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> Colóquios > X Aniversário do Tribunal Constitucional > A competência da competência do Tribunal Constitucional

A Competência da Competência do Tribunal Constitucional
Miguel Galvão Telles


I

1. A expressão «competência da competência» (Kompetenz-Kompetenz) e a correspondente noção surgiram na literatura jurídica alemã na segunda metade do séc. XIX, a propósito da questão do sentido e alcance do art. 78º, nº 1, da Constituição (1867) da chamada confederação Germânica do Norte (Norddeutsche Bund) — que era, em rigor, uma federação — e das relações entre Estado Federal e Estados federados[1]. Erigido por Albert Haenel em elemento definidor do conceito de soberania[2], objecto; nessa função, de reservas por parte de Jellinek[3] e criticado por Kelsen[4], o conceito não teve a sorte que mereceria e, de certo modo, perdeu-se. Mas a expressão e um conceito, que (embora disso não se haja em regra tido consciência) com aquele possuía pelo menos alguma relação, fizeram caminho na teoria da jurisdição, muito especialmente na das jurisdições internacional e arbitral. Trata-se agora da competência da competência dos tribunais.

A esta me reportarei, com específica referência (depois de algumas considerações introdutórias) ao Tribunal Constitucional português. A título preliminar, quereria chamar a atenção para que, no uso da expressão competência da competência de um tribunal, a competência de primeiro grau é tomada numa acepção ampla, que abrange não só a competência propriamente dita como também pelo menos os requisitos do seu exercício.

2. Quanto julgo, foi no domínio da arbitragem de direito internacional público que a temática da competência da competência dos tribunais despontou. O que antes de mais se perguntava era se, no caso de diferendo entre as partes quanto à competência do tribunal arbitral ou ao seu âmbito, este o poderia decidir ou se, pela circunstância da simples existência daquele diferendo, teria necessariamente de abster-se de julgar do fundo ou de parte dele. Ao longo do século passado e das primeiras décadas deste, uma série de casos marcaram a história da questão[5]. A clara consciência doutrinária do tema, directamente suscitada pela decisão do Tribunal Misto Hungaro-Romeno de 10 de janeiro de 1927, pode ser situada em 1928. São desse ano os escritos, hoje clássicos, de Lapradelle, Brierly, Lauterpacht e Verdross[6].

Conforme, no entanto, salientou este último, as questões implicadas eram duas (pelo menos, acrescento eu): «uma consiste em saber se, e em que medida, uma decisão do tribunal arbitral que ultrapasse os poderes deste é obrigatória para as partes; outra é a de saber se o tribunal arbitral, em caso de contestação da sua competência por uma das partes, pode proceder ao exame de fundo»[7] .Noutras palavras e invertendo a ordem: um problema é o de saber se o tribunal tem competência para decidir sobre a sua própria competência (pelo menos sem vinculação necessária à abstenção de decisão de mérito); outro (que se coloca nestes termos apenas no caso de resposta afirmativa ao primeiro) consiste em determinar o valor da decisão de mérito que se considere não caber no âmbito da competência do tribunal e, por conseguinte, emitida na base de uma decisão sobre a competência tida por incorrecta. Com a questão da competência da competência associa-se assim a da validade da sentença. E, como facilmente se observa, embora isso não haja por regra sido levado em conta, o segundo problema implica ainda o da validade e o do estatuto da decisão positiva sobre a competência.

Quanto à primeira das questões atrás referidas — a de saber se o tribunal, no caso de divergência das partes e no silêncio do compromisso, pode decidir sobre a sua própria competência — foi-se generalizando resposta afirmativa[8], ao mesmo tempo aliás que O problema ia perdendo importância prática, em virtude de os compromissos arbitrais haverem, em regra, passado a conter cláusula explícita. De todo o modo, há quem fale na formação de um costume (de natureza interpretativa)[9]. No que toca à segunda questão, desenhou-se a propensão para considerar que a decisão de competência não precludiria absolutamente a possibilidade de invalidade da decisão de mérito por «excesso de poder», embora os fundamentos daquela se houvessem de restringir a casos de erro manifesto ou grave na primeira decisão. A ideia recebeu recentemente a autoridade resultante de haver sido acolhida pelo Tribunal Internacional de Justiça, no seu acórdão de 12 de novembro de 1991 sobre o «Caso relativo à Sentença Arbitral de 31 de julho de 1989» (Guiné-Bissau c. Senegal)[10]

Observe-se, no entanto, que o carácter consensual da jurisdição internacional implica que possa não haver tribunal que subsequentemente decida[11]. O que quer dizer que as questões da própria existência, no caso concreto, de competência da competência, da validade da decisão que a exerça e da validade da eventual decisão de mérito podem ficar simplesmente como questões em aberto.

3. Os problemas mencionados podem reproduzir-se e reproduzem-se, não só no campo da jurisdição permanente de direito internacional público[12], como no domínio das arbitragens de direito privado, internacionais ou internas, com a especificidade resultante de aí haver tribunal com competência para intervir subsequentemente, seja no plano do reconhecimento ou da execução da sentença, seja no de um contencioso de validade. Assinale-se que a lei portuguesa sobre arbitragem voluntária (Lei nº 31/86, de 29 de agosto), ao mesmo tempo que expressis verbis atribui ao tribunal arbitral a competência para se pronunciar sobre a sua própria competência (art. 21º), reconhece, sem nenhum limite material, a incompetência daquele como fundamento de invalidade da sentença (art. 27º)[13] .

4. Também os tribunais estaduais possuem a competência da sua competência. Não existe, no nosso Código de Processo Civil, disposição directa nesse sentido. Mas o princípio decorre de numerosos preceitos, desde os que regulam a arguição e o conhecimento da incompetência, absoluta ou relativa (CPC, arts. 101º e segs.), até aos que, agora também no que respeita às condições do exercício da competência, se reportam à arguição e conhecimento das excepções dilatórias e à absolvição da instância (CPC, arts. 288º, 289º e 493º a 495º).

Os tribunais estaduais integram-se, porém, em sistema, e isso conduz a algumas particularidades, face às jurisdições internacionais e mesmo, embora em medida menor, às próprias arbitragens internas.

Antes de mais, as decisões sobre a competência ou as condições do seu exercício podem estar sujeitas a recurso. Tal significa que a definição final da competência de um determinado tribunal ou das condições do seu exercício pode vir a ser heterónoma. Mas, no limite, alguém exercerá, a título final ou pretendidamente final, a competência da sua competência — que mais não seja, a competência de declarar se é ou não competente para decidir da competência de outros tribunais. Por outro lado, a integração sistemática dos tribunais conduz a que a decisão de um tribunal sobre a sua própria competência possa envolver e envolva normalmente, pelo menos de forma implícita, um juízo sobre a competência de outros tribunais. Daí que se tornem possíveis conflitos de competência, positivos ou negativos, e que se formulem regras com vista à sua resolução (designadamente, CPC, arts. 115º e segs.). Ainda por esta via se pode chegar a uma definição heterónoma da competência. Mas também neste caso alguém exercerá ou pretenderá exercer, em última análise, a competência da sua própria competência.

II

5. Assim chegamos ao Tribunal Constitucional. E permitam-me que me cinja ao domínio da fiscalização concreta da inconstitucionalidade (ou de modalidades qualificadas de ilegalidade).

O Tribunal Constitucional insere-se no sistema dos tribunais estaduais portugueses. O problema da competência da competência há-de pois pôr-se, quanto a ele, no quadro geral que é próprio destes. O mesmo sucederá com outros tribunais constitucionais, nas respectivas ordens jurídicas. Resta, contudo, e por um lado, saber se não se verifica, quanto ao Tribunal Constitucional português, particularidade que o distinga de outros tribunais constitucionais, com consequências na matéria que nos ocupa. E importa por outro lado perguntar se o modo de intervenção do Tribunal Constitucional introduz ou não alguma especificidade em confronto com o modo como a questão da competência da competência normalmente se coloca relativamente" aos demais tribunais portugueses.

6. No que ao primeiro aspecto diz respeito, o que há de característico — e julgo que único relativamente a tribunais constitucionais propriamente ditos — consiste na circunstância de, entre nós, o acesso ao Tribunal Constitucional se efectuar por via de recurso, e não por via de incidente (em sentido estrito). A diferença dos sistemas não acarreta consequências logicamente necessárias no tocante ao âmbito da competência da competência do tribunal constitucional. Mas pode dizer-se que existem soluções mais consentâneas com um e com outro.

No regime de incidente, o tribunal constitucional possuirá, em medida mais ou menos vasta, competência para, havendo-lhe sido submetida pelo tribunal a quo questão de inconstitucionalidade ou tida por tal, julgar se é ou não competente para decidi-la ou, eventualmente, se as condições de exercício da sua competência se encontram ou não preenchidas. Mas o que, pelo menos nos principais sistemas de controlo incidental (Áustria, Alemanha, Itália, Espanha), o tribunal constitucional não pode é pronunciar-se, independentemente do tribunal onde se encontra a questão principal ou contra ele, no sentido de que uma questão lhe deve ser submetida e fazer que lho seja. Basta a circunstância de as partes não terem, para efeitos de iniciativa, acesso directo ao tribunal constitucional. A questão de inconstitucionalidade tem de lhe ser deferida pelo tribunal a quo, seja na base de um juízo de inconstitucionalidade, seja na de um juízo de dúvida, seja mesmo na de um mero juízo de não manifesta desrazoabilidade de uma arguição de inconstitucionalidade[14].

No fundo, o deferimento da questão de inconstitucionalidade ao tribunal constitucional pelo tribunal a quo representa não só condição da competência do primeiro, como condição do exercício por ele da competência da sua competência. Esta fica assim circunscrita.

7. À essência do sistema de recurso pertence a possibilidade de iniciativa, pelas partes ou eventualmente também por quem assegure o interesse público, da submissão da questão de inconstitucionalidade ao tribunal constitucional. A natureza do sistema já não exige necessariamente que a decisão final sobre a admissibilidade do recurso caiba ao tribunal ad quem. Tal é, porém, o regime geral do nosso Direito, expresso na possibilidade de reclamação para o tribunal ad quem da decisão do tribunal a quo que não admita o recurso (CPC, arts. 687º a 689º). E, se nada teria impedido o legislador de, no domínio da jurisdição constitucional, haver derrogado esse regime geral, a verdade é que não o fez. Bem pelo contrário: tanto o Estatuto da Comissão Constitucional (art. 42º) como a Lei do Tribunal Constitucional (arts. 76º, nº 4, e 77º), esta com a cobertura explícita da parte final do nº 4 do art. 280º da Constituição, consignaram expressis verbis a possibilidade de reclamação para o órgão de jurisdição constitucional da decisão do tribunal a quo que não admita o recurso interposto[15]. A este cabe decidir a final sobre a admissibilidade do recurso, quer o tribunal a quo o haja admitido (LTC, art. 76º, nº 3), quer não.

Isto significa que o acesso ao Tribunal Constitucional — que mais não seja para a decisão sobre a admissibilidade do recurso — se encontra, entre nós, muito mais facilitado do que nos sistemas de incidente. Mas significa ainda — e é o que aqui importa — que a competência da competência do Tribunal Constitucional português é bem mais vasta do que a da generalidade dos seus congéneres.

8. Tanto no regime de incidente como no de recurso, o tribunal de constitucionalidade apenas conhece de questão prévia suscitada por questão principal cuja decisão incumbe a outros tribunais. Isso implica, na passagem da resolução da questão prévia para a da questão principal, a intermediação de outro tribunal e envolve que a decisão do tribunal constitucional não seja ela própria — perdoe-se o alargamento do conceito — título executivo, embora haja de fazer caso julgado, pelo menos no processo[16]. É óbvio que o tribunal constitucional não poderá sobrepor-se ao tribunal competente para a questão principal na decisão desta. Mas pode perguntar-se se não lhe haverá de caber, ou poder caber, julgar se o último, na decisão da questão principal, respeitou a decisão proferida sobre a questão de constitucionalidade. O problema é, por enquanto, de competência, não de competência da competência.

9. A possibilidade de controlo, pelo tribunal constitucional, do respeito das suas decisões por parte do tribunal competente para o julgamento da questão principal, pelo menos quando não resultasse da própria iniciativa deste último, seria axiologicamente contraditória com a própria razão de ser do regime de incidente, desenhado nos termos atrás referidos. Se o órgão de constitucionalidade apenas pode intervir, para julgar a questão prévia, por iniciativa de um outro tribunal, não se compreenderia que, sem essa iniciativa, pudesse pronunciar-se sobre o respeito das suas decisões. Já num sistema de recurso, como o português, tal incompatibilidade não existe. Mas a racionalidade do sistema também não impõe, por si, a necessidade de que o respeito das decisões do tribunal constitucional possa ser por ele próprio controlada.

Nem a Constituição nem a LTC prevêem, entre nós, meios específicos de controlo pelo Tribunal Constitucional da execução das suas sentenças. Nestes termos, o problema da possibilidade de intervenção subsequente do Tribunal Constitucional restringe-se a saber se, apesar de já ter havido decisão sobre a questão de inconstitucionalidade, cabe ainda recurso, para ele, com algum dos fundamentos indicados no art. 280º da Constituição e no art. 70º da LTC[17]. Daqui resulta que só nesse estrito âmbito o problema da salvaguarda, pelo próprio Tribunal Constitucional, do respeito das suas decisões se possa pôr.

O problema que ora se refere é susceptível de se suscitar tanto quando a intervenção precedente consista numa declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral como quando se traduza em decisão sobre a questão de constitucionalidade tomada no próprio processo, por via de fiscalização concreta.

A Comissão Constitucional considerou e o Tribunal Constitucional tem considerado admissível o recurso no primeiro tipo de situações[18], e a doutrina tem dado, em geral, o apoio a essa orientação[19]. As espécies jurisprudências são diversificados. De comum apresentam a circunstância de ter existido declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral e de esta possuir alguma relação com o recurso interposto para o Tribunal Constitucional. Mas a relação varia. Nuns casos encontra-se em causa a aplicação de norma que fora declarada inconstitucional (p. ex., Acs. n.ºs 339/86, 257/89 e 186/91). Noutros, a declaração de inconstitucionalidade fora parcial e o que antes de mais se discutia era se na sua aplicação se respeitaram ou não os seus termos (Ac. CC nº 415). Noutros ainda, houvera ressalva nos termos do n.º 4 do art. 282º da Constituição e perguntava-se se o caso se encontrava ou não abrangido por essa ressalva (Acs. n.os 214/90, 251/90 e 253/90)[20]. Noutro finalmente, muito delicado, o problema residia, em última análise, no respeito da ressalva genérica dos casos julgados constantes do n.º 3 do art. 282º da Constituição, tendo o Tribunal negado provimento à reclamação por não caber recurso com fundamento em inconstitucionalidade (directa) de decisões judiciais (Ac. n.º 318/93).

Também já por mais de uma vez foi suscitado o problema da conformidade da decisão da questão principal com juízo anterior pronunciado no próprio processo — em fiscalização concreta, por conseguinte — sobre a questão de inconstitucionalidade. Nunca o órgão de constitucionalidade, que adoptou toda a prudência, veio a reconhecer a existência de desconformidade. Mas a verdade também é que em nenhuma das espécies considerou excluída, por razão de princípio, a possibilidade de julgar[21].

10. Quando (como sucedia nas espécies a que respeitam os Acs. da CC nº 415 e do TC n.º 163/95) aquilo que se encontrar arguido for «uma aplicação da decisão da questão de inconstitucionalidade para além dos seus limites», não vejo (apesar da crítica do Prof. Afonso Queiró ao primeiro dos arestos referidos) dificuldade de maior. A delimitação do exacto alcance da anterior decisão é apenas, para o próprio Tribunal Constitucional, uma questão prévia. Se a sentença impugnada não se encontrar «coberta» pela precedente decisão; o fundamento atendível de recurso não consistirá no «excesso relativamente à decisão anterior em matéria de constitucionalidade», mas — consoante muito correctamente reconheceu o Ac. n.º 163/95 — em desaplicação de norma por inconstitucionalidade (al. a) do nº 1 do art. 280º da Constituição e do n.º1 do art. 70º da LTC) ou em aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada anteriormente durante o processo, se o houver sido (al. h) dos referidos preceitos), conforme for o caso. A questão haverá de ser julgada ex novo pelo Tribunal Constitucional.

Se, porém, o que estiver em causa for o puro e simples desrespeito, pelo tribunal que julgue a questão principal, da decisão proferida sobre questão de inconstitucionalidade, isto é, se o que estiver em causa for a aplicação de norma que haja sido julgada inconstitucional, no âmbito em que o houver sido, ou a desaplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, de norma que o Tribunal Constitucional, em decisão proferida no processo, não tenha julgado inconstitucional, e no âmbito em que não o tiver feito, o problema torna-se melindrosíssimo. A favor da possibilidade de nova decisão pelo Tribunal Constitucional poderá alegar-se que estará sempre em jogo ou desaplicação de norma por inconstitucionalidade ou aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (se o houver sido) e que, por isso, o recurso caberá ou na al. a) ou na al. h) do nº 1 do art. 280º da Constituição e do nº 1 do art. 70º da LTC. Acrescentar-se-á que, se a decisão precedente for no sentido da inconstitucionalidade, valerá ainda o fundamento do nº 5 do art. 280º da Constituição e da al. g) (ou h)) do nº 1 do art. 70º da LTC (aplicação de norma já anteriormente julgada inconstitucional[22]. E invocar-se-á, como o fez o Tribunal Constitucional (Ac. nº 338/89), que, se o nº 5 do art. 280º abre via de impugnação quando a decisão anterior não gozar de força obrigatória geral, por maioria de razão se justificará o recurso, quando a decisão possuir tal autoridade. Acontece, todavia, que, se a decisão anterior houver sido proferida no próprio processo em que o recurso se interponha, existe, neste, caso julgado sobre a questão de inconstitucionalidade (LTC, art. 80º, nº 1). E poderá entender-se que autoridade de caso julgado possui ainda a declaração com força obrigatória geral. A pergunta que então se torna legítima é a de saber se a intervenção de caso julgado não modifica as coisas. Poderá o Tribunal Constitucional, apesar dele, pronunciar-se outra vez, ainda que apenas para repetir o julgado? Ou será que o tribunal se encontra impedido de repetir a decisão? Na segunda hipótese, o recurso só poderia ser concebido como recurso por violação de caso julgado, com o alcance de visar a revogação da decisão recorrida por virtude de ofensa de res judicata. Simplesmente, esse recurso não está, como tal, previsto nem na Constituição, nem na lei. Alegar-se-á que a violação de caso julgado sobre questão de inconstitucionalidade se traduz em ofensa da Constituição — no caso de declaração com força obrigatória geral, ofensa do art. 281º, nº 1, no caso de caso julgado em fiscalização concreta, ofensa do art. 280º, na medida em que se entenda que o valor de res judicata da decisão do Tribunal Constitucional resulta implicitamente daquele preceito. Simplesmente, e além do mais, não será que aí nos encontraríamos perante um recurso por inconstitucionalidade de decisão judicial, inadmissível segundo constante jurisprudência do Tribunal Constitucional?

A resposta à questão básica aqui envolvida implicaria uma reanálise da teoria do caso julgado em geral — que avaliasse designadamente o exacto alcance da qualificação da excepção de caso julgado como excepção peremptória, feita pelo Código de Processo Civil (art. 496º) — e do caso julgado sobre questão de inconstitucionalidade em particular.

Uma tal reanálise não cabe obviamente neste estudo e não escondo que se trata de matéria sobre a qual não tenho ideia assente. Limitei-me a tentar apontar alguns problemas[23].

De qualquer modo, se o Tribunal Constitucional admitir os recursos em que esteja em causa o respeito das suas decisões, proferidas no próprio processo ou em fiscalização abstracta, estará a exercer a competência da sua competência. O instrumento será sempre a faculdade de decidir a final sobre admissibilidade dos recursos para ele interpostos, mediante reclamação, se for caso disso.

11. Quanto se disse mostra que — goste-se ou não — o Tribunal Constitucional, tal como foi configurado pela nossa ordem jurídica, é, não só um tribunal supremo — no sentido de que das suas decisões não cabe recurso —, mas, de algum modo, e mais até do que o Tribunal de Conflitos, um supremo dos supremos, ainda que de competência especializada e situado fora das várias ordens de tribunais.

A competência da competência que lhe é conferida não difere significativamente daquela que cabe aos supremos tribunais que, por via da faculdade de rever as decisões sobre a admissibilidade dos recursos, nomeadamente através de pronúncia sobre reclamação, acabam por ter o poder final de decidir dos recursos que admitem.

É evidente que se podem abrir conflitos e que, sobretudo se o Tribunal Constitucional se considerar competente para conhecer (por qualquer via que seja) da ofensa de caso julgado, se torna concebível um interminável «ping-pong». A verdade, porém, é que isso pode igualmente acontecer — para não ir mais longe — em qualquer ordem de tribunais, em particular quando o recurso possua, à semelhança do que acontece com o recurso para o Tribunal Constitucional, características cassatórias[24]. O melindre prático resulta de o Tribunal Constitucional ser de alguma sorte estranho às diversas ordens de tribunais.

III

12. Permitam-me ainda breves observações de duas ordens: uma de natureza teórica, outra prudencial. Saliente-se, para que não haja equívocos, que a primeira, na medida em que se refere aos tribunais, respeita a tribunais de qualquer natureza e não apenas ao Tribunal Constitucional.

O conceito de competência da, competência contém um momento reflexivo e a proposição que afirma a competência da competência de um tribunal é autoreferente (parcialmente autoreferente)[25]. Isso conduz, desde logo, a que tal proposição envolva uma série infinita. Seja a norma: o tribunal A tem competência para julgar se é competente para julgar os casos que lhe sejam submetidos. Na totalidade da sua extensão, tal norma significará, relativamente, por exemplo, a um caso X, que o tribunal A é competente para julgar se é competente para julgar o caso X; que o tribunal A é competente para julgar se é competente para julgar se é competente para julgar o caso X; e assim sucessivamente[26].

A série infinita. em ,si mesma não poria problemas insuperáveis. Mas a situação complica-se quando se faça intervir a relação entre fundamentado e fundamento. A competência da competência, em qualquer grau, implica que o fundamentado decida sobre o próprio fundamento. A alternativa à circularidade é a auto-afirmação.

A situação mostra-se clara no caso de compromissos arbitrais particularmente quando celebrados no quadro de um Direito «difuso» — e foi por isso que a consciência dos problemas suscitados pela ideia de competência da competência dos tribunais surgiu a propósito das arbitragens de direito internacional público. Admita-se que o compromisso arbitral é o único título de competência, apenas se dispondo para além dele de uma regra do tipo pacta sunt servanda. Se a validade ou o sentido do título forem postos em questão, como pode ser ele, que está em causa o fundamento da autoridade para decidir? Suponha-se que há no compromisso uma cláusula atribuindo ao tribunal arbitral a competência para decidir da sua competência. E se forem questionados o sentido ou a validade de tal cláusula? Em «Direitos complexos», com intervenção nomeadamente da lei, as aporias tornam-se menos notórias, mas não desaparecem. Suscita-se a questão de saber se a norma X confere competência ao tribunal A para julgar certo caso. Invoca-se a norma y que se afirma atribuir ao tribunal a competência para decidir da sua competência. Mas se esta própria norma for posta em causa em que é que o tribunal se pode fundar? Nessa mesma norma Y? Seria circular. Numa norma Z? O problema pode ser reaberto perante ela.
A questão que assim se coloca não é no essencial diferente não só daquela em relação com a qual surgiu inicialmente a teoria de competência da competência (a que título pode a Federação por si alterar as suas relações com os Estados federados em termos que podem até conduzir à supressão da estrutura federal ?), como daquela que Alf Ross descobriu a propósito da aplicação das normas de revisão constitucional à sua própria modificação. Para além das questões lógicas ligadas à autoreferência, o problema que nessa aplicação verdadeiramente está em jogo é o da reversão do fundamentado (poder de revisão constitucional) sobre o fundamento (normas que atribuem esse poder)[27]. No caso dos tribunais, trata-se da relação entre o poder de «dizerem o que é a lei» (fundamentado) e a própria «lei» (fundamento).

13. Poderá afirmar-se que a competência da competência dos tribunais é derivada, enquanto a competência da competência do chamado poder constituinte (originário) a que noutro estudo aludi e que se manifesta naquilo a que chama sistemas jurídicos fundacionais[28] é originária. Num caso e noutro existe auto-afirmação ou auto-imposição. Vária o grau.

Nenhum sistema jurídico pode funcionar sem que se mantenha ou reestabeleça consenso quando à competência da competência dos tribunais. Questões de competência da competência de segundo grau são necessariamente questões em aberto, insolúveis pelo sistema. Se o que for posto em causa for a competência da competência originária (ou o princípio de omnicompetência em que o sistema se baseie, caso seja não-fundacional), passa-se àquilo a que chamaria «estado de natureza de segundo grau».

Poderá dizer-se que o direito é autopoiético. O problema vem depois e é o do estatuto da validade jurídica.

14. Passemos à observação de natureza prudencial.

Assinale-se, também para evitar quaisquer equívocos, que não há, em meu juízo, razão mínima para pôr em dúvida, no nosso Direito, a competência da competência do Tribunal Constitucional e, por conseguinte, para abrir uma insolúvel questão de competência da competência de segundo grau. Mas não penso que, apesar de todas as cautelas que a prática tem revelado, possa ignorar-se o melindre de um regime que permite, com facilidade, a cassação das decisões dos supremos tribunais de cada ordem. É, no fundo, o próprio sistema de recurso constitucional que merece ser repensado, na sua própria manutenção ou pelo menos na sua organização.

Talvez valha a pena um apontamento histórico. Creio que não há hoje inconveniente em que o diga, fui, com o meu querido amigo e vice-presidente do Tribunal Constitucional, Conselheiro Luís Nunes de Almeida, co-autor do texto que o Conselho da Revolução veio, nos princípios de 1976, a apresentar aos partidos e que serviu de base à segunda Plataforma de Acordo Constitucional entre aquele e estes[29]. Era dado assente que o Conselho da Revolução interviria no controlo da constitucionalidade. Por isso se propôs a criação, junto dele, de uma Comissão Constitucional, composta em parte por magistrados judiciais, em parte por juristas não magistrados. No domínio da fiscalização concreta da inconstitucionalidade, a intervenção far-se-ia em regime de incidente.

Um partido (o PPD), com receios na altura porventura compreensíveis mas que julgo que os factos não confirmaram, quis limitar a possibilidade de acesso à Comissão Constitucional ao caso em que tivesse existido recusa, por um tribunal, de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade (tratar-se-ia de uma salvaguarda contra o «governo dos juízes» ). E em ligação com isso surgiu a ideia, que tinha aliás entre nós algum passado[30], do recurso para a Comissão Constitucional. Na negociação que se seguiu, além de se ter excluído qualquer intervenção do Conselho da Revolução na fiscalização concreta, os fundamentos de recurso foram alargados à hipótese de decisão de um tribunal contrária a anterior decisão da Comissão Constitucional no sentido da inconstitucionalidade — mas seguindo-se sempre a via de recurso.

Com a revisão de 1982, Conselho da Revolução e Comissão Constitucional foram extintos e criou-se o Tribunal Constitucional. Os fundamentos de intervenção da instância de constitucionalidade foram alargados ao caso de a questão de inconstitucionalidade haver simplesmente sido suscitada no processo. O regime de incidente passava a ser, pelo menos, tão «natural» como o de recurso. Este último foi, porém, mantido. A FRS havia proposto que se transitasse para a fórmula do incidente, mas a proposta foi rejeitada, com o argumento principal de que «desligaria» os tribunais em geral da Constituição[31].

Não escondo o meu desacordo com qualquer solução que entre nós viesse a dificultar excessivamente o acesso ao Tribunal Constitucional e sou sensível aos argumentos aduzidos em 1982 contra o regime de incidente. Mas não disfarço também alguma preocupação com as possibilidades de tensão entre Tribunal Constitucional e supremos tribunais, embora a prática possa tender para acomodações. Poderia pensar-se em soluções intermédias, em que pelo menos se procurasse que, quanto possível, o recurso em matéria de inconstitucionalidade fosse interposto antes que o processo chegasse ao supremo tribunal da respectiva ordem.

De qualquer modo, julgo que o tema dos modos de fiscalização concreta da constitucionalidade merece reponderação..

 

Notas de rodapé:
[1] O preceito, que se manteve na Constituição imperial de 1871, dizia que «as alterações da Constituição efectuam-se por via de legislação, sendo todavia necessária uma maioria de dois terços dos votos representados no Bundesrat». O que se discutia, antes de mais, era se a disposição abrangia, e podia abranger, as próprias competências respectivas da Federação e dos Estados, isto é, nomeadamente, se, por via de revisão constitucional nos termos prescritos (e não apenas por acordo ou unanimidade), podia a Federação alargar as suas competências, em última análise, pois, se esta era, nesses termos, senhora da sua própria competência. Parece que a primeira utilização doutrinária da expressão Kompetenz-Kompetenz pertence a H. Böhlau. Pode ver-se uma descrição do estado da questão, ao tempo, em A. Haenel, «Die vertragsmässigen Elemente der Deutschen Reichsverfassung», in Studien zum Deutschen Staatsrechte (Leipzig), 1873, p. 156 ss.
Lembre-se que a elaboração da Constituição de 1867 se baseara no Tratado de 18 de agosto de 1866 celebrado entre a Prússia e 15 «Länder» germânicos do norte, na sequência da vitória da primeira na guerra de 1866 contra a Áustria, e que, depois de aprovado pela Constituinte eleita em 12 de fevereiro de 1867 (Reichstag), o texto constitucional fora submetido à aprovação das assembleias dos «Länder». Sobre a história da formação da Constituição, v., p. ex., G. Anschütz, «Der Norddeutsche Bund und seine Erweiterung zum Kaiserreich», in Anschütz - Thoma, Handbuch des Deutschen Staatsrecht (Tübingen), I, 1930, p. 63 ss.

[2] Die vertragsmässigen Elemente. .., cit., p. 149 «in dieser Rechtsmacht des Staates über seine Kompetenz liegt die oberste Bedingung der Selbstgenugsamkeit, der Kernpunkt seiner Suveränetät»). V., ainda, p. 240, onde o autor indica, como sinal supremo de soberania, a autodeterminação jurídica das suas competências por parte do Reich e a determinação dos limites das competências dos Estados (anote-se, de passagem, a formulação do conceito de «autodeterminação jurídica», que viria a ser retomado por Kelsen — v. «Die Selbstbestimmung des Rechts», 1963, reproduzido em Die Wiener recbtstbeoretische Schule, Scbriften von Hans Kelsen, Adolf Merkl, Afred Verdross, Hans Klecatsky et. al. (ed.) (Wien et al), 1968 [doravante, WrS], p. 1445 ss..). Haenel esteve, porém, longe de elaborar uma teoria sistemática da competência da competência. Não estabeleceu a ligação com a problemática do poder constituinte originário e no próprio capítulo do Deutsches Staatsrecht (Leipzig), 1892, dedicado à soberania (p. 108 ss.), parece ter esquecido a ideia, embora a obra contenha uma inteira parte intitulada «a competência da competência e a essência do Reich» (p. 771 ss..). Dominado pelo problema das relações entre o Reich e os Estados federados, preocupado em excluir desse domínio, tanto quanto possível, elementos pactícios, só incidentalmente se encontra no autor «expansão teórica» da ideia.

[3] Die Lehre von den Staatenverbindungen (Wien) 1882, pp. 28-30, a propósito do conceito de soberania. Segundo o autor, a teoria de Haenel «aproximar-se-ia da verdade sem a atingir», por virtude do ponto de vista unilateral (o do Direito do Estado) de que partiria, não dando conta da autolimitação do Estado nas relações internacionais, nem em particular de situações como as de vassalagem internacional ou de protectorado. Na Allgemeine Staatskhre (1911, reimp. da 5.a reimp. da 3.a ed.,1966, Bad Homburg, pp. 483-484) o autor afirma que o conceito de competência da competência constitui apenas uma «noção auxiliar» para justificar a possibilidade jurídica de actos do Estado que alarguem a respectiva competência. Todavia, uma equiparação, sem excepção, da soberania ao absoluto (pleno) domínio jurídico sobre a competência seria incorrecta: o alargamento da competência estadual encontraria sempre um limite no reconhecimento de outras pessoas jurídicas, seja na ordem interna, seja na internacional. Só na forma estabelecida poderá o Estado libertar-se desses limites. E há casos em que nem isso é possível: aqueles em que se estabeleça a inalterabilidade de normas constitucionais. Estas apenas podem então ser modificadas por via de «poder de facto» ou violência (Gewalt), não por via jurídica.
Conforme é sabido, a ideia fundamental trazida por Jellinek (se bem que o autor não deixe de assinalar continuidade, neste ponto, relativamente a Berghohm e a Jhering) é a de autovinculação (Selbstverpflichtung) do Estado (v., nomeadamente, Die rechtliche Natur der Staatmverträge - Ein Beitrag zur juristischen Construction des Völkerrechts, Wien, 1880, passim, em particular p. 9 ss., Die Lehre von den Staatenverbindungen, cit., p. 30 ss., e Allgemeine Staaslehre, cit., p. 367 ss.). Nesse quadro, a soberania aparece definida como qualidade de exclusiva autovinculação (Die Lehre von den Staatenverbindungen, p. 34) ou de exclusiva autodeterminação e autovinculação (Allgemeine Staatslehre, p. 481).

[4] Das Problem der Souvännität und die Theorie des Völkerrechts, 1928 (2.a reimp., Aalen, 1981), p. 47 ss. (a 2.a ed. constitui já mera reimpressão da primeira, datada de 1920). A crítica de Kelsen centra-se na relação entre os conceitos de competência da competência e de Kompttmzhohtit (“capacidade do poder do Estado de determinar a sua própria competência”), de um lado, e o conceito de soberania, de outro. Kelsen argui que a modificabilidade das normas não é uma característica essencial destas. Pelo contrário, as normas de um sistema jurídico só poderão ser alteradas se houver no sistema uma, e com estatuto suficiente, que o autorize. Por isso, é pensável um sistema jurídico no qual não exista competência para a determinação das competências por via de modificação constitucional (pela circunstância de as normas constitucionais serem inalteráveis), sem prejuízo da possibilidade de esse sistema ser qualificado como soberano. Nos fundamentos da crítica, Kelsen acolhe pois — sem fazer a devida citação, conforme era aliás sua prática frequente — a tese de Merkl a que num outro texto(“Revolution, Lex Posterior and Lex Nova”, in Elspeth Attwool (ed.), Shapping Revolution, Aberdeen, 1991, pp. 69-70) chamei tese da inderrogabilidade originária. Formulara-a num artigo de 1917 (“Die Unveränderlichkeit von Gesetzen — ein normlogisches Prinzip», hoje em WrS, p. 1079 ss.), retomara-a num texto de 1918(“Die Rechtseinheit des österrei-chischen Staates. Ein staatsrechtiche Untersuchung auf Grund der Lehre von der lex posterior”, WrS, p. 1115 ss.) e viria a desenvolvê-la em Die Lehre von der Rtchtskraft (Leipzig-Wien, 1923). A verdade, porém, é que Kelsen, que havia antes sustentado exactamente o princípio contrário, isto é, o da derrogabilidade, como princípio normológico (“Reichsgesetz und Landesgesetz nach österreischischer Verfassung”, 23 (1914), Archiv des öffentlichtn Recht, 1914, p. 208), viria a «revogar» a adesão dada à posição de Merkl. Sobre as posições de Kelsen em matéria de lex posterior e a sua instabilidade, v. o meu artigo «Revolution, Lex Posterior and Lex Nova», cit., pp. 71-72.

[5] Assim, os casos do Betsey (Lapradelle et Politis, Recueil des Arbitrages Internationaux, Paris, I, 1905, p. 51 ss.) e do Sally (ibid., I, p. 131 ss.), as decisões da Comissão Mista de Washington instituída pelos EUA e pelo México na base do tratado de 11 de abril de 1839 e, em especial, a declaração do Secretário de Estado Webster (ibid., I, p. 455 ss.) e o caso do Alabama (ibid., II, 1923, p. 713 ss.).

[6] Lapradelle, Revue de Droit lnternational, 5 (1928), p. 5 ss.; Brierly, «The Hague Conventions and the Nullity of Arbitral Awards», The British Year Book of International Law, 9 (1928), p. 114 ss.; H. Lauterpacht, «The Legal Remedy in case of Excess of Jurisdiction», B.Y.B.I.L., 9 (1928), p. 117 ss.; A. Verdross, «Die Verbindlichkeit der Entscheidungen internationaler Schiedsgerichte und Gerichte über ihre Zuständigkeit», Zeitschrift fuer öffentliches Recht. VII (1928), p. 439 ss., e «L'Excés de Pouvoir du Juge Arbitral dans le Droit International Public», Revue de Droit lnternational et de Legislation Comparée, IX (1928), p. 225 ss.

[7] L'excés de Pouvoir..., cit., p. 228. V. tb. Die Verbindlickkeit .., cit., pp. 439-440.

[8] O princípio do reconhecimento do poder do árbitro de decidir sobre a sua competência encontrava-se previsto no art. 14 do «Projet de réglement pour l'arbitrage internationale" adoptado pelo Instituto de Direito Internacional em 1875 (Annuaire de L’institut de Droit lnternational, I [1877], p. 126 ss.) — «(L)es arbitres doivent se prononcer sur les exceptions tirées de l'incompétence du tribunal arbitral, sauf le recours dont il est question à l’art. 24, 2ème al., et conformément aux dispositions du compromis" e «(d)ans le cas ou le doute sur la compétence dépend de l'interprétation d'une clause du compromis, les parties sont censées avoir donné aux arbitres la faculté de trancher la question, sauf clause contraire". Veio depois a ser consagrada na Convenção da Haia de 1899 (Convention pour le régtement pacifique des conflits internationaux, signée à la Haye le 29 juillet 1899), art. 48 — «(L)e Tribunal est autorisé à déterminer sa compétence en interprétant le compromis ainsi que les autres traités qui peuvent être invoqués dans la matière et en appliquant les principes du droit international" — e pelo art. 73, com o mesmo teor do referido art. 48, da Convenção 1907 (Convention pour le règlement des conflits internationaux, signée à la Haye te 18 octobre 1907). Por fim, está consignado no art. 9 do Modelo de regras sobre processo arbitral, adoptado pela CDI sobre a base do projecto Georges Scelle- «Le Tribunal arbitral, maître de sa compétence, dispose des pouvoirs les plus larges pour interpréter le compromis" (Annuaire de la Commission du Droit International 1952, II, p. 2 ss.).

[9] V., p. ex., Georges Berlia, «Jurisprudence des tribunaux internationaux en ce qui concerne leur compétence", R. C.A.D.I, 88 (1955-II), p. 110 ss., passim, nomeadamente p. 154.

[10] Acórdão de 12 de novembro de 1991,TIJ, Recueil 1991, p. 69, pars. 47-48. Note-se que, sobre o ponto em causa, as partes se encontravam de acordo. Aquilo que a Guiné-Bissau sustentava era que, mau grado a sua defeituosa redacção e até por força da interpretação que as próprias partes lhe haviam dado, o art. 2º do compromisso arbitral impunha, com nitidez suficiente, que o Tribunal Arbitral, depois de haver julgado o Acordo de 26 de abril de 1960 como vinculativo entre as partes no que toca aos espaços a que se referia (mar territorial, zona contígua e plataforma continental), se pronunciasse “ex novo” sobre a delimitação da ZEE e viesse porventura a estabelecer uma fronteira única final de síntese — e nisso a maioria do TIJ) não a acompanhou, considerando que o entendimento segundo o qual o Tribunal arbitral não teria de passar à delimitação da ZEE e à eventual fixação de uma linha única não era, face ao compromisso, uma interpretação que envolvesse, por parte do Tribunal Arbitral, «méconnaître manifestement sa compétence» (pp. 70-72, pars. 50-60). Outra alegação da Guiné-Bissau consistia em que, verdadeiramente, o Tribunal Arbitral não decidira sobre a sua própria competência, conforme resultaria da circunstância de o par. 87 constar da motivação, e não do dispositivo, corroborada pela declaração do presidente junta ao acórdão. Isso abriria uma questão nova na teoria da competência da competência dos tribunais arbitrais: a das consequências, designadamente no que toca ao estatuto da decisão de fundo, da abstenção de decisão em questão de competência suscitada (v. as minhas intervenções nos dias 4 de abril de 1991, CR [provisório] 91/3, e no dia 9 de abril, CR [provisório] 91/7}. O TIJ, reconhecendo embora que «la sentence est de ce point de vue construite d'une manière qui pourrait donner prise à la critique», julgou que, apesar de tudo, o par. 87 conteria uma decisão aprovada por maioria e, por isso, não se pronunciou sobre a questão mencionada.

[11] No processo atrás referido, a Guiné-Bissau invocou, como fundamento da competência do TIJ , e em correlação com as declarações de aceitação da jurisdição pelas partes, a al. b) do n.º2 do art. 36 do Estatuto, que fala de «tout point de droit international». Em declaração do voto, o juiz ad hoc designado pelo Senegal e antigo vice-presidente do Tribunal, Mbaye, procurou introduzir reservas ao valor do acórdão como precedente em matéria de competência para conhecimento de questões de validade de sentenças arbitrais (lembre-se que o único outro caso apreciado pelo TIJ — o da Sentença Arbitral da Rei de Espanha de 23 de dezembro de 1906, Honduras c. Nicarágua, Recueil 1960, p. 192 ss. — fora submetido com base em tratado e, portanto, nos termos do n.º 1 do art. 36), sublinhando que o Tribunal assinalara que o Senegal não havia contestado a sua competência (p. 62, par. 24). Todavia, (TIJ] aceitou a competência na base do nº 2 do art. 36 e não, sequer em alternativa, pelo menos explicitamente, com fundamento em forum prorrogatum (Regulamento, art. 38, nº 5). Mais precisamente, e sem prejuízo de alguma cautela que o Tribunal revelou, o entendimento do juiz Mbaye — só parece poder justificar-se se vier acompanhado de ideia de que a excepção de incompetência do Tribunal ratione materiae não é do conhecimento oficioso, que não se afigura fundada (sobre o problema, v., p. ex., G. Abi-Saab, Les Exceptions Préliminaires dans Ia Procédure de la Cour lnternationale de Justice, Paris, 1967, p. 205 ss.).

[12] O nº 6 do art. 36 do Estatuto do TIJ estabelece que, «(e)n cas de contestation sur le point de savoir si la Cour est compétente, la Cour décide». Tem-se entendido que o preceito confere ao Tribunal a competência da sua competência (v., nomeadamente, o Acórdão de 18 de novembro de 1953 proferido no Caso Nottehohm, Liechtenstein c. Guatemala, Recueil l953, pp. 119-120; cfr. Sir Gerald Fitzmaurice, The Law and Procedure of the International Court of Justice, Cambridge, 1986, II, p. 451 ss.).

[13] V., ainda, p. ex., o art. 16.0, n.º 1, da Lei Modelo da CNUDCI sobre a Arbitragem Comercial Internacional e Maria Ângela Bento Soares e Rui Moura Ramos, Arbitragem Comercial Internacional Análise da Lei-Modelo da CNUDCI de 1985 (sep. do BMJ, Documentação e Direito Comparado, nº 21 de 1985), 1986, pp. 279-280.

[14] A primeira situação (necessidade de juízo de inconstitucionalidade por parte do tribunal a quo) é a que se verifica na Alemanha (v., p. ex., E. Benda, «Die Verfassungsgerichtsbarkeit der Bundesrepublik Deutschland", in C. Stark/A. Weber (ed.), Verfassungsgerichtsbarkeit in Westteuropa, Baden-Baden, I, 1986, p. 132, e W. Zeidler, Relatório em Justiça Constitucional e Espécies, Conteúdo e Efeitos das Decisões sobre a Constitucionalidade de Normas, VII Conferência dos Tribunais Constitucionais, Tribunal Constitucional, Lisboa, 1987, Parte II, p. 53); "a segunda situação (necessidade de juízo de dúvida) é aquela que ocorre na Áustria (v. K. Korinek, «Die Verfassungsgerichtsbarkeit in Österreich", Verfassungsgerichtsbarkteit .., cit., I, pp. 161-162) e em Espanha (A. Latorre Segura e L. Diez-Picazo, Relatório em Justiça Constitucional. .., cit., Parte II, pp. 186-187); o terceiro regime é o que vigora em Itália, nos termos expressos do art. 1º da Lei Constitucional nº 1, de 9 de fevereiro de 1948, sem prejuízo, conforme aí igualmente previsto, de a questão ser suscitada oficiosamente pelo juiz a quo.

[15] A reclamação para o Tribunal Constitucional encontra-se regulada pelo art. 77º da LTC (redacção da Lei nº 85/89, de 7 de setembro). Diferentemente do que sucede no processo civil, a decisão pertence, não ao presidente do Tribunal, mas à secção e faz caso julgado no processo (sobre as especialidades do regime da reclamação para o Tribunal Constitucional, v. Ac. TC nº318/93, adiante referido). Problema melindrosíssimo no aspecto «institucional» foi aquele que se suscitou no processo em que veio a ser proferido o acórdão acabado de mencionar, relacionado com a divergência entre o Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal de Justiça acerca da necessidade de, tratando-se de processo laboral, o despacho do relator ser presente à conferência no STJ. O TC, embora sem prescindir do seu entendimento, acabou, prudentemente, e invocando o legítimo interesse do reclamante, por aceitar conhecer da reclamação sem cumprimento da formalidade prévia de submissão à conferência no tribunal a quo.

[16] José Manuel Cardoso da Costa, A Justiça Constitucional no quadro das funções do Estado vista à luz das espécies, conteúdo e efeito das decisões sobre constitucionalidade das normas jurídicas, Lisboa, 1987, p. 66.

[17] Assim, explicitamente, p. ex., Acs. TC n.os 318/93 e 462/94 (DR, II, de 2 de outubro de 1993 e 21 de novembro de 1994). Sobre a execução das decisões do Tribunal Constitucional, v., em particular, António Rocha Marques, «O Tribunal Constitucional e os outros tribunais: a execução das decisões do Tribunal Constitucional.., Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional (Lisboa), 1993, p. 455 55. No texto falarei de seguida apenas de questão de inconstitucionalidade, mas o que a seu respeito se diz poderá ser transposto para as questões de «ilegalidade qualificada.. (Const., art. 280º, n.os 2 e 5, e LTC, art. 70º, n.º 1, als. c) a f).

[18] V., p. ex., para além dos arestos citados por Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, II, 3.a ed. (Coimbra), 1991, p. 445, nota 4), Acs. CC n.os 415 e 447 (Ap. DR de 18 de janeiro de 1983) e Acs. TC nº 257/89 (Acórdãos TC: 13º, II, p. 799), 214/90 (ibid., 16º, p. 581), 251/90 e 253/90 (inéditos), 186/91 (DR, II, de 10 de setembro de 1991) e 318/93 (DR, II, de 2 de outubro de 1993). Situação curiosa é aquela a que se refere o Ac. nº 94/90 (Acórdãos TC, 15º, p. 333): estava em causa o respeito de decisão anterior, proferida em fiscalização concreta (Ac. nº 281/88, DR, II, de 22 de fevereiro de 1989), que mandara já reformar decisão impugnada em conformidade com declaração de inconstitucionalidade dotada de força obrigatória geral (Ac. nº 131/88. Acórdãos TC, 11º, p. 465). Assinale-se ainda que o Tribunal admitiu a equiparação à declaração de inconstitucionalidade emitida por si próprio da declaração de inconstitucionalidade efectuada pelo Conselho da Revolução. anteriormente à revisão de 1982 (Ac. nº 339/86, Acórdãos TC, 8º p. 629). Nas referências feitas consideram-se indiferentemente casos em que o Tribunal deu provimento ao recurso (p. ex., Acs. nºs. 257/89 e 186/91) e casos em que não deu e mesmo — quando era essa a situação — casos em que deu e não deu provimento a reclamação. O que importa é que o Tribunal haja aceite conhecer da contradição, se esta existir. Veja-se todavia a delimitação feita pelo Ac. n.º 318/93, adiante referido no texto.

[19] No sentido da admissibilidade do recurso, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, 3.a ed. {Coimbra). 1993, p. 1025; Gomes Canotilho, Direito Constitucional 5.a ed. (Coimbra). 1993). p. 1082, nota 25; Jorge Miranda, loc, cit.. p. 445; Cardoso da Costa. A Jurisdição Constitucional em Portugal. 2.a ed. (Coimbra), 1992, p. 29, nota 28, e Paulo Otero, Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional (Lisboa). 1993. p. 99. Contra, Afonso Queiró, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 115. pp. 153-154, e Vitalino Canas. «O Ministério Público e a Defesa da Constituição», Revista do Ministério Público, 20 (1984), pp. 68-69.

[20] O que implica — e parece que correctamente — reconhecer valor vinculativo (geral) à ressalva estabelecida ao abrigo do nº 4 do art. 282º, de tal modo que os tribunais incluindo o próprio Tribunal Constitucional. ficarão obrigados a aplicar as normas. apesar de inconstitucionais, no domínio ressalvado.

[21] V., além dos já referidos Ac. CC n.º 447 e Ac. TC n.º 94/90, Acs. TC n.os 330/92 (inédito) e 462/94 (DR. II, de 21 de novembro de 1994). Caso particular é aquele a que se refere o Ac. TC n.º 163/95 (ainda inédito). O Tribunal Constitucional julgou inconstitucional, no próprio processo, a norma do n.º1 do art. 8º do Dec.-Lei n.º 138/85, de 3 de maio, em certa interpretação, que fora utilizada pelo tribunal a quo, isto é, naquela segundo a qual, estando em causa créditos de origem laboral, os «tribunais comuns" a que o preceito se refere são os tribunais cíveis (inconstitucionalidade orgânica por violação da al. q) do nº1 do art. 168º da Constituição, redacção de 1982). Subsequentemente, aliás, foi proferida declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, nos mesmos termos (Ac. nº 151/94, DR, I-A, de 30 de março de 1994). Remetidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, este manteve a decisão no sentido da competência dos tribunais cíveis, apesar do julgamento sobre inconstitucionalidade, invocando agora o nº 4 do art. 43º do Dec.- Lei nº 260/76, de 8 de abril (anterior à Constituição), sustentando (ao contrário do que pressupusera o Tribunal Constitucional) que não se encontrava revogado (revogação sistemática) pela Lei nº 82/77 (Lei orgânica dos tribunais judiciais). Interposto novo recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da al. a) do nº 1 do art. 280º da Constituição e da al. a) do nº I do art. 70º da LTC, este considerou que o Supremo recusara implicitamente a aplicação do preceito do n.º 1 do art. 8º do Dec.-Lei nº 138/85 não apenas com o sentido em que o mesmo fora julgado inconstitucional, mas em qualquer interpretação possível. Socorrendo-se do poder de proferir sentenças interpretativas (em fiscalização concreta) que lhe confere o nº 3 do art. 80º da LTC, o Tribunal Constitucional considerou agora constitucional a referida disposição com o sentido segundo o qual a expressão «tribunais comuns...deve, após a Lei n.º 82/77, de 6 de dezembro, e quando estejam em causa créditos oriundos de relações laborais, entender-se como correspondendo aos tribunais de trabalho», e deu provimento ao recurso. Caso próximo encontrava-se em causa no processo em que foi proferido o Ac. nº 164/95 (também ainda inédito), com a diferença de que não havia, nesse processo, decisão emitida em anterior fiscalização concreta, relevando apenas a precedente decisão com força obrigatória geral. Aí, porém, foi recusado provimento ao recurso, porque este havia sido interposto não ao abrigo da al. a), mas ao da al. b) do n.º 1 do art. 280º da Constituição e do nº1 do art. 70º da L TC.
V., ainda, Cardoso da Costa, A Jurisdição..., cit., p. 57; nota 53-b, e Ribeiro Mendes, «o Conselho da Revolução e a Comissão Constitucional na fiscalização da constitucionalidade das leis (1976-1983», in Mário Batista Coelho (ed.), Portugal - O Sistema Político e Constitucional 1974-87 (Lisboa), pp. 937-938, e Recursos em Processo Civil; 2.a ed. (Lisboa), 1994, p. 337.

[22] Note-se que, ao contrário do que sustenta Jorge Miranda (loc. cit., p. 443), não se me afigura que o recurso previsto no nº 5 do art. 280º da Constituição haja sido estabelecido «por uma necessidade de harmonia de julgados e para defesa da autoridade do Tribunal Constitucional» (vide, ainda, declaração de voto do Conselheiro José de Sousa Brito nos Acs. n.os 214/90, 251/90 e 253/90). Tais razões não justificariam que o recurso não abrangesse igualmente os casos em que a questão de inconstitucionalidade houvesse sido apreciada pelo Tribunal Constitucional e este não se houvesse pronunciado pela inconstitucionalidade. É certo que, nessa hipótese, caberá sempre o "fundamento da al. a) do nº 1. Mas não se compreenderia que o recurso nos termos do nº 5 seja sempre obrigatório para o Ministério Público, quando, nos termos da al. a) do nº 1, só o é se a norma a que houver sido recusada aplicação constar de convenção internacional, de acto legislativo ou de decreto regulamentar. Julgo que o nº 5 se liga a um propósito de defesa da Constituição. Entendeu-se que, quando já tiver havido decisão no sentido da inconstitucionalidade, não só se legitima a possibilidade de recurso pela parte, ainda que não haja suscitada a questão durante o processo, como o recurso haverá de ser obrigatório, no interesse da Constituição.

[23] Outro será o de saber — fora agora já do âmbito do problema da recorribilidade para o Tribunal Constitucional —se o art. 675º do C PC é aplicável no caso de contradição entre a decisão da questão de inconstitucionalidade e a decisão da questão principal. Tenderia a responder negativamente: fora do processo, a decisão da questão de inconstitucionalidade, como a de outra questão prévia, fica consumida pela decisão da questão principal.

[24] V A, Ribeiro Mendes, Recursos... cit., p. 142.

[25] Conforme é sabido, o problema da autoreferência foi trazido para o domínio jurídico pelo génio de Alf Ross (On Law and Justice [London], 1958, pp. 80-81, e, já com resposta a críticas e novos desenvolvimentos, «On self-reference and a "puzzle" in Constitutional Law" Mind, LXXVIII, nº 309, 1969, p. I ss.). Mas o problema de base, respeitante à aplicação das normas de revisão constitucional à sua própria alteração, fora já formulada na Theorie der Rechtsquellen (Leipzig-Wien), 1929, nomeadamente pp. 261-262 e 356. A utilização da teoria lógica da autoreferência e a questão das suas consequências no que toca à revisão constitucional foram objecto de alguma importante discussão no mundo dos juristas — v., em particular, Hart, «Self-referring Laws» (1964), hoje em Essays in Jurisprudence and Philosophy (Oxford), 1983, p. 170 ss.; Raz, «Professor A. Ross and Some Legal Puzzles», Mind, LXXXI, nº 323, 1972, p. 415 ss.; N. Hoerster, «On Alf Ross alleged Puzzle in Constitutional Law», ibid, p. 422 ss. Recentemente a temática foi revista, com vastidão, por P. Suber, The Paradox of Self-Amendent (New York et al.), 1990 (v., ainda, a súmula «O Paradoxo da Auto-Revisão em Direito Constitucional», sep. RFDUL, 1990). A questão da autoreferência veio a ter um papel fundamental na teoria autopoiética do Direito (v. G. Teubner, Recht als autopoietisches System (Frankfurt a. M.), 1989, p. 9 ss., trad. portuguesa de J. Engrácia Antunes, O Direito como Sistema Autopoiético [Lisboa], p. 4 ss.). No domínio lógico, Ross baseou-se não só na análise clássica de Bertrand Russel como, em larga medida, no estudo de J. Jørgensen, «Some reflections on reflexivity» (Mind, LXII, nº 247, 1953, p. 289 ss.), onde se sustenta que as proposições autoreferentes são desprovidas de sentido. Introduziu-se depois (nomeadamente Mackie, Truth, Probability and Paradox [Oxford], 1973, p. 285 ss.; v. tb. Hart, loc. cit.) uma distinção entre auto-referência total e parcial, alegando-se que as proposições apenas parcialmente autoreferentes têm sentido, embora conduzam a uma série infinita. Não resisto, porém, a chamar a atenção para que há uma (possivelmente uma única) proposição totalmente autoreferente dotada de sentido. É a proposição: «esta proposição não tem sentido». O ponto mereceria teorização lógica, se não a tem já.

[26] E, aliás, fácil tornar paradoxal uma proposição sobre a competência da competência: A tem a competência para decidir da sua competência; logo A tem a competência para decidir que não tem a competência para decidir da sua competência. Tra-tar-se-ia provavelmente de um paradoxo do tipo do «paradoxo do mentiroso» cuja dissolução se poderia porventura obter a partir de uma distinção de «escalões» à maneira de Tarski: a segunda proposição atrás mencionada respeita a uma competência da competência de primeiro grau e pressupõe o exercício de uma competência da competência de segundo grau, que por ela não é negada. Mas os problemas que no texto de seguida sumariamente se indicam não desaparecem.

[27] V. o meu artigo «Revolution, Lex Posterior and Lex Nova», cit., pp. 73-75.

[28] V. o citado estudo, pp. 74-76, onde fiz uma distinção entre sistemas jurídicos fundacionais e não-fundacionais. Hoje começaria por separar sistemas baseados num princípio de heteronomia e sistemas baseados num princípio de autonomia (se é que estes últimos são verdadeiros sistemas — se o forem, possuirão um grau mínimo de sistematicidade). A distinção entre sistemas fundacionais e não fundacionais restringe-se à primeira categoria. Por outro lado, teria hoje dúvida em utilizar o conceito de competência da competência, ligado ao poder constituinte, ainda que numa forma mista de competência da competência originária e derivada, a propósito dos sistemas não-fundacionais (p. ex., o sistema britânico). Porventura aí o ponto de partida será, não a ideia de competência da competência, mas a de «omnicompetência». Restará saber se a competência da competência originária não representa um momento de «autolimitação» de uma «omnicompetência» pressuposta (lembre-se, em particular, o caso das cartas constitucionais, que tanto interessou Ross). Todas as dificuldades desembocariam, a final, no paradoxo da omnipotência.

[29] A «Contraproposta inicial do Conselho da Revolução» encontra-se publicada em Jorge Miranda, Fontes e Trabalhos Preparatórios da Constituição (Lisboa), 1978, vol. II, p. 1210 ss. (v. pontos 3.7 a 3.9). Quanto à 2.a Plataforma de Acordo Constitucional, ibid., I, p. 204 ss. (v. pontos 3.10 a 3.12).

[30] V. o meu artigo «A concentração da competência para o conhecimento jurisdicional da inconstitucionalidade das leis», O Direito (103), 1971, p. 194 SS.

[31] 31 V. DAR, II, Suplem. ao n.º 72, de 27 de março de 1982, pp. 1330(1) a 1330(24).




 



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