ACÓRDÃO Nº 843/2022
Processo n.º 1283/2021
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Benedita Urbano
(Conselheiro José António Teles Pereira)
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. No processo comum n.º 15/20.2GBBRG do Juízo Local Criminal de Braga do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, o Ministério Público acusou A. pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia, previsto e punido pelos artigos 387.º, n.º 1, 388.º-A e 389.º, n.º 1, todos do Código Penal (CP), tendo o juiz titular do processo, já na fase de julgamento, decidido rejeitar a acusação nos termos que se seguem:
“[…]
Muito embora o crime imputado à arguida seja o crime de maus tratos a animais de companhia previsto e punido pelo artigo 387.º, n.º 1, do CP na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29/08, é manifesto, atenta a data dos factos, que o que está em causa é o crime de maus tratos a animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 387.º, n.º 3, do CP na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18/08.
Tal não nos deve impressionar em demasia, uma vez que a única diferença entre os referidos normativos se situa ao nível da moldura penal. O tipo objetivo do crime permaneceu inalterado, apenas se verificando um agravamento da pena aplicável.
Ora, o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 867/2021, proferido em 10 de novembro de 2021, […] decidiu julgar inconstitucional a norma incriminatória contida no artigo 387.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação, conjugadamente, dos artigos 27º e 18º nº 2 da Constituição.
[P]artilhamos a posição assumida no referido aresto.
Vejamos, de forma necessariamente sucinta, em que termos.
Estatui o artigo 27.º, n.º 1, da CRP que «todos têm direito à liberdade e à segurança».
Por sua vez, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
De acordo com tais normativos, o direito penal – enquanto direito fragmentário e de ultima ratio – só ganha legitimidade quando se destina a proteger direitos ou interesses constitucionalmente consagrados.
Dito de outra forma: a tutela de bens jurídicos pelo direito penal tem de assentar na ordem constitucional vigente.
Ora, o que o acórdão nos vem dizer é que, atualmente, não existe fundamento constitucional para a criminalização dos maus tratos a animais de companhia, precisamente porque não é possível, no tipo legal de crime, identificar um bem jurídico com consagração/dignidade constitucional capaz de justificar a tutela e a punição que o legislador ordinário decidiu empreender.
Assim sendo, o artigo 387.º, n.º 1, do CP na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29/08, ou, no caso concreto, o artigo 387.º, n.º 3, do CP na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18/08 (já que a única diferença entre ambos, como já se frisou, situa-se ao nível da pena aplicável) são materialmente inconstitucionais.
Mas a idêntica solução se chega por outra via.
De acordo com as declarações de voto da Senhora Conselheira Joana Fernandes Costa e do Senhor Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro, a inconstitucionalidade material não deriva propriamente da inexistência de bem jurídico constitucional capaz de alicerçar a punição, residindo antes na violação do princípio da tipicidade penal que se extrai do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição.
A conduta típica ou penalmente proibida tem, efetivamente, de estar descrita de modo especialmente preciso e determinado, de forma que os destinatários da norma incriminadora possam, com segurança, conhecer os elementos objetivos e subjetivos que integram a infração.
Ora, como bem salientaram aqueles Conselheiros, tendo em conta o acentuado nível de indeterminação dos conceitos utilizados na descrição quer do objeto da conduta incriminada – «qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos (…) para seu entretenimento e companhia» (artigo 389.º, n.º 1) –, quer do conteúdo da ação proibida – «infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos» a animal que se encontre naquelas condições, «sem motivo legítimo» (artigo 387.º, n.º 1) – o tipo legal em causa não dispõe de precisão e densidade suficientes que permitam aos potenciais autores do ilícito-típico a antecipação do comportamento proibido.
Em suma: pelos motivos expostos, e na esteira do decidido no Acórdão n.º 867/2021 do Tribunal Constitucional, o artigo 387.º, n.º 3, do CP na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18/08, é materialmente inconstitucional, razão pela qual recuso a sua aplicação ao caso concreto.
Atendendo a que os factos imputados à arguida A. não são suscetíveis de preencher a previsão de qualquer outra norma incriminadora, os mesmos não constituem qualquer crime.
Pelo exposto, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do CPP, decide-se rejeitar a acusação deduzida pelo MP contra a arguida A. e, em consequência, ordenar o arquivamento oportuno dos autos.
[…]”.
2. O Ministério Público recorreu dessa decisão para o Tribunal Constitucional (TC), ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15.11, na redação que lhe foi dada, por último, pela Lei Orgânica n.º 1/2022, de 04.01 – LTC), indicando como objeto do recurso “a norma do artigo 387.º, n.º 1, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 20/08, e o artigo 387.º, n.º 3, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18/08”. Trata-se de recurso obrigatório em virtude do preceituado no n.º 3 do artigo 280.º da CRP.
3. O recurso foi admitido no Juízo Local Criminal de Braga, com efeito suspensivo.
4. Já no TC, foi determinada a notificação das partes para alegarem, sendo que apenas o Ministério Público, aqui recorrente, apresentou alegações, com as seguintes conclusões:
“a) Objeto do recurso
1.ª) O Ministério Público interpõe recurso, para ele obrigatório, «nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro» do despacho judicial de fls. 179 a 180v.º [de 9 de dezembro de 2021, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Local Criminal de Braga - Juiz 1, proc. comum (tribunal singular) n.º 15/20.2GBBRG], uma vez que «na mesma, não foi aplicada, com fundamento na sua inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 27.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 387.º, n.º 1, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 20/08, e o artigo 387.º, n.º 3, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18/08», pois que «atualmente não existe fundamento constitucional para a criminalização dos maus tratos a animais de companhia, precisamente porque não é possível, no tipo legal de crime, identificar um bem jurídico com consagração/dignidade constitucional capaz de justificar a tutela e a punição que o legislador ordinário decidiu empreender».
2.ª) Uma vez que este é um recurso de fiscalização concreta, a questão de constitucionalidade estará delimitada pela decisão recorrida, in concreto, respeitará aos factos constantes da acusação e às disposições conjugadas do artigo 387.º, n.º 3, e 389.º, n.º 1, do Código Penal, por que vem acusada a arguida.
b) Competência legislativa para «definição dos crimes»
3.ª) É da exclusiva competência da Assembleia da República, legislar, salvo autorização ao Governo, sobre a «definição dos crimes» (art. 165.º, n.º 1, alínea c), competência legislativa penal essa que habilita as «autoridades judiciárias» ao decretamento de «intervenções restritivas» passíveis de sacrificar os direitos, liberdades e garantias fundamentais, de caráter pessoal, nomeadamente a liberdade individual (idem, arts. 26.º, n.º 1, e 27.º, n.ºs 1 e 2).
4.ª) Assim, questão a dirimir nos presentes autos consiste em determinar como poderá ser constitucionalmente justificado, e quais são os respetivos limites, no quadro da sua ‘margem de conformação’, o exercício da competência do legislador para decretar a incriminação expressa pelas disposições conjugadas dos citados n.º 3 do artigo 387.º (Morte e maus tratos de animal de companhia), n.º 3, e 389.º, n.º 1, ambos do Código Penal, por último com a redação da Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto.
5.ª) Para tanto, a incriminação em causa, como lei restritiva, terá que satisfazer o regime estabelecido no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, em particular, tal incriminação «só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
b) Interesse constitucionalmente protegido
6.ª) O artigo 1.º, que inaugura o texto e os «princípios fundamentais» da Constituição, dispõe, nomeadamente, quanto à «construção de uma sociedade justa e solidária» (na redação que lhe foi conferida pelo artigo 2.º da Lei Constitucional n.º 1/98 (Segunda revisão constitucional), de 8 de julho).
7.ª) Neste caso a expressão ‘princípio’ vale por uma regra jurídica com caráter finalístico ou teleológico, dirigida primacialmente ao legislador, ao qual impõe a consecução de um ‘estado de coisas’, no caso uma sociedade ‘justa’ e ‘solidária’, ou seja, é uma norma-fim ou norma programática.
8.ª) Enquanto princípio ‘fundamental’ expressa ‘valores’ básicos que devem ser prosseguidos, e alcançados, pela sociedade e pelo legislador.
9.ª) Em qualquer caso, como ‘princípio’ (norma-fim ou norma programática) e como ‘valor’ (fundamental), tal norma constitucional impõe ao legislador um dever jurídico, de atividade, em ordem à consecução daquelas finalidades (‘sociedade justa e solidária’),
10.ª) Mas como tal ‘princípio’ e ‘valor’ são estabelecidos de forma ‘aberta’, imbuídos de grande indeterminação normativa, o legislador tem uma considerável ‘margem de apreciação’ quanto à determinação, atualização e concretização e aos modos concretos de alcançar tais finalidades.
11.ª) O dever (ou a competência) do legislador em ordem à realização do ‘estado de coisas’ e do valor da ‘solidariedade fraterna’ (Casalta Nabais), numa interpretação atualista da mesma, em função da textura aberta dos termos constitucionais em causa e em consonância com a ‘ideia de Direito’ vigente na ‘consciência jurídica geral’, pode, legitimamente, ter por objeto a proteção dos ‘interesses dos animais’.
12.ª) Essa ‘solidariedade fraterna’ também poderá ser fundamentada numa ideia de ‘responsabilidade’ humana ‘pela preservação desses interesses dos animais por força de uma certa relação atual (passada e/ou potencial) que com eles mantém’ (Teresa Quintela de Brito).
13.ª) A mais conceituada teoria ética sobre o ‘estatuto moral’ dos animais merece devida consideração e poderá mesmo ser ‘constitucionalizada’, a título de parte integrante da ‘ideia de Direito’ vigente na nossa comunidade, aqui e agora, nomeadamente quanto às respetivas teses sobre a ‘capacidade de sofrimento’ dos animais e, ainda, sobre ‘o dever de considerar seriamente os seus interesses, isto é, de atender ao seu bem-estar. Não devemos agir como se só os interesses dos seres humanos importassem. (…) Estando assente que os animais têm interesses, não é difícil justificar a ideia de que temos obrigações para com eles’ (Pedro Galvão).
14.ª) Por outra parte, um dos mais reputados cultores da ‘teoria da justiça’ assevera que «certamente é errado ser cruel para os animais e a destruição de toda uma espécie pode ser um grande mal. A capacidade para sentimentos de prazer e sofrimento e para as formas de vida das quais os animais são capazes, claramente impõe deveres de compaixão e humanidade no seu caso» (John Rawls).
15.ª) Portanto, o dever (ou, pelo menos, a competência) constitucional do legislador, em ordem à consecução de uma sociedade ‘justa’ e, sobretudo, ‘solidária’, pode integrar a proteção dos interesses dos animais, em particular aqueles relativos ao respetivo ‘bem-estar’, que por tal via ficam a valer como «interesses constitucionalmente protegidos».
16.ª) Este novo âmbito do dever (ou competência) constitucional do legislador, em ordem à consecução de uma sociedade ‘justa e solidária’ procede de uma atualização do sentido das normas constitucionais (no caso, que impõem ‘tarefas’ e ‘fins’ ao Estado), uma fenomenologia com larga tradição nas diversas e mais maduras experiências tradições constitucionais.
17.ª) Em qualquer caso, convém sublinhar que tal dever constitucional não corresponde a direitos (nomeadamente constitucionais) dos animais, no caso individualmente considerados, é antes um ‘dever não relacional do Estado’ ou ‘dever objetivo’.
18.ª) A incriminação prevista e punida pelas disposições conjugadas do artigo 387.º, n.º, 3, e 389.º, n.º 1, do Código Penal, atenta a formulação da previsão legal, protege os interesses do ‘animal de companhia’, em causa, individualmente considerado, para proteção da integridade física e saúde do mesmo, contra a inflição de ‘dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos’.
19.ª) Tal incriminação, ao proteger os interesses dos animais de companhia, individualmente considerados, contra a inflição de ‘dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos’, é um meio de tutela penal que concretiza e corresponde ao dever (responsabilidade ou competência) constitucional do legislador, em ordem à consecução de uma sociedade ‘justa’ e ‘solidária’, compreendendo nela a defesa do bem-estar dos animais como «interesse constitucionalmente protegido», no quadro do artigo 1.º (República Portuguesa), in fine, da Constituição.
d) Princípio da proporcionalidade
20.ª) Está aqui em causa a comparação entre uma intensa restrição, não expressamente prevista na lei constitucional, da liberdade individual, um ‘direito, liberdade e garantia fundamental’, e, por outra parte, um ‘interesse constitucionalmente protegido’, que decorre de uma leitura atualizada do texto da Constituição, formulado através de uma norma-fim, dotada de elevada indeterminação.
21.ª) Embora o peso relativo daquela liberdade individual, por definição e essência, tenha preponderância prima facie sobre esse ‘interesse constitucionalmente protegido’, ainda assim poderá ocorrer um ponto de ‘justa medida’ entre ambos, em função com o concreto modo-de-ser da incriminação em causa.
22.ª) Esta incriminação tem como propósito e é idónea para a proteção dos interesses dos animais de companhia, individualmente considerados, contra a inflição de «dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos».
23.ª) Quanto à indispensabilidade, é reconhecido que a via da incriminação, sobretudo pelo inerente risco da aplicação de medidas restritivas ou privativas da liberdade individual, tipicamente produzirá efeitos preventivos, dissuasórios e retributivos que proporcionam uma tutela intensificada, nomeadamente comparando com o regime do ilícito de mera ordenação social, contra os atentados ao bem-estar dos «animais de companhia».
24.ª) Quanto à proporcionalidade (e.s.e.) importa considerar que a incriminação em causa, dentro de todo o universo dos ‘animais’ (‘não-humanos’), visa exclusivamente a proteção dos ‘animais de companhia’, tem um âmbito de aplicação circunscrito, o que será materialmente justificado pela mencionada «responsabilidade do humano, como indivíduo em relação com um concreto animal, e também como Homem (…) que o investe numa especial responsabilidade para com os seres vivos que podem ser (e são) afetados pelas suas decisões e ações», sendo, portanto, uma opção ‘conservadora’ do legislador, em conformidade com o princípio da ‘intervenção mínima’ do direito penal.
25.ª) As sanções que o legislador estabeleceu para esta incriminação comparam, mais benignamente, p. ex. com a sanção do crime de dano ou de dano qualificado que incidam sobre ‘animais alheios’ e, sobretudo, propiciam, concretamente, a aplicação de penas não privativas da liberdade.
26.ª) Por conseguinte a restrição e potencial sacrifício imposto pela incriminação em causa, ao preeminente ‘direito, liberdade e garantia’ fundamental, da liberdade individual, não será desrazoável, em razão da relevância dos interesses e do comedimento das sanções em causa.
27.ª) Assim, a incriminação em causa, sendo uma lei restritiva, não viola, todavia, o princípio da proibição do excesso, na medida em que está limitada ao que é razoável para salvaguardar o interesse constitucionalmente protegido do bem-estar dos ‘animais de companhia’.
e) Tipicidade da lei penal
28.ª) A aludida indeterminação da extensão do termo e do conceito de «animais de companhia», e da compreensão (ou intensão) dos termos e do conceito de «infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos» e de «motivo legítimo» foram mencionadas, subsidiariamente e em termos abstratos, no despacho o judicial recorrido, sem, todavia, serem concretamente aplicadas ao caso da acusação do Ministério Público.
29.ª) Portanto, não configuram questões de constitucionalidade, que sejam objeto idóneo do presente recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade.
30.ª) Em qualquer caso, reiteramos, aperfeiçoamos e desenvolvemos os argumentos já aduzidos no âmbito da alegação apresentada no douto acórdão n.º 867/2021, de 10 de novembro, do Tribunal Constitucional – 3.ª secção, no sentido de que a base constitucional da incriminação em causa procede da consecução de uma sociedade ‘justa’ e ‘solidária’, compreendendo nela a defesa do bem-estar dos animais como «interesse constitucionalmente protegido», no quadro do artigo 1.º (República Portuguesa), in fine, da Constituição.
[…]” (sublinhados acrescentados).
5. Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
6. O presente recurso foi interposto nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, que dispõe que “Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais: a) Que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade”, sendo que “O recurso é obrigatório para o Ministério Público quando a norma cuja aplicação haja sido recusada, por inconstitucionalidade ou ilegalidade” (artigo 72.º, n.º 3, 1.ª parte, da LTC).
7. Quanto ao objeto deste recurso, cumpre referir que a decisão recorrida recusou a aplicação, sic, do “artº 387º nº 3 do CP na redação introduzida pela Lei nº 39/2020, de 18/08”, dado que, como aí também consta e corretamente, “embora o crime imputado à arguida seja o crime de maus tratos a animais de companhia p. e p. pelo art.º 387º nº 1 do CP na redação introduzida pela Lei nº 69/2014, de 29/08 é manifesto, atenta a data dos factos, que o que está em causa é o crime de maus tratos a animais de companhia p. e p. pelo artº 387º nº 3 do CP na redação introduzida pela Lei nº 39/2020, de 18/08”.
Sucede, todavia, que um dos fundamentos concretos dessa recusa de aplicação da norma em causa não se relaciona diretamente com o artigo 387.º do Código Penal (CP), dado que, na decisão recorrida, e sempre por referência ao aresto do TC amplamente mencionado infra, se faz também referência ao “acentuado nível de indeterminação dos conceitos utilizados na descrição quer do objeto da conduta incriminada – “qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos (... ) para seu entretenimento e companhia”, conceitos estes constantes do artigo 389º, nº 1, do CP.
Efetivamente, é o artigo 389.º que, nos seus n.os 1 e 3, do Código Penal (preceito introduzido nesse diploma legal pela Lei n.º 69/2014, de 29.08 e alterado pela Lei n.º 39/2020, de 18.08), define, como consta da sua epígrafe, o conceito de “animal de companhia” utilizado no tipo-de-ilícito objetivo do crime de maus tratos a animais de companhia. Fá-lo pela positiva nos seus n.os 1 e 3, que aqui relevam, com a seguinte redação atual: “1 - Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia. (…) 3 - São igualmente considerados animais de companhia, para efeitos do disposto no presente título, aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância”. E fá-lo pela negativa no seu n.º 2), pelo que, face à fundamentação dessa decisão, deverá entender-se que estes dois números do artigo 389.º do CP estão também abrangidos pela decisão de recusa de aplicação normativa aqui recorrida.
Por seu lado, se o Ministério Público veio indicar como objeto do seu recurso, literalmente, “a norma do artigo 387.º, n.º 1, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 20/08, e o artigo 387.º, n.º 3, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18/08”, a verdade é, que como resulta do já exposto, e uma vez que os factos imputados à arguida ocorreram em dezembro de 2020, a norma recusada é antes, como se entendeu na decisão recorrida, a segunda norma (não sendo de chamar à colação essa primeira redação), tal como sucede, de resto, com o mencionado artigo 389.º, n.os 1 e 3, do CP.
Assim, e apesar dessa indicação literal do recorrente, entende-se que se poderá efetuar, concomitantemente, a sua restrição – não considerando a redação anterior do artigo 387.º, n.º 1, do CP, dado que não é aplicável no caso concreto – e ampliação – tendo em conta, na fixação do objeto deste recurso, também o artigo 389.º, nos seus n.os 1 e 3, do CP, na sua redação atual, uma vez que nos manteremos sempre dentro do âmbito substancial deste recurso, em que o recorrente visa, a final, a reapreciação do concreto juízo de inconstitucionalidade efetuado pelo tribunal a quo, que se reporta, após este ajustamento formal, a estas específicas normas concretas.
Em síntese, o objeto do recurso corresponde, mais corretamente, à norma que tipifica o crime de maus tratos de animal de companhia contida no artigo 387.º, n.º 3, do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, em conjugação com o artigo 389.º, n.os 1 e 3, do CP, igualmente na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto.
8. A decisão recorrida fundou-se, essencialmente, no Acórdão do TC n.º 867/2021, que decidiu “Julgar inconstitucional a norma incriminatória contida no artigo 387.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação, conjugadamente, dos artigos 27.º e 18.º, n.º 2, da Constituição”, aresto aquele que será, também no que diz respeito aos dois votos de vencido aí constantes, o grande referencial desta decisão. Sublinhe-se, apenas, que a diferença entre o anterior n.º 1 e o atual n.º 3 do artigo 389.º do CP se traduz unicamente numa alteração da moldura sancionatória abstrata aí prevista, que passa de “pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias” para “pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias”),
Feitos estes esclarecimentos, temos que são duas as questões de constitucionalidade que se suscitam nestes autos (sendo certo que uma resposta negativa a esta primeira questão levará, por inútil, à não apreciação da segunda, como sucedeu, de resto, no Acórdão do TC n.º 867/2021):
- o saber se esta incriminação visa tutelar algum bem jurídico constitucionalmente protegido (e qual);
- o apurar se a consagração legal deste crime viola o princípio da legalidade, nas suas várias vertentes, em especial no que diz respeito ao princípio da tipicidade da lei penal, resultante do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
9. O Código Penal (CP) português consagrou de forma expressa a criminalização dos maus tratos a animais de companhia, tendo, portanto, o legislador ordinário acolhido como prioridade a tutela do bem-estar dos animais de companhia. Preocupação que se pode igualmente sinalizar no Tratado de Lisboa, de 13 de dezembro de 2007, mediante o qual se reconheceu aos animais sensibilidade, características biológicas e prerrogativas próprias. No seu artigo 13.º, Título II, aquele Tratado determinou que “Na definição e concretização das políticas da União nos setores da agricultura, da pesca, dos transportes, do mercado interno, da investigação e desenvolvimento tecnológico e do espaço, a União Europeia e os Estados-Membros terão plenamente em conta as exigências em matéria de bem-estar dos animais enquanto seres sencientes, respeitando, simultaneamente, as disposições legislativas ou administrativas e os costumes dos Estados-Membros no que respeita, em particular, aos ritos religiosos, as tradições culturais e o património regional”. Já antes, na Convenção Europeia para a proteção dos animais de companhia, assinada em Estrasburgo em 13 de novembro de 1987, se tinha manifestado idêntica preocupação com o bem-estar dos animais de companhia, tidos os mesmos como seres vivos capazes de sentir dor e sofrer. Além desta convenção, retenham-se, outrossim, as seguintes: “1) Convenção Europeia sobre a proteção dos animais em transporte internacional (1968) e respetivo Protocolo adicional (1979); 2) Convenção Europeia para a proteção dos animais nos locais de criação; 3) Convenção Europeia sobre a proteção de animais de companhia; 4) Convenção Europeia para a proteção dos animais vertebrados utilizados para fins experimentais e outros fins científicos (1986) e Protocolo adicional (1998)” – v. Maria Luísa Duarte, ob. cit., pp. 37-38, aludindo também à múltipla “legislação da União Europeia sobre bem-estar dos animais” – p. 42).
De idêntica forma, a tutela dos animais foi já recebida, em casos contados, de forma mais ou menos genérica, em algumas constituições. Vejam-se o artigo 20.º da Constituição federal alemã (segundo o qual, e com base numa alteração introduzida em 2002, o Estado protegerá “os fundamentos naturais da vida e dos animais através de legislação e, de acordo com a lei e o Direito por meios dos poderes executivo e judicial” ), o artigo 9.º da Constituição italiana (o qual, na sequência da entrada em vigor da Lei Constitucional de 11 de fevereiro de 2022, passou a dispor que a República italiana “[T]utela o ambiente, a biodiversidade e os ecossistemas, também no interesse das gerações futuras. A lei do Estado disciplina os modos e as formas de tutela dos animais”), o artigo 120.º da Constituição federal suíça (o qual estipula que, “ao legislar-se sobre o uso de material genético e reprodutivo dos animais, plantas e outros organismos, ter-se-á em conta a dignidade dos seres vivos”) e artigo 235.º da Constituição brasileira (o Estado deve “proteger a fauna e a flora, com a proibição, pela forma descrita por lei, de práticas que representem um risco para a sua função ecológica, causem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade”. Registem-se, ainda, o caso da Constituição eslovena de 1991, o da Constituição austríaca de 2013 e o da Constituição luxemburguesa de 2007.
Retomando o direito positivo português, há igualmente a reter a circunstância de que a proteção dos animais foi igualmente objeto de consagração no próprio direito positivo português, na sua vertente civil, dado que, com a Lei nº 8/2017, de 3 de março, “O Código Civil passou a ter um novo subtítulo dedicado aos animais, onde se aditou o artigo 201º-B, que determina o seguinte: “Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza” – Ana Silva Teixeira, O Novo Estatuto Jurídico-Civil dos Animais, p. 151, retirado de https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2019/2/2019_02_0147_0160.pdf).
Num outro plano, há que reconhecer que, com ou sem positivação, a preocupação com a proteção dos direitos dos animais é uma preocupação que existe há muito tempo em vários países, Portugal incluído. Com efeito, “A questão dos «direitos dos animais» é atualmente objeto de um amplo debate filosófico, jurídico, social e político em muitos países, especialmente os de cultura ocidental. O sentido que se pode descortinar é o de uma gradual consciencialização da sociedade, com reflexos na produção legislativa, no sentido de proteger o bem-estar animal” (cfr. André Dias Pereira, “‘Tiro aos pombos’ - a Jurisprudência criadora de Direito”, in Ars Ivdicandi – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves – Volume II: Direito Privado, Coimbra, 2008, p. 542, itálico acrescentado).
10. Para efeitos do presente controlo concreto da constitucionalidade, é importante averiguar qual é o bem jurídico protegido, neste domínio, pelo Código Penal e, bem assim, se o bem jurídico em causa também foi recebido na Constituição da República Portuguesa (CRP).
Preliminarmente, duas notas prévias de enquadramento.
Assim, e antes de mais, sabendo-se, como o menciona lapidarmente Winifried Hassemer, que os “bens jurídicos não se elaboram num laboratório, mas na experiência social” (vide Winifried Hassemer, “Lineamentos de una teoria personal del bien jurídico”, in Doctrina Personal – Teoria y Práctica en las Ciencias Penales, Ano 12.º, 1989, p. 283), “A valoração jurídica deverá ser, como visto, constitucionalmente ancorada, e deverá por isso encontrar-se em consonância com a ordenação de valores fundamental do Estado; isso não significa, como também já foi referido, que a valoração operada permaneça estática por se reportar à Constituição – para além da própria Constituição, formal ou material, poder sofrer alterações, o referente valorativo de bem jurídico deve estar em sintonia com o espírito daquela, o que significa que, conforme a percepção social altere, também assim se devem adequar os valores protegidos pelo Direito Penal (isto pese embora exista, segundo alguns autores, um núcleo valorativo na teoria do bem jurídico, que diz respeito à sua vertente exclusivamente liberal, que permanece inalterado, mesmo quando hipoteticamente isso já não correspondesse à ordem constitucional vigente)” (cfr. Raquel Tomás Cardoso, As Funções do Direito Penal Europeu e o discurso da criminalização Entre o harm principle e a protecção de bens jurídicos, p. 64, disponível em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316 /101645/2/As_funcoes_DPE.pdf). Assim, continua esta mesma autora, “o conceito de bem jurídico tem de estar referido, na sua materialidade – e como já anteriormente se assinalou – ao exterior das normas penais, àquilo que a comunidade considera valioso; por outras palavras, o bem jurídico-penal há de ser expressão das condições essenciais da realização humana em sociedade, refletidas nos valores do Estado social de direito, que, por regra, integram o texto constitucional, sem que com eles se identifique ou neles esgote todo o seu conteúdo. Não se trata de uma relação de identidade, mas sim, nos termos daquela que vem sendo a jurisprudência constitucional afirmada, de uma relação de congruência” (p. 154).
Em jeito de enquadramento das questões que o caso dos autos suscita, atente-se no que foi dito no Acórdão n.º 377/2015:
“[…]
Tratando-se ambas de medidas de política criminal, tomadas pela Assembleia no exercício da sua competência para a definição de [novos] crimes e penas, deverá antes do mais dizer-se que não caberá ao Tribunal resolver ou aprofundar as questões de dogmática jurídico-penal que a interpretação de normas incriminadoras (estas novas, como quaisquer outras) eventualmente coloque, uma vez que esta é função que, naturalmente, aos tribunais comuns competirá exercer.
Ao Tribunal cabe todavia averiguar de uma específica e diferente questão, que é precisamente a de saber se foram ou não cumpridos no caso os padrões legitimadores da constitucionalidade das novas incriminações.
Com efeito – e como o Tribunal sempre tem dito, em jurisprudência ininterrupta, desde o início da sua fundação – ao legislador ordinário deve ser reconhecida larga margem de liberdade de conformação na prossecução do que entenda dever ser a política criminal adequada, em cada momento histórico, às exigências de subsistência de bens coletivos fundamentais. Não sendo a Constituição um código detalhado de relações sociais ou sequer do modo de organização do Estado, «o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador» (Acórdão n.º 634/93, ponto 6), enquanto titular da função de primeiro mediador, ou concretizador, da ordem jurídico-constitucional (Acórdão n.º 347/86, ponto 7). Todavia, nem por isso chegará a concluir-se que, em Estado de direito, é isenta de vínculos constitucionais a definição legislativa de medidas de política criminal. Nenhum poder o é; e muito menos o será o poder de definir novos crimes e de prever novas penas, o qual, pela sua especial natureza, não dispensará naturalmente a condição de poder constitucionalmente vinculado. Assim, e não obstante a larga margem conformadora que, neste domínio, deve ser reconhecida ao legislador, haverá sempre que concluir que a Constituição surge como o horizonte no qual há de inspirar-se, e por onde há de pautar-se, qualquer programa de política criminal.
[…]
Assim, tem sido dito que, antes do mais, as sanções penais, «por serem aquelas que em geral maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais» (Acórdão n.º 99/02, ponto 5) só serão constitucionalmente legítimas se através delas se protegerem bens jurídicos que se mostrem dignos de tutela penal. Sustentar esta afirmação equivale a dizer que toda e qualquer decisão legislativa de política criminal, que se traduza na opção de definir novos tipos de crimes e de prever para eles novas penas, deve desde logo revelar-se como uma medida adequada para conferir amparo a interesses, individuais ou coletivos, de conservação ou manutenção de valores sociais aos quais seja possível reconhecer a máxima relevância jurídica; e que, em Estado de direito democrático, o critério para a determinação do que seja a «máxima relevância jurídica» de certo valor social que deva ser preservado há de encontrar-se, não em um qualquer corpus normativo que seja exterior à Constituição, mas apenas dentro dela e no quadro axiológico que lhe seja próprio. É neste sentido – exigido pelo primado normativo da Constituição, decorrente do n.º 1 do artigo 3.º da CRP – que se diz que, em cada nova incriminação, «há de observar-se uma estrita analogia entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídico-penais» (Acórdão n.º 108/99, ponto 4); e que «toda a norma incriminatória na base da qual não seja suscetível de se divisar um bem jurídico-penal claramente definido é nula, porque materialmente inconstitucional» (Acórdão n.º 179/2012, ponto 7).
Em segundo lugar, porém, afirmar-se que a decisão de prever novos crimes e novas penas não pode deixar de ser reveladora de uma ponderação acertada [quanto à indispensabilidade da tutela penal para a realização de um fim suficientemente valioso que a justifique], equivale ainda a afirmar-se que a pena só será necessária quando se mostrar adequada para proteger bens jurídicos que se mostrem carentes de tutela penal. Não basta que, em cada nova incriminação, se divise a intenção de preservar um valor social que, de acordo com a Constituição, possa ser tido como merecedor do mais elevado grau de proteção jurídica; é ainda necessário que o fim almejado – a preservação de tal valor – não possa ser realizado por outro meio de política legislativa que não aquele que se traduz no recurso à intervenção penal. Como se disse no Acórdão n.º 108/99, ponto 4: «o direito penal, enquanto direito de proteção, cumpre uma função de ultima ratio. Só se justifica, por isso, que intervenha para proteger bens jurídicos – e se não for possível o recurso a outras medidas de política social, igualmente eficazes, mas menos violentas do que as sanções criminais». E isto por, face ao disposto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, dever ser a intervenção penal sempre subsidiária e fragmentária, a evitar quando não seja certo que inexistem outros meios, de diversa índole e por isso mesmo menos gravosos, para a realização dos fins que inspiraram a intervenção do legislador.
[…]
Como se sabe – e a jurisprudência constitucional tem sido, também quanto a este ponto, ilustrativa: vejam-se, por exemplo, os Acórdãos n.os 25/84, 264/97, 147/99, 168/99, 179/99, 383/00, 545/00, 93/2001, 236/2002, 449/2002, 338/03, 358/05, 29/2007, 110/2007, 183/2008, 146/2011, 379/2012, 397/2012, 105/2013 – do princípio constante do n.º 1 do artigo 29.º da CRP decorrem várias obrigações para o legislador, que devem ser cumpridas aquando da prossecução de medidas de política criminal através da definição de novos crimes e da previsão de novas penas. Entre essas obrigações encontra-se aquela, que sobre ele impende, de identificar o comportamento que se considera punível da forma mais precisa possível, evitando portanto – tanto quanto o consente a natureza da linguagem e a inevitável descrição de «aspetos da vida» por recurso a conceitos com algum grau de indeterminação – toda e qualquer desnecessária ambiguidade.
Deste dever especial de precisão decorre que, em princípio, a punição deve incidir sobre um comportamento específico e suficientemente descrito de um determinado agente, comportamento esse que se traduzirá numa certa e determinada ação ou numa certa e determinada omissão que àquele mesmo agente possam ser imputadas [como diz o artigo 29.º, n.º 1, da CRP, «[n]inguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei (…) que declare punível a ação ou omissão»]. Todavia, para além disso ou mesmo antes disso, do princípio da legalidade, nas suas vestes de imperativo de lex certa, decorre para o legislador o dever de «desenhar» o novo tipo criminal de modo a tornar cognoscíveis para os cidadãos quais os factos voluntários que são merecedores do juízo de desvalor jurídico-criminal. Na verdade, o princípio nullum crimen sine lege tornar-se-ia inoperante se ao poder legislativo fosse dada a possibilidade de não determinar com um mínimo de rigor, através do tipo legal, o facto voluntário a considerar punível. Por isso, e como se disse, por exemplo, no Acórdão n.º 168/99, ponto 6: «[a]veriguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal [aplicável] com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima»
[…]”.
11. Efetuado este enquadramento prévio, cabe agora analisar a questão do bem jurídico protegido pelos preceitos do CP que criminalizam os maus-tratos a animais de companhia.
É consensual (ou até mesmo, atualmente, apodítico) que a função principal do Direito Penal é a proteção direta de bens jurídicos, sendo por isso importante que, ao analisarmos um tipo legal de crime, se tente, primeiramente, delimitar qual o bem jurídico que visa proteger, dado que a razão de ser de cada tipo legal, o seu concreto fundamento, é a tutela de um bem jurídico que uma determinada comunidade historicamente situada considera essencial.
A própria noção de bem jurídico é muito controvertida, embora uma definição possível (dado que, segundo os autores, há um consenso largo sobre o seu núcleo essencial) possa ser esta: “expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso” (Figueiredo Dias/Costa Andrade, Direito Penal (Apontamentos e materiais de estudo da cadeira de Direito Penal, 3º ano, segundo as lições dos Profs. Doutores Figueiredo Dias e Costa Andrade), Coimbra, 1996, p. 53), sendo que outra definição, já relativa aos específicos bem jurídico-penais, pode ser a de um “estádio, circunscrito nos específicos tipos legais de crime, de uma determinada conexão real da pessoa com os reconhecidos e concretos valores da comunidade jurídica” (H. Otto, Vermögensschutzes, apud Faria Costa, O Perigo em Direito Penal , Coimbra, Coimbra Editora, 1992, p. 185).
Quanto à sua origem e fonte, para alguns autores, os bens jurídicos penais devem ser, sempre, mesmo que implicitamente, reflexo de um valor constitucional, havendo entre ambos uma relação de referência mútua (cfr. Figueiredo Dias/Costa Andrade, ob. cit., p. 57), segundo um “princípio de congruência ou analogia substancial entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos protegidos pelo direito penal”, sendo que esta é hoje a doutrina claramente dominante, quer em Portugal, quer nos restantes países (cfr. Conceição Cunha, ‘Constituição e Crime’. Uma perspectiva da criminalização e da descriminalização, Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995, passim, especialmente p. 167-215 e bibliografia cit. nas pp. 113-114, nota 314, bem como também, especificamente sobre esta questão, Sousa e Brito, “A Lei Penal na Constituição” in Textos de apoio de Direito Penal II, Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa. 1983‑1984, p. 3 e ss., Fernanda Palma, “Constituição e Direito Penal” in Casos e Materiais de Direito Penal, coordenação de Fernanda Palma/Carlota Pizarro de Almeida/José Manuel Vilalonga, Coimbra: Almedina, 2000, p. 21 e ss., e, para uma análise da doutrina e jurisprudência alemã, Klaus Tiedemann, “Constitución y derecho penal”, in Revista Española de Derecho Constitucional XI, n.º 33 (1991), p. 145 e ss.).
Assim, Maria Fernanda Palma, porventura adotando uma posição um pouco mais matizada, escreve que “a dignidade punitiva não pode ser confirmada quando se estiver perante o exercício de liberdades constitucionais, como, por exemplo, a liberdade de consciência ou de expressão do pensamento; não há incriminações obrigatórias como uma espécie de qualidade própria dos factos ou exigência suscitada por eles, tendo em conta que sejam concebíveis políticas criminais alternativas à punição; a manifesta desproporcionalidade das penas ante o comportamento proibido torna ilegítima a incriminação. Já são questões mais complexas e controvertidas, algumas ainda gerais, em que o acórdão do tribunal constitucional assenta as bases da sua argumentação: em primeiro lugar, a inexistência de um bem jurídico com relevância constitucional inviabiliza a constitucionalidade de qualquer norma incriminadora; em segundo lugar, a dignidade da pessoa humana não é referente adequado ou suficiente para legitimar a constitucionalidade de uma norma penal” (cfr. Maria Fernanda Palma, “O mito da liberdade das pessoas exploradas sexualmente na Jurisprudência do Tribunal Constitucional e a utilização concetualista e retórica do critério do bem jurídico”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. 1.XII (2021) 1, p. 997).
Dito de outra forma, “Será assim de reconhecer, fundamentalmente na esteira de Figueiredo Dias, que o direito penal português deve ser comandado pelo princípio jurídico-constitucional de que «todo o direito penal é um direito penal do bem jurídico» residindo por isso na Constituição o quadro referencial dos bens jurídico-penais. Tanto do lado da doutrina como do lado da jurisprudência é comum o apelo ao art. 18.º, n.º 2, da Constituição para reforçar este pensamento de estrita vinculação do direito penal à ordenação axiológico-constitucional dos bens jurídicos. […] Determinando a Constituição que tais limitações só se justificam na medida do necessário para «salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» (art. 18.º-2) (8), só pode concordar-se com Figueiredo Dias quando considera ser indiscutível que daqui resulta uma influência decisiva para a determinação dos bens jurídicos que o direito penal pode legitimamente tutelar. Esses bens jurídicos, os bens jurídico-penais, deverão corresponder a direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (Vide Nuno Brandão, “Bem jurídico e direitos fundamentais: entre a obrigação estadual de proteção e a proibição do excesso”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, Coimbra, 2017, p. 240).
Nestes termos, é hoje indiscutível a existência do “princípio jurídico-constitucional do «direito penal do bem jurídico», enquanto parâmetro de controlo da constitucionalidade de normas incriminatórias a partir dos critérios da dignidade penal do bem jurídico e da necessidade da intervenção penal (da carência de tutela penal), o qual começou por ser fundado nos princípios constitucionais da justiça e da proporcionalidade, enquanto princípios decorrentes da ideia de Estado de direito democrático, consignada no artigo 2.º da Constituição. Presentemente a base de sustentação passa antes pelo princípio da proporcionalidade, expressamente aflorado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, a partir da revisão constitucional de 1982, de acordo com o qual, as restrições legais aos direitos liberdades e garantias, nos casos expressamente previstos na Constituição, têm de limitar-se ao necessário para a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (Maria João Antunes, “Direito penal, direito processual penal e direito da execução das sanções privativas da liberdade e jurisprudência constitucional”, in Julgar, n.º 21, 2013, p. 90).
12. No que se refere ao bem jurídico tutelado pelo crime de maus tratos a animais, é de notar que a lei penal positiva fornece, muitas vezes, o bem jurídico que se visa proteger (que são, usualmente, os clássicos bens jurídicos, com ampla tradição, como a 'integridade física', a 'vida', a 'liberdade e autodeterminação sexual', etc.), pelo que o sistema externo, para usar a expressão consagrada de Philipp Heck (significando, “no essencial, os conceitos de ordem da lei”, destinado ao “agrupamento da matéria e à sua apresentação tão clara e abrangentemente quanto possível”, tendo pois um certo valor, mas sempre secundário em relação ao sistema interno, o “sistema de decisões de conflitos” – cfr. Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito, trad. Menezes Cordeiro, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 26 e 55 e ss.), tem um valor próprio e dá-nos um indício para a determinação do bem jurídico, embora não seja suficiente para que, sem mais, se conclua que é esse efetivamente o bem jurídico protegido.
Ora, tendo em consideração a colocação sistemática dos artigos 387.º e 389.º – inseridos no Título VI, que tem como epígrafe “Dos crimes contra os animais de companhia” –, constitui verdadeiro truísmo concluir que, nos crimes contra animais de companhia que constam desse novo título do CP, o legislador ordinário procurou tutelar, de alguma forma, a vida, a integridade e o bem-estar dos animais de companhia (inserindo-se, claramente, no que Maria Luísa Duarte designa de corrente maioritária que visa “garantir a proteção do bem-estar dos animais (“welfarist approach”); reflexo da filosofia dita utilitarista, define prioridades de tutela dos animais, com vincada prudência política e pragmatismo social; privilegia a obtenção de resultados realistas na evolução do direito aplicável à melhoria contínua do bem-estar animal, tornando secundária ou mesmo inconveniente a questão da natureza jurídica do animal e a sua autonomia ou idoneidade como centro de imputação de verdadeiros direitos” – ver Maria Luísa Duarte, “Direito da União Europeia e estatuto jurídico dos animais: uma grande ilusão?”, in Maria Luísa Duarte/Carla Amado Gomes (coord.), Animais: Deveres e Direitos, Lisboa, 2015, p. 35), evitando que os mesmos sejam submetidos a dor, sofrimento e maus tratos ou mesmo mortos sem, como se verá melhor infra, qualquer “motivo legítimo”.
Focando-nos, agora, especificamente no texto da Constituição portuguesa, basta uma simples leitura do mesmo para concluir que ela não contém, literal e expressamente, qualquer normativo de onde se possa retirar, de forma direta e explícita, a proteção do bem-estar dos animais (de companhia), não sendo, portanto, os animais considerados, de forma explícita, como objeto de tutela jurídico-constitucional. Esta constatação pesou, certamente, na conclusão a que se chegou no Acórdão n.º 867/2021 de que não existe qualquer bem jurídico constitucionalmente tutelado que justifique a existência da incriminação em questão, sendo a norma que a prevê inconstitucional por violação, prima facie, do artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
A falta de referência expressa da CRP à proteção dos animais fica certamente a dever-se ao contexto histórico em que a mesma surgiu, em que não havia ainda (ou, pelo menos, não era tão generalizado, em especial entre nós) esse sentimento comum relativamente à necessidade de tutela do bem-estar dos animais – o que, aliás, também ocorreu noutras matérias atualmente merecedoras de toda a atenção como, v.g., a da proteção do ambiente. A verdade é que até há bem pouco tempo a proteção dos animais (ou de alguns deles) enquanto tais (e tidos os mesmos como seres sencientes) não constituía uma implicação imediata e, porventura, nem sequer lógica do constitucionalismo. Ultrapassada que está uma conceção exclusivamente antropocêntrica da constituição – de que a CRP, como a generalidade das constituições suas contemporâneas é tributária –, e tendo já o legislador ordinário e o legislador europeu dado os primeiros passos no sentido da tutela jurídica dos animais e da sua dignidade, seria importante que o legislador constituinte de revisão igualmente desse um passo no mesmo sentido, tendo sempre em mente, obviamente, que os textos constitucionais não são leis ordinárias, destinadas a estabelecer uma disciplina jurídica exaustiva das matérias e questões que justificam a atribuição de dignidade constitucional. Enquanto não o faz, diversas são as posições que podem ser adotadas quanto ao nível de proteção jurídica de que beneficia o bem jurídico ‘bem-estar dos animais de companhia’.
Uma primeira possibilidade é a de defender que o bem jurídico em questão apenas beneficia de proteção a nível penal e não, em primeira linha, a nível da constituição.
Para quem não admita que o bem jurídico ‘tutela do bem-estar animal’ está protegido pela CRP, ainda que de forma indireta ou reflexa, a criminalização está, logicamente, fora de questão – ou, por outras palavras, será inconstitucional. Com efeito, não estando o bem jurídico ‘tutela do bem-estar animal’ protegido na Constituição, o conflito entre o interesse animal e qualquer interesse humano (seja económico, religioso, científico ou de outra natureza) ou, mais ainda, com algum direito humano (em especial, o direito à liberdade do artigo 27.º da CRP, que é um direito, liberdade e garantia) assume a feição de um conflito hierárquico de bens jurídicos (bem constitucional contra bem infraconstitucional), em que o bem superior se sobrepõe ao bem inferior. Como dito supra, a criminalização dos maus tratos a animais materializa uma restrição a direitos fundamentais da pessoa humana, em particular ao direito, liberdade e garantia acima identificado. Ora, extrai-se do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, que a ponderação dos bens em conflito pressupõe que ambos tenham assento constitucional (as restrições devem limitar-se ao necessário “para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” – negrito nosso). A propósito deste segmento do dispositivo em questão, Canotilho dá-nos conta deste mesmo aspeto: “A Constituição, ao autorizar a lei a restringir direitos, liberdades e garantias, de forma a permitir ao legislador a realização de uma tarefa de concordância prática justificada pela defesa de outros bens ou direitos constitucionalmente protegidos, impõe uma clara vinculação ao exercício dos poderes discricionários do legislador”. Ainda a propósito da concordância prática, o mesmo autor afirma o seguinte: “Reduzido ao seu núcleo essencial, o princípio da concordância prática impõe a coordenação e a combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação a outros. O campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio está a ideia do igual valor dos bens constitucionais (e não de uma hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação a outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens” (v. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 2003, pp. 457 e 1225 – negritos nossos).
Uma segunda possibilidade é a de defender a existência de uma proteção indireta ou reflexa do bem-estar animal.
É verdade que sempre é possível defender que as normas constitucionais podem ser interpretadas e aplicadas pela jurisdição constitucional de acordo com o contexto atual e a própria evolução social. Pode, porventura, encontrar-se essa visão mais atualista e dinâmica do texto constitucional nos dois votos de vencido constantes do Acórdão n.º 867/2021, onde se considerou que a proteção dos animais, incluindo (ou até em primeiro lugar, desde logo) dos animais de companhia, é também um interesse protegido na CRP. Efetivamente, não se vê que não se consiga, atualmente e mesmo com algum esforço hermenêutico, encontrar fundamento para a existência de um bem jurídico constitucionalmente tutelado relativo ao bem-estar animal. Não obstante, este reconhecimento ‘forçado’ ou artificioso da tutela constitucional dos animais apresenta-se bastante débil.
Para já, não se trata, longe disso, de uma posição consensual entre nós. Nas palavras de Susana Aires de Sousa, “Encontramos propostas que referem a tutela penal dos animais ao ambiente ou à dignidade humana; ou que tomam a vida e integridade física dos animais como interesse a tutelar; ou ainda o sentimento de compaixão ou de solidariedade para com os animais (Gimbernard Orteig); ou mesmo a capacidade de sofrimento dos animais (Claus Roxin)” (cfr. Susana Aires de Sousa, “Argos e o Direito Penal (Uma leitura «Dos Crimes Contra Animais de Companhia» à luz dos Princípios da Dignidade e da Necessidade)”, in Julgar, n.º 32, 2017, p. 156).
Há, também, quem considere que esse bem jurídico é um bem jurídico complexo (neste sentido, Teresa Quintela de Brito, «Os crimes de maus tratos e de abandono de animais de companhia: Direito Penal Simbólico?», in Revista CEDOUA n.º 2, 2016, definindo-o como o “interesse de toda e cada uma das pessoas na preservação da integridade física, do bem-estar e da vida dos animais, em função de uma certa relação atual (ou potencial) com o agente do crime”), que resulta da conjugação da tutela constitucional do ambiente, a que se aludirá de seguida, com as considerações tecidas nos dois votos de vencido a que já se fez referência e que se transcreverão infra nas suas partes relevantes.
Para aqueles que integram ou fazem derivar a tutela dos animais da tutela mais ampla do ambiente, aquela primeira afigura-se lógica. Se os animais selvagens beneficiam claramente desta proteção constitucional por integrarem estes “componentes naturais ambientais”, não deixaria de ser paradoxal que deixassem de gozar dessa tutela por estarem mais próximos do homem, dado que são, neste caso concreto, “animais de companhia” (apesar da dificuldade, como se verá a final, em apurar quais são em concreto esses animais em face do texto legal), cujas espécies, originalmente selvagens, se mantêm há milénios ao lado do homem, que interferiu até na sua evolução, criando e privilegiando os animais cujas características mais lhe interessavam (o que explica a multiplicidade de raças de cães e de gatos, desenvolvidos de acordo com a finalidade a que se destinavam ou pela popularidade de alguns elementos fisionómicos específicos). De facto, seria absurdo que um animal selvagem fosse objeto desta tutela ambiental (e pudesse ser criminalizado, desde logo, o seu abate), mas ao ser capturado e ao passar de ser um animal ‘domesticado’ e ‘doméstico’, deixasse de ser protegido constitucionalmente, quando é verdade que a própria noção de ambiente é essencialmente antropocêntrica, tendo muito mais relevância, para a vida quotidiana de todos nós, a existência deste tipo de animais (tão próximos que a sua vida depende quase totalmente de quem os acolhe) do que propriamente, pelo menos a nível individual, dos animais selvagens.
Como vimos supra, há quem nem sequer admita esta proteção, diríamos, indireta ou reflexa (cfr. muito criticamente sobre essa possibilidade e percorrendo as várias hipóteses aventadas na doutrina penal, por todos, Rogério Osório, “Dos crimes contra os animais de companhia - Da problemática em torno da Lei 69/2014, de 29 de agosto – (O Direito Da Carraça Sobre O Cão)”, consultado em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2016/10/20161006-ARTIGO-Dos-crimes-contra-os-animais-de-companhia.pdf, e Pedro Soares de Albergaria/Pedro Mendes Lima, “Sete vidas: a difícil determinação do bem jurídico protegido nos crimes de maus-tratos e abandono de animais”, consultado em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2016/01/07-Bem-jur%C3%ADdico-nos-crimes-contra-animais-Pedro-S-Albergaria-e-Pedro-M-Lima.pdf).
Resta salientar que a própria defesa do ambiente na nossa Constituição – constituindo atualmente, sem margem para dúvidas, um interesse constitucional fundamental –, está basicamente confinada à alínea d) do artigo 9.º da CRP (norma programática, que define fins e tarefas para o Estado) e ao artigo 66.º da CRP (direito inserido na categoria dos direitos económicos, sociais e culturais).
O direito não se pode alhear de toda a problemática inerente à necessidade de preservação do ambiente, que, consequentemente, há muito vem dando origem a normativos relativos ao ambiente, como sucede, prima facie, com o artigo 66.º, n.º 1, da CRP, prescrevendo que “todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender”, impondo ao Estado uma série de tarefas para a manutenção do ambiente (“Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos: […]” – n.º 2)..
Quanto à noção de ambiente, se a Constituição não a indica explicitamente, a doutrina tem entendido que este preceito constitucional aponta para um conceito simultaneamente estrutural, funcional e unitário de ambiente, pelo que o ambiente pode, assim, ser entendido como o “conjunto dos sistemas físicos, químicos e biológicos e de fatores económicos, sociais e culturais” (como resultava, desde logo, do artigo 5.º, n.º 2, al. a) da anterior Lei de Bases do Ambiente – Lei n.º 11/87, de 7 de abril, sendo que a atual Lei de Bases da Política do Ambiente – Lei n.º 19/2014, de 14 de abril, não contém qualquer definição, referindo-se agora a “componentes ambientais naturais e humanos” – artigo 9º).
A definição constitucional de ambiente abrange, nomeadamente, “’o modo de ser global’ da realidade natural, fundado num dado equilíbrio dos seus elementos” – Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição, Coimbra, 1993, p. 347, embora com uma evidente ligação do ambiente ao próprio homem, dado que “Na lógica constitucional, o ambiente é um valor na medida em que é condição de qualidade de vida e felicidade humanas” (Pedro Soares de Albergaria/Pedro Mendes Lima, ob. cit., p. 135-136).
Por isso, seria talvez necessária uma alteração deste normativo constitucional (uma vez que “Uma conceção demasiado antropocêntrica do bem «ambiente» leva a que este se não distinga, como um conjunto de componentes da chamada biosfera, da ideia de qualidade de vida. Tal confusão conduz ao perigo de numa sociedade industrializada, proporcionadora de um aumento de qualidade de vida à custa da progressiva destruição da natureza, «de tal modo que o homem sucumbirá aos artefactos que quer consumir cada vez mais, porque se esqueceu que ele é também parte da natureza” – Pedro Maia Garcia Marques, Direito Penal do Ambiente: necessidade social ou fuga para a frente?, p. 92, consultado em .https://journals.ucp.pt/index.php/direitoejustica/article/view/11128), por forma a que essa proteção do ambiente esteja ligada, antes de mais, à preservação da vida humana a longo prazo e não apenas às condições de vida de que deve beneficiar a presente geração, embora haja igualmente autores que defendam que a literalidade deste preceito constitucional permite uma “construção de um bem jurídico «ambiente» como um conceito compreensivo, «de raiz não só personalística de direito subjetivo mas também meta-individual» que assuma como fim essencial a proteção de gerações futuras” – (Pedro Maia Garcia Marques, ob. e loc. cit.).
Já quanto à derivação da proteção do bem-estar animal da dignidade da pessoa humana, o que temos é que essa proteção, porque inevitavelmente funcionalizada aos interesses das pessoas humanas, não deixará de ceder o passo em face dos interesses dos humanos numa situação de conflito entre direitos e bens.
Em síntese, de forma necessariamente simplificadora, no atual processo de ‘juridificação’ da tutela dos animais e de ‘descoisificação’ dos mesmos, ou não se aceita, pura e simplesmente, que o bem jurídico ‘tutela do bem-estar dos animais de companhia’ esteja contemplado na Constituição – pelo que, tratando-se, apenas, de bem jurídico-penal sempre cederá perante bens jurídicos constitucionalmente contemplados –, ou se aceita que essa tutela pode derivar-se da proteção de outros bens jurídicos abrigados no texto constitucional, por via, v.g., da proteção do ambiente ou da dignidade da pessoa humana – pelo que acabará por ser uma tutela secundária ou de segundo plano, pois não se trata de uma tutela autónoma, antes se tratando de uma tutela funcionalizada ou aos interesses humanos ou à necessidade de garantir o equilíbrio dos ecossistemas. Caso se aceite a tese da proteção indireta ou reflexa, os animais, in casu, os animais de companhia, serão certamente objeto de disciplina jurídica, mas não figurarão necessariamente como sujeitos de imputação de posições jurídicas, designadamente de direitos.
13. Neste Tribunal, a questão da cobertura constitucional da tutela dos animais de companhia foi já objeto de alguns arestos proferidos na 3.ª Secção. Como aflorado supra, à posição maioritária, que nega a existência de tutela constitucional dos animais de companhia, opõem-se os dois votos de vencidos já aludidos, dos quais foram extraídos os seguintes trechos:
- Juíza Conselheira Joana Fernandes Costa:
“[…]
No segmento final do seu artigo 1.º – sem correspondência, aliás, na Lei Fundamental de Bona –, a Constituição vincula a República – e, consequentemente, o próprio Estado – a empenhar-se na «construção de uma sociedade [...] solidária». Isto é, na edificação de «uma ordem referenciada através de momentos de solidariedade e de co-responsabilidade de todos os membros da comunidade uns com os outros» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra, 2007, p. 200-201), mas também – não há hoje razões para o não afirmar – dos membros da comunidade para com aqueles animais que aqueles colocaram na sua direta dependência, para «seu entretenimento e companhia» (artigo 389.º, n.º 1, do Código Penal). É por isso que a «relação de cuidado-de-perigo» em que se funda a ordem penal, apesar de continuar a ser fundamentalmente uma relação «entre homens e mulheres em comunidade», há de poder compreender também a especial forma de relatio que o homem estabeleceu com aquela categoria de animais (no sentido oposto, cf. José de Faria Costa, “Sobre o objeto da proteção do direito penal: o lugar do bem jurídico na doutrina de um direito penal não iliberal”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 142.º, janeiro-fevereiro de 2013, p. 171), sem com isso incorrer – e é o que aqui importa – no risco de se desvincular da ordem axiológica subjacente à ordenação unitária da vida política e social expressa na Constituição.
Perante o princípio do direito penal do bem jurídico, a legitimidade da criminalização dos maus tratos a animais de companhia reside precisamente aqui. Na circunstância de os momentos de solidariedade pressupostos pelo tipo de sociedade que a Constituição encarrega o Estado de promover não excluírem, antes acomodarem, a valorização pela ordem jurídico-penal da relação de cuidado-de-perigo em que o homem ficou investido perante os animais que colocou na sua dependência, legitimando assim a limitação por via penal do chamado «anything goes» – expressão usada por R. G. Frey para designar a posição que defende a possibilidade de «fazermos o que quisermos» com os animais (“Animals”, The Oxford Handbook of Practical Ethics, ed. Hugh LaFollette, 2003, reedição de 2009, p. 167 e ss.); ou, numa formulação mais próxima, a limitação dos poderes absolutos de disposição sobre animais de companhia, por via da imposição a quem com eles interage de um dever de abstenção da prática de atos causadores de dor ou sofrimento graves e desnecessários e/ou de forma impiedosa ou cruel.
Se assim for, o processo de criminalização dos maus tratos a animais de companhia não apenas se achará positivamente legitimado à face do princípio do direito penal do bem jurídico – na medida em que tutela penal terá por objeto um bem jurídico dedutível (e dedutível com suficiente tangibilidade), do dever (pré-existente) do Estado promover a construção de uma sociedade solidária –, como não enfrentará o risco de se debater, nem com os limites traçados pela função negativa que aquele princípio igualmente desempenha – ao proscrever a incriminação de puras violações morais, proposições meramente ideológicas e/ou valores de mera ordenação (v. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 141 e ss.) –, nem com os limites que decorrem da natureza fragmentária e subsidiária que a Constituição, ainda por força do n.º 2 do seu artigo 18.º, fixa ao direito penal.
[…]”.
- Juiz Conselheiro Gonçalo Almeida Ribeiro:
“[…]
é precisamente em virtude da sua singular capacidade de habitarem um universo de valores, de participarem de uma ordem em que, ao contrário do mundo natural, as coisas podem ser, inter alia, úteis ou inúteis, boas ou más, que as pessoas têm a possibilidade de reconhecer a sensibilidade e vulnerabilidade dos animais e predicar-lhes funções e interesses. A dignidade da pessoa humana opera, pois, não apenas como um princípio de ordem na relação do indivíduo com as outras pessoas – do respeito que os indivíduos se devem mutuamente como entes livres, iguais e infungíveis –, mas também como um princípio de ordem na relação da pessoa humana com os demais seres sencientes – uma assunção da responsabilidade do ser humano pelos animais cujos interesses só ele tem a capacidade de reconhecer e por atenção aos quais tem a possibilidade de se orientar.
Por isso, uma república baseada na dignidade da pessoa humana − no estatuto superior desta como criatura de valores − não pode deixar de se preocupar com o bem-estar dos animais e de outorgar a estes a proteção jurídica correspondente. Se o legislador de revisão constitucional, emulando o homólogo germânico, viesse um dia a introduzir a expressão «e os animais» algures no artigo 9.º da Constituição – que enuncia as tarefas fundamentais do Estado –, não estaria de modo algum a consagrar «três decisivas palavras» para a interpretação constitucional, mas a exprimir algo que esta, ainda que com as dificuldades acrescidas inerentes ao ónus de argumentação a partir de primeiros princípios, tinha já todas as possibilidades de alcançar. Em suma, não se trataria de nenhuma rutura com a ordem constitucional vigente, antes de uma explicitação oportuna de um dos seus compromissos axiológicos.
[…].
É nesta dependência e vulnerabilidade particulares dos animais de companhia em relação aos seres humanos, as quais resultam de um processo de hominização das suas condições de vida, que se desenrola por vezes ao nível individual da domesticação de um concreto animal e noutras num arco histórico de tal forma longo que abrange a própria espécie e influenciou a sua evolução biológica, que se encontra a chave para decifrar o enigma do bem jurídico subjacente à sua tutela penal. Os animais de companhia são aqueles por cujo bem-estar os seres humanos, que em boa medida os desnaturaram e docilizaram, privando-os de capacidades indispensáveis para a sobrevivência na natureza e desarmando-os dos instintos de defesa contra a agressão, têm uma responsabilidade acrescida. É essa natureza qualificada do bem-estar dos animais de companhia que pode legitimar, de acordo com o princípio da intervenção mínima, que só nesse domínio circunscrito seja dispensada a tutela penal. Por outras palavras, embora a ordem constitucional, devidamente compreendida, salvaguarde portanto o bem-estar de todos os animais sencientes, sem prejuízo das graduações que se justifiquem pela complexidade variável das diferentes espécies, na interpretação mais caridosa do que tenham sido as finalidades do legislador só o bem-estar dos animais de companhia legitima a intervenção penal em virtude das especiais responsabilidades que nessa matéria têm os seres humanos. Trata-se de uma opção de política criminal perfeitamente defensável do ponto de vista constitucional.
[…]”.
Em ambos os casos, partindo-se do mesmo preceito constitucional (o artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana […] e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”), mas acentuando distintos segmentos – num caso a solidariedade e os deveres que dela decorrem, no outro a dignidade da pessoa humana –, procurou-se preencher a amplitude e indeterminação típica das normas abertas ou cláusulas gerais constitucionais de acordo com a evolução da própria sociedade portuguesa e as modificações do específico substrato axiológico inerente à mesma, permitindo acolher a referida transformação social no sentido de tutelar o bem-estar animal.
A propósito, especificamente, das potencialidades expansivas do princípio da dignidade da pessoa humana, atentemos no seguinte trecho extraído do Acórdão do TC n.º 105/90:
“[…]
Não se nega, decerto, que a «dignidade da pessoa humana» seja um valor axial e nuclear da Constituição portuguesa vigente, e, a esse título, haja de inspirar e fundamentar todo o ordenamento jurídico. Não se trata efectivamente – na afirmação que desse valor se faz logo no artigo 1.º da Constituição – de uma mera proclamação retórica, de uma simples «fórmula declamatória», despida de qualquer significado jurídico-normativo; trata-se, sim, de reconhecer esse valor – o valor eminente do homem enquanto «pessoa», como ser autónomo, livre e (socialmente) responsável, na sua «unidade existencial de sentido» – como um verdadeiro princípio regulativo primário da ordem jurídica, fundamento e pressuposto de «validade» das respectivas normas». E, por isso, se dele não são dedutíveis «directamente», por via de regra, «soluções jurídicas concretas», sempre as soluções que naquelas (nas «normas» jurídicas) venham a ser vazadas hão-de conformar-se com um tal princípio, e hão-de poder ser controladas à luz das respectivas exigências (sobre o que fica dito, v., embora não exactamente no mesmo contexto, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pp. 106 e segs. e, especialmente, pp. 130 e segs.). Quer tudo isto dizer – em suma – que o princípio da «dignidade da pessoa humana» é também seguramente, só por si, padrão ou critério possível para a emissão de um juízo de constitucionalidade sobre normas jurídicas.
Simplesmente, não pode também deixar de reconhecer-se que a ideia de «dignidade da pessoa humana», no seu conteúdo concreto – nas exigências ou corolários em que se desmultiplica –, não é algo de puramente apriorístico (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., 2.ª ed., Coimbra, 1984, p. 70, anotação IV) e ou a-histórico, mas algo que justamente se vai fazendo (e que vai progredindo) na história, assumindo, assim, uma dimensão eminentemente «cultural». Para dizer ainda com Vieira de Andrade: «o valor da dignidade da pessoa humana […] corresponde a uma potencialidade característica do ser humano, que se vai atualizando nas ordens jurídicas concretas» (ob. cit., p. 113). Ora, este ponto reveste-se da máxima importância, quanto à possibilidade de emitir um juízo de inconstitucionalidade sobre determinada solução legal, com base tão-só em que ela viola esse valor, ideia ou princípio.
É que, se o conteúdo da ideia de dignidade da pessoa humana é algo que necessariamente tem de concretizar-se histórico-culturalmente, já se vê que no Estado moderno – e para além das projeções dessa ideia que encontrem logo tradução ao nível constitucional em princípios específicos da lei fundamental (maxime, os relativos ao reconhecimento e consagração dos direitos fundamentais) – há-de caber primacialmente ao legislador essa concretização: especialmente vocacionado, no quadro dos diferentes órgãos de soberania, para a «criação» e a «dinamização» da ordem jurídica, e democraticamente legitimado para tanto, é ao legislador que fica, por isso, confiada, em primeira linha, a tarefa ou o encargo de, em cada momento histórico, «ler», traduzir e verter no correspondente ordenamento aquilo que nesse momento são as decorrências, implicações ou exigências dos princípios «abertos» da Constituição (tal como, justamente, o princípio da «dignidade da pessoa humana»)”.
Também no plano doutrinal se tem vindo a assinalar a capacidade expansiva do princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, afirma Catarina Santos Botelho que “o conceito de dignidade da pessoa humana evidencia a sua natureza autorreferencial, porquanto a dignidade de um ser humano é precisamente aquilo que faz desse ser um ser humano, é a humanidade que lhe subjaz. A conexão entre a dignidade da pessoa humana e o Direito passa pela aceitação de que é o Direito que existe para o homem e que se deve moldar a ele, e não o oposto. Por este motivo, a constitucionalização da dignidade da pessoa humana transforma em “dever-ser jurídico”, vinculando toda a atividade estadual” (v. Catarina Santos Botelho, “A dignidade da pessoa humana – Direito subjetivo ou princípio axial?”, p. 275, disponível em https://revistas.rcaap.pt/juridica/article/view/9764). De idêntico modo, Benedita Mac Crorie fala-nos de “um conceito histórico-cultural e que está em permanente evolução. Para além disso, vimos que se trata de uma fórmula vazia, pelo que este é um conceito extremamente complexo e que pode ser utilizado quer de forma a potenciar quer de forma a limitar a liberdade individual, se utilizado de forma paternalista pela parte do Estado. A nosso ver, em virtude da consagração expressa de um direito ao livre desenvolvimento da personalidade na nossa Constituição, este conceito está intimamente relacionado com uma conceção de homem como ser dotado de liberdade e autodeterminação” (cfr. Benedita Mac Crorie, «Recurso ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na jurisprudência do Tribunal Constitucional» in Separata dos Estudos em comemoração do 10.º aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, Coimbra, 2003, p, 173).
O princípio fundador da dignidade da pessoa humana, entendido desta forma e por referência ao presente contexto sociocultural, permite concluir que essa dignidade só é realizada, atualmente, se existir também um dever do próprio ser humano de causar o menor dano possível aos animais que nos rodeiam, especialmente àqueles que nos fazem companhia, que integravam originalmente a fauna selvagem e que há muito tempo passaram a fazer parte, como elemento vivo e atuante, das nossas casas e vidas, assim se construindo uma sociedade mais solidária e com um legado de respeito por todos os animais a transmitir para as gerações futuras, deixando essa solidariedade interpessoal sempre necessária em qualquer comunidade estender-se e abranger igualmente os animais que são mais importantes para todos nós.
14. Em suma, uma sociedade justa e solidária será necessariamente uma sociedade que se preocupa com o bem-estar animal. “A visão que as normas relativas à crueldade animal procuram prevenir danos aos animais é normativamente apelativa e descritivamente iluminadora. De um ponto de vista normativo, conferir proteção legal aos seres sencientes não-humanos é um desenvolvimento bem-vindo. Se todos podemos concordar que experimentar dor é algo que vale a pena evitar e que os animais não humanos têm a capacidade de ter consciência dessas sensações, segue-se que devemos também protegê-los da inflição injustificada de sofrimento” (v. Luis E. Chiesa, “Why is it a Crime to Stomp on a Goldfish? - Harm, Victimhood and the Structure of Anti-Cruelty Offenses”, p. 64, consultado em https://digitalcommons.law.buffalo.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1725&context=journal_articles). Por assim ser, a criminalização dos maus tratos a animais, rectius, de alguns animais, é um imperativo ético e civilizacional, ainda que a mesma, pelo menos num primeiro momento, esteja dirigida aos casos mais graves (“Estando sempre em causa um agir ético do homem no sentido de evitar ou mitigar o sofrimento (mais ou menos humanamente percetível) e/ou de respeitar as diversas formas de vida (por longínquas que sejam da forma humana de vida) – com as quais nós, humanos, inevitavelmente partilhamos dependências, contingências e vulnerabilidades – compreende-se que a tutela penal (subsidiária, fragmentária e de ultima ratio) se deva restringir aos casos ético-socialmente insuportáveis, além de evidentemente atentatórios da vida, integridade física ou saúde dos animais” – cfr. Teresa Quintela de Brito, “O abandono de animais de companhia», p. 94 https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2019/2/2019_02_0077_0095.pdf).
Mas, para que haja uma proteção efetiva do bem-estar dos animais, é necessário que existam normas constitucionais que tenham os animais, na sua condição de seres sencientes, como fim último. Ao Estado, e em primeira linha ao legislador, constituinte/de revisão ou ordinário, cabe contribuir para essa proteção: “O tipo da crueldade com animais protege o animal, e não a nós; e a proteção de animais é tarefa do Estado, porque os animais possuem uma ainda que restrita capacidade de autodeterminação, sendo portanto irrestritamente vulneráveis a heterodeterminação. E minimizar a heterodeterminação está entre as tarefas primordiais do Estado liberal” – Luís Greco, «Proteção de bens jurídicos e crueldade com animais», consultado em https://www.ibccrim.org.br/publicacoes/edicoes/443/7237).
Com efeito, ainda que, como atrás se disse, se possa admitir, a custo, numa leitura atualista e dinâmica do texto constitucional, que o bem jurídico ‘tutela do bem-estar dos animais de companhia’ ainda encontra arrimo em normas constitucionais, como as que se referem à dignidade da pessoa humana, à solidariedade ou à proteção do ambiente – a custo, uma vez que qualquer interpretação atualista do texto constitucional sempre terá como limite o princípio da certeza jurídica, sendo certo que não há propriamente consenso, entre nós, de onde derivar a tutela jurídico-constitucional dos animais de companhia –, consubstanciando a criminalização dos maus tratos a animais uma restrição a direitos fundamentais da pessoa humana, dificilmente, numa ponderação de bens em conflito, o interesse dos animais, assegurado de forma tão ténue a nível constitucional, se imporá. E, a impor, será sempre em casos contados e em situações delimitadas com todo o rigor e cautela. Fora de questão está a ideia de fazer derivar das normas respeitantes à dignidade humana ou à tutela do ambiente posições jurídicas subjetivas de que seriam titulares os animais de companhia. Mas não é este, apenas, o motivo pelo qual a tutela dos animais de companhia deverá ser contemplada de forma autónoma no texto constitucional – sendo sempre ao legislador constituinte/de revisão que cabe decidir sobre a necessidade ou oportunidade de uma tal opção. É certo que o legislador ordinário e a jurisprudência têm um papel fundamental no desenvolvimento e concretização da disciplina jurídica relacionada com a proteção dos animais (de companhia). Mas, para isso, seria importante perceber em que moldes se deve dar essa proteção. A verdade é que a proteção jurídica dos animais pode enraizar-se em distintos fundamentos (v.g., na antropomorfização dos animais, considerados os mesmos como seres sencientes, inteligentes, capazes de demonstrar emoções e necessidades afetivas, ou na não discriminação dos animais em relação aos seres humanos, gerando fenómenos próximos do racismo ou do sexismo). Acresce a isto que, porventura, a proteção jurídica dos animais se justifica atualmente mais com base “na valorização das recentes descobertas científicas que demonstraram a natureza senciente do animal, em particular daquele de companhia ou afeição” do que “na relação ancestral que liga o homem ao animal”. Ora, todas estas diferenças poderão ter implicações relevantes em termos da disciplina jurídica da tutela dos animais. Mais ainda, serão determinantes na escolha do tipo de tutela adequada da dignidade animal: através do reconhecimento de subjetividade jurídica aos animais e da sua consideração como centro de imputação de direitos ou, ao invés, mediante a criação de normas jurídicas que prescrevam deveres aos seres humanos, em especial, aos donos dos animais (v. Fiore Fontanarosa, “I diritti degli animali in prospettiva comparata”, pp. 192-3 – consultado em www.dpceonline.it/index.php/dpceonline//view/1243).
Não podemos deixar de mencionar, por último, que o voluntarismo do legislador ordinário (que se adiantou ao legislador constituinte/de revisão), a que os juízes constitucionais poderão, ou não, dar cobertura, pode comportar, neste caso concreto da criminalização dos maus tratos a animais de companhia, riscos sérios de erosão do texto constitucional. Citemos, para o efeito, as palavras de Canotilho: “Perspectiva diferente se deve adoptar quanto às tentativas de legitimação de uma interpretação constitucional criadora que, com base na força normativa dos factos, pretenda «constitucionalizar» uma alteração constitucional em inequívoca contradição com a constitutio scripta. Algumas concepções que defendem a ideia de constituição como concentrado de princípios, concretizados e desenvolvidos na legislação infraconstitucional, apontam para a necessidade da interpretação da constituição de acordo com as leis, a fim de encontrar um mecanismo constitucional capaz de salvar a constituição em face da pressão sobre ela exercida pelas complexas e incessantemente mutáveis questões económico-sociais. Esta leitura da constituição de baixo para cima, justificadora de uma nova compreensão da constituição a partir das leis infraconstitucionais, pode conduzir à derrocada interna da constituição por obra do legislador e de outros órgãos concretizadores, e à formação de uma constituição legal paralela, pretensamente mais próxima dos momentos «metajurídicos» (sociológicos e políticos). Reconhece-se, porém, que entre uma mutação constitucional obtida pela via interpretativa de desenvolvimento do direito constitucional e uma mutação constitucional inconstitucional há, por vezes, diferenças quase imperceptíveis, sobretudo quando se tiver em conta o primado do legislador para a evolução constitucional […] e a impossibilidade de, através de qualquer teoria, captar as tensões entre a constituição e a realidade constitucional” (cfr. J.J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 1230).
15. Passando, agora, para a segunda questão de constitucionalidade, é importante, antes de mais, sublinhar que a criminalização dos maus-tratos a animais não pode deixar de ser enquadrada, como se verá adiante, na problemática mais ampla da relação entre os direitos humanos e os direitos das espécies não humanas, sendo o direito dos animais um conjunto de normas que visa disciplinar as relações entre os animais e os seres humanos, em especial os deveres dos primeiros para com os segundos (cfr. Fiore Fontanarosa, ob. cit., p. 169).
Feito este aviso prévio, temos que, para o princípio da legalidade (penal), a regra penal tem, na formulação expressiva de Stamatios Tzitis, uma função principal, poiética, que é “ontológica” e “ôntica” e que “que cria a ação punível” – uma vez que “é inconcebível condenar alguém sem uma previsão jurídica” –, bem como, secundariamente, uma função referencial (relativa à ligação entre o ato previsto na norma penal e a punição, estabelecendo a lógica punitiva) e uma função expressiva, que “tende a transmitir pela semântica de punição claramente formulada, uma mensagem compreensiva e concreta aos destinatários do direito penal”, para o fazerem respeitar (v. Stamatios Tzitis, Filosofia Penal, 1999, p. 19-21).
Aquela primeira função corresponde, assim, à conhecida máxima Nullum crimem, nulla poena sine lege, que Figueiredo Dias traduz como correspondendo à ideia de que “não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa”, tendo como fundamento vários princípios constitucionais (o princípio liberal, democrático e da separação dos poderes) e, já no âmbito do direito penal, a ideia de prevenção geral e o princípio da culpa (Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral I, Coimbra, 2004, p. 163 e pp. 167-168
Assim, a primeira função da regra penal corresponde à chamada função de garantia do tipo penal (cfr., por todos, Cobo Del Rosal/Vives Antón, Derecho Penal. Parte General, Valencia, 1984, p. 271; ampliando essa função a todas as categorias científicas do tipo-de-ilícito, Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal. Parte General, 4.ª Edição, trad. espanhola, Granada, 1993, §15, p. 112 e ss., e Claus Roxin, Teoría del tipo penal. Tipos abiertos y elementos del deber jurídico, trad. espanhola, Buenos Aires, 1979, p. 170), garantindo que ninguém pode ser condenado criminalmente senão em virtude de uma lei anterior que criminalize a sua conduta (pelo que a lei penal constitui, na expressão muito difundida de Franz von Lizst, ‘a Magna Carta do cidadão’ – cfr./apud ? Zugaldía Espinar, Fundamentos de Derecho Penal, 3.ª Edição, Valencia, 1993, p. 276).
Como refere Figueiredo Dias (ob. cit., p. 168), “Não pode esperar-se que a norma cumpra a sua função motivadora do comportamento da generalidade dos cidadãos – seja na sua vertente «negativa» de intimidação, seja sobretudo na sua vertente positiva de estabilização das expectativas – se aqueles não puderem saber, através de lei anterior, estrita e certa, por onde passa a fronteira que separa os comportamentos criminalmente puníveis dos não puníveis”.
16. O princípio da legalidade penal tem assento constitucional, resultando, desde logo, do artigo 29.º, n.º 1, da CRP (“Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior”), tendo sido já múltiplas vezes apreciado por este Tribunal, como sucedeu desde logo, procurando selecionar dois dos arestos mais expressivos e desenvolvidos a esse respeito, no Acórdão n.º 20/2019:
“[…]
o princípio da legalidade penal desdobra-se essencialmente nas exigências de que a criminalização ou a agravação de condutas resulte de lei prévia, escrita, estrita e certa. O princípio tem fundamentos múltiplos, mas assume especial intensidade a sua dimensão de garantia dos cidadãos contra a atuação punitiva do Estado. Nesse sentido, sublinhou-se no Acórdão n.º 183/2008 que não se trata aqui «apenas de um princípio constitucional mas de uma “garantia dos cidadãos”, uma garantia que a nossa Constituição – ao contrário de outras que a tratam a respeito do exercício do poder jurisdicional – explicitamente incluiu no catálogo dos direitos, liberdades e garantias», com «toda a carga axiológico-normativa que lhe está subjacente». Na doutrina, veja-se por exemplo MARIA JOÃO ANTUNES, “A problemática penal e o Tribunal Constitucional”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor J. J. Gomes Canotilho, I, Boletim da FDUC, n.º 102 (2013), p. 111, destacando esta precisa passagem, e J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 2003, p. 1167, referindo-se ao princípio da legalidade como um «princípio-garantia» que visa «instituir directa e imediatamente uma garantia dos cidadãos».
A vertente do princípio da legalidade que aqui está em causa é a exigência de lex certa – i.e., de determinação da lei penal –, frequentemente referida como “princípio da tipicidade”. Esta vertente do princípio da legalidade foi já objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional em alguns acórdãos, onde se delineou o seu conteúdo. Assim, por exemplo, no Acórdão n.º 168/99, afirmou-se que: «Averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima.».
Esta delineação do conteúdo do princípio da tipicidade traz ínsita uma posição sobre uma questão metodológica fundamental, embora hoje pacífica, qual seja, a de saber se é concebível que os termos utilizados na lei sejam absolutamente unívocos. Ou seja se há termos cujo significado seja indiscutível, dispensando um processo de apuramento do seu significado. Postergada que se encontra a linha do pensamento jurídico segundo a qual o conteúdo das normas jurídicas poderia ser de tal modo claro que do aplicador se poderia esperar que simplesmente as pronunciasse, será hoje consensual que a aplicação de qualquer norma jurídica requer uma atividade interpretativa (cf. ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES, O Actual Problema Metodológico da Interpretação Jurídica. I, Coimbra Editora, 2003, p. 65 ss.; ou DAVID DUARTE, A Norma de Legalidade Procedimental Administrativa. A teoria da norma e a criação de normas de decisão na discricionariedade instrutória, Coimbra Editora, 2006, p. 170 ss.).
É esse, de facto, o entendimento imanente à generalidade das referências jurisprudenciais e doutrinárias sobre o princípio da tipicidade. Assim, ao Acórdão que acabou de se referir, poderá acrescentar-se o Acórdão n.º 852/2014, quando afirma que aquele princípio impõe que a lei penal apresente «suficiente densidade» ou «grau de determinação»; que «descreva o mais pormenorizadamente possível» a conduta proibida, detalhando-a «suficientemente» ou com «suficiente clareza»; que aquilo que se exige é «alguma determinação» e que aquilo que se proíbe é o recurso a termos de «determinação difícil»; pode também referir-se o Acórdão n.º 93/2001, quando observa, com suporte no que sustentara já a Comissão Constitucional nos seus Pareceres n.º 19/78 e n.º 32/80, que «nem sempre é possível alcançar uma total determinação – nem será, porventura, desejável –, bastando que o facto punível seja definido com suficiente certeza»; ou ainda o Acórdão n.º 76/2016, quando refere que a segurança e a confiança jurídicas postuladas pelo princípio da legalidade penal impõem a exclusão de «normas excessivamente indeterminadas» (sublinhados nossos).
No mesmo sentido, na doutrina, veja-se por exemplo JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral. I. Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2007 [DP I], p. 186, quando nota que os comportamentos proibidos devem ser «objectivamente determináveis»; ou AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, “Artigo 29.º”, in Constituição da República Portuguesa Anotada. I, Universidade Católica Editora, 2017 p. 488, quando nota que o princípio da tipicidade impõe um dever de «reduzir ao mínimo possível o recurso a conceitos indeterminados»; ou MARIA FERNANDA PALMA, Direito Penal. Conceito material de crime, princípios e fundamentos. Teoria da lei penal: interpretação, aplicação no tempo, no espaço e quanto às pessoas, AAFDL, 2017, quando afirma que a violação deste princípio não ocorre «logo que o legislador utiliza conceitos menos precisos», mas somente «quando a possibilidade de compreensão e controlo do desvalor expresso no tipo legal deixa de existir» (sublinhados nossos).
A ideia para que todas essas referências apontam é a de que o princípio da tipicidade requer um juízo de grau. São a este propósito lapidares as seguintes palavras de JOSÉ DE SOUSA E BRITO, “A Lei Penal na Constituição”, in Estudos Sobre a Constituição – 2.º Vol., Petrony, 1978, p. 244 s.: «uma total determinação é impossível devido à própria natureza da linguagem»; trata-se aqui de «uma questão de grau que [se] transforma numa questão de qualificação: a famosa mudança de quantidade em qualidade». O problema, naturalmente, está em determinar que grau é esse a partir do qual se dá a violação do princípio, problema esse que pressupõe que se defina um ponto de referência.
10. Será indiscutível que a língua é uma convenção social, no sentido de que os significados correspondentes aos vários significantes que a compõem são aqueles que uma dada comunidade lhes atribuir – cf. e.g. DAVID DUARTE, op. cit., 198 ss., notando que, consequentemente, o «acesso ao ordenamento» pressupõe um exercício de determinação da norma jurídica que permita ultrapassar a barreira da língua (p. 174).
Independentemente da questão de saber se tal exercício deve ver-se como uma fase ainda prévia e autónoma em relação a elementos da interpretação jurídica como o teleológico, ou se por eles é já inevitavelmente influenciada, não pode deixar de considerar-se que: sendo a língua uma convenção e o princípio da tipicidade uma garantia eminentemente individual, os significados que os significantes previstos na lei assumem usualmente – ou seja, aqueles que lhes são comummente atribuídos pela generalidade dos indivíduos pertencentes à comunidade – constituem um ponto fundamental de ancoragem do limite mínimo da escala de determinação pressuposta por aquele princípio. Por outras palavras: se o princípio da tipicidade visa fundamentalmente proporcionar aos indivíduos a possibilidade de conhecerem as condutas que podem praticar sem incorrerem numa pena, o significado geralmente atribuído às palavras previstas na lei constitui uma referência central para ponderar a suficiente determinação desta.
Neste sentido, veja-se por exemplo o Acórdão n.º 852/2014, notando que os comportamentos proibidos, «para constituírem crimes, têm de ser (...) definidos de modo a poderem ser percebidos como tais pelos destinatários da norma»; ou o Acórdão n.º 338/03, observando que os tipos legais de crime devem permitir «identificar os tipos de comportamentos descritos, na medida em que integram noções correntes da vida social, aferidas pelos padrões em vigor»; ou ainda o Acórdão n.º 545/2000, recorrendo mesmo à noção de «bonus pater famílias» para se reportar ao destinatário da norma penal e beneficiário primacial do princípio da tipicidade.
De igual modo, no Acórdão n.º 572/2019:
“[…]
Segundo o disposto no artigo 29.º, n.º 1 da Constituição, «[n]inguém pode ser criminalmente sentenciado senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior».
O princípio aqui consignado é um princípio-garantia; visa, portanto, instituir direta e imediatamente uma garantia dos cidadãos (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., p. 1167; v., também, o Acórdão n.º 183/2008, acessível, assim como os demais adiante citados, a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). O princípio da legalidade é uma garantia dos cidadãos, uma garantia que a nossa Constituição explicitamente incluiu no catálogo dos direitos, liberdades e garantias relevando, assim, toda a carga axiológico-normativa que lhe está subjacente.
Assim, no que concerne à teleologia do preceito, esclarece o Acórdão n.º 79/2015 que «o princípio da legalidade penal encontra a sua matriz na garantia do cidadão perante o Estado, protegendo-o contra intervenções punitivas arbitrárias, ganhando progressivamente o reforço fundamentador dos princípios democrático e da separação de poderes, com atribuição ao parlamento da competência exclusiva para definir os crimes e estabelecer as penas, e também um fundamento interno, político-criminal, por constituir exigência lógica da função de prevenção (geral e especial) e do princípio da culpa que a lei penal seja clara, precisa e anterior aos factos».
O princípio da legalidade comporta várias vertentes, fundando-se o seu núcleo essencial na interdição de existência de crime ou pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 164).
No mesmo sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, p. 494) argumentam que do princípio da legalidade penal decorrem os seguintes corolários: a) exigência de suficiente especificação do tipo de crime (ou dos pressupostos das medidas de segurança), tornando ilegítimas as definições vagas, incertas ou insuscetíveis de delimitação; b) proibição da analogia na definição de crimes; c) exigência de determinação de qual o tipo de pena que cabe a cada crime, sendo necessário que essa conexão decorra diretamente da lei.
Em suma, na descrição da conduta proibida, e na previsão da sanção, a lei penal tem de ser certa, clara, precisa e rigorosa. É um princípio que constitui, essencialmente, uma garantia de certeza e de segurança na determinação das condutas humanas que são punidas pelo direito criminal.
Nesta aceção, o princípio da legalidade manifesta-se no princípio da tipicidade, cujo sentido é o de impor ao legislador penal o ónus de, ao definir os tipos legais de crime, o fazer através da descrição precisa e certa do comportamento proibido, sem recurso a formulações vagas, incertas ou insuscetíveis de delimitação.
O princípio da tipicidade implica necessariamente uma exigência de determinabilidade do conteúdo da lei penal, desde logo por estar em causa a proteção do indivíduo perante o exercício do poder punitivo do Estado. Neste sentido, afirma-se no Acórdão n.º 105/2013 o seguinte:
«O princípio da tipicidade tem que ver, assim, com a exigência da determinabilidade do conteúdo da lei criminal. Conforme escreve Taipa de Carvalho (Constituição Portuguesa Anotada, org. por Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo I, 2.ª edição, revista, atualizada e ampliada, Wolters Kluwer Portugal - Coimbra Editora, 2010, pág. 672), «dada a necessidade de prevenir as condutas lesivas dos bens jurídico-penais e igualmente de garantir o cidadão contra a arbitrariedade ou mesmo contra a discricionariedade judicial, exige-se que a lei criminal descreva o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime. Só assim o cidadão poderá saber que ações e omissões deve evitar, sob pena de vir a ser qualificado criminoso, com a consequência de lhe vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança. Daqui resulta a proibição de o legislador utilizar cláusulas gerais na definição dos crimes, a necessidade de reduzir ao mínimo possível o recurso a conceitos indeterminados, e o imperativo de não recorrer às chamadas normas penais em branco, salvo quando tal recurso se apresente como manifestamente indispensável e a norma para que é feita a remissão seja clara na descrição da conduta punível. Esta exigência, decorrente da razão de garantia do princípio da legalidade penal, é denominada por princípio da tipicidade, traduzido pela conhecida formulação latina nullum crimen sine lege certa.»
Por conseguinte, como já se afirmou no Acórdão n.º 168/99 (e se repetiu nos Acórdãos n.ºs 383/2000, 93/2001, 352/2005, 20/2007 e 76/2016), «averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima». Precisando, assinala o Acórdão n.º 606/2018, que o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição encerra a exigência de que «a caracterização do ilícito típico seja levada a um tal ponto que torne possível aos destinatários da norma incriminadora conhecer os elementos, objetivos e subjetivos, que integram a infração e, através da apreensão, por essa forma, do elenco tanto dos valores protegidos como dos comportamentos proibidos pelo ordenamento jurídico-penal, exercerem, de forma consciente e esclarecida, a respetiva liberdade de autodeterminação».
No mesmo sentido, diz Taipa de Carvalho (Direito Penal, Parte Geral, 3.ª edição, 2016, p. 177) que o «texto legal constitui, porém, um limite às conclusões interpretativas teleológicas, no sentido de impedir a aplicação da norma a uma situação que não esteja abrangida pelo teor literal da norma, isto é, por um ou vários significados da(s) palavra(s) do texto legal. Poder-se-á dizer que, assim, ficarão, por vezes, fora do âmbito jurídico-penal situações tão ou mais graves do que as expressamente abrangidas pela norma legal []. Responde-se que assim é, e tem de ser quer em nome da tal garantia política do cidadão quer na linha do carácter fragmentário do direito penal».
Os corolários do princípio da legalidade, em relação à formulação das normas penais, estendem-se, também, às dimensões normativas acolhidas pelos tribunais comuns, para o que compete ao Tribunal Constitucional, no âmbito das suas competências, sindicar e assegurar que um conteúdo normativo definidor da responsabilidade penal, aplicado na decisão recorrida, é compatível com a letra da lei da qual é extraído (cf. Acórdão n.º 183/2008, cuja posição foi reiterada nos acórdãos n.ºs 128/2010, 324/2013, 587/2014, 106/2017):
«Nos Estados de Direito democráticos, o Direito penal apresenta uma série de limites garantísticos que são, de facto, verdadeiras entorses à eficácia do sistema penal; são reais obstáculos ao desempenho da função punitiva do Estado. É o que sucede, por exemplo, com o princípio da culpa, com o princípio da presunção de inocência, com o direito ao silêncio e, também, com o princípio da legalidade (nullum crimen sine lege certa). Estes princípios e direitos parecem não ter qualquer cabimento na lógica da prossecução dos interesses político-criminais que o sistema penal serve. Estão, todavia, carregados de sentido: são a mais categórica afirmação que, para o Direito, a liberdade pessoal tem sempre um especial valor mesmo em face das prementes exigências comunitárias que justificam o poder punitivo.
Não se pense, pois, que estamos perante um princípio axiologicamente neutro ou de uma fria indiferença ética, que não seja portador de qualquer valor substancial.
O facto de o princípio da legalidade exigir que num momento inicial do processo de aplicação se abstraia de qualquer fim ou valor decorre de uma opção axiológica de fundo que é a de, nas situações legalmente imprevistas, colocar a liberdade dos cidadãos acima das exigências do poder punitivo.
Assim se justifica que nem mesmo os erros e falhas do legislador possam ser corrigidos pelo intérprete contra o arguido.
A amplitude do processo hermenêutico e argumentativo de aplicação da lei penal encontra aqui, na moldura semântica do texto, uma barreira intransponível − uma barreira que apenas se explica pela preferência civilizacional que o Direito concede à liberdade pessoal sobre a necessária realização das finalidades político‑criminais que justificam a instituição do sistema penal e que está na base da especial força normativa que a nossa Constituição concede à garantia pessoal de não punição fora do domínio da legalidade, ao inclui-la no catálogo dos direitos, liberdades e garantias (artigo 29.º, n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa)» (itálico acrescentado).
Importa dizer que esse controlo não deve ser confundido com o problema de saber se um facto concreto com todo o seu circunstancialismo, se pode incluir no âmbito da norma. A essa pergunta, como referido no mesmo Acórdão n.º 183/2008, não pode o Tribunal Constitucional responder.
[…]”.
Resumidamente, o princípio da legalidade penal acolhido na CRP encontra o seu fundamento na tutela da liberdade individual, a qual implica para o legislador ordinário o dever de formular as normas penais de forma clara e precisa, tanto no que se refere à delimitação dos factos que constituem crime, como no que respeita às próprias sanções associadas aos crimes concretamente tipificados. É fundamental, em suma, que os cidadãos, destinatários naturais e normais das normas penais, saibam, sem margem para incertezas ou erros, quais as condutas penalmente lícitas e quais as que estão penalmente vedadas.
17. Posto isto, e passando para a apreciação das concretas normas em apreço em face do princípio da legalidade, cumpre referir que o artigo 387.º do CP tem, atualmente, a seguinte redação:
“Artigo 387.º
Morte e maus tratos de animal de companhia
1 - Quem, sem motivo legítimo, matar animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o limite máximo da pena referida no número anterior é agravado em um terço.
3 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias.
4 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, ou se o crime for praticado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
5 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se referem os n.os 2 e 4, entre outras, a circunstância de:
a) O crime ser de especial crueldade, designadamente por empregar tortura ou ato de crueldade que aumente o sofrimento do animal;
b) Utilizar armas, instrumentos, objetos ou quaisquer meios e métodos insidiosos ou particularmente perigosos;
c) Ser determinado pela avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou por qualquer motivo torpe ou fútil”.
Este artigo tem, por sua vez e necessariamente (e como já se aludiu supra), de ser conjugado com o artigo 389.º do CP, com o seguinte (também atual) teor:
“Artigo 389.º
Conceito de animal de companhia
1 - Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia.
2 - O disposto no número anterior não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, assim como não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos.
3 - São igualmente considerados animais de companhia, para efeitos do disposto no presente título, aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância”.
Será, assim, necessário apurar se o teor destes dois artigos cumpre (ou não) o princípio da tipicidade enquanto dimensão do princípio da legalidade, mais concretamente, se se verifica uma suficiente determinabilidade deste tipo penal.
Antes de mais, começando pelo “Conceito de animal de companhia” constante do artigo 389.º do CP, resulta evidente que se pretende abranger todo e qualquer animal desde que seja “detido” ou “destinado a ser detido por seres humanos” (o que levanta logo a questão de saber se abrange também – ou não – um animal selvagem detido ou domesticado, dado que não está, efetivamente, “destinado a ser detido por seres humanos”), “designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia”, o que se afigura ser de uma amplitude e falta de concretização que pode levantar múltiplas questões e interrogações, deixando aqui algumas das mesmas. Desde logo, todos os animais podem ser animais de companhia ou apenas aqueles capazes de demonstrar afeição em relação aos seres humanos? Ou só os animais que usualmente e tradicionalmente são animais domésticos? Assim, por exemplo, podem formigas num terrário ser consideradas como animais de companhia? E os animais destinados a outras funções, como de guarda, não são também animais de companhia ou não são abrangidos por esse conceito? Os ‘animais de companhia’ devem ser encarados como uma categoria genérica ou deve atender-se à singularidade de cada espécie? E em que consiste, em concreto, esse “entretenimento” (aparentemente humano)? E o que é “lar” neste âmbito? É o mesmo que residência ou domicílio? E o “designadamente” pretende estender este tipo legal a todos e quaisquer espaços em que se encontrem esses animais? E se for assim qual a necessidade desse “designadamente” (e até do “lar”)?
Por sua vez, o n.º 3 do artigo 389.º pouco ou nada esclarece quanto à abrangência da noção em apreço, dado que remete para o Sistema de Informação de Animais de Companhia, criado pelo Decreto-Lei n.º 82/2019, de 27 de junho, que determina que “aplica-se à identificação de animais de companhia das espécies referidas no anexo I do Regulamento (UE) n.º 576/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de junho de 2013, e no anexo I do Regulamento (UE) n.º 2016/429, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, nascidos ou presentes no território nacional”. Este normativo remete, pois, para esses anexos, em que consta uma série de animais que poderão ser objeto deste crime mesmo “que se encontrem em estado de abandono ou errância”, estendendo, no fundo, a abrangência do n.º 1 a esses animais, mas não servindo para clarificar ou esclarecer o conceito de “animal de companhia” constante nesse primeiro normativo.
Aliás, recorde-se que, nos termos do artigo 4.º do citado Decreto-Lei n.º 82/2019, “1 - A identificação de animais de companhia é obrigatória para cães, gatos e furões, nos termos da parte A do anexo I do Regulamento (UE) n.º 576/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de junho de 2013, e a parte A do anexo I do Regulamento (UE) n.º 2016/429, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, sendo facultativa para as espécies abrangidas na parte B do anexo I dos referidos Regulamentos. 2 - Por despacho do diretor-geral de Alimentação e Veterinária, pode ser determinada a obrigatoriedade de identificação, nos termos do presente decreto-lei, de qualquer das espécies referidas na parte B do anexo I dos Regulamentos mencionados no número anterior ou de outras espécies de animais detidos para fins de companhia, com fundamento na necessidade de implementar medidas de natureza sanitária para combate a surtos de doenças epizoóticas ou zoonoses”, pelo que essa remissão, além de nada adiantar quanto à delimitação do conceito de ‘animal de companhia’, ainda parece permitir que algumas outras espécies sejam sujeitas a registo e abrangidas, por intermédio de um ato administrativo, por este tipo penal, redundando numa ainda maior indefinição desse conceito (que é, recorde-se, essencial neste tipo-de-ilícito, dado que só os “animais de companhia”, tal como definidos no artigo 389.º podem ser objeto da ação ilícita), que, como acabado de ver, pode ser ampliado, a qualquer momento, por via administrativa.
Quanto ao artigo 387.º do CP, o mesmo tem como epígrafe “Morte e maus tratos de animal de companhia”, parecendo, à primeira vista, uma versão ‘animal’ do antigo crime de maus tratos tout court (cfr. o artigo 152.º do CP, agora designado crime de violência doméstica, sendo natural que, dentro em breve e se se mantiver a orientação do TC no sentido da sua inconstitucionalidade, este crime ‘renasça’ agora com a epígrafe “Morte e violência animal”). De resto, para parte da doutrina, será necessário, para a interpretação e preenchimento deste tipo-de-ilícito, recorrer aos múltiplos acórdãos e doutrina relativos ao crime de maus tratos/violência doméstica e a outros crimes afins – “Trata-se de conceitos indeterminados que se encontram desenvolvidos na Doutrina e na Jurisprudência no âmbito dos crimes contra as pessoas. No entanto, o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial que lhes é dado vale, mutatis mutandis, para os animais, pois o sofrimento é igual, só se altera a espécie da vítima que, aliás, é em regra especialmente vulnerável” (cfr. Maria da Conceição Valdágua, “Animais no Direito Penal. Os crimes de lesão contra animais de companhia na Lei 39/2020, de 18 de agosto”, p. 1868, disponível em https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2021/5/2021_05_1843_1881.pdf). Mas trata-se de opção discutível, quanto mais não seja porque se afigura sobremaneira problemático transpor, mesmo que com adaptações e alguma cautela, a doutrina e jurisprudência relativas ao crime de maus tratos/violência doméstica para este crime, dado que esse tipo-de-ilícito é bem mais descritivo e pormenorizado. Ainda que empregue uma cláusula geral que também existe no crime de maus tratos a animais (“maus tratos físicos”), vai mais longe especificando: “infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns” – artigo 152.º, n.º 1, do CP). Já o n.º 3 do artigo 387.º utiliza a fórmula mais genérica “infligir dor, sofrimento” e completa-a com uma fórmula ainda mais genérica: “ou quaisquer outros maus tratos físicos”. Acresce a isto que o paralelismo traçado entre violência doméstica e violência contra animais de companhia pode sugerir uma paridade entre a dignidade humana e a dignidade animal (a qual sempre se depararia com a dificuldade lógica de equiparar os seres humanos aos animais), que, com toda a certeza, não resulta da Constituição, não podendo sequer ser defendida por quem admite uma tutela constitucional indireta ou reflexa dos animais.
Prosseguindo com a análise do n.º 3 do artigo 387.º do CP, as questões e dúvidas relacionadas com a descrição legal do tipo-de-ilícito objetivo são muitas. Infligir dor é diferente de infligir sofrimento? A alusão a “sofrimento” quererá significar que a criminalização abrange maus tratos psicológicos ou emocionais? Toda a inflição de dor constitui, sem mais, maus-tratos? Deverá atender-se à resistência da concreta espécie à dor (por outras palavras, deverá ter-se em conta as caraterísticas etológicas do animal) ou será toda e qualquer dor animal sempre equiparável e integrará logo este tipo legal? A tutela criminal é uma tutela contra a dor e o sofrimento ou protege, de igual modo, de forma mais ampla, o bem-estar físico e psíquico (pode, por exemplo, defender-se existirem maus-tratos naqueles casos em que aos animais de companhia não seja proporcionada uma dieta alimentar tida como adequada para evitar o sobrepeso?)? As condutas omissivas – deixar o animal sofrer – também são punidas? Em caso afirmativo, apenas as omissões conscientes? E podem considerar-se circunstâncias atenuantes? (pode uma pessoa que vive abaixo do limiar de pobreza ser acusada de não providenciar um tratamento caro ao seu animal de companhia?). As tradições culturais, nacionais ou locais, podem ser excecionadas, sendo a cultura um valor constitucional?
Aliás, as dúvidas são ainda maiores quando se procura apurar o que seja um “motivo legítimo”, que parece ser um elemento negativo do tipo-de-ilícito, delimitando, portanto, pela negativa, a respetiva fattispecie – se existir esse motivo legítimo, mesmo que se verifiquem as restantes componentes do tipo-de-ilícito objetivo, este tipo legal não estará nunca integralmente preenchido. Como refere Maria da Conceição Valdágua (ob. cit., p. 1854), “Outro elemento comum aos vários crimes previstos no art. 387º é o “motivo legítimo”. E motivos legítimos para a prática de maus tratos a um animal de companhia infelizmente há muitos”. Ocorre que o legislador não concretizou sequer o que é “motivo” e porque deve ser (ou não) “legítimo”.
Efetivamente, se é possível, como o fazem vários autores, encontrar uma série múltipla (e nem sempre coincidente entre autores) de motivos que devem ser considerados motivos legítimos para efeitos de impedir o preenchimento integral deste tipo legal objetivo, a verdade é que nada consta a esse respeito do texto legal, havendo sempre, necessariamente, dúvidas sobre o que são esses “motivos” e em que consiste essa legitimidade (e em que radica a falta dela). Será legítimo alterar a voz dos cães de companhia para assegurar a tranquilidade e o bem-estar emocional e físico dos vizinhos? Será legítimo cortar a causa ou as orelhas a um cão com o intuito de o embelezar, ou, em todo o caso, de o fazer atuar em espetáculos, invocando-se, para o efeito, a liberdade artística? Vejamos mais dois exemplos que patenteiam as dificuldades com que se podem debater os operadores jurídicos: “Existem ainda duas outras questões que não se encontram legalmente tratadas, mas que cabe trazer à discussão nesta sede. A primeira questão encontra-se diretamente relacionada com a existência do chamado dever de correção do animal, face ao dever legal de vigilância que impende sobre o seu detentor. Pese a legislação nacional nada dizer, a Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia refere, no seu art.º 7.º, a propósito do treino do animal, que «Nenhum animal de companhia deve ser treinado de modo prejudicial para a sua saúde ou o seu bem-estar, nomeadamente forçando-o a exceder as suas capacidades ou força naturais ou utilizando meios artificiais que provoquem ferimentos ou dor, sofrimento ou angústia inúteis». A outra questão prende-se com a utilização de animais na manutenção de práticas sexuais. Ao contrário de outros países, Portugal ainda não pune de forma expressa tais comportamentos, afigurando-se que apenas poderão ser punidos no âmbito desta norma quando inflijam dor, sofrimento ou outras formas de maus tratos físicos ao animal” (cfr. Raul Farias, “Dos crimes contra animais de companhia – Breves notas”, in Maria Luísa Duarte/Carla Amado Gomes (coord.), Animais: Deveres e Direitos, Lisboa, 2015, p. 145).
Tantas são as dúvidas que suscita a atual tutela jurídico-penal do bem-estar dos animais de companhia que é legítimo perguntar: se é duvidoso, para autores que se dedicam a estas matérias específicas e com formação jurídica, o que deve (ou não) constituir um “motivo legítimo” e o que cai (ou não) no âmbito desta fattispecie, questionando-se se abrange (ou não ou até, previamente, se existe esse dever) o dever de correção do animal (e também o seu treino e os castigos a que pode ser sujeito nesse âmbito ou até na sua própria vida diária) e a segunda prática mencionada, com ampla tradição histórica (que se manterá, aparentemente, atualmente) e já punida, por exemplo, nas várias Ordenações portuguesas, comummente designada de bestialidade (onde, em Espanha e Portugal, o animal, na expressão constante das Ordenações, “a alimária”, era queimado juntamente com o homem que praticava esse crime), não se vê como o destinatário ‘comum’ desta norma – o vulgarmente designado bonus pater familias – pode ‘ler’ esta norma e saber, sem mais, quando poderá (ou não), v.g., infligir dor ou sofrimento (pressupondo que são algo de diverso no âmbito deste crime) a um animal sem cometer este crime (e até, desde logo, saber o que é – ou não – um animal de companhia), sendo antes indeterminável o conteúdo e, consequentemente, também o âmbito impositivo e punitivo resultante deste tipo penal.
Em síntese, considera-se, na esteira dos dois votos de vencido já amplamente mencionados, que esta norma penal não cumpre as exigências mínimas de determinabilidade da lei penal decorrentes do princípio da legalidade acolhido no artigo 29.º, n.º 1 da CRP, concluindo-se, assim, pela sua inconstitucionalidade, devendo, por esse motivo, improceder o presente recurso de constitucionalidade.
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da legalidade resultante do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma que tipifica o crime de maus tratos de animal de companhia, contida no artigo 387.º, n.º 3 do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, em conjugação com o artigo 389.º, n.os 1 e 3, do Código Penal, igualmente na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto;
e, em consequência,
b) Julgar improcedente o presente recurso.
Sem custas, nos termos do artigo 84.º, n.os 1 e 2 (este último a contrario), da LTC.
Lisboa, 20 de dezembro de 2022 - Maria Benedita Urbano - Pedro Machete ( com declaração ) - José João Abrantes ( vencido, aderindo à declaração de voto do Sr. Conselheiro José António Teles Pereira ) - João Pedro Caupers (Julgaria também inconstitucional por falta de identificação do bem jurídico, nos termos que prevaleceram no acórdão nº 867/2021).
Atesto a participação por meios telemáticos do Conselheiro José António Teles Pereira, que vota vencido de acordo com a declaração de voto junta aos autos.
Maria Benedita Urbano
DECLARAÇÃO DE VOTO
Relativamente à legitimação constitucional da proteção penal do bem-estar dos animais de companhia – objeto de análise nos n.ºs 12 a 14 do presente acórdão –, subscrevo, no essencial, a posição sustentada pela Senhora Juíza Conselheira Joana Fernandes Costa na declaração de voto de vencida que juntou ao Acórdão n.º 867/2021:
– Estando em causa a incriminação de condutas que, sem motivo razoável, causam a morte ou infligem dor e sofrimento consideráveis a todo e qualquer animal, independentemente da relação em que o mesmo se encontre com o homem, só um processo de revisão constitucional que, à semelhança do que sucedeu com o artigo 20a da Grundgesetz, viesse atribuir ao Estado o dever de proteger «os animais» a poderia legitimar, tendo em conta a relação de congruência axiológica que carece de verificar-se entre a ordem normativa penal e a ordem constitucional;
– Assim não sucede, contudo, se, como ocorre in casu, em causa estiver apenas a proteção penal do bem-estar dos animais de companhia, uma vez que os momentos de solidariedade pressupostos pelo tipo de sociedade que a Constituição encarrega o Estado de promover, nos termos do respetivo artigo 1.º, não excluem, antes acomodam, «a valorização pela ordem jurídico-penal da relação de cuidado-de-perigo em que o homem ficou investido perante os animais que colocou na sua dependência, legitimando assim a limitação por via penal do chamado «anything goes» - expressão usada por R. G. Frey para designar a posição que defende a possibilidade de “fazermos o que quisermos” com os animais (“Animals”, The Oxford Handbook of Practical Ethics, ed. Hugh LaFollette, 2003, reedição de 2009, p. 167 e ss.); ou, numa formulação mais próxima, a limitação dos poderes absolutos de disposição sobre animais de companhia, por via da imposição a quem com eles interage de um dever de abstenção da prática de atos causadores de dor ou sofrimento graves e desnecessários e/ou de forma impiedosa ou cruel».
Pedro Machete
DECLARAÇÃO DE VOTO
[apresentada pelo Conselheiro José António Teles Pereira, à qual adere o Conselheiro José João Abrantes]
1. Estou vencido quanto ao sentido da decisão (julgamento de inconstitucionalidade) e não me revejo na fundamentação do Acórdão, em qualquer das duas vertentes convocadas à apreciação do recurso, mesmo naquela (questão do bem jurídico) em que a maioria ora formada na 1.ª Secção diverge do Acórdão n.º 867/2021 (e, consequentemente, do recente Acórdão n.º 781/2022, ao qual foram aditados, acrescendo à argumentação constante do primeiro aresto, os pontos 7 e 8).
Tendo apresentado, como relator inicial do recurso, um projeto no sentido da não inconstitucionalidade – “[da] norma que tipifica o crime de maus tratos de animal de companhia, contida no artigo 387.º, n.º 3, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, em conjugação com o artigo 389.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, este na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto […]” –, o qual não obteve maioria, mantenho a posição expressa nesse projeto, que aqui retomo, numa versão mais reduzida, à qual acrescentei algumas curtas notas finais suscitadas pelo debate travado na secção, na parte que o mesmo encontra reflexo no texto do Acórdão.
Como se disse, está em causa, nos presentes autos, a norma que tipifica o crime de maus tratos de animal de companhia, com o objeto normativo transcrito no anterior parágrafo no artigo 387.º, n.º 3 do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, em conjugação com o artigo 389.º, n.os 1 e 3, do Código Penal, igualmente na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto.
Seguindo o percurso iniciado pelo Acórdão n.º 867/2021 (por referência à previsão típica contida no n.º 1 do artigo 387.º do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, que se mantém intocada no n.º 3 do mesmo artigo, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, pois este apenas ajustou as molduras penais quanto aos seus mínimos, pelo que a discussão desenvolvida naquele acórdão pode transpor-se para a norma dos presentes autos) e tendo por referência a posição aí afirmada e as respetivas declarações de voto, o presente Acórdão identifica os dois grandes eixos problemáticos que emergem daquela norma: a (in)existência de um bem jurídico que justifique a incriminação; e a determinabilidade do tipo legal. Contrariamente ao Acórdão n.º 867/2021, a maioria aqui formada entende que a Constituição suporta(ria) a incriminação, todavia, considera que o tipo legal não é suficientemente determinado.
Encontro-me – repito – em divergência, quer com o Acórdão n.º 867/2021 (e 781/2022), por estar convencido de que é possível encontrar fundamento jurídico-constitucional para a incriminação, mas também com a maioria agora formada, por não encontrar no tipo legal razões de censura no plano da determinabilidade.
As razões desta dupla divergência vão descritas, nos termos já assinalados, nos pontos subsequentes.
2. Podemos sintetizar os grandes eixos de discussão que emergiram do Acórdão n.º 867/2021 nos termos seguintes:
[I] a posição do Acórdão n.º 867/2021 vai no sentido da inexistência de um bem jurídico apto a suportar o crime previsto (atualmente) no artigo 387.º, n.º 3, do CP, porquanto: (a) a proteção dos animais que decorre do artigo 66.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) é incidental e não individualizada, dependendo da sua relevância para o ambiente; (b) a ideia de dignidade da pessoa humana consagrada no artigo 1.º da CRP não tem densidade suficiente para nela radicar o fundamento da norma que tipifica o crime, nem permite uma equiparação entre animais e seres humanos; (c) não é viável configurá-lo como crime de perigo abstrato contra o ambiente; e (d) a própria arquitetura do tipo penal é incompatível com a tutela da propriedade;
[II] na declaração de voto subscrita pelo Juiz Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro, segue-se uma outra posição, no sentido de que (a) é possível reconhecer um bem jurídico relevante extraível da ideia de dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), admitindo-se que o bem-estar dos animais de companhia legitima a intervenção penal em virtude das responsabilidades dos seres humanos, “[…] visto que os animais de companhia são aqueles por cujo bem-estar os seres humanos, que em boa medida os desnaturaram e docilizaram, privando-os de capacidades indispensáveis para a sobrevivência na natureza e desarmando-os dos instintos de defesa contra a agressão, têm uma responsabilidade acrescida”; todavia, (b) a norma viola o princípio da tipicidade em matéria penal (artigo 29.º, n.º 1, da CRP), sendo triplamente indeterminada – (b.1.) quanto ao conteúdo da ação; (b.2.) quanto ao significado de “motivo legítimo”; e (b.3) quanto ao objeto da ação (“animal de companhia”);
[III] na declaração de voto subscrita pela Juíza Conselheira Joana Fernandes Costa entende-se que (a) a dignidade constitucional dos bens jurídico-penais não se limita aos que são diretamente dedutíveis do texto da Constituição – aceitando-se que o fundamento da incriminação não pode alcançar-se a partir do artigo 66.º ou do artigo 1.º da CRP, admite-se que “[…] a Constituição abre a porta a uma compreensão do princípio do direito penal do bem jurídico numa base não exclusivamente antropocêntrica, autorizando a atribuição de relevância penal a bens jurídicos que, apesar de não gravitarem em torno das dimensões existenciais individuais e coletivas da pessoa, integram ainda assim, expressa ou implicitamente, a ordem axiológica jurídico-constitucional”, podendo encontrar-se na “[…] relação de dependência existencial, caracterizada por uma espécie de posição de garante perante o bem-estar dos animais que o homem converteu em sua companhia, que há de revelar-se a conexão do crime tipificado no n.º 1 do artigo 387.º do CP, na versão ora considerada, com a ordem axiológica jurídico-constitucional”; porém, (b) a norma viola o princípio legalidade, enquanto exigência de lei certa (artigo 29.º, n.º 1, da CRP), sendo indeterminada (b.1.) quanto ao conteúdo da ação (“infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos” e “sem motivo legítimo”); e (b.2.) quanto ao objeto da ação (“animal de companhia”, definido como “qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos […], para seu entretenimento e companhia”).
Há, pois, que enfrentar a questão de inconstitucionalidade que nos é apresentada pelas duas perspetivas fundamentais em confronto – a da (in)existência de bem jurídico, por um lado, e a da (in)determinabilidade da lei penal, por outro –, como fez a maioria.
Chego, todavia, a conclusão oposta, quanto à questão da indeterminabilidade, e realizo um percurso diferente – creio que substancialmente diferente – para a identificação do bem jurídico.
[Bem jurídico]
3. Os termos em que se discute a questão da (in)existência de bem jurídico que sirva de base à incriminação prevista na norma sub judice revelam que a doutrina dos fundamentos da incriminação não se encontra encerrada – efetivamente, é possível encontrar aproximações ao problema mais “ortodoxas” (na linha do Acórdão n.º 867/2021) e outras mais “flexíveis” ou “abertas” (de que constituem exemplos, embora diferentes entre si, as declarações de voto apostas àquele acórdão). Importa atentar mais detidamente nesta diferenciação de perspetivas.
3.1. Nem sempre o alargamento do direito penal por via legislativa encontrou fácil ou evidente justificação na dogmática penal, que, por sua vez, foi também ajustando os critérios que definem as margens da legitimação da incriminação numa tentativa de dar resposta à evolução dos valores relativamente a cuja proteção a comunidade foi estabelecendo consensos, ao longo do tempo. A tarefa apresenta-se especialmente complexa à medida que os interesses protegidos são menos individuais ou individualizáveis e que a sua matriz antropocêntrica se vai desvanecendo, obrigando a repensar (e, por vezes, a ficcionar) a conexão com interesses humanos. Assim, poderá afirmar-se que “[…] o processo de legitimação do Direito Penal no Estado de Direito democrático não exige um Código Penal com uma única espécie de tipos criminais, mas sim uma forma de justificar racionalmente os tipos criminais consagrados pelo legislador” (Maria Fernanda Palma, Direito Penal, 4.ª ed., Lisboa, 2021, p. 82) e, de seguida, questionar se essa legitimação se alcança através de modelos menos rígidos:
“[…]
[O] modelo argumentativo [que a referida Autora propõe] não se baseia exclusivamente na proteção de bens jurídicos, entendidos como interesses substanciais concretos, associados a condições existenciais individuais e coletivas, mas apela a uma relação com o Estado democrático, a uma lógica de preservação da subjetividade e do reconhecimento dos interesses essenciais dos outros. Esta referência à participação no Estado de Direito e ao reconhecimento da subjetividade alheia ultrapassa, em certos casos, a utilização rígida do conceito de bem jurídico, definido como uma necessidade ou interesse intersubjetivo, histórica e culturalmente concretizado (algo com a qualidade de bom, materializado num valor mantendo um referente concreto). Uma dimensão da pessoa, como, por exemplo, o valor da sua livre orientação sexual, do seu desenvolvimento enquanto criança ou adolescente, a responsabilidade pela natureza ou pelas gerações futuras (na perspetiva de uma cidadania participativa) podem ser interesses suficientemente relevantes para legitimar incriminações que, em última análise, têm uma vaga referência a bens jurídicos no sentido tradicional.
A equivocidade do conceito de bem jurídico, inspirado no conceito de Rechtsgut – que tanto abrange dimensões pessoais como meramente comunitárias – a sua pouca densificação e a possibilidade de servir várias finalidades, torna cada vez mais pertinente utilizá-lo apenas como conceito exploratório de critérios limitadores das normas incriminadoras, que permitirá, em última análise, reconhecer algumas caraterísticas de que depende a legitimidade das mesmas.
Assim, o bem jurídico apelaria à necessidade de as normas penais terem um referente relacional (inter-individual ou indivíduo-comunidade), um valor constitutivo da realidade social, que, na linha liberal de Stuart Mill, Feinberg veio a qualificar como o ‘harm to others’. E apelaria também, noutros casos, à necessidade de as normas penais terem como referente o binómio pessoa-sociedade, pessoa-Estado ou mesmo pessoa-mundo, como expressão de uma responsabilidade pelos outros ou compromisso para com uma comunidade (que não contradiga, antes potencie, o desenvolvimento da subjetividade, num plano de iguais oportunidades), na linha de uma ética da responsabilidade pelo ‘mundo’.
Deste modo, a discussão sobre o bem jurídico é apenas uma porta aberta para um limite da intervenção penal relativamente ao que pode ser pedido pelo Estado a cada pessoa enquanto participante num projeto, em que os interesses na preservação do desenvolvimento de si e dos outros sejam considerados
[…]” (Direito Penal, cit., pp. 83/84).
A natureza e o ambiente têm motivado, nesta discussão, perspetivas particularmente desafiantes, na busca de um critério adequado de tutela penal de interesses com contornos mediatos, indiretos e projetados no tempo, mas, simultaneamente, com forte impacto sobre os seres humanos. Como salienta Günther Stratenwerth [Derecho Penal. Parte General I – el hecho punible, trad. de Manuel Cancio Meliá e Marcelo A. Sancinetti (ed. alemã de 2000), Editorial Civitas, Madrid, 2005, pp. 57/58]:
“[…]
Ainda menos promissora foi a tentativa de restringir o direito penal à proteção de bens jurídicos tangíveis, à medida que se vai evidenciando uma ameaça radicalmente diferente de todos os perigos que até agora ocuparam o direito penal: a destruição, até ao momento evidentemente imparável, com origem humana, das bases da vida na terra. ‘O’ meio ambiente não é um bem dessa categoria, nem sequer nos seus elementos particulares, como a terra, o ar e a água, e muito menos o é nos processos em que vai implicado, como o clima, a evolução de plantas e animais, etc. Neste domínio, qualquer fundamentação antropocêntrica resulta demasiado estreita e, mesmo que fosse possível, não constituiria apoio para a questão decisiva de saber quais as ingerências na natureza – que foi explorada desde sempre pelo Homem – ou a medida dessas ingerências que são admissíveis, ou então, pelo contrário, quais as que devem ser excluídas e, a partir daí, em certas circunstâncias, também sancionadas penalmente. Cumpre questionar, simplesmente, se o direito penal é adequado à imposição de regras de conduta que se distinguem tanto das normas tradicionais, sempre referidas a conflitos sociais atuais e que agora se vão conformando paulatinamente. Mas a evolução é já nessa direção e, considerando a dimensão da ameaça, seria difícil censurá-la.
[…]”.
Afirmar esta perspetiva não resolve, só por si, o problema da legitimação da incriminação, mas permite encarar um dos argumentos principais do Acórdão n.º 867/2021: proteger individualmente os animais não é o mesmo do que proteger a natureza ou o meio ambiente, aliás, a morte ou o sofrimento de um só animal pode ser indiferente – quase invariavelmente o será – para aqueles sistemas.
3.2. A proteção dos animais – o seu grau, o seu sentido e os seus fundamentos –, sendo (como vai evidenciado) uma questão jurídica, começa antes mesmo (ou para lá) do direito, convocando, designadamente, aspetos filosóficos, morais e psicológicos, cujos contornos são, em 2022, muito diferentes do que eram há duas ou três décadas. Para aceitar esta evolução, não se mostra necessário (ou sequer útil) apelar aos que apontam a seres humanos e animais uma equiparação ou quase-equiparação (discussão que não é para este momento e lugar), bastando atentar no sentimento geral da comunidade. Sintomaticamente, a discussão da legitimação da incriminação de maus tratos a animais de companhia tem o seu campo no direito e na Constituição que é, mas tende a nem sequer questionar (e bem, como veremos) que essa incriminação sempre corresponderia a uma constelação axiológica consensual na sociedade, culturalmente fundada, e, nesse sentido, já corresponde à Constituição que, se não é, poderia ser, ou que – como aqui sucede – até já o é, numa construção interpretativa coerente com o seu sentido. É assim que “[…] a restrição da ideia de bem jurídico às «condições de existência e desenvolvimento do indivíduo na comunidade» […] passa ao lado da circunstância de cada grupo humano conhecer (e necessitar!) de múltiplas normas de conduta, culturalmente radicadas, nas quais não estão em causa «bens» mais ou menos sólidos […]”, como sucede com o tipo de evidenciação (da existência de um «bem») propiciada por “[…] interesses individuais (vida, integridade corporal, liberdade, etc.) […]” (Günther Stratenwerth. Derecho Penal. Parte General I…, cit., p. 56).
Existe, efetivamente, uma fundamentação sociocultural para a proteção dos animais, como salienta António Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, vol. III, 4.ª ed., com a colaboração de A. Barreto Menezes Cordeiro, Coimbra, 2019, pp. 292/293):
“[…]
I. A sensibilidade é um todo. Não é pensável ser-se cruel para com os animais e bondoso para com as pessoas: uma coisa implicará a outra, O respeito pela vida é uma decorrência ética do respeito pelo seu semelhante. Condenar os animais pela não-inteligência é abrir a porta à morte dos deficientes e dos incapazes. Há um fundo ético-humanista que se estende a toda a forma de vida, particularmente à sensível. O ser humano sabe que o animal pode sofrer; sabe fazê-lo sofrer; sabe evitar fazê-lo. A sabedoria dá-lhe responsabilidade. Nada disso o deixará indiferente – ou teremos uma anomalia, em termos sociais e culturais, dado o paralelismo com todos os valores humanos.
II. A biologia explica, hoje, que o homem não é estruturalmente diferente dos diversos animais: há muitas mais semelhanças do que diferenças, em termos genéticos. Têm antepassados comuns. E estarão, provavelmente, juntos no futuro, até ao fim da vida na Terra. As atuais realidades do Planeta são muito diferentes das que, há 10.000 anos, terão justificado o império humano sobre todas as outras espécies. Hoje impõe-se um vasto programa de defesa do ambiente, decisivo para a sobrevivência da própria espécie humana, e que aposta na vida como valor autónomo.
III. Em termos económicos, é bem evidente que boa parte da atual prosperidade humana assenta na exploração, a todos os níveis, da vida animal. No Mundo, em 2003, foram mortos mais de 50 biliões de animais (seis por cada pessoa), assinalando-se ainda, em 2016, 178 milhões de toneladas de pesca (25 quilos por pessoa, o que equivale a muitas dezenas de seres vivos). Temos, aqui, um expressivo tributo que a vida terrestre paga à sua manifestação inteligente; ao homem. Se a morte de um animal, sem sofrimento dispensável, parece adequada para fins alimentares, o seu sofrimento inútil merece a reprovação da sociedade e da cultura.
IV. Os dados culturais mais elementares, como os que acompanham as crianças desde a tenra idade, fazendo dos animais, reais ou figurados – desenhos animados, brinquedos, contos – os melhores amigos e companheiros, concatenam-se com todo um acervo religioso, filosófico, ético, antropológico, biológico e ambiental. Só por ironia se poderia colocar hoje a alternativa homem ou animal: há – como sempre houve – uma manifesta solidariedade entre ambos, que cumpre reforçar. O futuro sócio-cultural da espécie humana passa por viver em paz com todas as outras formas de vida do Planeta.
[…]”.
Estando há muito ultrapassada a dúvida de que certos animais experimentam sofrimento físico [de contornos não tão evidentes, mas revelando o largo espectro dos estudos neste campo, é a questão de os animais poderem ter uma qualquer perceção do que é a morte – cfr. Susana Monsó, How to Tell If Animals Can Understand Death, in Erkenntnis (An international journal of scientific philosophy) vol. 87 (2022), pp. 117 e ss., acessível em, https://doi.org/10.1007/s10670-019-00187-2], reconhece-se que nem todos os animais se encontram no mesmo plano, quanto às características que permitem atribuir relevância ao sofrimento. Sem entrar em distinções especistas, admitamos que existem animais que “[…] apresentam algumas características em que se funda a consideração moral [“moral standing” ou “moral considerability”, enquanto qualidade dos seres merecedores de consideração na tomada de decisões de natureza moral]”, para admitirmos também que “[…] esses animais contam, moralmente falando”, embora detenham “[…] um número dessas características relevantes menor do que os humanos (ou têm-nas em menor grau), de modo que os animais contam menos do que as pessoas”. E, “[…] dado que os próprios animais variam em relação uns aos outros, quanto às características relevantes, certos animais têm um posicionamento moral diferente de outros” (Shelly Kagan, How to count animals – more or less, Oxford University Press, Oxford, 2022, p. 279), o que permite divisões ideais entre humanos e animais e, dentro destes, entre diferentes grandes categorias de animais, no referido plano (Shelly Kagan, ibidem, pp. 293 e ss., e isto independentemente de se aceitar a afirmação do autor no sentido de que “[…] os animais contam muito menos do que as pessoas, mas muito, muito mais do que por regra lhes é reconhecido”, ib., p. 303).
Não cabendo ao direito a fina definição biológica das possíveis categorias de animais, interessará, todavia, apurar se a definição de uma certa categoria e o tratamento que lhe é conferido têm fundamento adequado (por exemplo, a Tierschutzgesetz alemã restringe a proteção penal aos animais vertebrados – cfr. o seu §17).
Existem diversos instrumentos de direito interno, europeu e internacional orientados para a proteção dos animais [em detalhe, António Menezes Cordeiro, ob. cit., pp. 297 e ss.; Concepcción Castro Álvarez, Los animales y su estatuto jurídico: protección y utilización de los animales en el derecho, Aranzadi, Cizur Menor (Navarra), 2019, pp. 74 e ss.].
Merece destaque o artigo 13.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), ao prever que “[n]a definição e aplicação das políticas da União nos domínios da agricultura, da pesca, dos transportes, do mercado interno, da investigação e desenvolvimento tecnológico e do espaço, a União e os Estados-Membros terão plenamente em conta as exigências em matéria de bem-estar dos animais, enquanto seres sensíveis, respeitando simultaneamente as disposições legislativas e administrativas e os costumes dos Estados-Membros, nomeadamente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e património regional”, o que significa que diz respeito ao bem-estar de animais individuais (assim, Markus Klamert, in Manuel Kellerbauer, Marcus Klamert e Jonathan Tomkin, The EU Treaties and the Charter of Fundamental Rights: a commentary, Oxford University Press, Oxford, 2019, p. 390). Não obstante a restrição expressa aos “[…] domínios da agricultura, da pesca, dos transportes, do mercado interno, da investigação e desenvolvimento tecnológico e do espaço”, há quem veja nesta previsão “[…] também um princípio geral do direito, […] de reconhecimento, como valor, do bem-estar dos animais enquanto seres sencientes-sensíveis” – cfr. Concepcción Castro Álvarez, Los Animales…, cit., pp. 131, citando E. Alonso García, “El artículo 13 del Tratado de Funcionamiento de la Unión Europea: los animales como seres «sensibles (sentientes)» a la luz de la jurisprudencia del Tribunal de Justicia de la Unión Europea”, in D. Favre e T. Giménez-Candela, Animales y Derecho/Animals and the Law, Tirant Lo Blanch, Valencia, 2015, pp. 17 e ss.).
No plano interno infraconstitucional, recentemente, para além da modificação do direito penal ora em análise, o Código Civil foi alterado pela Lei n.º 8/2017, de 3 de março, que conferiu um novo estatuto jurídico aos animais (artigos 201.º-B e ss.), relativamente ao qual se poderá afirmar, em resumida conclusão, o seguinte (António Menezes Cordeiro, ibidem, pp. 314/315):
“[…]
III. A hipótese de se reconhecerem direitos aos animais – e, eventualmente, alguns ‘deveres’ elementares, como o de respeitar o ser humano, sob ‘pena’ de serem abatidos (artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de outubro) – envolveria o reconhecê-los como centros de imputação de normas jurídicas o que é dizer: admiti-los como pessoas não-humanas.
A personalização dos animais não repugna aos civilistas: não atenta contra a dignidade do ser humano (pelo contrário!) e é moeda-corrente no Direito privado, através das pessoas coletivas. Pela nossa parte, acolhê-la-íamos de bom grado. Mas a eventual personificação dos animais coloca desafios jurídico-científicos que, de momento, não parece possível ultrapassar.
Assim:
(1) haveria que traçar uma fronteira de personificação: esta perderia sentido se abrangesse todos os animais; onde traçá-la? nos vertebrados? nos mamíferos? nos primatas? nos animais em extinção? nos de companhia?
(2) seria necessário montar, para cada animal, um sistema de representação, do tipo tutela; definindo-a como?
Não parece que uma personificação envolvesse, por si, uma proteção mais adequada. Melhor será avançar no sentido do aperfeiçoamento das normas já existentes e, sobretudo: na sua aplicação efetiva. Todavia, a hipótese de personificação dos primatas hominoides está em aberto e deve ser discutida.
IV. Ficamo-nos, pois, pelos animais como objeto de direitos e centro de deveres dos ‘donos’ diverso das coisas corpóreas. Recuperando a contraposição entre as aceções lata (o que não é pessoa), própria (o que, não sendo pessoa, possa ser objeto de direitos e de obrigações) e estrita (objeto material apropriável), o animal integra a segunda categoria: não é pessoa, não é coisa corpórea stricto sensu e pode ser objeto de direitos.
[…]” (sublinhado acrescentado).
As alterações do direito infraconstitucional indiciam a evolução do sentimento comunitário relativamente aos animais e permitem compreender melhor um certo sentido da evolução da relação dos seres humanos com os animais, que o direito acabou por receber e refletir, reconhecendo certas prerrogativas de seres vivos não humanos.
As apontadas evoluções e alterações, tendo utilidade para uma visão integrada, atualizada e atualista do direito, não são, todavia, decisivas para a cobertura constitucional da incriminação. Regressemos, pois, à Constituição.
3.3. Prevê-se no artigo 66.º da Constituição:
Artigo 66.º
Ambiente e qualidade de vida
1 – Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.
2 – Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos:
a) Prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão;
b) Ordenar e promover o ordenamento do território, tendo em vista uma correta localização das atividades, um equilibrado desenvolvimento socioeconómico e a valorização da paisagem;
c) Criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico;
d) Promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações;
e) Promover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitetónico e da proteção das zonas históricas;
f) Promover a integração de objetivos ambientais nas várias políticas de âmbito sectorial;
g) Promover a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente;
h) Assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com proteção do ambiente e qualidade de vida.
Que este preceito não trata diretamente da proteção individualizada dos animais domésticos é uma evidência. Que dele não se possa extrair essa proteção é algo que carece de indagação mais profunda.
Para tanto, há que aceitar (e enfrentar) que a lei penal parece tutelar “[…] diretamente a vida, a integridade física e o bem-estar (ao menos como ausência de dor e de sofrimento) dos animais, em si mesmos considerados, «independentemente de qualquer repercussão no meio ambiente ou no homem» ou sem considerar o «papel dos animais no equilíbrio ecológico»” (Teresa Quintela de Brito, “Crimes contra animais: os novos projetos-lei de alteração do Código Penal”, in Anatomia do Crime, n.º 4, julho-dezembro de 2016, pp. 96/97, citando Cleopas Isaías Santos e Natália de Campos Grey).
3.3.1. Recordando que a lei define animal de companhia como “[…] qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia” (artigo 389.º, n.º 1, do CP), importa sublinhar, como o fizeram as declarações de voto já referidas, que se trata de uma categoria que engloba animais que, por ação humana, foram retirados da natureza e domesticados, de modo a possibilitar a sua convivência com (e conveniência para) os seres humanos. Para tanto ficaram desprovidos de algumas capacidades naturais (não, evidentemente, na sua maioria, os concretos seres vivos de hoje, mas os seus antepassados) – não sabem perseguir as suas presas naturais, não sabem defender-se, frequentemente não podem reproduzir-se devido a castração ou são afastados das crias, veem supridos os seus hábitos naturais para se afeiçoarem às rotinas e à programação da vida humana. Em suma, utilizando a sugestiva formulação de Fernando Savater, são “[…] seres naturais «artificializados» [pela acção humana] de acordo com os nossos interesses […]” (Tauroética – nueva edición incorregible pero aumentada, Ariel, Barcelona, 2020, p. 50). Com isto, vivem com uma importante diferença, face às espécies selvagens: enquanto estas sobrevivem e se regulam sem interferência humana, os animais domesticados, para além da limitação de capacidades, dependem dos seres humanos para sobreviver.
Na aproximação ao problema do bem jurídico à luz do artigo 66.º da CRP, podemos tomar um de dois caminhos: simplesmente reconhecer, no que inevitavelmente deixará um sabor formal de positivismo legalista e de exacerbação conceptualista, que o artigo 66.º da Lei Fundamental não prevê expressamente a proteção individual de animais ou, numa perspetiva holística do meio natural e justamente responsabilizante da ação humana sobre a natureza, aceitamos que com base no referido preceito constitucional podem assinalar-se limites jurídicos ao comportamento dos seres humanos, relativamente a animais que parcialmente foram incapacitados e que, se não tivessem sido segregados do meio natural, teriam, pelo menos, como indivíduos, a proteção reflexa decorrente da tutela coletiva do ambiente e da natureza. Como observa Fernando Savater, “[é usual] dizer-se que a criação de animais pelos humanos «melhorou» as espécies domésticas, mas tal afirmação, feita em termos absolutos, é muito discutível. Custa admitir que toda e qualquer raça de cães seja «melhor» do que os lobos dos quais descende. O que podemos dizer é, tão só, que os cães respondem melhor às necessidades ou aos caprichos dos humanos que os lobos. E, desde logo, que sem essas necessidades e caprichos não existiriam cães… […]”, que são o resultado da “criação pelos humanos”, não um produto espontâneo da natureza – “[…] em linguagem ontológica, os animais domésticos não são «em si» nem «para si», mas sim para nós, os humanos” (Tauroética…, cit., p. 48). Daí que não tenha sentido “[…] questionarmo-nos se querem ser o que são, quer dizer, aquilo em que a criação humana os tornou; mas já tem sentido questionar se a forma como os tratamos corresponde a determinados padrões de decência ou de ‘fair play’. Os animais domésticos estão sob a proteção – e em certa medida são responsabilidade – dos humanos. Portanto, podemos reconhecer-lhes um certo tipo de «interesse» em que não lhes sejam impostos padecimentos que estejam para além do serviço que prestam ao «intruso» humano, ou que exprimam esse mesmo interesse em termos supérfluos ou exagerados” (ibidem, p. 49).
Com efeito, não estando em causa, evidentemente, a equiparação entre seres humanos e animais, ou, sequer, a investidura destes na titularidade de direitos, não repugna reconhecer que possam ser titulares de interesses com relevância jurídica, ao ponto de delimitar negativamente a liberdade humana referida à interação com eles. Se assim não fosse – se essa liberdade de ação fosse irrestrita perante os animais, se decorresse de uma dominialidade despótica –, teríamos de aceitar como legítimos atos voluntários de crueldade contra animais e dificilmente o artigo 1305.º-A do Código Civil escaparia ao juízo de censura jurídico-constitucional, pois chega a impor deveres positivos de ação aos proprietários de animais (“1 – O proprietário de um animal deve assegurar o seu bem-estar e respeitar as características de cada espécie e observar, no exercício dos seus direitos, as disposições especiais relativas à criação, reprodução, detenção e proteção dos animais e à salvaguarda de espécies em risco, sempre que exigíveis. 2 – Para efeitos do disposto no número anterior, o dever de assegurar o bem-estar inclui, nomeadamente: a) A garantia de acesso a água e alimentação de acordo com as necessidades da espécie em questão; b) A garantia de acesso a cuidados médico-veterinários sempre que justificado, incluindo as medidas profiláticas, de identificação e de vacinação previstas na lei. 3 – O direito de propriedade de um animal não abrange a possibilidade de, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos que resultem em sofrimento injustificado, abandono ou morte”). Aliás, a Constituição impõe a todos um dever (positivo) de defender um ambiente de vida ecologicamente equilibrado.
O dualismo proteção holística do ambiente/proteção individual de animais não se apresenta necessariamente em termos excludentes. É verdade que “[…] a proteção dos animais é individualista: ela se ocupa do animal individualmente considerado, enquanto a proteção do meio ambiente é holística, já que nesse âmbito trata-se do equilíbrio de um sistema como um todo” (Luís Greco, “Proteção de Bens Jurídicos e Crueldade com Animais”, Revista Liberdades, n.º 3, 2010, p. 53). Mas isso não significa que só uma das referidas modalidades se possa retirar do artigo 66.º da CRP, não obstante a sua epígrafe. Se os parâmetros a observar pelo legislador partem, inevitavelmente, do texto constitucional, nem todos têm de encontrar ali perfeita e expressa consagração literal – daí que, por exemplo, o princípio da culpa e os crimes contra o respeito devido aos mortos não suscitem dúvidas de constitucionalidade, apesar de se inferirem de um muito abrangente preceito relativo à dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP).
É assim que, argumentando no quadro da teoria do bem jurídico, Claus Roxin (“O Conceito de Bem Jurídico como Padrão Crítico da Norma Penal Posto à Prova”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 23, n.º 1, janeiro-março 2013, pp. 32/33) justifica a punição da crueldade contra animais e do respeito devido aos mortos, em termos semelhantes aos configurados pelo Código Penal português:
“[…]
[A] proibição de maus-tratos a animais não visa em primeira linha respeitar os nossos sentimentos, mas sim evitar que o animal sofra desnecessariamente. Todas as regulamentações jurídicas sobre a proteção dos animais têm em vista a tutela dos animais e não uma finalidade de preservar a inquietação humana. Caso contrário, deveria permanecer impune um ato cruel ocorrido fora do espaço público e que não escandalizasse ninguém. Na medida em que os animais são protegidos pela convenção europeia e pela constituição alemã, da minha parte não vejo qualquer objeção a que a sua capacidade de sofrimento possa ser considerada como bem jurídico. Ao reconhecermos os animais superiores – com os quais comunicamos e cuja vivência da dor é semelhante à nossa – como objeto do nosso mundo vital merecedor de proteção, há de reconhecer-se, de forma coerente, que os atos de crueldade realizados pelo Homem constituem uma ofensa a um bem jurídico.
É certo que, deste modo, uma teoria do bem jurídico puramente antropocêntrica e bastante limitada – tratar-se-ia de uma tutela mínima dos animais quando comparada com o âmbito de proteção das pessoas – é alargada e transformada em ‘teoria do bem jurídico referente à criatura’. Mas são as referências constitucionais e europeias que justificam este modo de proceder. […].
Na nossa sociedade o respeito devido aos mortos é também tido como parte de uma vida digna. A profanação de uma sepultura ou de um cadáver atingem negativamente a memória e os subsistentes direitos de personalidade da pessoa falecida. As reações emocionaissão apenas um reflexo dessa violação. […].
Por conseguinte, da minha perspetiva, nos casos referidos, os sentimentos jurídicos de indignação de terceiros não constituem um bem jurídico em si mesmo, mas tão-somente uma justificada reação à sua lesão.
[…]”.
Como assinala Concepcción Castro Álvarez, (Los Animales y su Estatuto Jurídico, cit., p. 119), partindo de um preceito constitucional com alguma proximidade ao artigo 66.º da CRP (artigo 45.º da Constituição espanhola) e procurando aí encontrar tutela para os animais individualmente considerados, a interpretação do preceito constitucional “[…] não pode ficar petrificada no concreto sentido que o legislador constituinte lhe possa ter fixado em 1978 [no caso português diríamos em 1976, ainda que com posteriores revisões atualizadoras]”.
3.3.2. Ao que vai dito poderá objetar-se que a proteção do direito, mesmo a que eventualmente possa ser ditada pelo artigo 66.º da CRP, não tem forçosamente de operar pela via penal, sendo bastante a tutela civil, administrativa e/ou sancionatória administrativa. Por outras palavras, aquele preceito constitucional não seria bastante para legitimar a intervenção do direito penal e, ainda que fosse legítima, ela não seria necessária.
Quanto à legitimação, se entendermos as exigências constitucionais nos termos que se deixaram consignados neste voto, torna-se mais difícil escapar à legitimação da lei penal por via do artigo 66.º da CRP do que justificá-la. Na verdade, o que se reconhece na Constituição é que os elementos do mundo natural – aí incluídos os animais – são não só objeto de deveres de proteção do Estado, como também de deveres de proteção de todos os cidadãos. Não é razoável, atualmente, afirmar-se que essa proteção cabe – só cabe – ao conjunto da natureza, para daí retirar a irrelevância de qualquer afetação que não prejudique o ambiente no seu todo – seja porque a qualidade de elemento do mundo natural contribui necessariamente para o equilíbrio entre a espécie humana, as outras espécies animais e vegetais e toda a natureza viva e não viva, seja porque tal entendimento deixaria sem proteção precisamente aqueles seres vivos que os humanos, arteficializando-os na medida do seu interesse, tornaram especialmente carecidos de proteção, designadamente contra o sofrimento físico. A questão não será apenas – ou não será principalmente – minimizar a heterodeterminação de animais por seres humanos (Luís Greco, “Proteção de Bens Jurídicos…”, cit., pp. 58/59), mas simplesmente reconhecer que o sofrimento de um animal encerra, à partida, um intenso desvalor. Esse desvalor tem como reverso a afirmação de interesses – de não sofrimento – juridicamente relevantes em cada animal que, por se encontrar segregado do mundo natural, vive mais exposto à ação humana, sendo esses interesses radicados na respetiva “consideração moral”, a que o artigo 66.º da Constituição não é indiferente, se interpretado nos termos amplos supra expostos.
Por outro lado, não se poderá afirmar a desnecessidade da intervenção penal (menos ainda a sua proibição), que implicaria um juízo no sentido de os mecanismos extrapenais serem suficientes para assegurar a tutela do interesse constitucionalmente acolhido em evitar o sofrimento dos animais. Tal conclusão não encontra sustentação na realidade social que conduziu o legislador à criminalização, não parecendo razoável afirmar, com o mínimo de segurança, que se justifica um juízo de censura jurídico-constitucional por desnecessidade da intervenção penal. De todo o modo, o controlo da desnecessidade da tutela penal pelo Tribunal Constitucional deverá entender-se como um controlo “de evidência”, visto que este Tribunal “[…] não deverá substituir-se ao legislador, aos juízos que lhe compete fazer; é natural, assim, que o âmbito dos factos em que poderá intervir não seja muito amplo”, devendo restringir-se a “[…] casos de flagrante desnecessidade da pena […]” (Maria da Conceição Ferreira da Cunha, «Constituição e crime» – Uma perspectiva da criminalização e da descriminalização, Porto, 1995, p. 267).
A afirmação, a propósito de uma concreta espécie, do Acórdão n.º 83/2022, no sentido de que “[…] não existe, em termos gerais, um ‘direito a matar’ o lobo-ibérico, pelo que este não tem, sequer, em qualquer esquema argumentativo, a aptidão para operar como contravalor da proteção do ambiente”, poderá ser até generalizada, no sentido de que não existe, em termos gerais, um direito a matar ou a causar sofrimento de um animal, pelo que este não tem, em qualquer esquema argumentativo, a aptidão para operar como contravalor da proteção penal de certos interesses de alguns animais.
Não deve impressionar, na escolha do legislador, a restrição da tutela a animais de companhia. Ela é justificada, por um lado, pela sua especial desproteção, acima assinalada, mas também pela relevância da proximidade da interação com os seres humanos, que expõe mais os animais (estes animais) à ação de quem os domina ou pode dominar. A circunstância de outros animais da mesma espécie não serem protegidos do mesmo modo, independentemente da sua justificação (inexistência de tal proximidade ou utilização dos animais para satisfação de necessidades humanas, por exemplo), não deslegitima a proteção dos animais de companhia – eventualmente, deixará em aberto a possibilidade de proteger, também, outros animais.
A solução aqui afirmada, embora se alcance por percursos jurídicos muito diferentes dos que constam das declarações de voto referidas supra, acaba por assentar numa valoração substancial muito aproximada destas, desenvolvendo o que, basicamente, já nelas se contém. O que se entende protegido pelo artigo 66.º da CRP não é muito diferente do que se considerou justificado pela ideia de dignidade da pessoa humana, admitindo-se que o bem-estar dos animais de companhia legitima a intervenção penal em virtude das responsabilidades dos seres humanos (declaração de voto do Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro) ou, simplesmente, pela ordem axiológica jurídico-constitucional globalmente considerada (declaração de voto da Conselheira Joana Fernandes Costa).
A questão constitucional da punição dos maus tratos a animais de companhia não deixa de se reconduzir, assim, a um problema de âmbito mais geral: a existência do que poderíamos qualificar como domínios centrais e periféricos da punição, expressando quadros diferenciados de relacionamento do legislador com a (opção pela) tutela penal de determinados comportamentos. Assim, nos domínios que poderíamos qualificar como centrais – centralidade aferida por uma forte ligação identitária a valores fundamentais (a arquétipos) no plano constitucional –, o legislador está obrigado a ou proibido de construir tipos penais: o legislador está obrigado a punir o homicídio (referimo-nos à existência do tipo geral do artigo 131.º do CP); ao legislador está vedado criminalizar, por exemplo, a apostasia (para seguir o expressivo exemplo dado por Peter Marneffe, Liberalism and Prostitution, Oxford University Press, Oxford, 2010, p. 4: “[…] to coerce apostasy for the benefit of a person’s imortal soul”). De todo o modo, a obrigação de criminalização “[…] não poderá abranger a totalidade dos valores constitucionais, nem se poderá confundir com o âmbito de uma legítima tutela penal. Ela só se poderá reconduzir a condutas de inequívoca e elevada dignidade penal (onde se inclui uma elevada danosidade social) e carecidas de intervenção penal, de tal modo que se possa considerar controlável constitucionalmente uma não intervenção” (Maria da Conceição Ferreira da Cunha, «Constituição e crime», cit., p. 307). Num plano distinto, que poderíamos qualificar de criminalização periférica, não está o legislador proibido ou obrigado a atuar através do Direito Penal, por estarem em causa valores constitucionalmente relevantes, mas que não exigem nem vedam intrinsecamente a tutela penal. Em tais casos – e é o que sucede com a norma sub judice – a construção de tipos penais é perfeitamente justificada e possível, num quadro de escolhas de política legislativa que apresentam, para o legislador, apreciáveis margens de liberdade.
As críticas dirigidas às normas penais, ilustradas por exemplos de casos de fronteira, não dizem respeito a problemas jurídico-constitucionais – eles resolvem-se interpretando o direito infraconstitucional no respeito pelo princípio da proporcionalidade e fazendo atuar os mecanismos típicos de direito criminal relativos à culpa, à justificação das condutas, ao designado risco permitido e à adequação social, entre outros.
Assim, ao contrário do entendimento maioritário desta 1.ª Secção, não vejo que a inserção da incriminação em causa no quadro jurídico-constitucional atual se faça “a custo”. Essa inserção faz-se sem grande dificuldade – embora não tão facilmente como seria perante uma previsão objetivamente expressa no texto da Lei Fundamental –, desde que a Constituição se interprete nos moldes supra apontados, que nada têm de incerto ou arbitrário.
Em suma, e embora por razões não coincidentes com as da maioria, entendo que não há lugar a um juízo de censura relativamente à norma sub judice por falta de legitimação constitucional da incriminação.
[Determinabilidade]
4. Aponta-se à norma sub judice a violação do princípio legalidade, enquanto exigência de lei certa, seja quanto à ação típica (“infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos” e “sem motivo legítimo”), seja quanto ao objeto da ação (“animal de companhia”, definido como “qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos […], para seu entretenimento e companhia”) – cfr., desde logo, as declarações de voto transcritas supra, entendimento que a maioria agora acolheu, nos pontos 15. e ss. do presente acórdão.
4.1. A questão vai, assim, colocada no plano da conformidade da norma ao princípio da legalidade criminal, previsto no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição.
Na apreciação da questão, devemos ter presente em que termos o Tribunal Constitucional pode sindicar as normas no confronto com o princípio da legalidade criminal. Fazendo uso das palavras do Acórdão n.º 590/2012:
“[…]
O artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da CRP submete a intervenção penal ao princípio da legalidade, no sentido preciso de que não pode haver crime nem pena ou medida de segurança que não resultem de lei prévia, escrita, certa e estrita, estando, consequentemente, proibido o recurso à analogia.
[…]”.
O controlo da constitucionalidade, em matéria de violação do princípio da legalidade criminal, implica, pois, um equilíbrio delicado, designadamente em sede de fiscalização concreta, passando por não interferir com a tarefa de interpretação e aplicação do direito levada a cabo pelo tribunal recorrido – a ele não se substituindo o Tribunal Constitucional –, verificando apenas se o dado imutável expresso no resultado alcançado ultrapassou os limites impostos pela Lei fundamental. Como se assinala no Acórdão n.º 587/14:
“[…]
[M]uito embora a opção por um modelo de controlo normativo tenha visível respaldo na Constituição, não resultando exclusivamente de uma solução legal nem tampouco de uma interpretação jurisprudencial, certo é que há que conjugar esta impostação com as demais regras e princípios constitucionais. Na verdade, se a Constituição consagra, no seu artigo 29.º, n.º 1, o princípio da legalidade criminal, extraindo-se do âmbito de proteção de tal normativo a proibição de aplicação analógica de normas incriminadoras, uma interpretação sistemática do texto constitucional aconselha a que esse momento hermenêutico se converta num ‘pedaço’ de normatividade integrante do objeto de controlo. Daqui não resulta que o Tribunal Constitucional haja de escrutinar qualquer processo hermenêutico que, em matéria penal ou processual penal, venha a ser adotado a nível infraconstitucional. O iter metodológico seguido pelo tribunal recorrido no apuramento do sentido normativo da norma permanece insindicável, não cabendo ao Tribunal Constitucional repassá-lo, mas apenas verificar se foram ultrapassados os limites constitucionais a que esse iter está sujeito em matéria penal, concretamente, a proibição da analogia in malam partem.
[…]”.
Dito de outro modo, ao Tribunal Constitucional cabe apenas verificar, nesta sede – e como repetidamente tem afirmado a sua jurisprudência –, se a norma aplicada ultrapassa o sentido possível das palavras da lei que qualifica os factos como crime ou fixa as consequências jurídicas do crime. Nas palavras do Acórdão n.º 729/2014:
[…]
[O] recurso de constitucionalidade é um instrumento de fiscalização da constitucionalidade das leis, ou das interpretações que os tribunais, fazendo operar os critérios que regem o processo hermenêutico (artigo 9.º do Código Civil), delas extraem, e não um acrescido meio de sindicância da bondade do julgado, ainda que por intermédio de parâmetros constitucionais de apreciação.
[…] (sublinhado acrescentado).
O princípio da legalidade criminal apresenta-se, pois, como “[…] garantia pessoal de não punição fora do âmbito de uma lei escrita, prévia, certa e estrita […]” (Acórdão n.º 500/2021). Um dos seus corolários é o designado princípio da tipicidade, a que se refere a exigência de lei certa, significando “[…] que a lei que cria ou agrava responsabilidade criminal deve especificar suficientemente os factos que integram o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos da aplicação de uma pena ou medida de segurança) e definir as penas (e as medidas de segurança) que lhes correspondem. Nesta aceção, o princípio da legalidade penal tem como corolário o princípio da tipicidade, condicionando a margem de conformação legislativa no âmbito da definição típica dos factos puníveis” (novamente, Acórdão n.º 500/2021, sublinhado acrescentado). Como se assinala no Acórdão n.º 76/2016:
[…]
A exigência de determinabilidade do conteúdo das normas penais, uma dimensão do denominado princípio da tipicidade, é avessa a que o legislador formule normas penais recorrendo a cláusulas gerais na definição dos crimes, a conceitos que obstem à determinação objetiva das condutas proibidas ou que remeta a sua concretização para fontes normativas inferiores, as chamadas normas penais em branco. A exclusão de fórmulas vagas na descrição dos tipos legais, de normas excessivamente indeterminadas e de normas em branco, leva em conta os valores da segurança e confiança jurídicas postulados pelo princípio da legalidade criminal. Com efeito, a exigência de clareza e densidade suficiente das normas restritivas, como é o caso das normas penais, é um fator de garantia da confiança e da segurança jurídica, «uma vez que o cidadão só pode conformar autonomamente os próprios planos de vida se souber com o que pode contar, qual a margem de ação que lhe está garantida, o que pode legitimamente esperar das eventuais intervenções do Estado na sua esfera pessoal» (Jorge Reis Novais, As restrições aos Direitos Fundamentais, não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, 2ª ed. pág. 770).
Deve reconhecer-se, porém, que a exigência de lex certa, como corolário do princípio da legalidade criminal, não veda em absoluto a formulação dos pressupostos jurídico-constitutivos da incriminação através de elementos normativos, conceitos indeterminados, cláusulas gerais e fórmulas gerais de valor. Seria inviável, até pela natureza da própria linguagem jurídica, uma determinação absoluta do tipo legal de ilícito.
[…]
Em princípio, a modelação do tipo legal de crime com recurso a conceitos indeterminados não afronta os princípios da legalidade e da tipicidade. Como reconhece o Tribunal Constitucional, após se interrogar sobre o grau admissível de indeterminação ou flexibilidade normativa em matéria de ilícitos penais, «uma relativa indeterminação dos tipos legais pode mostrar-se justificada, sem que isso signifique violação dos princípios da legalidade e da tipicidade» (Acórdão n.º 93/01).
Mas se é impossível uma total determinação dos elementos compósitos da ação punível, há de exigir-se um grau de determinação suficiente que não ponha em causa os fundamentos do princípio da legalidade. É que o princípio nullum crimen só pode cumprir a sua função de garantia se a regulamentação típica, ainda que indeterminada e aberta, for materialmente adequada e suficiente para dar a conhecer quais as ações ou omissões que o cidadão deve evitar. Como se escreve no Acórdão n.º 168/99, «averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima.
[…] (sublinhado acrescentado).
4.2. Em face do exposto, encaremos a norma penal, no que respeita à ação típica (“infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos” e “sem motivo legítimo”) e ao objeto da ação (“animal de companhia”, definido como “qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos […], para seu entretenimento e companhia”).
Recentemente, o Acórdão n.º 340/2022 confirmou a Decisão Sumária n.º 211/2022 que, considerando a questão simples, não julgou inconstitucional a norma contida no artigo 152.º, n.º 1, do CP (violência doméstica), designadamente, por violação do artigo 29.º, n.º 1, da CRP, no segmento relativo a “maus tratos físicos ou psíquicos”. Os fundamentos desta decisão foram os seguintes:
“[…]
Como assinala Nuno Brandão, ‘A tutela penal especial reforçada da violência doméstica’, in Revista Julgar, n.º 12 (setembro-dezembro de 2010), pp. 19/20:
[…]
A identificação dos comportamentos que podem ser reconduzidos ao conceito de maus tratos encontra-se relativamente estabilizada entre nós.
Devem estar em causa atos que pelo seu carácter violento sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a refletir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima. A circunstância de uma certa ação poder, a priori, integrar o conceito de maus tratos não significa necessariamente que se dê sem mais como preenchido o tipo-de-ilícito do crime de violência doméstica, tudo dependendo da respetiva situação ambiente e da imagem global do facto.
Entre a multidão de ações que à partida podem ser tidas como maus tratos físicos contam-se todo o tipo de comportamentos agressivos que se dirigem diretamente ao corpo da vítima e em regra também preenchem a factualidade típica do delito de ofensa à integridade física, como murros, bofetadas, pontapés e pancadas com objetos ou armas, só para citar os exemplos mais correntes, mesmo que se não comprove uma efetiva lesão da integridade corporal da pessoa visada. Mas entram ainda na esfera dos maus tratos físicos agressões de vários tipos que as mais das vezes são excluídas do âmbito do ilícito-típico das ofensas corporais, como empurrões, arrastões, puxões e apertões de braços ou puxões de cabelos.
Por sua vez, estão em condições de ser qualificados como maus tratos psíquicos os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens e serviços de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum, as privações da liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc. Para se assumirem como atos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância típica específica no seio de outros tipos legais de crime. Seja no sentido de que nem remotamente poderiam ser integrados em qualquer outra previsão típica, seja no de que a conduta seria de molde a preencher um específico tipo-de-ilícito, mas fica aquém do necessário para esse efeito, como se costuma enfatizar em relação às ameaças.
[…] (sublinhados acrescentados).
Maus tratos, enfim, ‘identificam-se com violência, podendo esta consistir em qualquer atentado contra a vida, a integridade física ou psíquica, a liberdade de uma pessoa ou qualquer comportamento (pode ser por omissão) que comprometa gravemente o desenvolvimento da personalidade da pessoa atingida’ (M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal: parte geral e especial, 2.ª edição, Coimbra, 2015, p. 649).
Note-se que não se trata, apenas, de uma estabilização do conceito jurídico – o mau trato físico ou psíquico tem, para qualquer destinatário de normal discernimento, uma evidente tradução factual de muito fácil apreensão. Ou seja, a noção de ‘maus tratos físicos ou psíquicos’, em geral, não é aberta ao ponto de qualquer destinatário de normal entendimento deixar compreender o que nela pode ir factualmente implicado, ou seja, a conduta proibida. O seu uso na previsão legal tem, aliás, evidente utilidade, ao abarcar um conjunto alargado de condutas desvaliosas (mas discerníveis sem dificuldade) – a alternativa seria desdobrar o conceito em ações de recorte mais fino, correndo assim o risco de deixar indesejáveis espaços de não punibilidade, sem qualquer benefício relevante na determinabilidade do comportamento censurado pela normal penal.
Designadamente, o conceito apresenta-se suficientemente definido para incluir, sem qualquer esforço interpretativo, a conduta de quem pratica os factos provados sob os pontos 8.º a 10.º e 12.º a 21.º da matéria de facto fixada no acórdão recorrido (por referência à numeração da sentença de primeira instância), por cuja prática o ora recorrente foi condenado (fls. 379).
Não cabendo ao Tribunal Constitucional (re)apreciar se os factos que preencheram a norma foram estes ou outros, mas apenas – como vimos – aferir se a letra da norma comporta o sentido da aplicação normativa e se este sentido se apresenta suficientemente definido na previsão normativa, a resposta é inequivocamente positiva: a previsão “maus tratos físicos psíquicos” é suficientemente clara, discernível, objetiva, definida e certa para os seus destinatários compreenderem o conjunto de condutas proibidas e, em particular, para incluir, sem equívocos, a interpretação segundo a qual pratica o crime correspondente quem age conforme agiu o ora recorrente [um pouco à semelhança do que, em questões aproximadas, o Tribunal teve já oportunidade de afirmar a propósito das previsões de ‘constranger’ no artigo 164.º, n.º 2, do CP (Acórdão n.º 260/2019) e de ‘praticar cópula’ no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma (Acórdão n.º 34/2022)].
Constitui, pois, um conceito indeterminado compatível com o princípio da legalidade criminal. Vale isto por dizer que se trata, para os efeitos ora relevantes, de lei certa.
Não ocorre, então, violação do princípio contido no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição.
2.4. Resulta do atrás referido, ainda, que a interpretação e concreta aplicação da norma do artigo 152.º, n.º 1, do CP, no segmento relativo a ‘maus tratos físicos ou psíquicos’, se inscreve – dir-se-ia que se inscreve confortavelmente – na normal tarefa hermenêutica dos tribunais penais compatível com o artigo 29.º, n.º 1, da CRP, sem que tenha ocorrido outorga ao julgador de poderes de estatuição normativa que pertencem ao espaço legislativo. O legislador realizou integralmente a sua função legislativa ao estabelecer o preceito nos termos assinalados e a tarefa que deixou ao julgador não estende a função de julgar. Dito de outro modo, não ocorre qualquer violação dos artigos 2.º, 111.º, n.º 1, e 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP.
[…]”.
Ressalvadas as óbvias diferenças entre humanos e animais com a suscetibilidade de experimentar sofrimento e tendo presente que o artigo 387.º, n.º 3, do CP parece prever apenas expressamente os maus tratos físicos, não é difícil concluir que, também aqui, a noção de “maus tratos”, em geral, não é aberta ao ponto de qualquer destinatário de normal entendimento deixar de compreender o que nela pode ir factualmente implicado, ou seja, a conduta proibida e que “[…] o seu uso na previsão legal tem, aliás, evidente utilidade, ao abarcar um conjunto alargado de condutas desvaliosas (mas discerníveis sem dificuldade) – a alternativa seria desdobrar o conceito em ações de recorte mais fino, correndo assim o risco de deixar indesejáveis espaços de não punibilidade, sem qualquer benefício relevante na determinabilidade do comportamento censurado pela normal penal” (último acórdão citado). Os destinatários da norma terão presente, designadamente, que não podem infligir sofrimento físico – por exemplo, causar dor – a um animal de companhia. Trata-se de um conceito indeterminado, mas determinável, compatível com o princípio da legalidade criminal, como o é nos artigos 152.º e 152.º-A do CP.
Não é diversa a conclusão face ao segmento “sem motivo legítimo”. O legislador, ciente de que a interação entre seres humanos e animais é juridicamente complexa e que o sacrifício de animais pode acontecer para satisfação de interesses humanos de elevado valor (por exemplo, a alimentação e a investigação científica, com o que implicam de atividades preparatórias do uso principal dos animais), sendo estes especialmente regulados, pretendeu deixar consignada uma cláusula geral – cláusula que tem tanto de indeterminado como qualquer remissão genérica para causas de justificação. Complementando a exclusão expressa de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial e de factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos (artigo 389.º, n.º 2, do CP, conjugado com os diplomas disciplinadores das atividades em causa, designadamente, o Novo Regime de Exercício da Atividade Pecuária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 81/2013, de 14 de junho, a Lei n.º 92/95, de 12 de setembro, quanto às atividades previstas no seu artigo 3.º), ficam, deste modo, ressalvados os factos que correspondam a qualquer “motivo legítimo”, que, podendo estar previsto em legislação extravagante, o legislador dificilmente poderia conter em remissão exaustiva (v., por exemplo, os artigos 11.º da Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia, em anexo ao Decreto n.º 13/93, de 13 de abril, 31.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de outubro, 3.º e 6.º da Lei n.º 92/95, de 12 de setembro, e 19.º do Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de outubro, atendendo, ainda, às limitações impostas pela Lei n.º 27/2016, de 23 de agosto). A referência à legitimação será, possivelmente, redundante (o que é legítimo ou lícito não faz incorrer o agente em responsabilidade criminal), mas a redundância – que aqui até é tributária de um propósito delimitador – não é, nem gera, indeterminabilidade.
A circunstância de a previsão legal não ser isenta de dúvida em casos situados na periferia da hipótese não torna a norma indeterminada. As dúvidas interpretativas sobre os limites da conduta penalmente relevantes podem existir em qualquer crime, sem que a previsão típica passe a ter-se como indeterminada, por esse motivo. Em situações de fronteira, é discutível e discutido o exato momento da morte, relevante nos crimes contra a vida, o limiar de dor ou desconforto físico penalmente relevante nos crimes contra a integridade física, a justificação de certas condutas típicas nesta última categoria de crimes ao abrigo do poder-dever de correção, o engano socialmente aceitável para o crime de burla, a fronteira entre o mero incumprimento contratual e certos crimes contra o património, para citar apenas alguns exemplos. Assim, à semelhança do que antes se referiu, também aqui se dirá que as críticas dirigidas às normas penais, ilustradas por exemplos de casos de fronteira, por vezes caricaturais (aludindo a insetos, répteis, animais raros, animais de trabalho ou a atos de duvidosa dignidade penal), se resolvem interpretando o direito infraconstitucional no respeito pelo princípio da proporcionalidade e fazendo atuar os mecanismos típicos de direito criminal relativos à culpa, à justificação das condutas e à adequação social, entre outros. Designadamente, a dúvida sobre se certos animais entram ou não no círculo da proteção penal não significa a indeterminabilidade da norma, desde que a incerteza interpretativa deixe salvaguardado, como é o caso, um núcleo claro e distinguível de conduta proibida. Nesse plano se resolverão, ainda, outras dúvidas interpretativas não descaracterizadoras dos traços fundamentais da conduta proibida [por exemplo, até que ponto os conceitos de “lar” e de “residência” são equivalentes (v., a propósito, o artigo 3.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de outubro, o artigo 1.º, n.º 1, da Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia, supra citada, e o artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de outubro) ou se a norma penal protege animais detidos por quem não tem uma residência fixada].
Considerações semelhantes valem, mutatis mutandis, para o conceito de “animal de companhia” como sendo aquele que é “detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia”, e ainda qualquer animal sujeito a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC – o registo obrigatório abrange, atualmente, cães, gatos e furões – v. artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 82/2019, de 27 de junho), com exclusão dos animais cuja detenção seja proibida (v., por exemplo, o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de outubro, e os artigos 13.º e ss. do Decreto-Lei n.º 121/2017, de 20 de setembro). Não há nada de essencialmente indeterminado neste conceito, que é de fácil apreensão aos destinatários das normas, sendo as dúvidas, uma vez mais, passíveis de solução nos termos gerais da interpretação de normas no plano infraconstitucional. Difícil de entender e de justificar seria uma especiosa imposição ao legislador, no sentido de mais fina concretização, em busca da qual, provavelmente, seria maior o risco de contradição e incoerência do que, propriamente, a possibilidade de alcançar maior clareza ou precisão do referido conceito.
4.3. Aproximando-nos da conclusão desta longa – mas, creio, necessariamente longa – declaração de voto, penso ser importante deixar duas últimas observações.
A primeira é a de que as dúvidas expressas no acórdão da maioria (v. o seu ponto 17.), que se destinam a ilustrar a indeterminabilidade do tipo legal, não são qualitativamente diversas daquelas a que se fez referência supra, ou seja, são dúvidas interpretativas a que, em maior ou menor grau, se abre a interpretação de qualquer tipo legal e resolvem-se com as “válvulas de escape” já conhecidas do direito penal (seja pelas particulares regras de interpretação da lei penal, seja pelas ideias de necessidade, não danosidade, adequação social, entre outras). No essencial, a conduta típica, seja quanto à ação, seja quanto ao respetivo objeto, é determinável sem dificuldade. Já a posição da maioria colocará o legislador, a meu ver, na difícil posição de aumentar o grau de determinação de norma (algo para o que o acórdão não oferece solução e, rigorosamente, não tem de a oferecer), podendo com facilidade cair novamente no tipo de juízo de indeterminabilidade que agora se lhe opõe, o qual, no limite, poderá não ter solução, enredando-se o legislador e o Tribunal nos pressupostos desta censura. Não vislumbro para este percurso – ele próprio ainda indefinido, uma vez que as maiorias da 1.ª Secção e da 3.ª Secção do Tribunal dão, neste momento, sinais contraditórios ao legislador – um resultado razoável.
A segunda para salientar que entendo que o SIAC não contribui para a indeterminabilidade do tipo, no que respeita ao objeto da ação. Desde logo, importa recordar que nos encontramos perante fiscalização concreta e, perante os dados do caso – está em causa, na acusação rejeitada, “um canídeo de pequeno porte, de raça indeterminada, macho, de cor afogueado, com cerca de seis meses” – nada de duvidoso ou indeterminado se surpreende, seja por via da definição do n.º 1 do artigo 389.º do Código Penal, seja por via da remissão para o SIAC contida no n.º 3 do mesmo artigo. Por outro lado, eventuais desvios, excessos ou desadequações do SIAC eventualmente geradores de indeterminabilidade não estão aqui em causa, não existem atualmente, nem se prevê que possam, à partida, suscitar questões de indeterminabilidade, já que o SIAC identificará sempre as espécies animais em causa. Poderão eventuais atualizações futuras suscitar problemas de outra ordem (desnecessidade de tutela penal, por exemplo), a resolver através de outros parâmetros e apenas para os casos em que se justifique essa censura, que não é certamente o presente. Renovo, pois, as preocupações consignadas no parágrafo anterior.
Em suma, não encontro fundamentos bastantes para afirmar a indeterminabilidade da norma que tipifica o crime de maus tratos de animal de companhia, contida no artigo 387.º, n.º 3, em conjugação com o artigo 389.º, n.os 1 e 3, do CP.
5. Resulta do exposto que, do meu ponto de vista, não se verificam razões de censura jurídico-constitucional relativamente à norma sub judice. Concluiria, pois, por um juízo de não inconstitucionalidade.
J. A. Teles Pereira