Legitimidade da Justiça Constitucional e Princípio da Maioria
Francisco Lucas Pires
Senhor Professor André Gonçalves Pereira Minhas Senhoras e meus Senhores
Desejava antes de mais felicitar o Tribunal Constitucional, o seu Presidente, os seus Juízes, os seus Colaboradores, por este Aniversário. Julgo que este órgão deu já um contributo muito relevante para o consenso público em relação à Constituição portuguesa, na lógica do que é aliás uma função geralmente reconhecida a este tipo de instituições. Por essa via elevou-se a um alto nível de respeito e confiança por parte dos cidadãos, políticos ou não.
No entanto, ser-me-á permitido um certo tipo de interrogação crítica sobre o estatuto do Tribunal Constitucional e a sua função institucional. É a atitude que mais me motiva, em primeiro lugar porque estou aqui numa condição de «emigrado», quer no plano científico quer no plano pessoal; em segundo lugar, porque em toda a Europa se atravessa um momento de reflexão crítica sobra as estruturas constitucionais da democracia liberal e, em terceiro lugar, porque é sempre necessário evitar que os aniversários se transformem em meras consagrações.
O tema da legitimação dos tribunais constitucionais é um tema difícil como o prova o facto de o extraordinário número de teses, colóquios e intervenções teóricas sobre o tema estar muito longe de ter encerrado o assunto... Como legitimar em democracia um Tribunal Constitucional que é, não só um garante da Constituição como, num certo sentido, até a última instância da mesma democracia, chamado a decidir quando é que os órgãos daquela actuaram «legitimamente» ou não.
É claro que se pode atalhar o problema, como aliás já foi aqui dito, dizendo que a base da legitimidade está na Constituição! Só que tão expedita ideia de legitimação é não só excessivamente formal — morre com a letra da sua própria afirmação — como nos remete para a legitimação da Constituição, ela própria. Além disso, não resolve o problema de saber qual é a medida de legitimidade desta instituição, Tribunal Constitucional, dentro da Constituição a que pertence, no equilíbrio com as restantes instâncias e procedimentos.
Poderíamos utilizar uma hipótese porventura preguiçosa mas clássica sobre os critérios de legitimação possíveis — a formulada por Max Weber. Mesmo sem tomar à letra os seus critérios, e começando pela hipótese da legitimidade tradicional poder-se-ia ver o Tribunal Constitucional ao nível de uma quase intemporalidade da noção da Constituição com a garantia de uma permanência desta. Embora os TCs sejam ainda os noviços da história constitucional e política, também eles teriam a ver com a longa continuidade ou até o estatuto de quase direito natural de que a Constituição é suposto gozar. Se para muitos a Constituição é a forma mais perfeita e positiva possível da lei natural, ou em todo o caso, uma espécie de decálogo moderno, também o juízo da constitucionalidade seria uma das suas mais características expressões identitárias, garantida pelo TC até na linha de uma certa tradição da judicatura como sacerdócio do direito.
Os juízes constitucionais seriam, por outras palavras, as pessoas mais indicadas para a interpretação-revelação da lei natural-positiva a que a Constituição aspiraria. Por essa via, através deles, veríamos restituído permanentemente o valor originário da ideia de Constituição e do Estado de Direito como valor superior e anterior à própria ideia de Democracia e sem as quais esta não poderia sustentar-se como Democracia de Direito. A ressalva a fazer é que esta «continuidade» é abstracta ou mesmo fingida e não lhe poderíamos chamar «monárquica» como Max Weber. Duplamente abstracta aliás, no sentido de que a cada Constituição corresponde quase uma Revolução e a cada Tribunal Constitucional uma função, uma estrutura e uma linha interpretativa diferente.
Haveria depois um segundo critério-tipo — o da legitimidade tecnocrática — baseada na ideia de competência. Para este ponto de mira o Tribunal Constitucional teria uma função de regulação sistémica da Constituição. Seria uma espécie de órgão técnico no meio do organigrama político da Constituição. Era um reparador de «pannes». Aspiraria mesmo a fazer a soma racionalizadora, no quadro de um processo marcado historicamente, tantas vezes, por assomos de irracionalidade e que outros tipos de legitimidade mais facilmente propiciariam. A ressalva é a de que dificilmente a aplicação do Direito e em especial a do Direito Constitucional poderia alguma vez deixar-se reduzir a uma lógica de competência cientifico-técnica tal como idealizada por Max Weber. A crítica neste ponto é tão ampla e conhecida que pode dispensar-se qualquer referência.
Haveria depois um terceiro «discurso legitimador», mais estranho a priori. Seria o de considerar o Tribunal Constitucional como dispondo tout court de uma legitimidade de tipo democrático. É que não só a sua origem remete à democracia constituinte como a sua continuidade remete para o consenso dos cidadãos, das instituições e em particular dos órgãos democráticos que intervêm na sua designação. Competir-lhe-ia, além disso, a defesa das condições do contrato social democrático e da própria sociedade democrática, as quais suporiam um limite, normativo mas também orgânico, a toda a vontade de poder, mesmo o democrático[1].
Ao fim e ao cabo, não só não há democracia sem direito como sem democracia também não tem sentido um Tribunal Constitucional — nem sequer talvez o controlo da constitucionalidade das leis. Bastaria pensar na experiência da Constituição de 1933 completamente claudicante sobre esse aspecto. A própria magistratura não tinha então consciência da existência de normas constitucionais de garantia e controlo da constitucionalidade. Pude verificar isso mais do que uma vez, quando os magistrados, presidentes dos júris de exame na Faculdade de Direito de Coimbra, se viam surpresos perante respostas dos alunos sobre este ponto.
De facto, só na relação funcional e moral com o regime democrático, um Tribunal Constitucional tem sentido. Só a Democracia corresponde, aliás, ao próprio fundamento global da Constituição e do constitucionalismo no seu conjunto, como «corpus» da etapa adulta da história democrática. Não se trata pois apenas de mais uma forma de garantir o direito. Mais do que instrumento concretizador deste tem mesmo algo de garante e ordenador da democracia. Foi isso que foi compreendido na pós-guerra quando tais instituições se generalizaram no quadro das democracias ocidentais como antídoto à degenerescência totalitária que nalgumas delas se havia instalado antes da guerra.
Esta «personalidade» democrática dos TCs estaria também presente na sua função. Algumas expressões particulares disto mesmo ao nível da garantia que incumbe aos Tribunais Constitucionais seriam, em primeiro lugar, a função de conservar, promover e alargar o consenso constitucional[2]. No fundo, a ideia do consenso é uma ideia de democracia, ao mesmo tempo mais geral e mais informal. É uma espécie de plasma pré-democrático sem o qual não é possível, nem a afirmação da vontade maioritária, nem o reconhecimento do pluralismo. Por isso a garantia do consenso na argumentação concreta da Constituição é uma função radicalmente democrática — e não apenas no seu objectivo, como em grande parte no seu método.
O consenso sobre os princípios e as instituições constitucionais é hoje ainda mais vital como factor da paz civil, identidade e competitividade das nações. Prende-se com noções de consistência e permanência. Tal função de consenso tem, de facto, a ver com uma ideia de durabilidade do princípio democrático que, sendo frágil devido à sua insolidariedade com a força, supõe uma conservação da adesão para que ela possa ser estabelecida no longo prazo com alguma fiabilidade. Aliás, só as normas constitucionais consensuais têm um controlo verdadeiramente eficaz.
Este controlo da constitucionalidade tem ainda a ver com a democracia por uma forma que nós poderíamos considerar a garantia das suas virtudes contra os seus defeitos. A democracia precisa de ser garantida contra os seus débitos (liberalistas) e contra os seus excessos (democratistas). Os direitos fundamentais, por exemplo, estão na charneira destes dois perigos. Poderíamos chamar aos TCs nesta óptica um filtro das impurezas da vontade geral, especialmente importante quando o decisionismo democrático pode levar tudo de vencida. Com efeito, não é por acaso que o controlo judicial da constitucionalidade põe normalmente uma especial intensidade na protecção dos direitos fundamentais e corresponde mais amplamente à lógica garantista do constitucionalismo em geral.
E ao revés, numa outra dimensão, os TCs visam também uma certa garantia da separação de poderes e esta tem que ser entendida, em primeiro lugar, como uma limitação do poder não democrático. A garantia dum certo primado e reserva da lei são cada vez mais necessárias e os TCs são as sentinelas em estado de prontidão, para barrar o caminho às formas ocultas ou cinzentas do poder delegado.
Os TCs fazem ainda um «relais» da lei para a realidade. «Confessam» a lei e permitem-lhe a abertura interpretativa permanente, actualizando a Constituição, reportando-a aos factos. Assim contribuem para manter a sua democraticidade e ao mesmo tempo a procura dessa democraticidade pelo «público» da lei, os cidadãos e a opinião pública. Permitem inclusivamente uma arbitragem entre diferentes legitimidades democráticas ou entre diferentes maiorias (legislativa e presidencial, por exemplo) quando ambas intervêm sobre o processo legislativo, como é frequente no nosso caso.
Como que colocado dos dois lados da democracia, o TC deve assegurar também a preservação do princípio da maioria, sem se subordinar a ele mas em equilíbrio com a respectiva autonomia e supremacia no plano democrático. Segundo esta lógica a existência de um controlo de jurisdição constitucional supõe, como seu recíproco viável, uma vontade democrática forte e a possibilidade estrutural dum princípio de maioria.
Tal equilíbrio entre controlo e maioria poder-se-ia formular dizendo que quanto mais forte puder ser a vontade democrática e a possibilidade de formação de maiorias num sistema político, mais forte pode e deve ser a legitimidade do mecanismo de controlo da constitucionalidade. É que este há-de funcionar como um espelho desencantado das virtudes do princípio da maioria, um seu anjo da guarda. Esta relação de força alimenta-se reciprocamente em benefício da Democracia no seu conjunto.
Para além desta condição sistémica, há depois um certo número de condições mais específicas que têm a ver com os métodos de interpretação. Tanto melhor, nesta lógica, quanto maior for o lugar que deixem ao princípio da maioria. A «interpretação conforme» pode aproximar-se dessa ideia. O mesmo se diga de princípios como o da liberdade de conformação da lei, da conservação da lei, e da auto-restrição do juiz constitucional. Como disse aqui o Prof. Stark não se podem, por exemplo, interpretar os direitos económicos e sociais no sentido de condicionar a política orçamental do executivo. Deve prevalecer um método, uma atitude interpretativa que deixe o legislador exprimir-se primeiro e até ao fim sob formas largas, diferentes e variáveis, o que duvido que corresponda exactamente ao figurino entre nós desenhado. Essa é a forma do respeito da precedência, da plenitude da vontade legislativa, a única que em democracia pode aspirar a uma visão global projectada para diante. Há pois que interferir com ela o menos possível, no reconhecimento da precedência histórica, lógica, cronológica, filosófica, política, desse princípio da maioria.
Assegurar a maior democraticidade do sistema de controlo através, por exemplo, do acesso do cidadão também joga um papel importante neste tipo de legitimação. Seria conveniente pôr a iniciativa do controlo à mão do mais fraco, do lado dos direitos fundamentais e das minorias, muito mais do que do lado de outros poderes concorrenciais do poder legislativo. No nosso caso, ir por aí seria um avanço na linha de maior legitimação democrática do controlo de que estamos a falar.
Se me permito adiantar esta proposta entre outras possíveis é porque duvido que a nossa Constituição corresponda exactamente ao modelo de legitimação democrática que antes defendi. O que aliás não quer dizer que a actividade do Tribunal Constitucional não tenha sido excepcionalmente meritória e que o trabalho dos nossos juízes constitucionais não continue a ser muito positivo e muito útil no quadro das nossas instituições.
O facto é que o artigo 223º° da Constituição ao dizer que compete ao Tribunal Constitucional administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional se mantém ainda numa posição neutra e esta neutralidade é justamente o rosto habitual do tipo de legitimação técnica. Não o escamoteiam aliás Gomes Canotilho e Vital Moreira quando no seu «Comentário» à Constituição dizem que o Tribunal Constitucional é um «órgão constitucional autónomo de regulação do processo político-constitucional» e «um regulador essencial da vida institucional do Estado»[3]. Uma destas fórmulas está aliás sublinhada no seu texto e tem de se reconhecer que tal interpretação é, face à letra da Constituição, a que parece mais adequada.
Além disso, o nosso sistema político é muito forte do lado do controlo jurisdicional da Constituição e muito fraco do lado da possibilidade de formação de maiorias. Não corresponde a um equilíbrio entre o princípio democrático e da maioria, de um lado, e o princípio do controlo, do outro lado. Para concluir por essa falta de equilíbrio basta verificar que temos controlo preventivo e sucessivo, controlo concentrado e disperso, controlo de acções e omissões, controlo universal estendido a normas e a decisões, enquanto do lado da formação de maiorias, estão em operação princípios, métodos e estruturas fracos ou conflituantes com ele como, por exemplo, o da proporcionalidade e o semi-presidencialista, além de uma textura intensiva e extensiva da Constituição que obriga a lei a ser praticamente uma função «executiva» da Constituição.
O que se poderia chamar o «bloco da constitucionalidade» cava fundo e largo, traduzindo uma excessiva desconfiança da vontade democrática, dando origem ao que (numa linguagem talvez menos propositada para juristas) podia ser considerado mais um racionalismo parlamentarizado do que um parlamentarismo racionalizado ... É como se a lei fundamental tivesse algo de «razão de Estado» constitucionalizada, com o Tribunal Constitucional de um lado e o Presidente da República de outro a garantir as baias da opção maioritária. É uma Constituição que, para utilizar um modismo — se podia dizer «à Maastricht», do ponto de vista da complexidade ...
Tudo isto conduz, por sua vez, a uma encurtada distinção entre «legislação» e «interpretação» da Constituição. Não há entre estes dois níveis uma real «separação de poderes» e daí a envolver o Tribunal Constitucional muito amiúde em questões menores vai um passo. De facto, quando a interpretação é como uma parte do processo legislativo este acaba por ser infiltrado também pela interpretação institucional da Constituição que ao TC incumbe. Ou, noutra perspectiva, a interpretação constitucional do TC pode ser vista como culminando o próprio processo legislativo.
Ora este circuito fechado reforça a tendência para a supervisão da Constituição, como vigilância de poderes entre si, obscurecendo e reduzindo a abertura para os cidadãos. De resto, há mais meios para assegurar a intensidade do controlo sobre a repartição de poderes do que sobre os direitos fundamentais. É o que ressalta do modo como é assumido o controlo da constitucionalidade. O Presidente pode dirigir-se ao Tribunal Constitucional e pedir a fiscalização, como aliás outras instituições, mas os cidadãos não podem. Aí está um ponto que, sob o pretexto da praticabilidade, confere com a preocupação central da Constituição que é a da racionalização sistémica e não a da valorização do princípio da maioria ou dos direitos fundamentais. Há uma «muralha de aço» normativa, com a Constituição no topo e quer-se escorar devidamente tal pirâmide, através de guardiões colocados a toda a volta que evitam que ela se transforme num castelo de cartas, ou numa Torre de Babel, através do processo contínuo de alternância, da mudança e do pluralismo.
Em suma, o sistema tal como funciona obriga a que as leis sejam tanto ou mais função da Constituição do que da maioria. A Constituição, por outras palavras, não é assumida como um limite ou sequer um quadro, mas como um programa que deve estar sempre presente na «confecção» da lei. Há portanto um contexto em que a legitimação do nosso Tribunal Constitucional mais parece resolver-se através da fórmula weberiana da competência, da racionalização sistémica. Num sentido algo caricatural, a Constituição seria a ciência de que o Tribunal Constitucional ê a tecnologia.
Eu seria pois partidário de uma política constitucional de democratização do controlo de um maior acesso dos cidadãos a ele. Limitando-me apenas a linhas de princípio defenderia também um controlo menos abstracto, menos preventivo e mais concreto e mais sucessivo. Por sua vez, gostaria também de ver maior autonomia da vontade democrática no conjunto do sistema. Dar-lhe mais força de expressão legitimaria, aliás, reflexamente a força contraposta do controlo da constitucionalidade. E advogaria de bom grado que a próxima revisão constitucional se devia perspectivar no horizonte de uma sociedade mais auto-regulada ou menos hetero-controlada e hetero-regulada.
Tenho, aliás, a convicção de que estas considerações podem ser adequadas à evolução da democracia liberal da Europa actual. O Prof. Favoreu, por exemplo, já disse que «o direito constitucional moderno põe o acento sobre o Estado de Direito mais do que sobre a Democracia»[4]. Quer dizer: a democracia foi uma aquisição que construímos e aperfeiçoámos mas depois fomos acastelando sobre ela os perfeccionismos jurídicos do Estado de Direito. Ora a questão que hoje se põe é se o conjunto de benfeitorias técnico-jurídicas não pesa demais sobre a vontade democrática numa hora que parece querer ser de crise do político, para uns e de «mal-estar constitucional» (Gomes Canotilho), para outros.
Certas democracias monistas, onde quase não há formas de controlo da vontade política — a não ser as internas à própria política — como é o caso da britânica ou da sueca, não têm os problemas de democracias como a italiana onde as formas de controlo são extensas e vastas mas onde o excesso do controlo funcionou como um tapume e uma desculpa para a irrealidade da lei. As leis perfilaram-se pela constitucionalidade segundo os mais rigorosos figurinos, mas, ao mesmo tempo, tornavam-se irreais. Foi assim que aí se chegou ao caso extremo de hipocrisia legislativa que era a lei de financiamento dos partidos. Mais constitucional não podia ser, mais irreal também não.
Há pois necessidade de reinventar um novo equilíbrio entre o político e o jurídico. Na medida em que sou testemunha desse problema enquanto comunitarista, o desequilíbrio entre esses dois planos nas constituições nacionais parece-me o inverso do desequilíbrio existente na «constituição» comunitária. O jurídico tinha aí recuperado completamente o político mas no sentido de que o Tribunal de Justiça das Comunidades pode ser considerado como uma entidade que quase faz política e mesmo a super-política de tipo constituinte. Um dos mais célebres juízes do Tribunal de Justiça das Comunidades (Pescatore) disse um dia não negar que sempre haviam tido e praticado como juízes «uma certa ideia da Europa». A expressão tem a carga histórica de ser o equivalente da fórmula célebre de De Gaulle quando anuncia no início das suas Memórias ter sempre tido uma certa ideia da França... Mostra assim até que ponto a jurisprudência desse Tribunal se considerava imbuída duma alta missão política.
Nas Comunidades quem tem que se esconder e se disfarça como direito é a política, quem se afirma descaradamente é o direito. Nas democracias nacionais, a política é suposta ter mais direitos de cidade, ir à frente, mas o direito aspira-a, digere-a de todas as maneiras. Há aqui um jogo de sombras, que comporta uma certa margem de hipocrisia e as democracias ocidentais poderiam estar a pagar. O caso italiano é o caso mais extremo. Seria necessário repor um equilíbrio entre as funções de controlo jurídico, de um lado e a afirmação da vontade maioritária e da democracia por outro lado, de modo a assegurar um funcionamento mais verdadeiro, ou menos hipócrita, em que o Estado de Direito possa recuperar a sua função de quadro da Democracia, não de seu substituto ou sucedâneo.
[1] «Uma sociedade democrática é aquela que renunciou à hipostase do domínio absoluto, mesmo que se trate da vontade geral» (Jacques Lenoble, «Penser l'Identité et la Démocratie en Europe», in L'Europe au Soir du Siècle), org. de Jacques Lenoble et Nicole Dewandre, Paris, 1992, p. 313 e 314.
[2] Estas fórmulas são de Helmut Simon, «Verfassungsgerichtsbarkeit», in Handbuch des Verfassungsrechts, Hersg. Ernst Benda, Werner Maihofer, Hans-Jochen Vogel, Berlim, 1984, p. 1275 ss.
[3] Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.a ed., Coimbra, 1993, p. 834.
[4] De la Democratie à L'Etat de Droit», in Le Débat, março-abril 1991, p. 161.