Relatórios Portugueses das Conferências dos Tribunais Constitucionais Europeus
VIIª Conferência dos Tribunais Constitucionais
Europeus
A Justiça constitucional no quadro das funções
do Estado vista à luz das espécies, conteúdo e efeitos
das decisões sobre a constitucionalidade das normas jurídicas
Luís Nunes de Almeida, Juiz do Tribunal Constitucional
[Lisboa, Portugal, 27 a 30 de abril de 1987]
1. Introdução
1.1 . Órgãos da justiça constitucional
a) Os tribunais em geral
O sistema português de fiscalização da constitucionalidade reúne características próprias dos sistemas de judicial review e dos sistema de fiscalização concentrada, numa combinação cuja especificidade se revela logo no facto de, apesar da existência de um Tribunal Constitucional, todos os tribunais constituírem verdadeiros órgãos da justiça constitucional.Efectivamente, de acordo com o preceituado no artº 207º da Constituição, “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados“, pelo que a todos e quaisquer tribunais é licito recusar a aplicação de normas jurídicas com fundamento na sua inconstitucionalidade, devendo, aliás, fazê-lo obrigatoriamente sempre que sobre elas formulem um tal juízo.
Quer isto dizer que, no sistema português, cabe aos tribunais de qualquer ordem (judiciais, administrativos, militares, etc.) averiguar da conformidade constitucional das regras de direito aplicáveis ao caso concreto e, se as julgarem desconformes, desaplicá-las por força da sua incompatibilidade com a lei fundamental.
Pode, assim, afirmar-se com segurança que, em Portugal, todos os tribunais, sem excepção, são órgãos da justiça constitucional.
Todavia, essa circunstância não invalida que exista um tribunal especialmente vocacionado para apreciar e julgar as questões de constitucionalidade, funcionando não apenas como tribunal de recurso quando tais questões hajam sido suscitadas nos processos que correm perante os restantes tribunais (fiscalização concreta), mas procedendo também à fiscalização abstracta da constitucionalidade: o Tribunal Constitucional.
b) O Tribunal Constitucional
O Tribunal Constitucional é composto por treze juízes, cada um deles designado por um período de seis anos renovável, sendo dez eleitos pela Assembleia da República, por maioria qualificada de dois terços, e três cooptados por estes. Três dos juízes eleitos pela Assembleia e os três cooptados são obrigatoriamente escolhidos de entre os juízes dos restantes tribunais, e os demais de entre juristas [2].As competências conferidas ao Tribunal Constitucional pela Constituição e pela lei não se confinam à fiscalização da constitucionalidade, nas suas diversas modalidades.
Para além de lhe competir igualmente a fiscalização da compatibilidade de quaisquer normas com o preceituado nos estatutos das regiões autónomas, bem como da compatibilidade das normas emanadas pelos órgãos próprios destas regiões com as leis gerais da República [3], ao Tribunal cabem também importantes funções como supremo tribunal em matéria eleitoral [4] e como órgão de controlo da constitucionalidade e da legalidade dos referendos locais [5]. E é ainda ao Tribunal Constitucional que compete igualmente por exemplo, verificar a perda do cargo ou declarar a impossibilidade física permanente do Presidente da República [6].
Pela sua independência, pela sistemática da sua inserção Constitucional – capítulo respeitante à organização dos tribunais – e pelo estatuto dos seus juízes, pode concluir-se que o Tribunal Constitucional é, indiscutivelmente, um tribunal ao mesmo título que qualquer outro. Mas pode também afirmar-se que, designadamente pelas competências que possui, pela especial atenção que a Constituição lhe dedica e pela forma de designação dos seus membros, ele constitui um órgãos constitucional autónomo que apresenta importantes especificidades relativamente aos restantes tribunais.
Em qualquer caso, cumpre assinalar que, para além de todas as outras importantes funções que lhe estão cometidas, o cerne da actividade e da própria razão de ser do Tribunal Constitucional se encontra relacionada com a fiscalização da constitucionalidade , pelas diversas vias previstas na lei fundamental.
1.2 Modalidades e vias processuais do controlo da constitucionalidade.
a) Fiscalização preventiva
A fiscalização preventiva da constitucionalidade exerce-se numa fase anterior à da conclusão do processo de formação do acto normativo a que respeita e só pode ser requerida pelo Presidente da República ou pelos Ministros da República para as regiões autónomas, consoante os casos, e apenas relativamente a normas constantes dos diplomas de maior hierarquia formal.Assim, o Presidente da República pode requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas constantes de convenções internacionais cuja aprovação seja sujeita à sua ratificação ou assinatura, bem como das constantes de diploma com força de lei sujeitos à sua promulgação (leis da Assembleia da República e decretos-leis do Governo) [7] .
Por seu lado, os Ministros da República podem requerer a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas constantes não só dos decretos legislativos regionais, mas também de certos decretos regulamentares regionais – exactamente aqueles que visam regulamentar leis gerais da República e que, por isso mesmo, são, tal como os decretos legislativos regionais, da exclusiva competência das assembleias regionais [8].
A apreciação preventiva tem de ser requerida num prazo muito curto - cinco dias – e decidida pelo Tribunal em prazo igualmente reduzido – vinte dias – que, em caso de urgência, pode ainda ser encurtado [9].
b) Fiscalização abstracta sucessiva
A fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade é exercida pelo Tribunal Constitucional, a requerimento de certas entidades, independentemente do julgamento de qualquer caso concreto a que a norma fosse eventualmente aplicável.Este tipo de fiscalização, exercida a título principal (acção de inconstitucionalidade), que pode desembocar na declaração de inconstitucionalidade de qualquer norma, com força obrigatória geral, só se verifica quando a requerimento do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República, do Primeiro-Ministro, do Provedor de Justiça (Ombudsman), do Procurador-Geral da República, de um décimo dos Deputados à Assembleia da República, bem como das assembleias regionais ou dos presidentes dos governos regionais das regiões autónomas, mas apenas quando o fundamento for a violação dos direitos dessas regiões [10].
Salienta-se, por um lado, que a lei fundamental exclui a possibilidade de uma acção popular de inconstitucionalidade, intentada por um cidadão ou por um grupo de cidadãos, confiando, talvez, que bastaria conferir a iniciativa do processo ao Provedor de Justiça, enquanto entidade especialmente vocacionada para zelar pelos direitos fundamentais desses mesmos cidadãos. E que, por outro lado, pretendeu salvaguardar os direitos das minorias políticas, ao permitir que o processo possa ser iniciado a requerimento de um número relativamente reduzido de Deputados.
c) Fiscalização concreta
Ao contrário do que acontece com as restantes modalidades de fiscalização da constitucionalidade, na fiscalização concreta não se verifica, em Portugal, um sistema de controlo concentrado.Efectivamente, em sede de fiscalização concreta, depara-se-nos um sistema de controlo judicial difuso, exercido por todos os tribunais, e não apenas pelo Tribunal Constitucional.
Este tipo de fiscalização, que ocorre a título incidental a propósito do julgamento de um caso concreto, pode ser desencadeado por qualquer das partes no processo ou, oficiosamente, pelo tribunal da causa.
Todavia, se os tribunais em geral são competentes para apreciar e decidir as questões de inconstitucionalidade suscitadas a propósito da aplicação de certa norma ao caso concreto que lhes está submetido a julgamento, a verdade é que dessas suas decisões pode sempre haver recurso para o Tribunal Constitucional.
Assim, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo ou, ainda, que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional [11].
Nos casos de recusa de aplicação de norma constante de convenção internacional, de acto legislativo ou de decreto regulamentar, bem como nos casos de aplicação de norma já anteriormente julgada inconstitucional, o recurso tem carácter obrigatório para o Ministério Público [12].
Como, porém, o recurso é, em todos os casos, restrito à questão de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional, quando lhe conceda provimento, limita-se a revogar a decisão recorrida e a ordenar ao tribunal a quo que a reforme, substituindo-a por outra em que se decida em conformidade com o julgamento que haja sido proferido pelo próprio Tribunal Constitucional sobre a questão de inconstitucionalidade.
Assinale-se, finalmente, que enquanto nos restantes tipos de fiscalização da constitucionalidade a competência para decidir é sempre deferida ao plenário do Tribunal, em sede de fiscalização concreta os recursos são julgados em secção [13]. Para o efeito, existem duas secções não especializadas, cada uma delas composta pelo presidente do Tribunal, que tem assento em ambas as secções e a ambas preside, e por mais seis juízes [14].
d) fiscalização da inconstitucionalidade por omissão
A fiscalização da inconstitucionalidade por omissão é, de entre as modalidades de fiscalização existentes em Portugal, a mais rara, em termos de direito comparado.Compete exclusivamente ao Tribunal Constitucional verificar a existência deste tipo de inconstitucionalidade, quando a Constituição não estiver a ser cumprida por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis certas normas constitucionais [15], precisamente aquelas que exigem a mediação do legislador ordinário.
A iniciativa do processo de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão cabe apenas ao Presidente da República, ao Provedor de Justiça, ou, quando o fundamento for a violação dos direitos das regiões autónomas, aos presidentes das assembleias regionais.
1.3 . Âmbito e objectivos do controlo da constitucionalidade
a) Leis e outros preceitos jurídicos
No sistema português, em princípio, só as normas jurídicas são objecto de fiscalização da constitucionalidade. Importa, porém, determinar se todas as normas ou só as contidas em certos actos normativos, designadamente as leis, podem ser objecto dessa fiscalização.Ora, a resposta a esta questão depende, em Portugal, do tipo de fiscalização.
Assim, na fiscalização preventiva, atinente, aliás, as normas ainda não integrantes do ordenamento jurídico no momento da sua apreciação, a regra é que só estão sujeitas a esse tipo de fiscalização as normas contidas em actos com força de lei (convenções internacionais, leis da Assembleia da República, decretos-leis do Governo, decretos legislativos regionais das assembleias das regiões autónomas). Todavia, e como já vimos, esta regra comporta uma excepção: com efeito, os decretos regionais regulamentares de leis gerais da República, apesar de não terem natureza de acto legislativo, estão sujeitos a fiscalização preventiva da constitucionalidade.
Na fiscalização sucessiva, quer abstracta, quer concreta, já, pelo contrário, estão sujeitas a controlo de constitucionalidade todas as normas, qualquer que seja a natureza do acto normativo que as contenha.
São, assim, objecto de fiscalização sucessiva, para além das normas susceptíveis de serem sujeitas a fiscalização preventiva, as normas constantes de decretos regulamentares do Governo ou dos órgãos das regiões autónomas, bem como de quaisquer outros regulamentos de inferior hierarquia formal, dimanados do Governo ou de qualquer outro órgão ou entidade com poder regulamentar (órgão das autarquias locais etc.). Mas estão também sujeitos a fiscalização sucessiva da constitucionalidade, conforme o Tribunal entendeu já em diversos acórdãos [16], os Assentos, ou seja, as decisões interpretativas dos supremos tribunais a que a lei atribui força obrigatória geral; e, muito embora ainda não haja jurisprudência sobre a matéria, também o deverão estar as normas emanadas por organizações internacionais, desde que devam vigorar directamente na ordem interna, bem como as normas contidas em convenções colectivas de trabalho. Mais controversa, talvez, será a questão de saber se as próprias leis de revisão constitucional estão sujeitas a controlo da respectiva constitucionalidade, e, em caso afirmativo, em que termos e com que fundamentos.
b) Preceito e norma
Incidindo a fiscalização da constitucionalidade sobre normas, necessário se torna conhecer qual o conceito de norma a adoptar para esse efeito.
Estando unanimemente assente que estão subtraídos da fiscalização da constitucionalidade quer os denominados “actos de Governo”, quer os actos administrativos, quer as decisões judiciais, nem mesmo assim se podem considerar resolvidos todos os problemas.Assim, o Tribunal já foi chamado a pronunciar-se sobre a questão de saber se estão sujeitos a fiscalização da constitucionalidade preceitos legislativos que contenham actos materialmente administrativos.
E, quer no acórdão nº 26/85, proferido em sede de fiscalização preventiva, quer no acórdão nº 80/86, proferido em sede de fiscalização abstracta sucessiva, o Tribunal respondeu afirmativamente a esta questão, salientando que, para efeito de controlo da constitucionalidade, não pode partir-se de uma noção material, doutrinária e aprioristicamente estabelecida de norma, assente na necessidade de verificação dos clássicos requisitos da “generalidade” e da “abstracção”.
Recordando que a prática constitucional do nosso tempo denuncia a proliferação do fenómeno das “leis medidas” ou “leis providência”, o Tribunal assinala que seria manifestamente aberrante que tais leis, em que é evidente um acréscimo risco de desrespeito pelas regras constitucionais, ficassem excluídas da fiscalização da constitucionalidade. E, daí, parte para a necessidade de se adoptar um conceito de norma funcionalmente adequando ao controlo da constitucionalidade, conceito esse que há-de abranger as regras de conduta para os particulares ou para a Administração e os critérios de decisão para esta ou para o juiz, como sucede com os preceitos legais de conteúdo individual e concreto, os quais, aliás, só podem ter como parâmetro de validade imediata a própria Constituição.
Mas, em sede de fiscalização concreta, mais longe ainda foi o Tribunal, na senda desta sua jurisprudência: assim, no acórdão nº 150/86, veio a considerar susceptíveis de constituírem objecto de controlo da constitucionalidade as regras processuais fixadas por um tribunal arbitral, para serem aplicadas em determinado processo. Isto, por entender que se haviam fixado regras de conduta para as partes e para o próprio tribunal arbitral e critérios de decisão para este último, sendo certo que se tornava necessário assegurar que a última palavra sobre a eventual inconstitucionalidade das referidas regras coubesse ao Tribunal Constitucional.
Em suma, muito embora o controlo incida exclusivamente sobre normas, a verdade é que este conceito tem vindo a ser reelaborado pelo Tribunal, em função do que julga serem as finalidades próprias do sistema de fiscalização da constitucionalidade.
c) Omissões legislativas
Não existe ainda jurisprudência do Tribunal em matéria de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão.Todavia, nos termos constitucionais, só se pode considerar como relevante a omissão de medidas legislativas, o que exclui a fiscalização da inconstitucional por omissão de quaisquer actos não legislativos, designadamente de actos políticos.
Por outro lado, em sede de fiscalização abstracta sucessiva, o Tribunal já entendeu que é inconstitucional a norma legal revogatória que vem criar uma omissão legislativa que torne inexequíveis certas normas constitucionais [17].
1.4 Padrões de controlo
De acordo com o preceituado na própria lei fundamental “são inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.
Importa, porém, determinar se só a violação directa das normas constitucionais e dos princípios nela expressa ou implicitamente contidos pode gerar inconstitucionalidade.
Ora, quanto a este ponto, resulta relativamente claro que se há-de entender, desde logo, que à violação da Constituição se há-de equiparar a violação de quaisquer normas ou princípios por ela materialmente recebidos.
Assim, e para além das leis constitucionais anteriores ressalvadas pela própria lei fundamental [18], pode questionar-se se não se deve considerar que também as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum constituem um padrão de controlo da constitucionalidade, porquanto pode entender-se que eles são integrados na ordem jurídica interna com valor constitucional [19].
Mais complexa se afigura a questão de saber se a violação das denominadas normas interpostas também acarreta o vício de inconstitucionalidade.
No que se refere à violação por quaisquer normas do disposto nos estatutos político- administrativos das regiões autónomas, bem como à violação de leis gerais da República pelas normas dimanadas dos órgãos de governo próprio daquelas regiões, o problema encontra soluções expressa no texto constitucional .
Com efeito, a lei fundamental refere-se ex-professo a este tipo de “inconstitucionalidade indirecta” qualificando-a como ilegalidade, mas estabelecendo, quanto a ela, um sistema de controlo em tudo idêntico ao sistema de fiscalização da constitucionalidade, salvo no que se refere à fiscalização preventiva – que, neste caso, não existe – e às entidades que podem desencadear o processo de fiscalização abstracta sucessiva.
Quanto à eventual violação de convenções internacionais, e dado que se vem geralmente entendendo que, face ao disposto no nº2 do artº. 8 da Constituição, elas gozam de um valor supra-legislativo, embora infra-constitucional, a jurisprudência das duas secções do Tribunal é contraditória.
Assim, enquanto a 1ª Secção, em sucessivos e numerosos arestos [20], vem entendendo que a violação de convenção internacional pela lei interna importa a inconstitucionalidade das normas violadoras, com a correspondente sujeição ao sistema de controlo da constitucionalidade definido na lei fundamental, a 2ª Secção tem considerado, também de forma constante e uniforme [21], que o vício aí eventualmente existe – embora qualificável como de “inconstitucionalidade indirecta” – é do conhecimento exclusivo dos tribunais comuns, não estando, pois, submetidos ao processo especial de controlo da constitucionalidade e escapando, outrossim, à competência de apreciação do Tribunal Constitucional.
A questão poderá vir a pôr-se também, futuramente, se por parte da lei portuguesa ocorrer violação de normas de direito comunitário que devam vigorar directamente na ordem interna, por força do preceituado no nº 3 do art. 8º da Constituição e dos tratados constitutivos das Comunidades Europeias. Como se põe, aliás, sempre que a violação de uma norma por outra implique a violação das normas constitucionais definidoras das relações de hierarquia entre actos normativos, mas não viole, autonomamente, qualquer outra disposição constitucional; é que, quando existe esta violação autónoma (como nos casos em que, para além da violação das regras constitucionais sobre hierarquia, se viola, por exemplo, a reserva de competência legislativa exclusiva da Assembleia da República), o Tribunal tem entendido, aqui de forma unânime, que lhe compete fazer funcionar, na íntegra, o sistema de fiscalização da constitucionalidade [22].
2. Conteúdos das Decisões
2.1. Os tipos simples ou extremos: decisões de inconstitucionalidade e de não inconstitucionalidade
A Constituição apenas se refere expressamente ao conteúdo e efeitos das decisões que concluam pela existência de inconstitucionalidade, ou seja das denominadas decisões de inconstitucionalidade ou decisões positivas de inconstitucionalidade. E, ao prever tais decisões, a lei fundamental utiliza uma terminologia diversificada, consoante o tipo de processo de fiscalização da constitucionalidade em que elas hajam sido proferidas.Com efeito, e segundo a terminologia usada na Constituição, o Tribunal:
a) Na fiscalização preventiva, pronuncia-se pela inconstitucionalidade da norma [23];
b) Na fiscalização abstracta sucessiva, declara a inconstitucionalidade da norma [24];
c) Na fiscalização concreta, julga a norma inconstitucional [25];
d) Na fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, verifica a existência dessa inconstitucionalidade [26].A Constituição não trata, porém especificamente, das decisões em que se não conclua pela inconstitucionalidade, o que decorre directamente da natureza do sistema português de controlo da constitucionalidade. Efectivamente, em tais casos nunca pode ocorrer uma decisão de constitucionalidade, mas tão-só uma mera decisão de não inconstitucionalidade (ou decisão negativa da inconstitucionalidade, em que o Tribunal apenas:
a) Não se pronuncia pela inconstitucionalidade da norma na fiscalização preventiva;
b) Não declara a inconstitucionalidade da norma, na fiscalização abstracta sucessiva;
c) Não julga a norma inconstitucional, na fiscalização concreta;
d) Não verifica a existência da inconstitucionalidade.Todas as decisões do Tribunal assumem a forma de acórdão e, salvo as de natureza meramente interlocutória, são publicadas no jornal oficial, Diário da República. Todavia, só são publicadas na 1ª série desse jornal – a mais importante – as decisões de inconstitucionalidade proferidas em processo de fiscalização preventiva ou de fiscalização abstracta sucessiva; todas as outras decisões proferidas em processo de fiscalização da constitucionalidade, e designadamente as decisões de não inconstitucionalidade, são publicadas na 2ª série do jornal oficial [27].
2.2. Os tipos intermédios
a) Decisões interpretativas
Em Portugal, as decisões interpretativas têm a sua origem e fundamento não apenas na aplicação jurisprudencial do princípio da interpretação conforme à Constituição, mas também em disposição legal expressa [28], muito embora restrita à fiscalização concreta da constitucionalidade.Na verdade, nos termos dessa disposição legal, sempre que o Tribunal não julgue certa norma inconstitucional, com fundamento em determinada interpretação que dela faça, essa mesma norma deve ser aplicada com tal interpretação pelos restantes tribunais intervenientes no processo em causa.
O número de decisões interpretativas proferidas pelo tribunal é relativamente escasso e, embora se configurem como decisões intermédias entre as de inconstitucionalidade e as de não inconstitucionalidade, a verdade é que assumem sempre uma destas duas formas.
Em sede de fiscalização concreta, o Tribunal tanto tem proferido decisões interpretativas sob a forma de decisões de inconstitucionalidade, como sob a forma de decisões de não inconstitucionalidade. E tem, igualmente, afirmado que, para fazer interpretação conforme à Constituição, lhe compete determinar quais as interpretações que invalidam a norma e quais as que lhe garantem subsistência válida no ordenamento jurídico, julgando, expressa ou implicitamente, algumas interpretações inconstitucionais e outras não inconstitucionais [29].
Assim, nalguns casos, o Tribunal não tem julgado inconstitucional a norma como tal arguida no tribunal a quo, embora não se dispense de ser, ele próprio, a fixar-lhe o seu sentido [30]. Noutros casos, tem julgado não inconstitucional a norma aplicada pelo tribunal recorrido, tal como fora por este último interpretada e aplicada, por considerar que a norma, ainda que com essa interpretação, não violava o disposto na lei fundamental [31].
Mas o Tribunal também já tem julgado como não inconstitucional certa norma, em virtude de a interpretar diferentemente do tribunal a quo, ordenando que este reforme a sua decisão, aplicando a norma com esse outro sentido [32]. E tem, ainda outras vezes, julgado inconstitucional a norma sujeita à sua apreciação na interpretação que lhe foi dada pelo tribunal recorrido [33].
Aliás, já desde o acórdão nº 2/84 o Tribunal tem afirmado que, funcionando como última instância de recurso em questões de constitucionalidade, não pode, por isso, “ser cercado nos seus poderes cognitivos por decisão anterior não transitada em julgado proferida no processo a que o recurso respeita”. Com efeito - “isso equivaleria a negar-lhe a sua finalidade de garante da Constituição em sede de fiscalização concreta”, porquanto “para de decidir da constitucionalidade ou inconstitucionalidade necessariamente se imporá ao Tribunal Constitucional proceder à interpretação da norma cuja inconstitucionalidade se pretende atribuir ou arredar”.
Assinale-se, por último, que o tribunal já entendeu, igualmente, que são para ele recorríveis as decisões proferidas pelos restantes tribunais em que, a coberto de uma interpretação conforme à Constituição, se haja julgado, afinal, a norma inaplicável ao caso concreto. E isto, por considerar que tais situações são, na prática, equiparáveis àquelas em que tenha havido uma pura e simples recusa de aplicação da norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade [34].
Nos processos de fiscalização abstracta, o Tribunal não se confronta com qualquer interpretação da norma anteriormente efectuada por outro tribunal. Por isso, é muitas vezes difícil determinar exactamente quando se está perante uma decisão propriamente interpretativa, na medida que o Tribunal procede sempre, necessariamente, a uma prévia interpretação da norma, para lhe fixar o sentido e alcance, antes de averiguar da sua conformidade com a Constituição.
Todavia, é visível que, em vários casos, o Tribunal tem hesitado entre duas possibilidades que se lhe oferecem, a de proferir uma decisão interpretativa ou a declarar uma inconstitucionalidade parcial, pendendo normalmente para este último tipo de decisões. Esta opção preferencial é ditada, porventura, mais por razões de ordem pragmática do que qualquer motivação de ordem teórica: é que, com efeito, só as declarações de inconstitucionalidade dispõem de força obrigatória geral.
No acórdão nº 244/85, porém o Tribunal não declarou a inconstitucionalidade da norma sujeita à sua apreciação, procedendo antes à sua interpretação conforme à Constituição, interpretação que, aliás, corresponde na prática a uma alteração significativa do sentido literal da mesma norma.
Mas deve assinalar-se que, no caso em apreço, a norma objecto dessa interpretação estabelecia inelegibilidades para as eleições autárquicas e que o Tribunal, apesar de não haver declarado uma inconstitucionalidade com força obrigatória geral, podia garantir – enquanto supremo tribunal em matérias eleitoral – que a interpretação por ele efectuada viria a ser respeitada nos processos que, futuramente, fossem submetidos a julgamento.
b) Decisões de inconstitucionalidade parcial
Como, à face da Constituição portuguesa, o que constitui objecto da fiscalização da constitucionalidade são as normas e não o acto normativo in toto, a maioria das decisões do Tribunal incide apenas sobre alguma ou algumas normas de um acto normativo, correspondendo, por isso, às declarações de inconstitucionalidade parcial existentes noutros ordenamentos jurídicos. Consequentemente, o juízo de inconstitucionalidade total ou de inconstitucionalidade parcial passou a incidir sobre a norma e não sobre o acto normativo, estando-se perante um ou outro caso, consoante a decisão de inconstitucionalidade afecte a totalidade da norma ou apenas uma sua parte.Aliás, o Tribunal – considerando que o juízo de inconstitucionalidade se refere às normas como realidades jurídicas, e não aos preceitos como enunciados linguísticos – não só já admitiu que a parte inconstitucional da norma pode corresponder a um segmento ou secção ideal do preceito [35], como ainda admitiu que é possível distinguir entre inconstitucionalidade parcial horizontal ou quantitativa e inconstitucionalidade parcial ou qualitativa [36].
Segundo o Tribunal vem entendendo, a divisibilidade da norma não tem necessariamente de ser expressa, bastando que tal resulte claramente do diploma em que ela se insere, pelo que é possível distinguir entre os casos de normas com partes nitidamente diferenciadas, traduzidas no enunciado linguístico do preceito que as contém (inconstitucionalidade parcial horizontal), e os casos de normas em que a inconstitucionalidade reside na parte – embora apenas ideal – em que se prevê a respectiva aplicabilidade a certas situações ou categorias (inconstitucionalidade parcial vertical).
Nesta conformidade, são numerosos, os acórdãos do Tribunal em que se decide declarar ou julgar a inconstitucionalidade da norma constante de certa parte (primeira parte, segunda parte, parte final, etc) de um determinado preceito, ou em que se decide declarar ou julgar a inconstitucionalidade de uma norma na parte em que nela se estabelece certa previsão ou estatuição, ou ainda em que se decide declarar ou julgar a inconstitucionalidade de uma norma enquanto aplicável ou na medida em que é aplicável a certas situações ou categorias [37]. Esta diversidade justifica que, muitas vezes, a exacta compreensão da extensão da inconstitucionalidade parcial imponha o conhecimento da fundamentação do respectivo acórdão.
Recentemente, em dois acórdãos sucessivos, o Tribunal decidiu declarar a inconstitucionalidade parcial ratione temporis de certas norma. Em ambos os casos se tratava de normas impugnadas pelo Primeiro – Ministro, por corresponderem a iniciativas legislativas de Deputados e implicarem aumento das despesas previstas no Orçamento do Estado. O Tribunal, considerando que a lei fundamental só proíbe aos Deputados iniciativas legislativas que envolvam aumento de despesas no ano económico em curso, e não em anos económicos seguintes, declarou a inconstitucionalidade das normas em causa, mas apenas na medida em que eram aplicáveis naquele ano económico [38].
c) Decisões de mero “reconhecimento” da inconstitucionalidade
Tendo em atenção, mais que não fosse, o regime constitucional dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, não parece possível admitir, em Portugal, a existência, nos processos de fiscalização da inconstitucionalidade por acção, de decisões de mero reconhecimento da inconstitucionalidade, ou seja, de decisões em que o Tribunal se limite a verificar a ocorrência da inconstitucionalidade, sem retirar dessa decisão a lógica consequência da expurgação da norma do ordenamento jurídico.Quanto à fiscalização abstracta sucessiva. O art. 282º da Constituição permite que, a título excepcional, e verificados certos pressupostos, o Tribunal restrinja os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral; mas já não prevê que o Tribunal possa, pura e simplesmente, desprover essa declaração de qualquer efeito.
Quanto à fiscalização concreta, não está sequer prevista a possibilidade de se limitarem os efeitos do juízo de inconstitucionalidade, pelo que a não aplicação ao caso concreto da norma julgada inconstitucional é unanimemente entendida como uma consequência automática e directa da formulação daquele juízo. Por isso, na fiscalização concreta, o Tribunal acaba sempre por confirmar ou revogar (mandando reformar) a decisão recorrida, muito embora possa acontecer nalguns casos que, sendo a decisão do Tribunal restrita à questão de inconstitucionalidade, esta decisão, embora contrária à tomada no tribunal a quo, não venha a ter qualquer reflexo prático na decisão da questão principal [39].
Já na fiscalização da inconstitucionalidade por omissão a questão se põe de forma de mero reconhecimento.
Com efeito, aí a regra parece ser exactamente a de só poderem existir decisões desse tipo, porquanto, nos termos da lei fundamental, o Tribunal tão só “aprecia e verifica o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais”, cabendo-lhe apenas, quando verificar a existência de inconstitucionalidade, dar disso “conhecimento aos órgãos legislativos competentes” [40].
Nestes termos, a decisão de inconstitucionalidade por omissão é meramente declarativa ou verificativa, pois o Tribunal não pode criar as normas em falta, e nem sequer se pode pronunciar sobre o modo como a omissão legislativa pode ou deve ser superada.
Assim sendo, parece dever qualificar-se, quanto ao seu conteúdo, este tipo de decisões como decisões de mero reconhecimento, muito embora surjam num contexto manifestamente diferente daquele em que o conceito é habitualmente usado noutros ordenamentos. Mais problemática se afigura a questão de saber se o Tribunal poderia, neste domínio, adoptar qualquer decisão intermédia, como, por exemplo, “não verificar a existência actual da inconstitucionalidade por omissão, embora esteja em vias de existir”, o que pressuporia que o Tribunal dispunha de competência para apreciar a questão do tempo ou da oportunidade das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais.
b) Decisões apelativas ou de delegação
Não parece que sejam admissíveis, no sistema português, as denominadas decisões apelativas ou de delegação. E isto, tanto no que se refere àquelas em que, sob forma de uma decisão de não inconstitucionalidade, o Tribunal diagnostica ou prognostica a existência de uma inconstitucionalidade mas reenvia o texto ao legislador para que este, num certo prazo, proceda à abrogação ou modificação das normas duvidosas, como àquelas em que o Tribunal, sob forma de uma decisão de inconstitucionalidade, enuncia também uma série de princípios que uma nova lei com o mesmo objecto deve conter para se conformar com a Constituição, como ainda àquelas em que o Tribunal se permite emitir, ele mesmo, normação provisória para substituir a declarada inconstitucional.Muito embora a necessidade ou razão de ser de tais decisões no ordenamento jurídico português possa ser idêntica à que se verifica, por exemplo, nos ordenamentos alemão e italiano, a verdade é que o Tribunal não só nunca emitiu qualquer decisão desse tipo, como já afirmou, a propósito da eventualidade da restrição de efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, que “em todo o caso, se porventura a declaração de inconstitucionalidade viesse a implicar a necessidade de qualquer providência normativa, incumbirá naturalmente ao legislador (que não ao Tribunal) adoptá-la” [41].
Esta posição jurisprudencial conta com o suporte da grande maioria da doutrina portuguesa, a qual entende que, exercendo o Tribunal uma função de fiscalização, de carácter essencialmente negativo, tem de limitar-se, sob pena de usurpação de poder e de violação da regra das funções constitucionais, a expurgar do ordenamento as normas que declarar inconstitucionais, não podendo substituir-se ao legislador na emissão das normas que devam preencher as lacunas daí resultantes.
2.3. Decisões integrativas e substitutivas
Apesar de nunca aceitar substituir-se ao legislador, o Tribunal já proferiu, pelo menos em dois casos, decisões que, sob certo ponto de vista, tem um certo conteúdo “normativo”, muito embora, aparentemente, se configurem como meras decisões de inconstitucionalidade parcial.No primeiro caso, em sede de fiscalização abstracta sucessiva, fora pedida a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do Estatuto da Ordem dos Advogados que determinava a incompatibilidade do exercício da advocacia com a actividade como funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos, com excepção dos docentes das disciplinas de Direito, mas apenas nesta última parte.
O Tribunal – depois de delimitar o âmbito do pedido e de interpretar a norma questionada quanto à sua estrutura e alcance – acabaria por declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da mesma norma “na parte em que considera incompatível com o exercício da advocacia a função docente de disciplina que não sejam de Direito”, por violação do princípio da igualdade [42]. Ora, apesar de a decisão assumir a forma de uma declaração de inconstitucionalidade parcial, a verdade é que o seu efeito prático é o de alargar a excepção contida na parte final da norma (única parte, aliás, cuja declaração de inconstitucionalidade fora pedida), que passa a abranger todos os docentes, leccionem ou não disciplinas de Direito.
No segundo caso, em sede de fiscalização concreta, o Tribunal tinha de apreciar a eventual inconstitucionalidade da norma que determinava que certas pensões por acidente de trabalho ou doença profissional fossem actualizadas com base em diferentes disposições legais, consoante tivessem sido fixadas antes ou depois de certa data, donde resultava que a actualização das primeiras fosse quantitativamente inferior.
O Tribunal viria a julgar inconstitucional a norma em causa na parte em que manda aplicar a disposição menos favorável aos beneficiários de pensões fixadas antes da data limite, por violação do princípio da igualdade [43]. Tal decisão corresponde, na prática, a alargar o âmbito de aplicação do regime mais favorável aos pensionistas que beneficiavam do regime menos favorável, sendo certo que, ao menos implicitamente, se terá reconhecido que a solução adoptada era a única que permitia evitar grandes iniquidades, salvaguardando o respeito pelo principio da igualdade.
Em ambos os casos acabados de relatar, o Tribunal proferiu verdadeiras decisões integrativas (ou se se preferir, acumulativas ou aditivas), na medida em que o respectivo efeito consiste na “emissão de uma norma” que estende a aplicação de certa regulamentação explicitamente resultante de uma dada disposição a hipótese nela não previstas.
È sabido que a admissibilidade deste tipo de decisões, bem como das denominadas decisões substitutivas – ou seja, daquelas em que o Tribunal indica qual a norma que deve substituir a contida no texto legal, para que o princípio constitucional violado passe a ser respeitado – é muito discutida pela doutrina. Em Portugal, não se pode, apesar de tudo, considerar a jurisprudência como muito significativa, porquanto apenas se conhecem essas duas decisões integrativas, e ambas fundadas no respeito pelo princípio da igualdade.
3. Vinculatividade das decisões
3.1. Aspectos gerais
À semelhança das decisões dos restantes tribunais, todas as decisões do Tribunal Constitucional, quer as decisões de inconstitucionalidade quer as decisões de não inconstitucionalidade, têm a força de caso julgado formal, isto é, precludem a possibilidade de a questão por elas resolvida vir a ser resposta, de qualquer forma no mesmo processo.Para além disso, as decisões do Tribunal Constitucional não só são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades [44], como prevalecem, ainda, sobre as decisões dos restantes tribunais [45].
A concreta determinação, porém, de qual seja a extensão da força obrigatória das decisões do Tribunal, bem como dos respectivos destinatários, varia em função de cada tipo de fiscalização da constitucionalidade, como melhor veremos.
3.2. Vinculatividade das decisões na fiscalização preventiva
Na fiscalização preventiva, as decisões de inconstitucionalidade vinculam o Presidente da República ou o Ministro da República, consoante os caso, a vetar o diploma, desenvolvendo-o ao órgão que o tiver aprovado [46].Este pode – salvo, porém, no caso de tratados internacionais, em que, obviamente, a hipótese não tem aplicação – expurgar as normas julgadas inconstitucionais, tornando, assim, possível a promulgação ou assinatura [47].
A Constituição prevê, todavia, que a promulgação ou assinatura possam ainda ocorrer no caso de o diploma ser confirmado por “maioria de dois terços dos Deputados presentes” [48]. Sendo claro que o Governo não dispõe deste poder de confirmação, nem por isso se deixam de suscitar dúvidas no tocante a saber se tal poder é exclusivo da Assembleia da República ou se, pelo contrário, dele gozam igualmente as assembleias das regiões autónomas.
O Tribunal ainda não teve que enfrentar esta questão, cuja resolução não se afigura líquida. Com efeito se o teor literal e a história do preceito podem inculcar uma resposta positiva à última questão, a verdade é que não deixaria de ser estranho que o Ministro da República, ao assinar o diploma, pudesse arbitrar em benefício da assembleia regional um conflito entre esta última, que não é órgão de soberania, e o Tribunal Constitucional, que não só é órgão de soberania, como é o órgão de soberania competente para proceder à fiscalização da constitucionalidade.
Saliente-se ainda que, mesmo quando o diploma tenha sido confirmado nos termos constitucionais, nem por isso o Presidente da República (ou o Ministro da República, caso assim se entenda) se encontra obrigado a promulgar ou assinar o diploma. Na verdade, em tais caso, a promulgação ou assinatura constituem uma mera facultada, e não um acto vinculado.
Quanto às decisões de não inconstitucionalidade proferidas em sede de fiscalização preventiva, há que assinalar, em primeiro lugar, que elas impedem o Presidente da República ou o Ministro da República de exercerem o veto por inconstitucionalidade, constituindo-os na obrigação de, dentro dos prazos constitucionalmente estabelecidos, promulgarem ou assinarem o diploma, ou exercerem o veto político, cujas consequências são, aliás, diferentes das do veto por inconstitucionalidade [49].
Tais decisões, todavia, não precludem a possibilidade de nova apreciação judicial da constitucionalidade da norma, em sede de fiscalização sucessiva, conforme o tribunal já teve ocasião de afirmar [50].
3.3. Vinculatividade das decisões na fiscalização abstracta sucessiva
Nos termos do preceituado no art. 281º da Constituição, as declarações de inconstitucionalidade proferidas em sede de fiscalização abstracta sucessiva gozam de força obrigatória geral.Esta força obrigatória geral não pode deixar de significar que a expurgação da norma do ordenamento jurídico, assim decidida pelo Tribunal, vincula directa e automaticamente todas as entidades públicas e privadas, incluindo os restantes tribunais, sem necessidade de qualquer outro acto jurídico mediador, designadamente de natureza legislativa.
Nestes termos, se porventura uma norma for declarada inconstitucional com força obrigatória geral, sem qualquer restrição de efeitos, todos os processos e recursos de inconstitucionalidade pendentes devem ser decididos em conformidade com a declaração de inconstitucionalidade, tal como se entendeu, por exemplo, nos acórdãos nºs 27/86 e 28/86.
Já, pelo contrário, as decisões de não inconstitucionalidade apenas fazem caso julgado formal, porquanto nem sequer têm força de caso julgado material, na medida em que não impedem que o mesmo requerente volte a solicitar ao Tribunal a apreciação da constitucionalidade da norma anteriormente não declarada inconstitucional.
Com efeito, o Tribunal tem afirmado sem equívoco que “as únicas decisões capazes de precludirem a possibilidade de nova apreciação judicial da constitucionalidade de uma norma são as que, sendo proferidas em sede de fiscalização abstracta sucessiva, declaram a sua inconstitucionalidade” [51] e que “no caso de acórdãos que não se pronunciem pela inconstitucionalidade, o Tribunal não fica impedido de voltar a pronunciar-se sobre a mesma matéria, quer o acórdão tenha sido produzido em fiscalização preventiva, quer também o tenha sido em fiscalização sucessiva” [52].
Tais afirmações assentam na convicção de que tal “decorre directamente da natureza do controlo da constitucionalidade, que consiste em apreciar e declarar (ou não) a inconstitucionalidade, e não em declarar a constitucionalidade”, e de que, por isso, as únicas decisões do Tribunal “em matéria de controlo da constitucionalidade que impedem que a questão venha a ser novamente apreciada são as que, em fiscalização sucessiva abstracta, declarem a inconstitucionalidade; mas aí pela simples razão de que então as normas deixam de vigorar, desaparecendo portando a possibilidade de virem a ser de novo fiscalizadas”.
Mais duvidosa se afigura a questão de saber se, face a uma decisão de não inconstitucionalidade, em fiscalização abstracta sucessiva, não ficarão, pelo menos, as autoridades públicas, salvo os tribunais, vinculadas a aplicar a norma – e isto, mesmo que se entenda que, em certos caso, lhes é legítimo desaplicar normas com fundamento na respectiva inconstitucionalidade.
3.4. Vinculatividade das decisões na fiscalização concreta
Em fiscalização concreta, a decisão do Tribunal Constitucional faz caso julgado no processo quanto à questão de inconstitucionalidade suscitada [53].Assim, se a decisão for de inconstitucionalidade, não pode a norma ser aplicada no processo em causa, quer pelo tribunal a quo, quer por qualquer outro tribunal que o venha ainda a apreciar. Se, pelo contrário, a decisão for de não inconstitucionalidade, não pode a norma deixar de ser aplicada no processo, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Em qualquer caso, porém, a vinculatividade da decisão é restrita ao processo em que tenha sido proferida. Fora dele, por isso, não faz sequer caso julgado inter partes; e muito menos vincula o Tribunal quanto às decisões que haja de proferir, futuramente, sobre questões idênticas, em fiscalização concreta ou em fiscalização abstracta.
Todavia, as decisões de inconstitucionalidade proferidas em fiscalização concreta não são totalmente desprovidas de qualquer reflexo, fora do processo em causa.
Efectivamente, por um lado, a decisão de inconstitucionalidade de uma norma constitui o Ministério Público na obrigação de interpor recurso para o Tribunal Constitucional sempre que ela venha a ser aplicada em qualquer outro processo [54]. E, por outro lado, sempre que uma norma haja sido julgada inconstitucional pelo Tribunal em três caso concretos, pode qualquer dos seus juízes ou o Ministério Público promover a apreciação da mesma norma em sede de fiscalização abstracta sucessiva, para efeito de declaração da sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral [55].
3.5. Vinculatividade das decisões na fiscalização da inconstitucionalidade por omissão
Em sede de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, as decisões do Tribunal são meramente verificativas, conforme já se referiu.Assim, mesmo as decisões de inconstitucionalidade são desprovidas de qualquer efeito vinculativo. É bem verdade que, em tais casos, se pode dizer que o legislador se encontra vinculado a legislar; mas, de facto, tal vinculação resulta directamente da imposição constitucional para o efeito, e não da decisão do Tribunal, a qual não desencadeia, ipso facto, qualquer processo legislativo.
4. Eficácia Temporal das Decisões
4.1. Âmbito da questão
A questão da eficácia temporal das decisões do Tribunal apenas é relevante nas decisões de inconstitucionalidade proferidas em fiscalização abstracta sucessiva.È que, por definição, o problema não se levanta nem a fiscalização preventiva nem na fiscalização da inconstitucionalidade por omissão. Quanto à fiscalização concreta, o juízo de inconstitucionalidade repercute-se somente no caso dos autos e, nos termos da Constituição e da lei, o Tribunal não dispõe aí de competência para restringir os efeitos submetidos a julgamento, nenhum tribunal possa aplicar normas inconstitucionais, pelo que se compreende que, uma vez julgada a norma inconstitucional, a sua não aplicação ao caso concreto constitua uma consequência automática e directa daquele juízo.
A eficácia temporal das declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral – ou seja, das decisões de inconstitucionalidade proferidas em sede de fiscalização abstracta sucessiva – encontra-se expressamente prevista, em termos algo complexos, no art. 282º da Constituição. Resulta deste artigo que, antes de mais, há que distinguir entre os efeitos gerais normais e a ampliação ou restrição de efeitos que o Tribunal pode efectuar.
Até ao momento, o Tribunal proferiu trinta e cinco acórdãos de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, sendo um em 1983, oito em 1984, sete em 1985 e dezanove em 1986. Deste total de trinta e cinco acórdãos, o Tribunal procedeu à restrição de efeitos em nove – um em 1983, dois em 1984, três em 1985 e três em 1986; como, no entanto, noutros dois declarou inconstitucionalidades parciais ratione temporis [56], pode concluir-se que acabaram por ter efeitos restritos quase um terço das declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
4.2. Efeitos gerais normais
a) Eficácia “ex tunc” e repristinação
A declaração de inconstitucionalidade tem carácter declarativo efeitos ex tunc, isto é desde a origem da inconstitucionalidade.Se se tratar de inconstitucionalidade originária, a declaração de inconstitucionalidade “produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado” [57].
Se se tratar de inconstitucionalidade superveniente, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor da norma constitucional infringida [58]. E, por isso, nunca provoca a repristinação.
O carácter retroactivo – ou melhor, ex tunc – da declaração de inconstitucionalidade determina que haja, em muitos casos, interesse jurídico relevante na apreciação e declaração da inconstitucionalidade de normas entretanto já revogadas. Na verdade, já se entendeu que ele podia estar na repristinação das normas por sua vez revogadas pelas normas inconstitucionais e, de todo o modo, a não existir a declaração de inconstitucionalidade, sempre as normas inconstitucionais poderiam ser aplicadas às situações jurídicas anteriores à sua revogação [59].
A repristinação só ocorre quando a inconstitucionalidade seja originária, e obviamente apenas na medida em que a norma declarada inconstitucional tiver revogado alguma norma anterior. Mas é um efeito de produção automática, pelo que não tem de ser decidido expressamente pelo Tribunal, nem tão-pouco este tem de declarar quais sejam as normas repristinadas.
O Tribunal já se pronunciou inequivocamente no sentido de que pode restringir os efeitos da repristinação, e assim o fez, em matéria penal, para evitar a aplicação das normas repristinadas durante o período de vigência das normas declaradas inconstitucionais [60]. Todavia, ainda não se pronunciou especialmente sobre a questão de saber se pode conhecer da eventual inconstitucionalidade das normas repristinadas, quer para o efeito de declarar essa inconstitucionalidade, quer apenas para restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade em termos de, em tal caso, impedir a repristinação.
b) Ressalva dos casos julgados e situações jurídicas consolidadas
A Constituição consagra expressamente a ressalva dos casos julgados [61], como excepção à eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade, operando essa ressalva autónoma e automaticamente, sem necessidade de declaração explícita, caso a caso, por parte do Tribunal.A regra da eficácia ex tunc é assim, delimitada negativamente pelo princípio da intangibilidade do caso julgado, pelo que as decisões judiciais já transitadas que hajam aplicado a norma declarada inconstitucional não são objecto de revisão, em consequência dessa declaração.
O conceito de caso julgado não se encontra constitucionalmente definido, pelo que se suscitam dúvidas, desde logo, sobre a questão de saber se ele abrange tão-só o caso julgado judicial ou também o denominado caso julgado administrativo, isto é, aquelas decisões administrativas que se consolidaram definitivamente, por já não serem juridicamente susceptíveis de impugnação contenciosa. E mais problemática ainda é a extensibilidade da ressalva a outras situações jurídicas consolidadas, v.g., por prescrição, caducidade ou cumprimento da obrigação.
Se a doutrina nacional não é uniforme na resposta dada a estas diversas questões, a verdade é que a jurisprudência do Tribunal também não é muito esclarecedora.
Com efeito, nesta matéria, a posição do Tribunal tem sido, essencialmente, a de assumir uma jurisprudência de cautelas, feita em função da possibilidade de restringir os efeitos ex tunc da declaração de inconstitucionalidade. E se, em certos casos, tendo em conta os efeitos restringidos, o Tribunal parece ter entendido que a ressalva dos casos julgados não abrangia, pelo menos, todas as situações jurídicas consolidadas, a verdade é que esses casos não são determinantes para definir uma jurisprudência clara e uniforme.
Assim, por exemplo, no acórdão nº 142/85, quando, a certo momento, tinha de ser pronunciar sobre as consequências a extrair de uma declaração de inconstitucionalidade proferida ainda pelo Conselho da Revolução, não foi sem dúvidas que o Tribunal partiu do princípio de que no direito português a eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade de uma norma se traduzia na ineficácia, também retroactiva, dos actos praticados à sua sombra, ou seja, na respectiva invalidade sucessiva.
Todavia, o Tribunal reconheceu que esse resultado estava na lógica da declaração de invalidade da norma, isto é do reconhecimento da sua inconstitucionalidade com efeitos ex tunc, porquanto, com tal invalidação, aqueles actos deixavam de ter fundamento legal desde o momento em que ela operava. Mas logo acrescentou que “podendo a invalidação de actos administrativos, em consequência da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que lhes serviu de fundamento, ocorrer a todo o tempo, é logo extremamente duvidoso” que devam transpor-se para aí os aspectos do regime de invalidação que têm de fazer-se funcionar em prazo limitado, como é o caso do recurso contencioso de anulação; por isso, não considerou atingidas pela referida declaração de inconstitucionalidade certas situações já insusceptíveis de serem atacadas contenciosamente.
Já no acórdão nº 80/86 se entendeu de forma mais afirmativa que “sendo a norma nula desde a origem, por força de inconstitucionalidade, tornam-se igualmente inválidos não somente os efeitos directamente produzidos por ele (e daí a reposição em vigor de normas que haja revogado), mas também os actos jurídicos praticados ao seu abrigo (actos administrativos, negócios jurídicos, etc.)”. Todavia, quando se restringiram os efeitos da declaração de inconstitucionalidade – no caso, para salvaguardar remunerações entretanto percebidas por funcionários – sublinhou-se que se podia sustentar que, “mesmo na ausência dessa restrição, aqueles direitos sempre seriam salvaguardados”.
Todavia, da análise dos acórdãos em que se pronunciou sobre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade resulta que, muito embora propendendo claramente no sentido de a declaração de inconstitucionalidade afectar, em regra geral, a validade dos actos praticados ao abrigo da norma inconstitucional, o Tribunal não extrai tão facilmente igual conclusão no que se refere, por exemplo, aos actos administrativos constitutivos de direitos já insusceptíveis de impugnação contenciosa.
E o mesmo se diga das decisões em que se procedeu à restrição de efeitos, porquanto o que delas se pode concluir a contrario sensu, e para além da já referida regra geral da invalidação sucessiva dos actos entretanto praticados , é que o Tribunal, pelo menos, não considera como automaticamente ressalvadas as situações decorrentes do cumprimento voluntário da obrigação.
De facto, na grande maioria dos casos, o Tribunal ou ressalvou todos os efeitos produzidos, não procedendo a qualquer distinção ou limitou-se a restringir a eficácia da declaração de modo a ressalvar essas situações; pelo contrário, só muito excepcionalmente restringiu a eficácia da declaração de forma a serem ressalvadas outras situações jurídicas presumivelmente já consolidadas.
4.3. Ampliação e restrição dos efeitos da inconstitucionalidade
A Constituição prevê que o Tribunal possa, em certos casos, e dentro de certos limites, afastar a regra da ressalva dos casos julgados, “quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido” [62]. Em tais hipóteses, portanto, fica à discricionaridade do Tribunal decidir se a declaração de inconstitucionalidade da norma implica a revisão das sentenças ou decisões condenatórias que a hajam aplicado, em homenagem ao princípio do tratamento mais favorável do arguido; mas esta consequência há-de ser expressamente determinada pelo Tribunal – o que ainda não aconteceu – aquando da decisão de inconstitucionalidade, não operando, pois, ipso jure.Por outro lado, o Tribunal pode restringir os efeitos gerais normais da declaração de inconstitucionalidade, “quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem” [63].
Esta faculdade de restrição de efeitos, tem-na o Tribunal entendido como permitindo-lhe protelar o início da produção de todos ou de parte dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, bem como afastar total ou parcialmente a repristinação, ainda que ratione temporis.
Quanto ao protelamento do início da produção de efeitos, a doutrina maioritária inclina-se no sentido de o Tribunal poder protrair esse início ao ponto de determinar a mera eficácia ex nunc da declaração de inconstitucionalidade, mas de já não poder, em contrapartida, determinar a manutenção provisória em vigor da norma declarada inconstitucional, fixando um prazo para a sua cessação de vigência. E o Tribunal, na verdade, nunca ousou ir tão longe, muito embora já tenha, mais de uma vez, declarado “ a inconstitucionalidade com efeitos ex nunc ou, mais precisamente, com efeitos a partir da publicação” do acórdão [64].
No acórdão nº 272/86, sintetizando-se anterior jurisprudência do Tribunal, reconheceu-se que “a restrição dos efeitos é susceptível de comportar uma mera referência temporal (durante o período de tempo ressalvado, é mantido o influxo da norma inconstitucionalizada sobre todas as situações jurídicas com ela conexionadas) ou envolver ainda uma indicação categorizada (a cristalização do influxo da norma, em tal período, abarcará só algumas dessas situações)”.
Em várias decisões, o Tribunal limitou materialmente a restrição da eficácia temporal da decisão, de forma a salvaguardar apenas certas situações entretanto constituídas [65]. Na maioria dos casos, tratou-se tão-só de evitar que a declaração inconstitucionalidade com eficácia ex tunc pudesse pôr em causa obrigações já cumpridas, por aplicação do princípio geral da repetição do indevido.
No acórdão nº 56/84, o Tribunal restringiu os efeitos repristinatórios da declaração de inconstitucionalidade de certas normas que qualificavam e puniam determinados actos ilícitos de forma mais favorável aos arguidos, de forma a evitar que pudessem ser punidos pela legislação menos favorável aqueles que tivessem praticados os actos entre a data da entrada em vigor da legislação mais favorável e a data da sua cessação de vigência. Houve, assim, uma mera restrição parcial, ratione temporis, da eficácia repristinatória da declaração de inconstitucionalidade, em obediência ao princípio do tratamento mais favorável do arguido .
Quanto às razões ou pressupostos da restrição, seis acórdãos em que se operou essa restrição fundam-se na segurança jurídica, enquanto dois invocam razões de interesse público de excepcional relevo e apenas um faz apelo a razões de equidade.
A propósito da restrição de efeitos com fundamento em razões de segurança jurídica, o acórdão nº 272/86 salienta que “ao declarar a inconstitucionalidade de uma norma com força obrigatória geral, o Tribunal Constitucional contribui para o reequilíbrio do sistema jurídico. Mas, ao mesmo tempo, e quase paradoxalmente, há que reconhecê-lo, o exercício dessa mesma competência constitui um factor de incerteza e insegurança do direito”, pelos reflexos que provoca sobre as relações jurídicas que nasceram, evoluíram ou se extinguiram à sombra da norma declarada inconstitucional. Nessa ordem de ideias, a limitação de efeitos surgiria como um meio de atenuar os riscos de incerteza e insegurança consequentes à declaração de inconstitucionalidade, muito embora não devesse ser tanto na perspectiva da “segurança do direito em si mesmo”, mas antes da “segurança através do direito” que haveria de se interpretar o art. 282º, nº 4, pelo que não bastaria para justificar a limitação de efeitos que a declaração de inconstitucionalidade envolvesse uma certa incerteza para o mundo do direito e para a vida social dele dependente, sendo necessário, pelo contrário, que existisse uma investida de grau elevado contra a segurança jurídica.
Assinale-se que sempre que a restrição de efeitos se funda em interesse público de excepcional relevo – o que pressupõe, necessariamente, a formulação de um juízo político e já não estritamente jurídico – tem o Tribunal de fundamentar essa sua decisão.
Problemática é a questão de saber – como tem sido sustentado em várias declarações de voto – se a restrição de efeitos tem natureza manifestamente excepcional e, por isso, as razões que a justificam não são susceptíveis de qualquer interpretação extensiva; e se, pelos mesmos motivos, não é admissível a restrição dos efeitos quando a inconstitucionalidade seja flagrante.
5. Os poderes dos órgãos da Justiça Constitucional na determinação
do conteúdo e efeitos das suas decisões
5.1. Pré-determinação constitucional ou legal e autonomia do Tribunal
Apesar dos desenvolvimentos naturalmente introduzidos pela jurisprudência do tribunal, a verdade é que a Constituição e a lei regulam a matéria respeitante ao conteúdo e efeitos das decisões do Tribunal Constitucional de forma assaz mais minuciosa do que o que acontece noutros ordenamentos jurídicos.Com efeito, e como vimos, não foi necessário qualquer criação jurisprudencial para, designadamente, se concluir no sentido de que o objecto de fiscalização da constitucionalidade são as normas jurídicas e não os diplomas que as contêm; se admitir a existência de decisões interpretativas na fiscalização concreta; se reconhecer a eficácia erga omnes das declarações de inconstitucionalidade proferidas em fiscalização abstracta sucessiva; se atribuir, em princípio, eficácia ex tunc e repristinatória a essas declarações de inconstitucionalidade; se distinguir a inconstitucionalidade originária da inconstitucionalidade superveniente; e, finalmente, se conceder ao Tribunal Constitucional a faculdade de, em certos casos, modelar a eficácia temporal das suas decisões .
Mas pelo contrário, já foi através de desenvolvimento jurisprudencial, muitas vezes baseado na experiência de Tribunais Constitucionais estrangeiros, que, por exemplo, se desenhou o tipo de inconstitucionalidade parcial e, dentro desta, se destacaram os sub-tipos da inconstitucionalidade parcial horizontal e da inconstitucionalidade parcial ratione temporis de certas normas; se alargou a figura da decisão interpretativa à fiscalização abstracta; se fez uso de decisões integrativas; se procedeu, nalguns casos, à limitação da eficácia repristinatória; e, por último, se concretizaram os contornos dos pressupostos da limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade.
5.2. O âmbito, os limites e o significado dos poderes do Tribunal constitucional
a) Face ao poder legislativo
Relativamente ao poder legislativo, cumpre reafirmar, em primeiro lugar, que todos os tribunais podem e devem recusar a aplicação das normas que julguem inconstitucionais.Todavia, o Tribunal Constitucional dispõe, em particular, de amplíssimos poderes relativamente ao poder legislativo, poderes que são especialmente significativos no que se refere à fiscalização preventiva e à fiscalização abstracta sucessiva.
Assim, recorde-se que o Tribunal pode impedir a promulgação ou assinatura de qualquer diploma legislativo, desde que se pronuncie pela inconstitucionalidade de qualquer das suas normas, e que o próprio Parlamento, conquanto lhe seja legítimo confirmar o diploma por maioria qualificada de dois terços, não pode, em tal caso, impor ao Presidente da República a sua promulgação. Mais, ainda que essa promulgação se verifique, tal não preclude a possibilidade de o Tribunal vir a posteriori a declarar norma constante do diploma em causa.
Assinale-se, ainda, que a fiscalização preventiva envolve, muitas vezes, uma particular delicadeza no que se refere às relações entre o Tribunal e o poder legislativo, porquanto se efectua num momento que se encontra muito presente o debate político sobre a matéria a que respeitam as normas sujeitas à apreciação do Tribunal.
Mas os poderes do Tribunal são ainda mais vastos em sede de fiscalização abstracta sucessiva, não só porque pode declarar a inconstitucionalidade de qualquer norma com força obrigatória geral, mas também porque dispões, como se viu, de amplíssimos poderes no que se refere à fixação dos efeitos das respectivas decisões.
No entanto, ao Tribunal só compete apreciar a questão da inconstitucionalidade, estando-lhe vedado dar indicações ao legislador sobre o sentido e a forma como deve legislar ou o momento em que lhe cabe fazê-lo; e tão-pouco lhe compete pronunciar-se sobre a forma de preenchimento das lacunas que eventualmente resultem do seu juízo de inconstitucionalidade. Aliás, mesmo quando haja verificado a existência de inconstitucionalidade por omissão, o Tribunal não dispõe de poderes para desencadear ou ordenar o desencadeamento do processo legislativo ou para sugerir ao legislador o conteúdo das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais.
b) Face aos tribunais em geral
As decisões do Tribunal Constitucional prevalecem sobre as de todos os outros tribunais, pelo que há-de ser considerado o órgão de topo da hierarquia dos tribunais.Aliás, cabe-lhe em exclusivo determinar quais as concretas matérias da sua competência – ou seja, delimitar em cada caso concreto a sua competência face à dos restantes tribunais, os quais, também aí, têm de acatar as decisões do Tribunal Constitucional [66].
A expressão mais evidente da prevalência das decisões do Tribunal Constitucional encontra-se na fiscalização concreta, não só na medida em que se lhe confere a faculdade de confirmar ou revogar as decisões proferidas por qualquer outro tribunal, mas também enquanto se lhe atribui o poder de fixar a interpretação com que certa norma há-de ser aplicada no processo em causa.
E também não se deve deixar de assinalar que as decisões dos restantes tribunais em matéria de inconstitucionalidade são sempre susceptíveis de recurso para o Tribunal Constitucional, recurso que, em muitos casos, é obrigatório para o Ministério Público.
Mas igualmente significativo é o poder – aliás, já exercido – de declarar a inconstitucionalidade de Assentos, isto é, de decisões do Supremo Tribunal de Justiça em que, com força obrigatória geral, se uniformiza a jurisprudência, fixando-se a interpretação autêntica de determinada norma.
Finalmente, não se pode ignorar que, apesar de uma certa desconfiança com que foi recebido por uma parte da magistratura judicial, a verdade é que a jurisprudência do Tribunal tem tendência a impor-se na prática, por via de precedente, ainda quando as suas decisões não dispõem de força obrigatória geral. Isto, todavia, não invalida que, designadamente, as decisões de não inconstitucionalidade proferidas em fiscalização abstracta sucessiva não vinculem os restantes tribunais, os quais continuam a julgar com inteira liberdade as questões de inconstitucionalidade nelas tratadas.
c) Face aos tribunais internacionais ou supranacionais
Não existe, até ao momento, qualquer experiência relativamente às relações entre o Tribunal Constitucional e os tribunais internacionais ou supranacionais, designadamente no que se refere a eventuais conflitos de competência ou colisão de jurisprudência.Todavia, no caso de o Tribunal se vir a considerar competente para conhecer da desconformidade das normas internas com tratados internacionais em matéria de Direitos do Homem, não é de excluir que se possa verificar uma eventual divergência entre a jurisprudência do Tribunal Constitucional e a do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. A questão, porém, ainda se não colocou e, caso venha a ser colocada, não é claro qual o meio de a superar.
Também não se verificou até ao momento qualquer caso em que o Tribunal tivesse de pronunciar-se sobre a questão de saber se lhe compete apreciar da conformidade das normas internas com os tratados constitutivos das Comunidades Europeias ou com as normas emanadas dos respectivos órgãos competentes que devam vigorar directamente na ordem jurídica portuguesa, bem como da conformidade destas últimas normas com a Constituição [67].