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> Colóquios > X Aniversário do Tribunal Constitucional > Legitimação da justiça constitucional e principio maioritário

A Legitimação da Justiça Constitucional e Princípio Maioritário
Maria da Assunção Esteves


I — Em 1803, no caso Marbury v. Madison, o juiz Marshall, do Supremo Tribunal dos EUA, justificou a necessidade de um controlo jurisdicional da constitucionalidade das leis dizendo que ele reforçava, em benefício do povo, os limites com que o mesmo povo ordenara as instituições de um governo limitado.

Gostaria de retomar a ideia de governo limitado ao tratar o tema da relação entre justiça constitucional e princípio maioritário. Penso que é nesta ideia de um governo limitado que assenta precisamente a legitimidade de justiça constitucional.

O núcleo do problema consubstancia-se, como observa Habermas, na circunstância de que «a critica à jurisdição constitucional se desenvolve sempre em vista da distribuição de competências entre o legislador democrático e a actividade jurisdicional, sendo, portanto, sempre uma discussão em torno do princípio da divisão de poderes»[1] .De facto, na discussão política e constitucional norte-americana, a questão da legitimidade da judicial reviev é suscitada com vista a impedir a alteração da distribuição de competências entre o corpo legislativo e os órgãos da função judicial. A crítica não se dirige, hoje, pois, contra a instituição do controlo judicial da constitucionalidade das leis, mas contra a interpretação judicial criadora, com o argumento de que o juiz carece de legitimação democrática e que, por isso, se deve cingir à aplicação de um Direito que lhe pré-existe e proceder nas suas decisões jure stricto. Este argumento político tem sido abundantemente utilizado no debate constitucional norte- americano para justificar posições de sefl-restraint[2]. A defesa de posições de self-restraint vai normalmente associada a uma vinculação ao original intent da Constituição, a uma compreensão dos direitos fundamentais como liberdades subjectivas de acção, a concepções liberais-individualistas de liberdade negativa (lsaiah Berlin) — a liberdade como ausência de interferências — e as representações sobre a divisão de poderes típicas do Estado liberal oitocentista. Esta defesa de um judicial self-restraint apareceu nas duas últimas décadas nos Estados Unidos associada a uma intenção política claramente conservadora, tentando inverter uma prática de activismo judicial e de alargamento do catálogo dos direitos civis que caracterizou o Supremo Tribunal na «era Warren»[3] .

A posição oposta, a defesa de um activismo judicial a favor da protecção dos direitos dos indivíduos e das minorias, tem a sua representação emblemática actual na obra de Ronald Dworkin Dworkin é o autor que, no momento presente, elaborou as teorias mais sofisticadas e sistematizadas em defesa de um certo construtivismo interpretativo e de um living approach na concretização da Constituição. Dworkin defende que o fundamento da judicial reviev é a protecção dos direitos dos indivíduos e das minorias[4] e sustenta a prioridade dos arguments of principle sobre as policies, ou seja, a prioridade dos direitos individuais sobre os fins colectivos, assumindo deste modo uma concepção liberal-democrática de constitucionalismo — concepção antecipada na afirmação de Kant de que a função do Estado era a realização do Direito (da ideia do Direito: Rechtsidee e não a realização de fins de bem-estar ou de polícia.

A defesa da posição contra-maioritdria e da necessidade de um correctivo liberal ao funcionamento da regra da maioria tem o seu locus classicus no conhecido passo de James Madison, nos Federalist Papers, quando dizia: The prescription in favour of liberty ought to be levelled against that quarter where the greatest danger lies, namely, that wich possesses the highest prerogative of power. But this is not found in either the Executive or Legislative departments of Government, but in the body of the people operating by the majority against the minority». A instituição da judicial review tem precisamente como base este mesmo argumento. Era assim que Marshall a justificava, por referência às instituições de um governo limitado[5].

Esta concepção corresponde à preocupação básica do que, no contexto da teoria política, se denomina de constitucionalismo: como deverão ser as instituições estaduais organizadas por forma a assegurar os direitos fundamentais do homem e do cidadão? O constitucionalismo iluminista — e, na sua sequência, o constitucionalismo liberal — democrático — propunha uma correlação funcional entre as duas partes em que usualmente os textos constitucionais se encontram divididos, o Frame of Government e o Bill of Rights: a organização dos poderes estaduais estabelecida na primeira estava ordenada à protecção dos direitos individuais declarados na segunda. Como dizia Sieyès: «Toute société dans laquelle la garantie des droits n'est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, na point de constitution»[6].

Em A Paz Perpétua, Kant define o carácter «republicano» de uma Constituição, dizendo que esta tem de ser (fundada, em primeiro lugar, segundo os princípios da liberdade dos membros de uma sociedade ( enquanto homens); em segundo lugar, em conformidade com os princípios da dependência de todos em relação a uma única legislação comum ( enquanto súbditos); e, em terceiro lugar, segundo a lei da igualdade dos mesmos ( enquanto cidadãos»[7]. E mais adiante[8], distingue a forma de governo (forma regiminis) que é o «republicanismo» — como (princípio político de separação do poder executivo (governo) do legislativo» — de todas as outras formae regiminis «despóticas», incluindo a «democracia», que «funda um poder executivo em que todos decidem sobre, e em todo o caso, também contra um (que, por conseguinte, não dá o seu consentimento), portanto todos, sem no entanto serem todos que decidem — o que é uma contradição da vontade geral consigo mesma e com a liberdade»[9].

A filosofia política e jurídica norte-americana é hoje dominada por um «retorno a Kant». Dworkin aproxima-se do ideal kantiano de «republicanismo» e acolhe a ideia fundamental do constitucionalismo moderno, quando defende a judicial review e a necessidade de salvaguarda de posições «contra-maioritárias» no contexto de uma sociedade democrática[10]. Entende, assim, que numa democracia genuína é necessário mais do que uma forma estatística (a soma maioritária das vontades) de governo e que uma sociedade democrática deve ser estruturada de acordo com três princípios fundamentais: o da participação, o do ganho ou perda contingente (stake) e o da independência. O princípio da participação faz parte da ideia de acção colectiva e tem que ver com a igualdade de base dos agentes; o princípio do ganho ou perda contingente tem que ver com a responsabilidade dos cidadãos nas decisões colectivas, o que pressupõe alguma forma de reciprocidade entre governantes; o princípio da independência implica que um governo democrático não possa determinar as concepções políticas e éticas dos cidadãos. Uma concepção de comunidade democrática estruturada de acordo com estes três princípios fundamentais justificaria o carácter democrático da judicial review, mesmo que esta vá contra posições maioritárias[11].

Rawls resume o núcleo fundamental do ideário constitucionalista nas suas «constitucional essentials» que, como diz, são de dois tipos: «a) princípios fundamentais que concretizam a estrutura do governo e do processo político: os poderes legislativo, executivo e judicial e o sentido da regra da maioria; b) liberdades fundamentais e direitos de cidadania que a maioria deve respeitar, como o direito de voto e participação política, a liberdade de consciência, a liberdade de pensamento e de associação, bem como a protecção da rule of law»[12]. Rawls recorre mesmo à noção Kantiana de «uso público da razão» (räsonierende öffenlichkeit, que pressupõe uma comunidade de sujeitos livres e iguais) para dirimir as questões relativas às constitutional essentials e às questões básicas de justiça[13].

A discussão ética e política sobre a natureza da «comunidade» a que procedem autores como Dworkin, Rawls[14], e também Nozick[15] e Walzer[16] não é uma discussão de mera filosofia abstracta, mas tem um propósito regulador, em conformidade à tradição jurídica norte-americana, que visa a articulação de linhas de orientação para os decisores políticos e sociais, de modo a evitar a indeterminação que a Constituição em si comporta.

No continente europeu, o problema da legitimidade da justiça constitucional assumiu ressonâncias distintas em cada país. Na República de Weimar, por exemplo, a questão de doutrina constitucional mais discutida e importante foi, porventura, a do controlo constitucional difuso da constitucionalidade das leis (richterliches Prüfungsrecht)[17]. Por outro lado, em sistemas de governo em que a fiscalização da constitucionalidade das leis está concentrada num órgão jurisdicional como os Tribunais Constitucionais ou os Supremos Tribunais, põe-se frequentemente em causa a natureza «jurisdicional-interpretativa» da actividade desses tribunais. Carl Schmitt, por exemplo, considerava que a justiça constitucional «é, na realidade, legislação e mesmo legislação constitucional e não jurisdição»[18]. A questão da qualificação da actividade dos Tribunais Constitucionais à luz da teoria da separação de poderes coloca-se com particular acuidade no domínio da fiscalização abstracta da constitucionalidade das normas, pois que, como sublinha Habermas, é então que se agudiza «a concorrência do Tribunal Constitucional com o legislador democraticamente legitimado»[19]: Daí que a discussão sobre a legitimidade da justiça constitucional seja, à semelhança do que também acontece nos Estados Unidos, uma discussão sobre os seus limites!

O debate e a literatura pertinente são excessivamente vastos e, francamente, considero pouco interessante uma revisitação a Montesquieu para analisar o que é da sua teoria da separação de poderes se mantém hoje válido ou foi irremediavelmente ultrapassado[20]. Os Tribunais Constitucionais são entidades de controlo da constitucionalidade das leis com uma prática institucionalizada em muitos países democráticos e seria uma actividade quase arqueológica reabrir hoje a discussão sobre a sua legitimidade democrática21. O que eu quero significar é que o fundamento do controlo da constitucionalidade das leis não tem que ver apenas com uma exigência de garantia da unidade sistémica do Direito — como o veriam as concepções kelsenianas de uma estrutura escalonada da ordem jurídica (Stufenbau der Rechtsordnung), ou luhmannianas, de estrutura autoreferencial do sistema jurídico —, mas reside, precisamente, naquela que é a ideia de base do constitucionalismo, a ideia de Estado limitado, e coincide com a ideia de Direito tal como Kant a define[22].

De facto, na Metafísica dos Costumes, Kant define o Direito como a totalidade das condições sob as quais aquilo que alguém decide fazer possa coexistir com a liberdade de qualquer outra pessoa, de acordo com uma lei universal de liberdade. Kant afirma que o princípio universal do Direito especifica quais as acções que são rectas, em virtude da compatibilidade com a liberdade externa de cada um. Ao desenvolver conceito de direito subjectivo, a partir deste princípio universal do Direito, Kant oferece uma teoria da justificação da coerção. O exercício da coerção é moralmente justificado quando se torna condição de asseguramento da liberdade externa. Mediante esta análise, Kant estabelece a condição sob a qual se pode dizer que alguém tem um «direito»:, em última instância, o fundamento da autoridade do legislador para esatuir o Direito.

Ao formular o princípio universal do Direito, Kant pressupõe o conceito de Humanidade como fim em si, a ideia de que todos os homens em virtude da sua humanidade têm direito à liberdade externa. Direito (a ideia de Direito, determinada como coexistência optimizada das liberdades) é a condição de possibilidades da moralidade, aquela que prepara o reino dos fins (Reich der Zwecke), quer dizer, aquilo que visa a ideia de pessoa moral como autonomia da vontade.


II - Ao rejeitarmos a tese de que o fundamento do controlo de constitucionalidade das leis consiste somente na exigência da unidade sistémica do Direito, estamos a afastar-nos daquilo que Alexy denomina de concepção “legalista” do sistema jurídico e a aproximar-nos daquilo que, também na terminologia de Alexy, se poderá denominar de concepção «constitucionalista»[23]. A concepção «constitucionalista» sustenta que ao sistema jurídico pertencem não apenas regras, mas também valores, que, enquanto valores de nível constitucional, são susceptíveis de um «efeito de irradiação» (Ausstrahlungswirkung) sobre o sistema jurídico. Alexy refere o acórdão Lüth do Tribunal Constitucional alemão (1958) como uma decisão de jurisprudência constitucional que acolhe esta concepção «constitucionalista».

Um ano após este acórdão, Ernst Forsthoff reassumiu a cruzada de Carl Schmitt contra a «tirania dos valores», pretendendo que, com base na «teoria dos valores» (Werttheorie), «a Jurisprudência se destrói a si própria, "sempre que não se atém sem reservas ao facto de que a interpretação da lei é a indagação da subsunção correcta, no sentido da inferência silogística»[24]. Forsthoff aceitava que a Constituição fosse somente o quadro organizatório da vida pública estadual, que rege a relação fundamental indivíduo-Estado e rejeitava, obviamente, a concepção de uma «Constituição dirigente» segundo a qual a Constituição é a ordenação fundamental da vida colectiva no seu conjunto, que contém já in nuce os princípios do ordenamento jurídico — e cuja concretização caberia, em termos de concorrência, ao legislador ordinário e à justiça constitucional[25], em ordem à realização do «programa constitucional». Subjacente ao ensaio de Forsthoff estava, pois, uma concepção de sistema jurídico que, de acordo com a distinção de Alexy, poderíamos denominar de “legalidade” e que o levava a sustentar uma filosofia de «judicial self-restraint» e uma concepção «minimalista» sobre a «força normativa» da Constituição.

Mais tarde, em 1985, o Tribunal Constitucional alemão veio a retomar, se bem que lateralmente, na forma de votos de vencido[26], a argumentação de Forsthoff contra uma «orientação a valores» da jurisprudência constitucional, nomeadamente a ideia de que, nessa base, a Constituição perderia «determinação do seu conteúdo» e que as disposições constitucionais ficariam, com isso, reduzidas a «material de ponderação da obtenção judicial da decisão», o que conduziria a que «o Direito aplicável passasse a não ter já o seu esteio na Constituição, mas na sentença de ponderação (Abwägungspruche) do juiz».

Resumindo a distinção entre as concepções “legalista” e “constitucionalista” de sistema jurídico, Alexy apresenta as seguintes contraposições: 1) norma em vez de valor; 2) subsunção em vez de ponderação; 3) autonomia do direito ordinário legislado em vez de omnipresença da Constituição; 4) autonomia do legislador democrático no quadro da Constituição em vez de uma omnipotência, constitucionalmente protegida, dos tribunais, em especial do Tribunal Constitucional[27].

Vejamos como estas concepções, a «legalista» e a «constitucionalista», podem influir na estrutura da argumentação jurídico-constitucional e no entendimento sobre a necessidade de um maior ou menor activismo judicial no processo de concretização da Constituição. Tomemos por exemplo as posições anti-formalistas defendidas por Dworkin, do lado da literatura jurídica anglo-americana, e por Alexy, no âmbito da literatura jurídica continental, doutrinas que, a meu ver, constituem a defesa mais articulada de um «construtivismo interpretativo» em matéria constitucional e o ataque mais consistente à filosofia do «judicial self-restraint».

Dworkin afirma que «qualquer interpretação de uma lei constitucional numa democracia tem de tomar em conta o facto da democracia» [28]. Nesse sentido, o «modelo dos princípios» que Dworkin apresenta requer uma articulate consistency e uma ideia do Direito como «integridade». Para Dworkin o escopo da interpretação é «to make an objet the best it can be, as an instance of some assumed enterprise»[29]. E o juiz teria de articular uma concepção de moralidade pública que pudesse evidenciar o Direito na sua best light.

Alexy, aproximando-se muito mais de Kant e de um modelo transcendental de filosofia, oferece uma teoria normativa da argumentação jurídica concebida como o «caso particular» (Sonderfallthese) da argumentação prática geral (ética), fazendo valer os pontos de vista de uma moral universalista como reforço e «corrector» dos argumentos jurídicos estabelecidos no contexto de práticas sociais institucionalizados (prática legislativa, (prática judicial — os «precedentes» —, elaboração jusdogmática)[30]. Na sua Teoria dos Direitos Fundamentais[31], Alexy elabora uma dogmática dos direitos fundamentais assente na concepção de uma teoria discursiva do Direito. E demonstra com base na ideia de que as normas de direitos fundamentais apresentam uma estrutura de princípios, que é na argumentação jurídico-constitucional que a teoria discursiva do Direito e do Estado democrático colhe a sua melhor ilustração. E isto, porque — como sublinha —, ao discurso sobre os direitos fundamentais “não se aplica o factor de vinculação mais importante para a argumentação jurídica geral, isto é, a lei ordinária, que na maioria dos casos é relativamente concreta. O seu lugar é ocupado pelas disposições muito abstractas, abertas e revestidas de carga ideológica, dos direitos fundamentais [32].

É precisamente na concretização de normas sobre direitos fundamentais que a teoria de argumentação jurídica revela o seu alcance integral, que não é apenas dogmático e justeorético, mas também filosófico: ao relacionar (ao jeito kantiano) o conceito do Direito com os princípios de uma moral universalista, ao apresentar uma teoria da validação das asserções jusnormativas que é parte (Sonderfallthese) de uma teoria da argumentação prática geral (ética) e ao estabelecer uma teoria da argumentação jurídica que tem como base uma teoria da democracia, Alexy propõe um retomar das linhas mestras do kantismo jurídico, ético e político[33].

Sublinhe-se, no entanto, que uma interpretação constitucional «constitutiva» (Dworkin) e a «teoria discursiva» (Alexy, Habermas) em matéria de argumentação jurídico-constitucional — sobretudo no âmbito da concretização de direitos fundamentais — não se assemelha a procedimentos argumentativos baseados no recurso a uma «ordem objectiva de valores», tal como foi hábito, por exemplo, na prática decisória do Tribunal Constitucional alemão nos anos 50 e 60[34]. O recurso a elementos extra-sistemáticos (pré-positivos) no processo de concretização judicial — recurso que na metodologia do Direito privado tinha sido sistematizado no quadro da orientação metodológica denominada de « Jurisprudência de valoração» (Wertungsjurisprudenz)[35] — não pode equivaler a restaurar, em qualquer medida, a concepção pré-moderna de jurisdictio, como poder fundamentado num Direito supra-positivo, pertencente ao soberano político na sua qualidade de pretor supremo.

Há quem pense que a separação funcional de justiça e legislação só poderá ser acautelada mediante o retorno à velha concepção liberal dos direitos fundamentais. Böckenförde, por exemplo, é de opinião que os princípios do Estado de Direito são compatíveis apenas com uma compreensão liberal dos direitos fundamentais como liberdades subjectivas de acção, de aplicação imediata, de que gozam os cidadãos perante o Estado. Diz Böckenförde: «Quem quiser preservar a função determinante que o Parlamento eleito pelo povo desempenha na produção do Direito, evitando uma transformação progressiva da construção constitucional em beneficio de um Estado dominado pela jurisdição do Tribunal Constitucional também deverá insistir no facto de os direitos fundamentais — judicialmente exigíveis —serem 'apenas' liberdades subjectivas em face do poder estatal e não simultaneamente normas de princípio objectivas (vinculativas) para todos os domínios do Direito»[36].

Böckenförde privilegia nos direitos fundamentais a sua dimensão subjectiva descurando o seu «efeito de irradiação» (Ausstrahlungswirkung), a sua dimensão conformadora do Direito objectivo (objectivrechtlicher Gehalt der Grundrechte). Uma tal interpretação dos direitos fundamentais implicaria a sustentação de posições de «judicial self-restraint» a propósito da relação entre legislação e justiça constitucional. Mas, como diz o acórdão Lüth, que acima referi, a função defensiva (Abwehrfitnktion) dos direitos fundamentais cifra-se num «aspecto essencial, mas parcelar», dado que as normas de direitos fundamentais igualmente consubstanciam decisões valorativas, princípios de ordenação, directivas para o legislador ordinário e para o aplicador da lei. Esta dimensão objectiva das normas sobre direitos fundamentais implica para o legislador ordinário e para o intérprete da Constituição uma actividade de concretização mediada por múltiplas ponderações valorativas. A estrutura lógica das normas sobre direitos fundamentais não é a de «regras», (i. é, não contém uma regulamentação acabada) mas a de «princípios» susceptíveis de diversos graus de intensidade de realização (Alexy)[37]. Daí que, como diz Hans Huber, se deve falar preferencialmente, em matéria de normas sobre direitos fundamentais, de «concretização» e não de «interpretação» da Constituição.

A tarefa do juiz constitucional de concretização da Constituição deverá ser balizada por uma teoria da argumentação jurídico-constitucional que o impeça de se tornar, segundo a objecção crítica de Böckenförde, em «legislador paralelo ou supercontrolador no domínio dos direitos fundamentais», e que articule «a ordem de valores» da Constituição como ordem «aberta» e «fragmentária». O fundamento da justiça constitucional, a ideia de Estado limitado e a necessidade de assegurar, em termos contra-maioritários, a autonomia do cidadão leva aqui a rejeitar uma ideia de ordem objectiva de valores» da Constituição.

Para procedermos à articulação da concepção da «ordem de valores» da Constituição retomemos uma vez mais a Kant e à sua ideia de que a coexistência das esferas de liberdade dos sujeitos é uma condição a priori para a dedução transcendental do conceito de Direito, «Pode pois — diz Kant — ser pensada uma legislação externa que contenha meras leis positivas; mas então teria de ser precedida por uma lei natural que fundamentasse a autoridade do legislador», Na Metafísica dos Costumes, Kant define o Direito como a totalidade das condições sob as quais aquilo que alguém decide fazer possa coexistir com a liberdade de qualquer outra pessoa de acordo com uma lei universal de liberdades. O Direito (a ideia de Direito) é determinado como coexistência optimizada de liberdades.

É esta optimização da coexistência das liberdades que vem estruturar o núcleo essencial do constitucionalismo e que tem que funcionar como paradigma interpretativo da ordem de valores de uma Constituição liberal-democrática.

 

Notas de rodapé:

[1] Cf. Jürgen Habermas, Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats, Francoforte, 1992, p. 293.

[2] A defesa mais articulada das posições de judicial self-restraint é a apresentada por John Hart Ely, Democrary and Distrust. A Theory of Judicial Review, Cambridge, Mass., 1980. Sobre o acolhimento e a rejeição de posições de judicial self-restraint na jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, cf., por todos, Martin Kriele, «Recht und politik in der Verfassungsrechtsprechung», in: Neue juristische Wochenschrift, 1976, pp. 777-783.

[3] Sobre esta prática de activismo judicial e o seu sentido político, cf., por todos, Archibald Cox, The Warren Court. Constitucional Decisions as an Instrument of Reform, Cambridge, Mass., 1968.

[4] Cf. Dworkin, Taking Rights Seriously, Cambridge, Mass., 1977; Dworkin, A Matter of Principle, Cambridge, Mass., 1985; Dworkin, Laws Empire, Cambridge, Mass., 1986.

[5] Dizia Marshall: «Certainly all those who have framed written constitutions contemplate them as forming the fundamental and paramount law of the nation; and consequently, the theory of every such government must be that an act of the legislature, repugnant to the Constitution is void". E concluia, explicitando o verdadeiro sentido da rule of law, que «the government of the United States has been emphatically termed a government of laws and not of men [Marbury v.Madison, l Cranch 137 (1803)].

[6] No comentário ao artigo XVI de La déclaration des Droits de l'homme et du citoyen (Paris, 1988, p. 26).

[7] Cf. Kant, A Paz Perpétua e outros opúsculos (trad. De Artur Morão, Lisboa 1988), p.128.

[8] Cf. ob. cit., p.130

[9] Ibidem Kant apercebe-se da tensão irreconciliável entre a soberania da vontade popular e a Rechtstaatlichkeit.

[10] Cf., por último, Dworkin, «Equality, Democracy and Constituion: We the People in Court), in: Alberta Law Review, 28 (1990), pp. 324-346.

[11] No seu ensaio «Liberalism» (in: A Matter of Principle, cit., cap. 8), Dworkin sustenta a posição «liberal» de que, por exemplo, as exigências de protecção da liberdade de expressão ou de preferência sexual são «democráticas», mesmo que a maioria se incline para a limitação da liberdade de expressão ou de preferência sexual.

[12] John Rawls, Political Liberalism, Nova Iorque, 1993, p. 227.

[13] Cf. John Rawls, «The Idea of Public Reason», in: Rawls, Political Liberalism, cit., pp. 212-254, maxime p. 214.

[14] Cf. Rawls, Political Liberalísm, cit., maxime p. 231 ss., «The Supreme Court as Example of Public Reason».

[15] Robert Nozick, Anarchy, State and Utopia, Basic Books, 1974.

[16] Cf. Michael Walzer, Spheres of justice. A defense of Pluralism & Equality, Oxford, 1983.

[17] Cf., por exemplo, a abordagem da questão por Richard Thoma, «Das richterliche Prüfungsrecht», in: Archiv für offintliches Recht, 13 (1922), pp. 267-286.

[18] Cf. Carl Schmitt, Der Hüter der Verfassung, Berlim, 1931, p. 45, Na esteira de Carl Schmitt, as orientações conservadoras da doutrina do Estado (Staatslehre) alemã tendiam a considerar a jurisdição constitucional como uma ameaça para a unidade e força do Estado; cf., neste sentido, Werner Weber, Spannungen und Kräfte im Westdeutschen Verfassungssystem, Estugarda, 1951, p. 31

[19] Cf. Jürgen Habermas, Faktizität und Geltung, cit., p. 295.

[20] Sobre o estado da discussão, cf., por todos, Konrad Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 16.a ed., Heidelberga, 1988, p. 186 s

[21] Na Alemanha do segundo pós-guerra, por exemplo, pôs-se termo à querela dos tempos da República de Weimar sobre a natureza “jurídica” ou “política” da jurisdição constitucional (Verfassungsgerichtsbarkeit) e explanou-se a função do Tribunal Constitucional a partir da necessidade de controlo do poder estadual, em ordem ao seu exercício conforme à Constituição. Nestes termos, e no dizer de Dieter Grimm, «a jurisdição constitucional surge aqui precisamente como condição da democracia» (cf. Grimm, “Verfassungsgerichtsbarkeit im demokratischen System", in: juristenzeitung, 1976, pp. 697-703).

[22] É essa também a linha dominante na doutrina constitucionalista alemã (v. g., Maunz, Hesse, Stein) relativamente à justificação da existência de uma jurisdição constitucional: para um panorama da discussão, cf., por todos, Dieter Grimm, Verfassungsgerichtbarkeit im demokratischen System, cit.) p. 697, nota 9.

[23] Cf. Robert Alexy, «Rechtssystem und praktische vernunft», in: Rechtstheorie 18 (1987), pp. 405-419.

[24] Cf. Ernst Forethought, «Die Unbildung des Verfassungsgesetzes», in: Festschrift für Carl Schmitt, Berlim, 1959, p. 35 ss.

[25] Sobre o conceito de «constituição dirigente», cf., por todos, Gomes Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, Coimbra, 1982.

[26] Nos votos de vencido dos juizes Böckenförde e Mahrenholz sobre a duração do serviço substitutivo para os objectores de consciência ao serviço militar (BVerfGE 69, 1).

[27] Cf. Robert Alexy, Rechtssystem und praktische Vernunft, cit., p. 406.

[28] Cf. Dworkin, Equality, Democracy and Constitution: We the People in Court, cit., p. 344.

[29] Cf. Dworkin, Law’s Empire, cit., p. 53.

[30] Cf. Robert Alexy, Theorie der juristischen Argumentation. Die Theorie des rationen Diskurses als Theorie der juristischen Begründung, Francoforte, 1978.

[31] Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, Baden-Baden, 1985.

[32] Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, cit., p. 501.

[33] Sobre o «retorno a Kant» no pensamento jurídico actual, cf., por todos, Ralf Dreier, Rechtsbegriff und Rechtsidee. Kants Rechtsbegriff und seine Bedeutung fur die gegenwärtige Diskussion, Francoforte, 1986.

[34] Para uma crítica ao objectivismo axiológico que informou durante longo tempo a prática do Tribunal Constitucional alemão, cf., por todos, Jürgen Seiffert, «Haus oder Forum. Wertsystem oder offene Verfassungsordnung», in: Jürgen Habermas (org.), Stichworte zur «geistigen Situation der Zeit», vol. I, Francoforte, 1979, pp.321-339.

[35] Cf., por exemplo, Franz Wieacker, Gesetz und Richterkunst. Zum Problem der aussergesetzlicchen Rechtsordnung, Karlsruhe, 1958; cf. igualmente Josef Esser, Grundsatz und Norm in der Richterlichen Fortbildung des Privatrechts, Tilbingen, 1956; Esser, Vorverständnis und Methodenwahl in der Rechtsfindung. Rationalitätsgrundlagen richterlicher Entscheidungspraxis, 2.a ed., Francoforte, 1972

[36] Cf. Böckenförde , «Grundrechte als Grundsatznormen. Zur gegenwärtige Lage der Grundrechtsdogmatik», in: Böckenförde, Staat, Verfassung, Demokratie. Seudien zur Verfassungstheorie und zum Verfassungsrecht, Francoforte, 1991, pp. 159-199, 194.

[37] Theorie der Grundrechte, cit., p. 71 ss




 



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