uma restrição,
introduzida pelo próprio legislador constitucional, à cláusula geral da
aplicabilidade directa do artigo 18º, nº 1.
Ora,
bem pode perguntar-se, e agora indiscutivelmente com maior pertinência, se não
se configura precisamente uma hipótese deste tipo no artigo 27º, nº 5, da
Constituição - na parte, naturalmente, que carece ainda de concretização legal,
como é a relativa à responsabilidade por actos jurisdicionais. É que, atentos,
por um lado, os problemas e dificuldades que a efectivação do direito
reconhecido por essa disposição suscita no caso de privação de liberdade
«legalizada» por um acto judicial (pense-se, v. g., na delimitação do âmbito
preciso desse direito; na definição dos pressupostos processuais e condições da
acção indemnizatória; na delimitação do dano indemnizável e definição dos
critérios de indemnização; na questão do tribunal competente para a causa,
etc.), e atenta a circunstância, por outro lado, de a matéria da
responsabilidade civil do Estado por actos dos seus agentes contender, no
fundo, com relevantes opções político-estruturais, e estar ainda longe de
encontrar, no que em especial toca à responsabilidade por actos jurisdicionais,
um reconhecimento universal ou mesmo generalizado - atento tudo isso, não
faltam, na verdade, argumentos de peso no sentido de entender que a
Constituição ao incumbir expressamente o legislador ordinário de
concretizar o direito previsto no artigo 27º, nº 5, quis simultaneamente reservar-lhe
essa
tarefa.
Se as
coisas são exactamente assim ou não, é algo que este Tribunal não carece - e,
porventura, nem mesmo deveria - estabelecer agora em definitivo (como a seguir
melhor se verá).
De
qualquer modo, o que fica dito é o bastante para concluir - e só esse é o ponto
neste momento em discussão - que a simples invocação do princípio do artigo
18º, nº 1, da Constituição não basta, por si, para fundar a utilidade do
prosseguimento do presente recurso.
6 -
Simplesmente, ainda que em último termo deva entender-se que o princípio da responsabilidade
do Estado consignado no artigo 27º, nº 5, não pode efectivar-se, no tocante a
actos jurisdicionais, enquanto não estiver legislativamente concretizado, não
deixa esse princípio de incorporar o reconhecimento de um verdadeiro direito
das pessoas
prejudicadas por uma prisão inconstitucional ou ilegal. Ou seja: nesse
preceito constitucional não se assina apenas uma tarefa ao legislador (uma
«incumbência legislativa»); antes simultaneamente se reconhece um «direito
fundamental», a cuja efectivação essa incumbência se preordena.
Que é
assim, resulta logo do teor do preceito - no qual se impõe ao Estado um
«dever», cujo natural correlato será certamente um «direito»; e resulta, bem
assim, da sua função ou finalidade normativa específica - pois que está aí em
causa, manifestamente, não o reconhecimento de um qualquer objectivo interesse
público, mas a tutela de um interesse subjectivado em determinadas pessoas:
naquelas que foram concretamente atingidas por uma actuação do Estado que
lesou, afinal, o seu «direito à liberdade». Mas que no artigo 27º, nº 5, da
Constituição, se reconhece já um «direito» dos cidadãos é corroborado ainda
pela própria inserção sistemático-normativa do preceito no catálogo dos
direitos fundamentais - isto é, naquela pane da lei fundamental funcionalmente
votada à definição de «posições jurídicas subjectivas» (à definição das
«estruturas constitucionais subjectivas», como também se diz), a qual nessa
insuprível «dimensão subjectiva» tem a sua marca característica, e a razão da
sua especificidade no quadro global da Constituição (cf. sobre o ponto, Vieira
de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983,
especialmente pp. 84 e segs.).
Significa
isto que - continuando a pressupor a inviabilidade da concretização do
princípio do artigo 27º, nº 5, sem uma prévia intervenção legislativa - essa inviabilidde decorre, não da inexistência de um direito, e
sim apenas da falta de uma condição da sua exequibilidade; temos já, pois, um direito,
só que não
exequível, enquanto a lei não definir «os termos» do seu exercício. Ora esta
circunstância assume um decisivo relevo no respeitante à utilidade do
prosseguimento do presente recurso.
É que,
existindo o direito, ele poderá ser exercitado logo que haja lei que proceda
àquela definição - e não está excluído (se é que não é mesmo exigido) que tal
lei contemple inclusivamente os factos anteriores à sua emissão, ou seja, as
situações relativamente às quais o direito à indemnização já era contemplado
pela Constituição, e apenas se encontrava como que em quiescência. Mas, se é
assim (se pode, ou até porventura deve, ser assim), então, caso este Tribunal,
com fundamento na presente inexequibilidade (assente tal pressuposto) do
princípio do artigo 27º, nº 5, no tocante à responsabilidade por actos
judiciais, viesse a considerar inútil o prosseguimento do recurso em apreço,
estaria afinal a precludir o exercício pela
recorrente, ainda que só no futuro, do direito que lhe é reconhecido por aquele
preceito constitucional. Ora, isto não deve o Tribunal Constitucional
seguramente fazê-lo.
E nem
se diga, contra o que vem de afirmar-se, que, não se conhecendo nem divisando
neste momento qualquer iniciativa legislativa tendente a concretizar o
princípio do artigo 27º, nº 5, a possibilidade de a recorrente vir a exercer o
direito à indemnização aí previsto não passa, por ora, de uma miragem - de modo
que o prosseguimento do recurso sempre será praticamente
inútil.
Não se diga isso, porque tal significaria entrar num domínio - o das
conjecturas ou prognósticos puramente factuais - que se afigura, sem grande
dúvida, extravasar do campo da argumentação jurídico-normativa em que cumpre
aos órgãos jurisdicionais moverem-se.
7 - Em
vista do anteriormente exposto, concluir-se-á, por conseguinte, que, se o
presente recurso perdeu todo o interesse no respeitante à sua imediata
finalidade - a de pôr termo a uma prisão pretensamente inconstitucional da
recorrente - o conserva, todavia, como a mesma recorrente sustenta, para o
efeito de, na hipótese de julgado favoravelmente, ela poder exercer o direito à
indemnização reconhecido pelo artigo 27º, nº 5, da lei fundamental.
Cumpre,
porém, advertir que, ao concluir assim, se dá como assente, não apenas que,
naquele preceito constitucional se consigna já um direito, cujo exercício
(embora, porventura, só no futuro) não pode ser precludido
por uma decisão judicial, mas ainda que a decisão que ora se tomasse, no
sentido de julgar inútil o presente recurso, implicaria, no caso concreto em
apreço, aquela preclusão. Simplesmente esta segunda premissa da conclusão acima
avançada só é válida se a apreciação da constitucionalidade do artigo 12º do
Decreto-Lei nº 437/75 no presente recurso, com a eventual consequência da
revogação do despacho sub judice, for, na verdade, um pressuposto
indispensável para o exercício do direito à indemnização previsto no artigo 27º, nº 5,
da Constituição (seja esse exercício possível desde já, ou apenas no futuro).
Ora, em bom rigor, resta ainda mostrar a exactidão deste último asserto.
Com
efeito, certo e seguro é que a efectivação do referido direito haverá de
procurar-se através de uma acção judicial própria, com esse específico
objecto, e, por conseguinte, noutro processo. Pois bem: na medida em que a
inconstitucionalidade do preceito acima citado apenas importe para efeitos
indemnizatórios, não bastará que a interessada a invoque, e a procure fazer
valer, nesse outro processo? Mais: não será mesmo só aí que tal invocação terá
então cabimento?
No sentido
de uma resposta afirmativa a estas questões – a qual no fim de contas
conduziria, como é óbvio, à conclusão da inutilidade do recurso - poderia
ser-se tentado a invocar o «lugar paralelo» do artigo 7º do Decreto-Lei nº 48
051, que dispõe o seguinte: «o dever de indemnizar, por parte do Estado e
demais pessoas colectivas públicas, dos titulares dos seus órgãos e dos seus
agentes, não depende do exercício pelos lesados do seu direito de recorrer dos
actos causadores do dano; mas o direito destes à reparação só subsistirá na
medida em que tal dano se não possa imputar à falta de interposição do recurso
ou a negligente conduta processual da sua parte no recurso interposto». Em
matéria de responsabilidade civil extracontratual do Estado por actos ilícitos
da Administração (que são, desde logo, «os actos jurídicos que violem as
normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis», consoante
se diz no artigo 6º do diploma antes referido) a lei, como se vê, estabelece o
princípio da separação entre o recurso contencioso e acção indemnizatória, não
condicionando a interposição e o êxito desta última a uma prévia declaração
contenciosa da ilegalidade do acto, salvo na hipótese da segunda parte do
preceito transcrito.
Ora,
não deverá considerar-se aplicável um princípio semelhante no domínio da
responsabilidade do Estado por actos judiciais? Não deverá a apreciação da
«legalidade» (ou «constitucionalidade») de uma decisão judicial (da sua
legalidade «material», que não «funcional», como acima se pôs em evidência),
para meros efeitos indemnizatórios (se e quando admissíveis), fazer-se noutra
sede que não a do recurso ou recursos de que a mesma decisão poderia ser
objecto?
A
resposta, todavia, não pode deixar de ser actualmente (na ausência de lei sobre
o ponto) indubitavelmente negativa; e também não se vê que possa ser outra,
quando amanhã o legislador vier a definir um regime de responsabilidade do
Estado por actos judiciais (mormente no âmbito do artigo 27º, nº 5. da
Constituição). E não pode a resposta deixar de ser negativa, porque não existe
real e efectivo paralelismo entre as duas situações. Ou seja: porque o artigo
7º do Decreto-Lei nº 48 051 não é, bem vistas as coisas, «lugar paralelo» da
hipótese ora em apreço.
Na
verdade, enquanto no âmbito daquele preceito está em causa a responsabilidade
por actos que, embora podendo implicar a aplicação de princípios e normas
jurídicas, não visam esse específico objectivo, nem provêm de um órgão
de soberania cuja função seja a de resolver «questões de direito», já é isso
mesmo que acontecerá na hipótese agora contemplada.
Tratar-se-á
aqui, com efeito, de averiguar a responsabilidade do Estado por um acto emitido
em vista de declaração do direito - de um acto com esta
precisa finalidade - e oriundo de um órgão para tanto constitucionalmente
competente, isto 6, de um órgão judicial (a este propósito, e
sobre a distinção material entre a função administrativa e a função judicial,
recorde-se Afonso Queiró, Lições de Direito Administrativo,
1976,
pp. 40 e segs.).
Diferentemente
de um órgão ou agente administrativo que faz aplicação de uma norma legal, um
órgão judicial «diz o direito» - o «direito do caso» -, e a sua declaração é plenamente
válida (já acima se recordou) se e enquanto não for revogada, em sede de recurso,
por um tribunal superior. Por isso mesmo, se se compreende que um acto
«definitivo» da Administração possa ser posto em causa por uma instância
judiciária só para efeitos indemnizatórios, não obstante para a generalidade
dos efeitos haver entretanto constituído «caso resolvido», compreende-se do
mesmo modo que coisa idêntica não possa suceder com um acto judicial «consolidado».
Quer dizer: compreende-se que este último - não havendo sido impugnado, ou,
como quer que seja, apreciado pela competente instância de recurso - não possa
vir a ser ulteriormente «desautorizado» por outro tribunal (porventura até de
diferente espécie, ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou
inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior) mesmo só para aqueles
limitados efeitos.
Posto
isto, não pode senão concluir-se que, se o despacho sub
judice do Presidente da Relação de Lisboa deixar de ser apreciado no presente
recurso, e se dessa forma se consolidar, transitando em julgado, ficará definitivamente
decidido - e decidido mesmo no tocante a um eventual efeito de carácter
indemnizatório - que a prisão do recorrente ao abrigo do disposto no artigo 12º
do Decreto-Lei nº 435/75 não violou a Constituição. E com isso ficará ela
impedida, sem mais, de exercer - agora ou no futuro - o eventual direito à
indemnização que entenda caber-lhe por força do disposto no artigo 27º, nº 5,
da lei fundamental. O que significa - em resumo - que o conhecimento no
presente recurso da questão da inconstitucionalidade que ele tem por objecto
representa, na verdade, pressuposto indispensável para o exercício de tal
direito.
Assim
sendo, assegurados continuam o interesse e a utilidade do recurso em apreço.
8 -
Nestes termos, desatende-se a questão prévia suscitada.
Lisboa,
30 de Julho de 1984. - José Manuel Cardoso da Costa -
Mário Afonso - Luís Nunes de Almeida - Mário de Brito - Messias Bento - José
Magalhães Godinho.