ACÓRDÃO Nº 885/2022
Processo n.º 959/2022
2.ª Secção
Relator: Conselheiro António José da Ascensão Ramos
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), «para declaração da inconstitucionalidade, do artigo 417º, 8 do CPP, na interpretação feita Acórdão no sentido de não ser possível a Reclamação para a Conferência, por tal interpretação constituir violação do 20º CRP.» (cf. fls. 28).
Em concreto, em 8 de junho de 2022, o Tribunal da Relação do Porto decidiu indeferir a reclamação da decisão sumária do mesmo Tribunal que, em 20 de abril de 2022, negou provimento ao recurso apresentado pela recorrente sobre o despacho de não admissão da abertura de instrução (cf. fls. 6-14).
2. Por decisão datada de 28 de junho de 2022, não se admitiu tal recurso, com os seguintes fundamentos, (cf. fls. 29-30):
«(…)
A assistente A. veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, alegando que o faz ao abrigo do disposto no artº 70º nº 1 al. a) da LTC, da interpretação feita no acórdão recorrido do artº 417º nº 8 do CPP, no sentido de não ser possível a reclamação para a conferência.
Dispõe o artº 70º nº 1 al. a) da LTC que "cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
Como esclarece Lopes do Rego "são dois os pressupostos de admissibilidade deste tipo de recurso: que a decisão recorrida haja recusado efetivamente a aplicação de certa norma ou interpretação normativa, relevante para a dirimição do caso e que tal desaplicação normativa se funde num juízo de inconstitucionalidade do regime jurídico nela estabelecido”.
Ora, como se verifica da simples leitura da decisão recorrida, proferida em 08.06.2022, este tribunal não recusou a aplicação de qualquer norma, muito menos com fundamento em inconstitucionalidade. Com efeito, até considerámos ser de apreciar a reclamação para a conferência ainda que o reclamante não tivesse invocado razões específicas para contrariar o sentido da decisão.
E, por isso, sobre a questão apreciada na decisão sumária, recaiu acórdão proferido em conferência, devidamente subscrito pela relatora, o Sr. Juiz Adjunto e o Sr. Presidente da Secção.
Não se verificando os pressupostos de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, carece o mesmo de objeto, sendo por isso inadmissível.
Pelo exposto, não se admite o recurso interposto para o Tribunal Constitucional – artº. 76º nºs 1 e 2 da LTC.».
3. Notificada de tal decisão, reclamou a então recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 76.º, n.º 4, da LTC, argumentando o seguinte (cf. fls. 32):
«A., Recorrente nos Autos em referência, tendo sido notificada do despacho nº 15888671 não pelo qual se admitiu o Recurso para esse Tribunal, vem do mesmo, e nos termos do artº 643º do CPC
RECLAMAR
Da Retenção do Recurso já identificado, atendendo-se às sumárias razões
doravante expostas
1º
De facto, no modesto entender da ora peticionante, o Recurso interposto, é-o à luz do preceituado na LTC, mormente, o artigo 75º A da mesma lei, mormente no que a diz respeito a decisões surpresa, onde,
2º
A prévia invocação da inconstitucionalidade é dispensada.
Atentas as razões de Direito supra, sem prejuízo do sábio e superior entendimento de V. Exa, deverá ser a presente Reclamação ser considerada procedente, admitindo-se desse modo o Interposto Recurso.»
4. O Ministério Público, junto do Tribunal Constitucional, aderiu aos argumentos constantes da decisão reclamada. Assinalou, ainda, o seguinte (cf. fls. 39-44):
«(…)
16. Caracterizando-se o sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade pela normatividade, o objeto normativo constitui a condição essencial do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
17. Não se trata, porém, da única condição. Neste tipo de recursos, exige-se ainda (e exige-se cumulativamente): (i) o esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam; (ii) a prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa (com o específico sentido atrás apontado), “durante o processo” e “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC); e, enfim, (iii) a aplicação, na decisão recorrida, como ratio decidendi, da norma tida por inconstitucional pelo recorrente, na concreta interpretação correspondente à dimensão normativa delimitada no requerimento de recurso, pois “[…] só assim um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão” (Ac. TC n.º 372/2015).
18. O sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade incide sobre normas, e não é um “contencioso de decisões” seja qual for a sua natureza (cfr., Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 26, 98; Jorge Reis Novais, Sistema Português de Fiscalização da Constitucionalidade. Avaliação Crítica, AAFDL Editora, Lisboa, 2019, p. 51).
19. A ausência dos dois últimos pressupostos de admissibilidade obstam decisivamente, a nosso ver, a que o recurso interposto para este Tribunal possa, por isso, vir a ser conhecido (cfr., Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 26, 98; Jorge Reis Novais, Sistema Português de Fiscalização da Constitucionalidade. Avaliação Crítica, AAFDL Editora, Lisboa, 2019, p. 51).»
Pronunciou-se, por isso, no sentido do indeferimento da reclamação.
5. Notificado para se pronunciar, querendo, acerca do referido parecer do Ministério Público, a reclamante não respondeu (fls. 46 e ss.).
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. Conforme resulta do requerimento de interposição de recurso deduzido nos autos (cf. fls. 28), a pretensão da reclamante foi deduzida «[n]os termos do artº 70º, l al) a) da da LTC», segundo o qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões «[q]ue recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade».
A este propósito, releva assinalar que a decisão ora reclamada não admitiu o recurso de constitucionalidade, por não estar em causa uma decisão de recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, para efeitos do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC.
6.1. Neste contexto, importa recordar que a admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende, desde logo, da verificação de uma efetiva recusa pela decisão recorrida da aplicação de certa norma ou interpretação normativa, relevante para a resolução do caso e, para além disso, impõe que tal desaplicação normativa se funde num juízo de inconstitucionalidade do regime jurídico nela estabelecido.
Na situação em análise, a ora reclamante, aludindo ao artigo 417.º, n.º 8, do Código de Processo Penal, vem invocar a questão de constitucionalidade com base na «(…) interpretação feita Acórdão no sentido de não ser possível a Reclamação para a Conferência» (cf. fls. 28). Ora, não obstante a clara insuficiência na definição do objeto do presente recurso de constitucionalidade – cujos efeitos serão explanados infra (cf. parágrafo 8) –, constata-se que, em momento algum, a reclamante logra demonstrar a recusa pela decisão recorrida da aplicação de certa norma ou interpretação normativa.
Em todo o caso, atentemos no percurso argumentativo desenvolvido no acórdão recorrido, em relação ao disposto no artigo 417.º, n.º 8, do Código de Processo Penal (cf. fls. 25):
«(…)
A recorrente veio agora reclamar para a conferência, alegando apenas que, ao abrigo do disposto no artº 417° n° 8 do C.P.P., requer que sobre a matéria da decisão sumária reclamada recaia acórdão a proferir em conferência.
Como se refere no Ac. do Tribunal Constitucional nº 116/2022 de 03.02.2022 “A possibilidade de reclamação visa facultar ao recorrente a oportunidade de ver apreciado o requerimento de interposição do recurso por uma formação colegial, sendo por isso de admitir que a mesma deva ser apreciada ainda que não tenham sido invocadas razões específicas para contrariar o sentido da decisão proferida pelo relator quanto à admissibilidade do recurso”.
No caso em apreço, a reclamante limita-se a requerer que sobre a decisão sumária recaia acórdão a proferir em conferência, “atendendo ao facto do recurso não dever ser rejeitado”, sem contudo indicar uma só razão justificativa da pretendida reversão do juízo formulado na decisão reclamada.
Procedendo-se à reponderação dos fundamentos em que assentou a decisão sumária reclamada, entende-se que o juízo alcançado quanto à manifesta improcedência do recurso merece integral confirmação, impondo-se assim a sua rejeição.
A reclamação deverá, pois, ser desatendida.»
Analisado o aresto supratranscrito, não se verifica qualquer recusa de aplicação daquela norma, com base num juízo de inconstitucionalidade. Na verdade, e conforme será explicitado com maior detalhe infra, por imperativo lógico, sempre se concluiria que o Tribunal da Relação do Porto aplicou o disposto no artigo 417.º, n.º 8, do Código de Processo Penal - que prevê que “[c]abe reclamação para a conferência dos despachos proferidos pelo relator nos termos dos n.ºs 6 e 7” -, desde logo, por ter sido, de facto, proferido acórdão sobre a decisão sumária proferida em 20 de abril de 2022, no seguimento da reclamação apresentada pela reclamante ao abrigo daquela disposição legal. Conforme consta do segmento final da decisão recorrida, «[p]rocedendo-se à reponderação dos fundamentos em que assentou a decisão sumária reclamada, entende-se que o juízo alcançado quanto à manifesta improcedência do recurso merece integral confirmação, impondo-se assim a sua rejeição.» - (sublinhado nosso).
Considerando o exposto, não se encontra aberta a possibilidade de recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Em todo o caso, a argumentação expendida nas diversas peças processuais que compõem os autos sugere que a pretensão do reclamante se enquadra antes na alínea b) do mencionado n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Será, por isso, à luz dos critérios de admissibilidade previstos nessa alínea que se analisará a o presente recurso.
7. O modelo legal de recursos para o Tribunal Constitucional do Direito português em sede de fiscalização concreta recenseado no artigo 280.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 69.º-85.º da LTC possui carácter acentuadamente normativo, cingindo-se à revisão do juízo de fiscalização formulado por Tribunais da compatibilidade (para com a Constituição, lei de valor reforçado ou convenção internacional) de uma norma jurídica ou interpretação normativa cuja disciplina estatutiva haja sido determinante para a orientação final da decisão recorrida (cfr., também, artigo 6.º da LTC e v., sobre o assunto, J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, Almedina, 7.ª edição, pp. 985-989, JORGE MIRANDA, Fiscalização da Constitucionalidade, Almedina, 2017, pp. 196-200 e 259-260 e C. LOPES DO REGO, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, pp. 165-166). Assim, o recurso só será admissível se a norma ou interpretação normativa objeto do recurso conformarem a sua base essencial de suporte jurídico (cfr. artigo 79.º-C, 1.ª parte, da LTC e v., sobre a matéria agora abordada, C. LOPES DO REGO, op. cit., pp. 109-113 e JORGE MIRANDA, op. cit., p. 260). Caso a norma sindicada seja lateral à situação sub iudicio, o que será o caso quando a decisão tenha mobilizado outro corpus jurídico, autónomo face ao colocado, ou outra fonte de Direito como fundamento material, a questão de inconstitucionalidade (ilegalidade ou inconvencionalidade) resultará deslocada do objeto do processo a que instância jurisdicional respeita e, como tal, o seu julgamento estará desprovido de alcance prático. Nessas situações, o juízo sobre o recurso pelo Tribunal Constitucional não estará devidamente enquadrado com a temática processual subjacente e não será apto a interferir com os fundamentos normativos da decisão e, por inerência, não possuirá impacto no desfecho da causa, resultando globalmente inútil.
Por idêntica ordem de razões, quando o recurso incida sobre dada interpretação normativa, é, não apenas necessário que a fonte de Direito que orienta a decisão recorrida seja a sindicada, mas também que o Tribunal “a quo” haja mobilizado essa exata interpretação como ratio decidendi. Também aqui, caso se conclua que a norma foi compreendida e aplicada de outra forma, o recurso por inconstitucionalidade (ilegalidade ou inconvencionalidade) consubstancia uma iniciativa processual em desrespeito do quadro temático da ação em que o recurso está enxertado, resultando também frívola, porque inidónea para obter qualquer alteração de sentido da decisão proferida a montante.
A necessidade imperativa de verificação cumulativa destes requisitos constitui, pois, corolário da natureza instrumental do recurso para o Tribunal Constitucional (face ao processo judicial subjacente) e deles depende a sua utilidade, possuindo uma função económica, nesta segunda dimensão, aparentada ao pressuposto de interesse em agir processualmente do Direito comum.
Assim e por necessária deriva, quando não estejam sinalizados no caso sub iudicio estaremos perante vício da instância de recurso preclusivo da apreciação do seu mérito (cfr. artigos 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, corpo do texto, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 69.º da LTC).
8. Analisado o requerimento de interposição do recurso e, bem assim, a reclamação para este Tribunal, é absolutamente transparente que o presente recurso de constitucionalidade se acha desprovido de norma-objeto que pudesse ser sujeita a fiscalização. Como se constata, a reclamante não delimitou qualquer dimensão normativa específica do artigo 417.º, n.º 8, do Código de Processo Penal que pudesse ser alvo de controlo da respetiva conformidade constitucional, nem na altura da interposição, nem na presente fase. De facto, limitou-se a aludir à «interpretação feita Acórdão no sentido de não ser possível a Reclamação para a Conferência», sem a concretizar, conforme lhe é exigido ao abrigo do requisito previsto no artigo 75.º-A, n.º 1 da LTC.
A este propósito, cumpre relembrar que, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 75.º-A, ex vi do seu n.º 6, a reclamante poderia ser convidada a suprir a deficiência assinalada. No entanto, no presente caso, tal revelar-se-ia inútil, uma vez que não foram cumpridos os pressupostos de admissibilidade material dos quais depende a admissibilidade do presente recurso.
9. Atentando, uma vez mais, no acórdão recorrido, constata-se que o desfecho do recurso não foi determinado por uma qualquer dimensão normativa extraível do disposto no artigo 417.º, n.º 8, do Código de Processo Penal.
Conforme foi explicitado supra, nos presentes autos foi proferido acórdão sobre a decisão sumária de 20 de abril de 2022, ao abrigo do artigo 417.º, n.º 8, do Código de Processo Penal, nos termos requeridos pela reclamante. A disposição legal em apreço prevê que “[c]abe reclamação para a conferência dos despachos proferidos pelo relator nos termos dos n.ºs 6 e 7”, determinado apenas sobre que decisões cabe reclamação. Assim, cabe esclarecer que este preceito normativo tem uma natureza estritamente processual, vendo esgotados os seus efeitos com a respetiva admissão da reclamação, independentemente do sentido decisório adotado no acórdão prolatado. Posto isto, e independentemente do sentido normativo cuja constitucionalidade viesse a ser apreciada, conclui-se que aquele preceito legal não é passível de moldar o sentido da decisão recorrida, neste caso, a confirmação integral da decisão sumária de 20 de abril de 2022.
Como se disse, o pressuposto de admissibilidade em apreço traduz-se na possibilidade de o julgamento da questão de constitucionalidade que se pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica adotada no tribunal a quo. Tal possibilidade efetiva-se quando a decisão sobre a questão de constitucionalidade é suscetível de alterar o sentido ou os efeitos da decisão recorrida, despoletando necessariamente uma reponderação da resolução do caso pela instância a quo, o que apenas sucederá quando a norma delimitada como objeto do recurso constitua o fundamento jurídico determinante da solução dada ao pleito pela instância recorrida. No caso dos autos, e como se comprovou, qualquer pronúncia deste Tribunal Constitucional relativamente ao objeto delimitado pela recorrente se revelará insuscetível de inverter a decisão recorrida.
10. Finalmente, cumpre relembrar que o recurso para o Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta depende que a questão cuja sindicância se pretende tenha sido colocada no processo a que respeita de modo a ser apreciada na decisão recorrida (cfr. artigos 70.º, n.º 1, alínea b), 2.ª parte, da LTC). A obrigatoriedade legal de dedução prévia da questão jurídico-constitucional está recenseada no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), 2.ª parte, da Constituição da República Portuguesa e empresta ao Tribunal Constitucional a natureza de um verdadeiro foro de recurso, de patamar de revisão dos processos de fiscalização concreta empreendidos por órgãos jurisdicionais. Serão estes que, em primeira linha, serão chamados a avaliar a compatibilidade de normas infraconstitucionais para com a Lei Fundamental (leis de valor reforçado ou convenções internacionais), reservando-se aquele Tribunal para uma função de revisão, quer nos casos em que se tenha concluído pela conformidade, quer quando se recuse a aplicabilidade das normas por desrespeito àquelas fontes de Direito de valor superior. Em qualquer uma das situações o objeto do processo no Tribunal Constitucional incide sobre uma revisão da decisão primeiro tomada por um outro foro jurisdicional.
10.1. No caso dos autos, e como vem a admitir a reclamante na reclamação apresentada junto do Tribunal Constitucional, não suscitou perante o tribunal recorrido qualquer questão de constitucionalidade, a propósito do artigo 417.º, n.º 8, do Código de Processo Penal ou de qualquer outra norma. Justifica tal incumprimento na circunstância de ter sido alegadamente confrontada com uma decisão surpresa, pelo que «[a] prévia invocação da inconstitucionalidade é dispensada» (cf. fls. 32).
Efetivamente, a jurisprudência constitucional e a doutrina, em exercício de concordância prática com o direito a tutela jurisdiciona efetiva (artigo 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa), têm vindo a oferecer alguma maleabilidade à Lei de processo, admitindo que a revisão da constitucionalidade seja admissível sem pedido prévio de fiscalização concreta em três situações: (i) quando a norma (ou interpretação normativa) surja como fundamento de uma decisão sem que o recorrente tivesse disposto de momento processual adequado a apontar-lhe a ferida de inconstitucionalidade; (ii) quando se trate de fundamento que tenha surgido inesperadamente na decisão, impassível de ter sido conjeturado antes; e (iii) quando o sujeito processual afetado não tenha disposto de instrumento de processo para o efeito, por lacuna do cânone legal de tramitação ou por força de verdadeira ausência da instância (v., sobre este assunto, C. LOPES DO REGO, op. cit., pp. 78-90 e JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 254-255).
Ora, considerando que, in casu, a reclamante apresentou reclamação perante o Tribunal da Relação, precisamente ao abrigo da norma cuja apreciação vem requerer, e dada a sua inocuidade para a decisão recorrida, não se pode entender operante a cláusula de exceção que dispensaria o recorrente da invocação prévia da questão de inconstitucionalidade inseridas no objeto do recurso. Assim, observa-se o vício de instância que impede a apreciação do objeto do recurso, ex vi artigos 70.º, n.º 1, alínea b), 2.ª parte, 72.º, n.º 2 e artigo 79.º-C, ambos da LTC.
11. Face ao exposto, ter-se-á de concluir que o presente recurso de constitucionalidade não reúne os pressupostos de admissibilidade previstos no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da LTC, pelo que se indefere a presente reclamação.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 21 de dezembro de 2022 - António José da Ascensão Ramos - Mariana Canotilho - Pedro Machete