Da politização à independência (algumas reflexões sobre a composição do Tribunal Constitucional)
Luís Nunes de Almeida
(Vice-Presidente do Tribunal Constitucional)
É com grande satisfação que posso intervir nesta sessão, voltando a ser presidido pelo Professor Marques Guedes, com quem sempre tive uma excelente relação no Tribunal Constitucional.
E essa satisfação é ainda maior, tendo em conta quem são os outros dois participantes: o Professor Louis Favoreu, com quem há muito estou habituado a trabalhar no grupo de reflexão sobre justiça constitucional que se reúne em Aix-en-Provence, e o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, que, para além da vivacidade e do brilho que lhe são conhecidos, tem a particularidade de ter compartilhado comigo aquilo a que ele chama o «pecado original» do Tribunal Constitucional português. Com efeito, ambos estamos igualmente associados à solução encontrada para a questão da composição daquele órgão de soberania.
Suponho, aliás, que já lá vão anos suficientes para se poder fazer um pouco de história e ensaiar alguma reflexão crítica sobre este ponto.
Posto isto, peço desculpa por provavelmente ir apresentar uma exposição um tanto desordenada e descosida, já que não tive oportunidade de fazer um texto escrito; no entanto, isso permite-me ter em conta as exposições e debates já efectuados, para tentar não ser repetitivo. Na verdade, muito do que aqui se disse, poderia eu repeti-lo agora, nomeadamente no que se refere ao direito comparado; vou, porém, dispensar-me de o fazer, para poder ser mais breve, e apenas alinharei três ou quatro reflexões sobre a questão da composição do Tribunal Constitucional, atendo-me unicamente ao caso português, uma vez que as questões de Direito Comparado já aqui foram suficientemente abordadas, quer pelo Professor Marcelo Rebelo de Sousa, quer pelo Professor Louis Favoreu.
Como se sabe, o modo de composição do Tribunal Constitucional português tem sido muito criticado; e as críticas surgiram logo na origem, no Parlamento, quando da primeira revisão constitucional, momento em que foi juridicamente instituído, sendo certo que essas críticas provieram não só dos deputados que votaram contra a solução, mas igualmente de um bom número de deputados que votaram a favor dela, e que foram indispensáveis para se obter a requerida maioria de dois terços. Efectivamente, um número significativo de deputados (cerca de uns 30 ou 40) votou o preceito da Constituição relativo à composição do Tribunal Constitucional com a declaração de voto de que o fazia por mera disciplina partidária, mas discordando da solução adoptada.
Creio que, num colóquio deste tipo, não será desinteressante recordar factos como este, a propósito do invocado «pecado original». E, porque os pecados originais podem ser redimidos, também caberá recordar que, entre os deputados que fizeram essa declaração de voto, alguns estiveram posteriormente em situação privilegiada para promover a correcção desse suposto «erro». E que, na altura da segunda revisão constitucional, tendo-se alterado a situação interna no respectivo partido, um deles era agora o seu secretário-geral, enquanto um outro desempenhava as funções de presidente do grupo parlamentar. Pois bem: nenhum deles se lembrou então de propor uma alteração ao artigo da Constituição relativo ao modo de composição do Tribunal Constitucional, o que dificilmente pode deixar de ser considerado significativo sobre as boas provas que, entretanto, tinha dado o sistema constitucionalmente adoptado em 1982.
E, se me é permitido ainda um outro comentário adicional, eu diria que isto vem revelar que, afinal, não foi tanto a conjuntura política de 1982 que motivou a escolha do actual modo de composição do Tribunal Constitucional (ideia que me pareceu decorrer das palavras do Professor Marcelo Rebelo de Sousa), mas que, antes pelo contrário, foram razões de pura conjuntura que, em grande parte, levaram à contestação dessa escolha.
Com efeito, nessa época, despontavam correntes de opinião favoráveis à desvalorização do Parlamento e à valorização do papel presidencial na vida política portuguesa. E foram essas correntes de opinião, quer directamente, quer por via de influências indirectas, que verdadeiramente conduziram a contestação ao sistema adoptado.
Em que se baseia essa contestação?
Em primeiro lugar, há quem acuse o modo de composição do Tribunal Constitucional que veio a ser acolhido na Constituição de conduzir à politização da escolha dos juízes e à consequente politização do Tribunal. Por outro lado, há quem afirme que aquele modo de composição implica uma partidarização das escolhas e, portanto, do próprio Tribunal.
Há uma diferença essencial entre estas duas críticas. É que a primeira, no fundo, contesta a existência de uma qualquer forma específica de designação dos juízes do Tribunal Constitucional, o qual deveria ter uma composição idêntica à dos tribunais comuns, enquanto a segunda crítica contesta apenas, ou sobretudo, a origem exclusivamente parlamentar da escolha dos juízes.
Quanto à primeira crítica, eu tenho para mim que assenta numa convicção errada.
Antes de mais, ignora que, por toda a parte, a escolha dos juízes constitucionais se baseia necessariamente em critérios políticos, como já aqui foi hoje suficientemente assinalado. Mas assenta igualmente num erro, que é o de supor que, em função do processo de escolha e em função da existência ou inexistência de uma carreira profissional, existem dois tipos de juízes: uns, os puros e assépticos, isto é, os magistrados de carreira, sempre imunes à influência da política no exercício das respectivas funções; outros, os políticos, os contaminados (eu atrever-me-ia mesmo a dizer, infectados), que seriam os juízes do Tribunal Constitucional, designados por órgãos políticos e, «maxime», eleitos pela Assembleia da República, que inelutavelmente exerceriam as suas funções profundamente influenciados pelas suas convicções político-partidárias.
É duplamente contestável este tipo de entendimento.
E contestável, em primeiro lugar, o mito do juiz político, do juiz contaminado e infectado, apenas porque viu o seu mandato ser-lhe conferido por um órgão de soberania electivo; uma tal concepção só pode radicar numa mal escondida repugnância pela legitimidade democrática. E, desde já, adianto que um modo de designação como aquele que existe na Constituição portuguesa — e veremos depois alternativas possíveis e as consequências que poderiam ter —, isto é, uma designação pelo Parlamento por uma maioria qualificada de 2/3, exigindo o consenso entre as diversas grandes correntes de pensamento político, favorece o desprendimento do juiz relativamente a quem o designou e, até, relativamente a quem o propôs. Ponto é que sejam asseguradas as necessárias garantias de independência no exercício do mandato.
Por outro lado, é necessariamente falsa a imagem de pureza e assépcia que, muitas vezes, se pretende atribuir aos juízes dos tribunais comuns. E, nisto, não vai envolvida qualquer intenção de crítica ou menosprezo; eles não são puros, porque não o podem ser, porque são humanos como todos nós: o que é importante, é que tenham consciência disso. Como assinala Maranini, quanto mais o próprio juiz estiver consciente da natureza e alcance da sua actividade, tanto melhor se saberá defender dos perigos das paixões políticas; o juiz deve sempre ter presente que a sua consciência humana e a sua opinião política se projectam, necessariamente, nas suas decisões, e isto é válido para todos os juízes.
Como exemplifica o Dr. Flávio Ferreira, essa projecção verifica-se, na actividade do juiz, por exemplo, em casos tão comuns como este: o julgar se um negócio jurídico é ofensivo dos bons costumes; se a determinação da prestação por uma das partes é feita conformemente à equidade; se determinado comportamento numa dada situação merece a qualificação de mera culpa e se esta é leve ou grave; se o litigante agiu ou não no processo com má-fé; se uma dada conduta revela ingratidão que justifique a revogação da doação.
E alguém ignora que depende frequentemente (eu diria, quase sempre) das convicções íntimas do juiz, convicções que se projectam necessariamente nas suas decisões, o destino de muitas acções de despejo, de processos relativos a nulidade dos despedimentos, de acções de divórcio, de processos penais em que é essencial a valoração de certos comportamentos sexuais?
Em tudo isto, ou para julgar todos estes casos, não entra o juiz com critérios próprios de uma escala de valores que lhe é própria, que tem que ver com a sua mundividência, com a sua formação cultural, com as suas opiniões políticas e filosóficas? A isto, respondo seguramente que sim. E é grave que se possa pensar que não, porque, quando tal acontece de boa fé, é porque não se tem consciência da realidade e, por isso, se perde aquilo que é mais importante na actividade do juiz: perde-se a independência interior, a independência perante si próprio, ainda que se mantenha uma independência externa, isto é, uma independência relativamente a terceiros.
Não existe, pois, o juiz puro e asséptico. Os que assim se julgam virtuosos são, por isso, os mais perigosos, porque apenas inconscientes.
É preciso não esquecer, aliás, que o exercício da função de julgar na jurisdição constitucional só é diferente da função de julgar nos restantes tribunais porque, nela, a utilização de critérios subjectivos, como aqueles que há pouco referi, é muito mais frequente, e ainda porque a jurisdição constitucional, por lidar directamente com a Constituição, é necessariamente uma jurisdição que se aproxima muito mais do político (tendo todavia sempre em conta, como diz Stern, que se trata de uma jurisdição sobre o político, mas não equiparável a uma jurisdição política).
Ao decidir o despejo, o juiz do tribunal ordinário, muitas vezes, não pode deixar de também fazer intervir, no sentido que já foi referido, um critério político; por isso, se poderá dizer que ele está a emitir um juízo político — ou melhor, um juízo que tem uma componente política. Mas emite esse juízo num caso que está confinado às duas partes em litígio; diferentemente, ao julgar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei do arrendamento, o juiz constitucional, embora projecte as suas opiniões pessoais de forma exactamente igual à que o juiz do caso projecta no julgamento de uma acção de despejo, a verdade é que a decisão poderá ter força obrigatória geral. A decisão da acção de despejo interessa, assim, directamente, ao senhorio e ao inquilino, mas a decisão do juiz constitucional já interessa a toda a comunidade.
E é por esta última razão — como aqui já foi hoje sobejamente salientado —, que a jurisdição constitucional em países com uma estrutura política e social como a nossa, designadamente nos países europeus, não pode dispensar a existência de tribunais próprios, cuja legitimação democrática seja evidente para o poder político e cuja composição assegure o pluralismo, em resultado de uma opção transparente e não como mero fruto do acaso. É por isso, afinal, que a fiscalização da constitucionalidade não pode ser entregue apenas à jurisdição comum ou ordinária.
E, quando se invoca a experiência americana ou brasileira de uma jurisdição comum que desempenha estas funções, não nos devemos enganar com as palavras. O que se passa, efectivamente, quer nos Estados Unidos, quer no Brasil, não é que a justiça constitucional esteja entregue ao órgão máximo da hierarquia judicial, mas pelo contrário, é que o órgão máximo da hierarquia judicial é, de acordo com a concepção europeia, um verdadeiro e próprio tribunal constitucional. De facto, quer no Brasil, quer nos Estados Unidos, o supremo tribunal tem uma composição que se aproxima da composição dos tribunais constitucionais dos países europeus, e não das cortes de cassação ou dos supremos tribunais destes países.
Por isso, quando se sustenta que deve haver uma integração das duas jurisdições, de acordo com o modelo brasileiro e norte-americano, o que na verdade se está a propor, por mais espanto que isso possa causar, não é a extinção do Tribunal Constitucional, mas sim a extinção do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto último grau de uma hierarquia e de uma carreira. Esta seria, aliás, a consequência inevitável de uma tal reforma, porque seguramente ninguém imagina que o STJ, que hoje é uma assembleia de 60 juízes, reunisse em plenário para julgar questões de constitucionalidade, designadamente, para fazer declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Mas, se é impensável que o STJ pudesse funcionar em plenário para esse efeito (basta pensar no que é, hoje, o recurso para tribunal pleno), ainda mais impensável seria que funcionasse em formações de três juízes, ou mesmo em secções, para fazer julgamentos de inconstitucionalidade, com as divergências jurisprudenciais daí resultantes, que seriam insustentáveis em matéria constitucional, por não haver possibilidade de uniformização — ou lá voltaríamos ao Supremo Tribunal de Justiça, com 60 juízes a desempenhar as funções do Tribunal Constitucional.
Assim sendo, questionar, hoje, a existência de um Tribunal Constitucional conduz necessariamente a questionar a existência da fiscalização da constitucionalidade. O que se contesta, então, é a própria função e não o tipo de tribunal que a desempenha e algumas das críticas que ultimamente se ouviram ao Tribunal Constitucional vão nesse sentido: são críticas que não questionam a composição do Tribunal, ou que o apenas o fazem de uma forma muito parcelar e lateral, desde logo porque não apresentam quaisquer alternativas; são críticas que, no fundo, põem em causa a fiscalização da constitucionalidade, por a considerarem incompatível com a preeminência do princípio maioritário. É uma concepção de raiz jacobina, inteiramente coerente e perfeitamente legítima no campo do debate das ideias, embora eu não a partilhe e suponha que a maioria dos juristas portugueses também a não perfilhe.
Mas voltemos à questão da composição do Tribunal Constitucional, e às alternativas possíveis ao actual modo de designação dos seus juízes, o qual conduziria à partidarização do Tribunal e das suas decisões.
As alternativas que, historicamente, estiveram em cima da mesa, já foram referidas pelo Professor Marcelo Rebelo de Sousa, de uma forma rigorosa e exaustiva. A análise dessas alternativas, bem como da evolução da sua apresentação no tempo, mostra que, em cada momento histórico, para os respectivos proponentes, foi muito mais importante fazer assegurar o equilíbrio interno do futuro Tribunal Constitucional do que propriamente entrar em considerações teoréticas. Não admira, assim, que às preocupações de filosofia política se tivessem sobreposto as de ordem prática; e se não houve, por parte dos negociadores, a intenção de assegurar que o lado que representavam obtivesse a hegemonia ideológica do Tribunal, houve sempre, em contrapartida, o cuidado de evitar que uma tal hegemonia viesse a ser conseguida pelo lado oposto.
Eu daria apenas dois ou três exemplos das preocupações expressamente manifestadas.
Foi aventada a hipótese de designação de juízes do Tribunal Constitucional pelo Presidente da República, pela Assembleia da República e pelo Conselho Superior da Magistratura. Mas logo houve quem ripostasse, acrescentando: se a designação pelo Presidente da República depender de referenda ministerial, a Assembleia da República procederá à eleição por maioria qualificada de 2/3; se a designação pelo Presidente da República não depender de referenda ministerial, a Assembleia da República elege por maioria absoluta. Qual a justificação teórica desta alternativa? Nenhuma. A única justificação, aliás legítima, consistia na previsão de que, com referenda, seriam designadas pessoas de uma determinada tendência, e, sem referenda, de tendência distinta. A maioria absoluta fazia contraponto à falta de referenda, a maioria de 2/3 compensava a referenda. Era evidente a intenção.
O Professor Marcelo Rebelo de Sousa referiu que a conjuntura política conduziu a que, quer o Partido Socialista, quer a Aliança Democrática, tivessem pretendido afastar o Presidente da República da participação na designação dos juízes do Tribunal Constitucional. Não foi exactamente assim. Quer o PS, quer a AD, aceitavam que o Presidente da República designasse juízes para o Tribunal Constitucional. Bem ou mal — isso é questão que já iremos ver a seguir —, mas ambos aceitavam. Os números é que variavam, em função do peso relativo de juízes designados pelo Presidente da República e pelo Conselho Superior de Magistratura.
A questão era a seguinte: a Aliança Democrática pretendia que os juízes designados pelo Conselho Superior da Magistratura fossem em maior número que os juízes designados pelo Presidente da República e inclinava-se no sentido de o Conselho Superior da Magistratura fazer essa designação por maioria absoluta. O Partido Socialista pretendia que o número de juízes designados pelo Presidente da República fosse igual ao número de membros designados pelo Conselho Superior da Magistratura e que esta última designação fosse efectuada por maioria qualificada de 2/3. Esta é que era a divergência e, se tivesse havido um acordo sobre os números, teria ficado consagrada na Constituição uma composição tripartida, com juízes designados pelo Presidente da República, juízes designados pela Assembleia da República e juízes designados pelo Conselho Superior da Magistratura.
O desacordo assentava, em boa parte, na especulação que se fazia relativamente ao tipo de pessoas que viriam a ser designadas pelo Presidente da República; e esta especulação foi tal que, no dia crucial das negociações, durante a cimeira PS/AD, se fizeram simulações sobre os próprios nomes das pessoas que o Presidente da República viria a nomear, sendo certo que havia aí uma real divergência entre as partes negociadoras, já que ambas faziam sinceramente, a propósito dessas eventuais nomeações, uma antevisão deveras negativa para a respectiva sensibilidade política: a AD acreditava que viriam, sobretudo, a ser designadas personalidades tidas como de esquerda; o PS desconfiava que viriam, maioritariamente, a ser escolhidas personalidades de cariz conservador ou moderado. Esta discrepância era justificada pela nebulosa ideológica existente em torno do Presidente da República, que tornava difícil prever o quadrante dos nomeados: se havia alguns que toda a gente tinha a ideia que seguramente seriam escolhidos, o problema estava em saber quais seriam os outros ou melhor, como é que eles seriam. Esta é a realidade dos factos, e o Professor Marcelo Rebelo de Sousa já contou o desenlace: face a esta indefinição e insegurança, que punha em causa o objectivo de assegurar um tribunal equilibrado, o melhor seria, então, o Presidente não designar qualquer juiz. E assim se formou o acordo.
A história da solução adoptada é, assim, a história de uma solução susceptível de poder convir a todos: a previsível composição do Tribunal seria tal que não permitiria antecipar as suas decisões, em matérias mais sensíveis à projecção das convicções pessoais de cada juiz. Reconheça-se que, se tal solução assentou em critérios pragmáticos, a verdade é que o objectivo prosseguido se tem de considerar como institucionalmente correcto.
Foi aqui dito hoje de manhã, pelo Dr. Vital Moreira, que os tribunais constitucionais, na prática, hoje em dia, não se destinam, fundamentalmente, a dirimir conflitos entre o Executivo e o Legislativo, mas, antes, a dirimir conflitos entre, de um lado, a maioria governamental e parlamentar e, do outro lado, a oposição, isto é, as minorias.
Porque, de facto, assim é, penso que o modo de designação que hoje temos em Portugal, que se baseia na existência de um consenso entre maioria e oposição, constitui uma solução correcta, que deve ser mantida. É uma solução em que a escolha política também é determinante, mas essa escolha política, por um lado, é publicamente conhecida e assumida, e, por outro lado, é justa, não dependendo do mero acaso.
Quando se critica o modo de designação dos juízes do Tribunal Constitucional, umas vezes, não se apresenta qualquer alternativa e, outras vezes, fazem-se sugestões vagas e imprecisas, como sejam as de haver juízes designados pela magistratura e pelo Presidente da República, sem se especificar qual o órgão da magistratura competente para essa designação, qual a maioria requerida para o efeito e qual o número de juízes a designar por cada uma das entidades.
Seria, a este propósito, interessante procurar reeditar a discussão travada em 1982, para saber se seria colocada, agora, nos mesmos termos. Será que os números aventados na altura, por um dos lados e pelo outro, ainda seriam aceitáveis pelos seus próprios proponentes? Exigiriam — ou aceitariam — uns, ainda, que o Conselho Superior da Magistratura procedesse às designações, por maioria absoluta? Continuariam os outros a opor-se a que o mesmo Conselho Superior da Magistratura designasse mais membros que o Presidente da República? Em que medida é que a conjuntura deve ou pode influenciar escolhas deste tipo? E em que medida é que uma opção feita em certo momento, numa determinada conjuntura, não irá, previsível ou imprevisivelmente, ter efeitos totalmente diversos passados alguns anos, já noutra conjuntura?
Já foi hoje aqui sugerido que deveriam existir no Tribunal Constitucional elementos que representassem «a sensibilidade da magistratura». Muito bem. Mas, por quem haveriam eles de ser designados? Pelo Conselho Superior da Magistratura ou pelos Supremos Tribunais? Pensemos nas consequências de qualquer uma dessas soluções, hoje e daqui a seis ou sete anos: provavelmente os efeitos seriam totalmente inversos, já que a geração que hoje domina o Conselho Superior da Magistratura certamente dominará o Supremo Tribunal de Justiça dentro de alguns anos.
De todo o modo, se houvesse juízes do Tribunal Constitucional designados pelo Conselho Superior de Magistratura, em nada se despolitizaria o Tribunal Constitucional. Esta é uma observação que me permito fazer com a maior das seguranças, absolutamente certo do seu rigor.
De facto, seria totalmente hipócrita desconhecer que as eleições para o Conselho Superior da Magistratura se fazem, também, de acordo com critérios políticos, desde há muitos anos atrás. E isto deve ser dito com clareza, sob pena de se estar a ignorar a realidade dos factos. As listas apresentadas pelos magistrados para a eleição do Conselho Superior da Magistratura não são partidárias, mas são listas que têm que ver com sensibilidades políticas, e assim continuará a ser. E, portanto, a escolha dos juízes que viriam para o Tribunal Constitucional, feita pelo Conselho Superior da Magistratura, reflectiria a maioria política lá existente, ou um acordo, um consenso político, que apenas reproduziria, dentro do Conselho Superior da Magistratura, o acordo político que se faz dentro da Assembleia da República.
Em termos de politização, não se alterava rigorosamente nada. Ou melhor: reforçava-se a politização do Conselho Superior da Magistratura, sem que se alcançasse o desiderato de reduzir a politização do Tribunal Constitucional.
E isto, ainda que se não chegasse ao ponto a que se chegou em Espanha, caso particularmente interessante, porquanto foi aqui referido como um dos exemplos em que o Tribunal Constitucional reflectia na sua composição uma intervenção da magistratura. Ora, essa intervenção da magistratura, hoje, não passa, em Espanha, de um mero jogo de espelhos, porque a realidade é que o Conselho Superior do Poder Judicial, actualmente, é todo ele eleito pelo Parlamento. Portanto, a escolha pelo Conselho Superior do Poder Judicial é apenas uma escolha indirecta pelo Parlamento; não é mais do que isso. O que os magistrados portugueses devem, pois, temer é que a lei ou a Constituição venham a atribuir muitas competências políticas ao Conselho Superior da Magistratura, sob pena de poder vir a acontecer-lhe o que aconteceu ao Conselho Superior do Poder Judicial, em Espanha.
Analisemos uma segunda alternativa: a da designação de juízes do Tribunal Constitucional pelos outros Supremos Tribunais. Esta segunda alternativa teria, provavelmente, em termos de resultado, e por agora, efeitos distintos. Mas a questão é a seguinte: pretende-se diminuir a politização do Tribunal Constitucional à custa de uma profunda politização dos Supremos Tribunais? É que, não tenhamos dúvidas, num país como o nosso, a escolha dos juízes para o Tribunal Constitucional será seguramente feita sempre tendo em conta critérios políticos («políticos», em sentido amplo, como veremos adiante, o que se não deve confundir com «critérios partidários»).
Ora, se assim é, quer no Supremo Tribunal de Justiça, quer no Supremo Tribunal Administrativo, os respectivos magistrados, mais tarde ou mais cedo, viriam a dividir-se em dois grupos, a propósito da eleição dos juízes do Tribunal Constitucional. Não se despolitizava, assim, o Tribunal Constitucional e ir-se-iam politizar, e de forma sensível, os Supremos Tribunais, onde, não o esqueçamos, essa politização se encontra latente, apenas se não revelando de forma visível à opinião pública porque as competências próprias daqueles tribunais não favorecem uma tal revelação.
A propósito da designação de juízes do Tribunal Constitucional pelos supremos tribunais, apenas chamaria a atenção para a opinião expressa, em Itália, por Zagrebelsky, que considera que tal designação provoca, pelo menos, perplexidade, por se entender que é anómala e diminui a própria legitimidade do Tribunal Constitucional.
É que, com efeito, ou a escolha efectuada pelos supremos tribunais tem em conta critérios de natureza política, para assegurar o necessário equilíbrio global do Tribunal Constitucional, e então, politiza também o supremo tribunal que faz a designação; ou, sendo uma escolha que, inevitavelmente, terá consequências políticas, não tem em conta aqueles critérios, e, neste último caso, pode desequilibrar a composição do Tribunal Constitucional, em função do mero acaso.
A proposta mais recorrente, contudo, vai no sentido de haver juízes do Tribunal Constitucional designados pelo Presidente da República. Com a mesma tranquilidade com que, em 1982, contribuí para que tal possibilidade ficasse excluída, assim hoje reafirmo que não se deve conferir ao Presidente da República um tal poder.
Já aqui foi dito que, em cada país, o sistema político se deve adaptar às circunstâncias nacionais. Em França, o processo de designação pelo Presidente da República, pelo Presidente da Assembleia Nacional e pelo Presidente do Senado parece funcionar e, pelo que aqui foi dito, tem provado bem. Mas eu tenho a convicção de que, ao invés, funcionaria muito mal em Portugal, tendo em conta as nossas tradições, os nossos costumes, os nossos hábitos e, até, os nossos vícios.
Na verdade, a questão essencial, a propósito do Tribunal Constitucional, não é a da sua composição, mas a das garantias de independência dos seus juízes. Ora, entre essas garantias de independência, a mais importante consistirá, talvez, em não haver uma relação pessoal entre a entidade nomeante e o juiz nomeado.
A experiência passada demonstra que o sistema da designação pessoal, sendo perigoso, deu más provas e se revelou inconveniente.
Em dez anos de juiz do Tribunal Constitucional (e quatro anos de vogal da Comissão Constitucional), nunca ninguém me telefonou a pedir que votasse de certo modo num qualquer processo — e isto, atribuo-o também ao facto de a forma de nomeação não ter assentado numa relação pessoal. Não tenho a certeza — é o mínimo que posso dizer — de que esta independência no exercício das funções ocorresse, com a mesma facilidade, caso a nomeação fosse efectuada por um órgão individual, como o Presidente da República. E não estou a falar, obviamente, do actual Presidente da República, que nunca teve, sequer, esse poder de nomeação, nem do anterior Presidente da República, que tinha esse poder, relativamente a um vogal da Comissão Constitucional, mas cuja prática me absterei, aqui, de comentar, nem de qualquer eventual futuro Presidente da República. A questão é, evidentemente, institucional, não pessoal.
Posto isto, apenas duas notas finais. A primeira, para esclarecer melhor o que se deve entender por politização da composição do Tribunal; a segunda, para assinalar algumas questões essenciais à garantia da independência dos juízes.
Uma bem entendida politização — e este ponto é determinante — não deve nem pode conduzir à partidarização do Tribunal. Quer isto dizer, em primeiro lugar, que os juízes do Tribunal Constitucional não devem ser escolhidos em função de um critério partidário, pelo que se hão-de adoptar todos os mecanismos convenientes para evitar que esse critério seja dominante; e, em segundo lugar, que os juízes do Tribunal Constitucional tão-pouco podem decidir em função de interesses de natureza partidária, para o que se hão-de tomar as medidas necessárias para reforçar as suas garantias de independência. Mas tal não impede que, na composição do Tribunal, se deva ter em conta que é imprescindível a existência de uma representação, tanto quanto possível paritária, de juízes com formações culturais e ideológicas diversas; é que, em sociedades como a nossa, em que ocorrem claras fracturas, o Tribunal Constitucional deve reflectir, de modo equilibrado, essas diversas componentes sociais.
O que importa fundamentalmente assegurar não é o equilíbrio entre este e aquele partido, entre este e aquele bloco político-partidário, mas entre concepções de vida, pré-compreensões, opções sobre a organização da sociedade — isto é, entre blocos político-culturais. O que importa é que haja equilíbrio entre os que defendem, sobretudo, a liberdade e os que propendem mais para a autoridade; entre os que acentuam mais a necessidade de garantir os direitos dos cidadãos e os que atribuem maior importância à salvaguarda das instituições; entre os que pendem para as prerrogativas do Parlamento e os que simpatizam mais com o reforço de poderes do Executivo; entre os que vêm a realização da justiça social através do reconhecimento de direitos e aqueles que a vêm sobretudo realizada através de formas assistenciais; entre os que se preocupam com a redistribuição da riqueza e os que dão maior ênfase à produção; entre os que têm uma formação laica e os que têm uma formação confessional. Não é, pois, entre partidos, mas entre estas sensibilidades que tem necessariamente que haver um equilíbrio no Tribunal Constitucional, e nisto, e só nisto, há-de consistir a sua politização. Entendo, todavia, nomeadamente pelas razões que o Prof. Favoreu há pouco referiu, que todas as sensibilidades político-partidárias relevantes se devem sentir reflectidas na composição do Tribunal Constitucional, até porque isso é importante para a legitimação do próprio Tribunal e das suas decisões.
Para além disso — ou melhor, antes disso —, quando se fala do perfil de um juiz do Tribunal Constitucional, têm que ser tidos em conta, essencialmente, dois factores decisivos: o carácter e a competência técnica. No que diz respeito ao carácter, dada a natureza das funções, e para além da probidade exigida a qualquer outro magistrado, é necessário assegurar que o juiz, decidindo, embora, em matérias de forte componente política, de acordo com as suas convicções e pré-compreensões, será capaz de o fazer sempre da mesma forma, seja qual for a maioria governamental; no que se refere à competência técnico-jurídica, para além de indispensável, constitui elemento essencial para a legitimação do Tribunal Constitucional, pelo menos perante a comunidade jurídica.
A questão fundamental não reside, pois, em alterar a forma de designação, mas sim em introduzir todas as alterações convenientes para aumentar as garantias de independência. E aí, nesse ponto, de facto, há que reconhecer que existem lacunas e erros — alguns determinados por circunstâncias específicas que condicionaram o legislador, mas corrigíveis, hoje, porque a situação de facto se alterou.
Desde logo, a questão da duração do mandato, que é manifestamente curta. Seis anos é, efectivamente, muito pouco tempo para se ser juiz constitucional, porque o exercício dessas funções não pode traduzir apenas um momento, ainda que privilegiado, de uma carreira político-profissional, antes tem de ser assumido como um objectivo em si. A independência do juiz é, pelo menos nas aparências, claramente diminuída e afectada, quando ele exerce as suas funções como um hífen de uma carreira política ou de uma carreira profissional. E só introduzindo um mandato suficientemente longo se pode cortar cerce essa possibilidade, impedindo-se que o mandato de juiz seja o mero ponto de passagem entre a parte da carreira que se teve antes e a que se vai ter depois. Por isso, vou mais longe que o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, já que ele propôs que a duração do mandato do juiz constitucional fosse de nove anos e eu proponho os doze anos.
Reafirmo que só assim é que se pode assegurar a independência dos juízes do Tribunal Constitucional: com mandatos longos, mas também não renováveis.
Este último ponto afigura-se, aliás, essencial. A possibilidade de renovação dos mandatos, ao permitir o exercício de actos que podem ser considerados como recompensatórios ou como punitivos sobre certos juízes, atinge de forma fulcral o princípio da independência, devendo, por isso, ser necessariamente eliminada. A isso aconselham, também, os ensinamentos do Direito Comparado e a experiência que já temos nessa matéria.
Finalmente, devendo manter-se a escolha dos juízes com base naqueles critérios que já apontei, mas diminuindo a sua partidarização, é perfeitamente possível diminuir o número de membros eleitos pela Assembleia da República, aumentando o número de cooptados. Não me parece que isso tenha qualquer inconveniente, antes pelo contrário. E, nesse caso, deve estabelecer-se uma diferenciação, no tempo, entre a eleição na Assembleia da República e a cooptação, de tal sorte que a renovação do Tribunal se faça por fases e não de forma abrupta.
A escolha dos cooptados em momento diverso e mais longínquo da eleição na Assembleia da República permitirá um distanciamento maior entre a cooptação e a escolha que foi feita pelos partidos no momento da eleição parlamentar. Há uma lógica interna dos juízes do Tribunal que se sobrepõe à pura lógica partidária e esta solução poderá, a meu ver, revelar-se vantajosa.
Para concluir, reafirmo que o modo de composição do Tribunal Constitucional português se mostra adequado, na sua globalidade, às finalidades próprias do sistema de fiscalização da constitucionalidade de um Estado moderno. A questão essencial que se deve colocar, pois, na ordem do dia, não é a da composição do Tribunal Constitucional, mas antes a do reforço das garantias de independência dos seus juízes.