A Constituição, o Tribunal Constitucional e o Processo Administrativo
Rui Chancerelle de Manchete
Minhas Senhoras e Meus Senhores
I. Introdução
Desejo começar por agradecer o honroso convite que me foi feito para falar nestas Jornadas Comemorativas do X Aniversário do Tribunal Constitucional e também aproveitar para expressar os meus parabéns e os meus votos de felicidades à Instituição.
Escolhi este tema basicamente por duas razões: — uma mais de carácter objectivo, e outra obviamente de carácter subjectivo. Em primeiro lugar, porque julgo que, ao contrário do que aconteceu até aqui, o Tribunal Constitucional vai estar, provavelmente muito em breve, em face da necessidade de explicitar as suas opções, a sua interpretação acerca não apenas de alguns institutos fundamentais da justiça administrativa, mas também do próprio posicionamento da Administração Pública entendida como organização ou como conjunto de organizações no ordenamento jurídico português. A razão subjectiva, essa, é óbvia: para mim é mais fácil tratar desta matéria do que de outras igualmente interessantes, mas para as quais me sinto ainda menos bem preparado. Acresce que a circunstância de o legislador ordinário — em matéria de justiça administrativa — se ter atrasado em concretizar adequadamente os normativos constitucionais, atraso ainda mais aparente após a revisão de 1989, justifica ser previsível que o Tribunal Constitucional neste domínio seja chamado não apenas a proferir sentenças aditivas mas a explorar de uma maneira mais ampla alguns princípios básicos, designadamente quanto ao âmbito da jurisdição administrativa e da efectividade da tutela jurisdicional. Terá, por consequência, de ir mais além na definição, em termos pretorianos, das traves mestras da justiça administrativa se o legislador ordinário persistir na sua inércia.
II. A Nova Posição da Administração Pública no Ordenamento Jurídico Português
As intervenções até aqui realizadas pelo Tribunal Constitucional em matéria de justiça administrativa, embora não possam certamente considerar-se despiciendas — têm sido pontuais. O Tribunal tem sido chamado, sobretudo, a pronunciar-se sobre os termos em que opera a garantia do acesso aos tribunais administrativos e a recorribilidade dos actos e ainda sobre a tutela cautelar. Isso mesmo é, aliás, evidenciado nos estudos sobre a jurisprudência do Tribunal Constitucional agora publicados[1]. Mas, do labor do Tribunal não resulta uma ideia clara e sistematizada sobre o modelo da Administração Pública portuguesa pressuposto pela Constituição e as suas incidências sobre a relação fundamental entre a Administração e o particular. A amplitude e relevância dos problemas a que, com grande probabilidade e cada vez com maior frequência, o nosso mais alto órgão jurisdicional será solicitado a decidir em matéria de processo administrativo, por um lado, a consciência cada vez mais nítida da conexão do processo contencioso com o procedimento administrativo e com a organização administrativa, por outro, obrigá-lo-ão porém a ir mais longe, elevando a sua jurisprudência da particularidade das espécies às linhas fundamentais do sistema administrativo.
É que, com efeito, nem a organização e modos de proceder da Administração Pública, nem a posição dos cidadãos, ou mais em geral, do particular em face do poder público são o que eram no período clássico do Estado liberal. E a nossa Constituição recebeu os novos dados, fazendo aqui e além afirmações concretas, mas, sobretudo, deixando implicitamente antever o tipo de Administração novo que pressupõe. Legislador ordinário, jurisprudência e até a doutrina têm-se atardado em o reconhecer e daí extrair as necessárias consequências. É natural que ao Tribunal Constitucional, pela sua posição de órgão que deriva a sua legitimidade directamente da Constituição, pela sua função de aplicação do direito em questões constitucionais, e ainda, pela sua própria natureza de órgão representativo da sociedade, caiba neste capítulo um papel de liderança.
A evolução da Administração diz tanto respeito ao seu modo de agir como à sua própria estrutura e organização.
A actividade administrativa, na construção clássica, girava à volta do acto administrativo e das suas notas características da executoriedade e da definitividade. Este conceito central de dogmática administrativa era entendido por Otto Mayer, em paralelo aliás com a sentença judicial, como uma aplicação da lei ao caso concreto, feita por um órgão da Administração, por uma autoridade, definindo em termos obrigatórios a situação jurídica do particular[2]. A procedimentalização da acção da Administração, com a crescente atribuição de relevância à participação dos interessados e às consequências dos vícios procedimentais, o reconhecimento da existência de muitos outros tipos de actos da Administração igualmente regidos pelo Direito Público, mesmo ao nível dos actos unilaterais de aplicação, minaram o monopólio da atenção de que até aí gozavam as manifestações da vontade da Administração de carácter autoritário como expressões em termos subsuntivos concretos do querer abstracto do legislador.
A pouco e pouco, passou a prestar-se atenção, para além dos «provvedimenti», aos juízos, às declarações de ciência e aos «Realakte». Por outra parte, ganhou nova dimensão a chamada contratualização da actividade administrativa, expandindo-se o seu âmbito material com novos tipos de contratos administrativos e admitindo-se mesmo uma grande fungibilidade entre o uso dos actos e dos contratos administrativos. Não raras vezes, aliás, é a própria actividade autoritária da Administração que surge em execução de um prévio acordo com os interessados, colocando sérios desafios às explicações tradicionais da doutrina jurídica. O fenómeno da programação, ou de planificação da actividade administrativa, primeiro no domínio do urbanismo e do ordenamento do território, depois estendendo-se ao campo económico e dos grandes projectos de desenvolvimento, traz uma problemática nova, quer do ponto de vista do exercício de poderes administrativos, quer da tutela do destinatário dos efeitos finais das acções programadas e dos actos concretos de aplicação. A submissão da actividade de planificação às regras básicas do procedimento administrativo dá também outra eficácia à participação dos interessados. Com a programação da actividade administrativa também se evidencia melhor que a função administrativa em sentido material não é apenas execução da lei, abrindo assim novos horizontes e dando novo significado ao princípio da legalidade.
Mas, as inovações não se restringem ao Direito Público, pois que cada vez com maior frequência, a Administração lança mão de formas de direito privado, abrindo uma nova temática sobre as eventuais especificidades de que se deve revestir a regulamentação pelo direito privado das relações jurídicas em que um dos sujeitos, pelo menos, integra a Administração — o, designado pela doutrina alemã, «Verwaltungsprivatrecht», tão negligenciado entre nós[3] .
Do lado das estruturas, da Administração em sentido subjectivo, é sabido que a teoria clássica tratava da Administração Pública como um todo unitário, que ganhou autonomia, gradualmente no seio do Poder Executivo. O facto de a Administração Pública ser parte do Poder Executivo faz com que participe no exercício da soberania, sendo os seus actos ainda precipitação ou concretização daquela.
Daí também o seu carácter de «potentior persona» na relação jurídico-administrativa que estabelece com os particulares. A personalidade do Estado, ora se estende a todas as funções, incluindo assim os órgãos legislativos e judiciais, ora se restringe à Administração Pública. Mas, em qualquer caso, a personalidade jurídica do Estado, como conceito síntese de uma realidade político-administrativa ampla, tende a fazer considerar a Administração como pessoa única e a relegar para um plano secundário e instrumental as outras pessoas colectivas públicas, mesmo as de base territorial, como as autárquicas, que todas são configuradas como meros desdobramentos funcionais da pessoa Estado.
Essa unidade, eu diria mesmo, unicidade do Estado como pessoa colectiva que tem por órgão o Governo, foi desfeita com o multiplicar das pessoas colectivas públicas de base institucional, com as associações públicas e com as empresas públicas. Mas, é, sobretudo, o fenómeno do poder local, dotado de verdadeira autonomia, assente e reconhecida pela Constituição e não apenas como simples delegação funcional do Estado, que empresta o verdadeiro tom ao pluralismo da Administração. Esse pluralismo, aliado ao incremento da participação dos particulares e de entidades representativas de interesses difusos no processo de decisão, altera profundamente a fisionomia da Administração Pública e o modo de ser do seu direito. O Estado ordenamento distancia-se da pessoa colectiva Estado e esta já não sintetiza a Administração Pública que passa a substantivo plural de um conjunto vasto de entidades autónomas. O Direito Administrativo, se é direito estatutário, passa a ser regulador não de um ordenamento concentrado, mas de um ordenamento descentralizado com pluralismo de sujeitos em posições de superioridade, posições que raras vezes perduram, por que são episódicas, visto em muitas outras relações, esses mesmos sujeitos já diversamente nos surgirem como destinatários de actos de exercício de poder de entidades diferentes[4].
O facto de na nossa Constituição o acto definitivo e executório ter sido substituído, do ponto de vista da recorribilidade contenciosa, pelo conceito de acto lesivo — Constituição, artigo 268º, n.º 4 —, deixando cair os requisitos de definitividade e de executoriedade formal para passar a exigir apenas um razoável interesse em agir — para além naturalmente dos outros pressupostos processuais subjectivos —, insere-se nessa orientação. A desnecessidade da definitividade vertical, é designadamente uma clara directriz a favor da descentralização, pois dispensa o recurso hierárquico necessário, para além de constituir um reforço substancial da tutela efectiva das situações jurídicas dos particulares.
Compreende-se, assim, também, que o privilégio de execução prévia e tutela executória sejam, menos qualidades do sujeito, do que notas abstractas extraídas das relações concretas em que pessoas administrativas e particulares se envolvem. Torna-se também evidente que esta profunda alteração não pode deixar de ter repercussões profundas na justiça administrativa e no modo como são tutelados os direitos e interesses do particular face aos poderes administrativos.
Vejamos, rapidamente, alguns dos aspectos mais importantes, em que a acção do Tribunal Constitucional se poderá mais fortemente fazer sentir.
III. A Justiça Administrativa na Constituição
III. I Os Tribunais Administrativos Órgãos do Poder Judicial
Sob a Constituição de 1933, parte importante da doutrina sustentava que, tal como em França, também entre nós os tribunais administrativos eram órgãos da Administração. Em devido tempo, não sufraguei essa tese. Mas, hoje, presumo que ninguém discordará de que os tribunais administrativos e fiscais são órgãos de soberania, exercendo a função jurisdicional e administrando justiça em nome do povo, em termos similares aos das restantes categorias de tribunais previstos no Título V da Parte III da nossa Lei Fundamental — artigos 205º e 211º O artigo 214º, nº 3, consagra mesmo uma reserva material de competência dos tribunais administrativos e fiscais, ao referir que lhes cabe «o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais». É um ponto em que se não tem atentado suficientemente e que, ao consagrar um «juiz natural das lides administrativas», muito provavelmente gerará importantes inconstitucionalidades, algumas delas de carácter superveniente. Trata-se de questão que, «brevitatis causa», só podemos mencionar de passagem, não sem, todavia, fazer notar que a definição de jurisdição em sentido material dada pela Constituição aponta claramente para um contencioso subjectivo e para um reexame do actual estatuto e amplitude da acção pública.
O facto, porém, de os tribunais administrativos serem verdadeiros órgãos jurisdicionais pertencentes ao poder judicial, torna desde logo menos plausível a doutrina sustentada pelo Prof. Marcello Caetano que concebia o processo contencioso como uma mera continuação do gracioso e equiparava a Administração Pública recorrida ao juiz de cujo despacho se tinha agravado. Incentiva, por outro lado, a usar, no estudo do contencioso administrativo, as categorias e conceitos elaborados pela dogmática jurídica para o processo, em particular para o processo civil. Da conjugação dos princípios que caracterizam a posição imparcial e «super partes» do juiz com outros princípios e normas constitucionais, é ainda possível retirar outras notas importantes para a definição do tipo de processo administrativo querido pela nossa Constituição. Vamos limitarmo-nos, porém, a fazer-lhe breve referência a propósito de uma figura criada directamente pela Revisão de 1982 e que, após uma tímida e fruste regulamentação feita pelo legislador ordinário em 84/85, foi aperfeiçoada em 1989, uma vez mais por obra do poder constituinte: — a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido.
III.II A Acção para Tutela dos Direitos ou Interesses Legalmente Protegidos
Com a Revisão de 82, o artigo 268º, nº 3, da Constituição veio introduzir uma nova figura — que ao princípio suscitou e hoje ainda suscita algumas dificuldades na determinação do seu exacto alcance: — a acção para reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido. A doutrina que primeiro se debruçou sobre o significado do instituto, relacionou-o desde logo com o princípio da tutela efectiva, mas procurou compatibilizar esta nova instituição com a visão tradicional do modelo de processo de impugnação de actos administrativos autoritários e assim, admitiu-se a sua aplicação em casos de actos inexistentes, e quando não haja actos definitivos e executórios, mas limitou-se o seu alcance. Começou a generalizar-se na jurisprudência e na doutrina a ideia, que veio a ser consignada na Lei, de que se tratava de um meio supletivo utilizável quando se esgotassem os restantes meios contenciosos: é o que dispõe ainda hoje o artigo 69º, nº 2, da Lei do Processo nos Tribunais Administrativos —: «As acções só podem ser propostas quando os restantes meios contenciosos, incluindo os relativos à execução da sentença, não assegurem a efectiva tutela jurisdicional do direito ou interesse em causa». É certo que havia alguns autores que defendiam o uso alternativo dos meios contenciosos — o recurso ou a acção — fora evidentemente dos casos clássicos em que a acção já era admitida em matéria de interpretação de validade e execução dos actos administrativos e em matéria de responsabilidade extracontratual da Administração e, eventualmente, em matéria do domínio público, questão que nunca foi bem esclarecida e que já era prevista no Código Administrativo de 40. Esses autores aceitavam justamente em função do princípio de tutela efectiva que, quando houvesse limitações insuportáveis da prova que pusessem em causa os direitos ou interesses legítimos se convolasse dos recursos para as acções, ou, dizendo as coisas de outra maneira, houvesse uma contaminatio das normas sobre o recurso contencioso pelas normas sobre as acções. Era o que podemos designar como a teoria funcional sobre o âmbito de aplicação dos recursos e das acções. A essa doutrina contrapunha-se a teoria estrutural que lançando mão do critério do poder administrativo, distinguia, de modo rígido, o campo em que só seria admissível interpretar recursos — quando estamos perante o exercício do poder administrativo —, e o domínio dos actos inexistentes e nulos e das operações materiais e, ainda, para alguns dos actos negativos, em que se torna admissível usar a acção[5].
Em 89 houve uma modificação muito significativa e que foi, do ponto de vista subjectivo dos autores que participaram na Revisão Constitucional claramente intencional — como foi intencional a substituição do acto definitivo e executório pelo acto lesivo — e que se traduziu no desdobramento do artigo 268º da Constituição nos n.os 4 e 5. No n.º 4 do artigo 268º mantém-se a garantia do recurso contencioso com fundamento em ilegalidade contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua forma, que era de resto fórmula que já vinha de trás, e o nº 5 refere-se agora que é igualmente sempre garantido aos administrados o acesso à justiça administrativa para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. É esta nítida distinção que durante muito tempo, os tribunais deixaram despercebida, não introduzindo quaisquer correcções à lei ordinária, que entretanto permaneceu inalterada.
Recentemente, porém, deram-se dois factos de apreciável relevo. O primeiro diz respeito à publicação da 3.a edição da «Constituição Anotada» do Prof. Canotilho e do Dr. Vital Moreira e onde, de uma maneira inequívoca, se vem dizer que o significado desta separação entre os recursos e as acções se traduz praticamente em admitir que as sentenças administrativas abrangem praticamente todo o tipo de sentenças: as sentenças constitutivas, as sentenças declarativas e as sentenças condenatórias[6].
É um texto muito sintético e é verdade que não seria de esperar que houvesse um desenvolvimento grande das considerações expendidas dada a natureza do trabalho, mas a abertura feita é extremamente ampla e essa admissão tão ampla já deu um resultado, visto que é directamente inspirado nessa doutrina um recente Acórdão da l.a Secção do Supremo Tribunal Administrativo de que foi relator o Senhor Juiz Conselheiro Dimas de Lacerda, proferido em 4 de maio de 1993, o «Caso Costa Tavares e Mulher». Esse Acórdão, louvando-se na lição dos Autores que há pouco citei, veio considerar como inconstitucionalizado «à posteriori» o artigo 69º, nº 2, da Lei do Processo. Aceita-se neste aresto que a acção possa ser posta a todo o tempo mesmo quando o acto administrativo é apenas anulável. É um caso particularmente interessante na medida em que se admitiu a propositura de uma acção para o reconhecimento de um direito que tinha sido denegado por um acto administrativo definitivo e executório do qual já não cabia recurso contencioso por ter decorrido o prazo de impugnação. Tinha sido esse, de resto, o fundamento pelo qual o Tribunal Administrativo de círculo, rejeitara a acção na primeira instância. É certo que existe um voto de vencido, que, mais do que um voto de vencido, é um voto explicativo, onde se explana que, muito embora o Juiz Conselheiro subscritor tivesse votado o acórdão, tal não significava que se tivesse tomado uma posição em matéria de caso resolvido ou caso decidido, isto é, sobre a impugnabilidade a todo o tempo, embora por via incidental, do acto anulável.
Eu cito estes dois factos, um de carácter doutrinal outro jurisprudência, — e provavelmente o último obrigará o Tribunal Constitucional a pronunciar-se — porque colocam directamente questões de constitucionalidade de grande relevância: qual a real natureza do poder da Administração de praticar actos administrativos dotados de imperatividade e qual o próprio estatuto da Administração Pública na estrutura constitucional portuguesa.
É evidente, assim, que não se coloca apenas a questão sobre o âmbito de aplicação deste meio processual, desta acção para defesa de um direito ou de um interesse legalmente protegido, nem sequer apenas o esclarecer um caso em que já não é possível o uso do recurso contencioso. Há um conjunto muito vasto de problemas a dilucidar, que decorrem justamente da circunstância de, por existir este meio processual, se tornar mais premente esclarecer algumas outras questões fundamentais do processo administrativo e, como vimos, da própria posição da Administração e sua estrutura constitucional.
No que respeita às situações em que se pode aplicar a acção, é evidente que existem casos onde, pelo menos de acordo com a doutrina tradicional, não é possível utilizar os recursos. Estou a pensar nas situações emergentes de actos declarativos, de pareceres, de actos praticados no cumprimento de obrigações ex lege, ou resultantes de actos jurídicos em sentido estrito ou operações materiais, v. g. no caso de intervenções policiais, daquilo que a doutrina alemã costuma designar por «Realakte». Há, ainda as hipóteses do uso das acções declarativas com um objectivo cautelar que devem igualmente passar a ser admitidas.
Em todas essas situações o novo instrumento processual veio alargar a tutela do particular, dando-lhe condições de defesa dos direitos e interesses legítimos de que até aí não dispunha.
Por outro lado, existe todo um conjunto de situações em que será possível usar simultaneamente, — isso depende justamente do problema da efectividade da tutela —, quer o recurso quer a acção. Trata-se das matérias respeitantes aos actos nulos ou inexistentes e ao silêncio (acto tácito) ou omissão da prática de actos administrativos.
Problema mais delicado é o de saber se podemos ainda utilizar o meio processual acção quando estamos perante actos anuláveis. É aí que com toda a nitidez se põe o estatuto actual da Administração Pública na nossa Constituição. Penso não se justificar nenhuma distinção entre actos positivos e actos negativos denegatórios de pretensões. Ambos os tipos devem ter o mesmo tratamento. Mas, tão pouco parece aceitável, em homenagem a um hiperbólico respeito pelo poder da Administração, negar a possibilidade de apreciar, incidentalmente, a validade do acto quando se propõe uma acção declarativa ou mesmo de condenação para tutelar uma situação subjectiva de que seja titular o autor da acção.
Outra questão é a de saber se é aceitável seguir a orientação do Acórdão em matéria de actos administrativos definitivos e executórios, quando não seja possível interpor recurso contencioso por se ter esgotado o prazo. Julgo que, nesse capítulo, não poderemos ir tão longe como foi o Acórdão citado, sob pena de não ser apenas a tutela executiva da Administração que é posta em causa, mas o próprio princípio da imperatividade do acto administrativo, da sua eficácia imediata independentemente do recurso aos tribunais, se se quiser, do privilégio da execução prévia no campo declarativo. Essa era a orientação absolutamente dominante na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e assim deverá continuar.
Existem, por último, zonas em que se torna difícil se não impossível utilizar a acção e o meio conveniente será o recurso. Refiro-me à maior parte, se não à totalidade, das matérias em que estejam em causa interesses difusos, aos actos de organização e aos actos de infra-estruturação da Administração[7].
Para além deste problema do âmbito de aplicação dos recursos e das acções existem, pelo menos nos domínios que vou enunciar, largas perspectivas de contaminação dos modelos processuais do recurso e da acção em que o papel pretoriano do Tribunal Constitucional pode vir a ser decisivo se se mantiver a omissão do legislador ordinário. Sabemos, aliás, que existe um projecto de Código de Processo Administrativo Contencioso preparado pelo Prof. Freitas do Amaral, mas não conhecemos ainda quando é que esse projecto virá a traduzir-se em lei, embora façamos votos para que seja em breve. É desejável que se aproveite a oportunidade para dar resposta às questões que se põem quanto à legitimidade das partes, à intervenção do Ministério Público como titular da acção pública, à acção popular, à questão do contraditório e ao posicionamento dos contra-interessados, às limitações no que diz respeito à instrução, em particular ao problema da admissibilidade da prova testemunhal no recurso contencioso e às perícias e exames. Há ainda que disciplinar os tipos de sentenças admissíveis, designadamente a possibilidade de haver sentenças condenatórias, e regular os limites objectivos e subjectivos do caso julgado e as modalidades da execução das sentenças administrativas.
Existe, assim, uma panóplia muito larga de problemas que desafiam o legislador ordinário e sobre a maioria dos quais há directrizes constitucionais explícitas ou implícitas. Se permanecer a inércia legislativa que até agora se tem verificado, muitos destes problemas serão provavelmente submetidos à função correctiva e pretoriana do Tribunal Constitucional. Esta alta instância judicial terá então uma oportunidade para expressar a sua posição acerca da forma como é configurada a Administração Pública no nosso ordenamento jurídico actual.
IV. A Terminar
A tese de que parto é de que já não é aceitável entender o Estado como uma pessoa colectiva unitária, que depois, um pouco surpreendentemente, acaba por se fragmentar em diversos centros de imputação jurídica, as pessoas colectivas de direito público de vária natureza. Ter-se-á que pensar em termos diferentes. Ter-se-á que distanciar a Administração Pública e o Estado do ordenamento jurídico geral descentralizado criado pela Constituição de 1976. Esse é o desafio que o Tribunal Constitucional vai enfrentar ao interpretar e corrigir um esquema organizatório ainda demasiado centralizado e autoritário. Será uma oportunidade para se demonstrar a importância da Instituição no aperfeiçoamento do Estado de Direito e na defesa dos cidadãos e, dos seus direitos fundamentais e até dos seus direitos simples e interesses legítimos. Permitirá ainda evidenciar que a justiça constitucional goza de uma situação intermédia entre a função política e a função de aplicação do direito, como órgão da sociedade, com uma missão vital de garantia num ordenamento pluralista em que hoje vivemos.
Muito obrigado.
(*) Manteve-se o estilo oral da intervenção, apenas se juntando os subtítulos e algumas notas que pretendem esclarecer ou completar o que foi dito.
[1] Vejam-se os trabalhos de Guilherme da Fonseca, Garantia do Recurso Contencioso e Fundamentação do Acto Administrativo (uma evolução ou involução jurisprudencial?); Maria Fernanda Maçãs, «A Relevância Constitucional da Suspensão Judicial da Eficácia dos Actos Administrativos», in Estudos Sobre A Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Lisboa, 1993.
[2] Cf. Deutsches Verwaltungsrecht, vol. I, 3.a ed., Berlim, 1923 (reimp.), p. 93.
[3] É uma evolução sobejamente conhecida. Citem-se, a título de exemplo, os trabalhos significativos de Otto Bachof e de W. Brohm sobre «Die Dogmatik dês Verwaltungsrechts vor den Gegenwartsaufgaben der Verwaltung», in Veroeffentlichungen der Vereinigung der Deutshen Staatsrechtslehrer, n.° 30, 1972, respectivamente a p. 193 ss. e 245 ss., na Alemanha, A. Romano, «II Cittadino E La Pubblica Amministrazione», in Studi in Memória di Vittorio Bachelet, vol. I, Milão, 1987, p. 523 ss.
[4] Giorgio Berti escreveu a respeito da função desempenhada pelo conceito da personalidade jurídica do Estado na estruturação da Administração do Estado liberal e da sua progressiva dissolução no ordenamento descentralizado instituído em Itália pela Constituição republicana, páginas de sabor ensaístico extremamente sugestivas, «Diritto E Stato — Riflessioni sul Cambiamento», Pádua, 1986, p. 189 ss.
[5] A qualificação das teses como funcionais ou estruturais deve-se a Luís Sousa Fábrica, na sua dissertação ainda inédita, A Acção fará o Procedimento de Um Direito ou Interesse Legalmente Protegido, c., 1989, p. 341 ss. Defendi uma posição funcional no artigo que escrevi em 1987, «A Garantia Contenciosa Para Obter O Reconhecimento de Um Direito ou Interesse Legalmente Protegido», in Nos Dez Anos da Constituição, Lisboa, 1987, p. 225 ss. Sobre a mesma matéria, vejam-se ainda, Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, policopiado, Vol. IV, Lisboa, 1988, p. 286 ss., e Rui Medeiros, in Revista de Direito e Estudos Sociais, XXXI, 12, 1989.
[6] Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.a ed., Coimbra, 1993, pp. 941-2.
[7] Cf. sobre o sector das acções administrativas da infra-estruturação, H. Faber, Verwaltungsrecht, 3.a ed., Tübingen, 1992, p. 336 ss.