ACÓRDÃO N.º 787/2022
Processo n.º 931/2022
3ª Secção
Relator: Conselheiro Afonso Patrão
Acordam, em conferência, na 3.ª secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que são recorrentes A. e B. e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC) — Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada, por último, pela Lei Orgânica n.º 1/2022, de 4 de janeiro.
2. Através da Decisão Sumária n.º 634/2022, decidiu-se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso, com a seguinte fundamentação:
«5. Deve começar por notar-se que os recorrentes não enunciam a norma ou interpretação normativa, extraída dos preceitos das alíneas f) e g) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal, formulada com generalidade e abstração, que reputam inconstitucional.
Não obstante, e independentemente da eventualidade de se não verificarem outros pressupostos de admissão do recurso, não pode o Tribunal Constitucional conhecer do seu objeto, já que os recorrentes carecem de legitimidade processual, por não terem suscitado perante o tribunal a quo uma questão de constitucionalidade normativa «em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC).
Com efeito, percorrendo a argumentação apresentada no requerimento de interposição do recurso de revisão (expressamente indicado pelos recorrentes como a peça processual em que suscitaram a questão de constitucionalidade) verifica-se que os recorrentes não questionaram, de modo algum, a constitucionalidade de qualquer norma contida nas alíneas f) e g) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal.
Pelo contrário, limitaram-se a declarar que interpunham o recurso «ao abrigo dos artigos 449.º f) e g) do CPP [cfr. errata da parte final do requerimento de recurso de constitucionalidade], 6.º-1 da Convenção Europeia, Acórdão 268/2022 de 19-4-2022 do Tribunal Constitucional, da invalidade da Diretiva 2006/24/CE no acórdão de 8-4-2014, Digital Rights Ireland Ltd e outros, C-293/12 e C- 594/12, do Principio da proporcionalidade pela restrição que a Diretiva opera dos direitos ao respeito pela vida privada e familiar e à proteção de dados pessoais, consagrados nos 7.º e 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta), do direito à reserva da vida familiar e privada no artº. 26º- 1 da Lei Fundamental e do direito à tutela jurisdicional efetiva consagrado no artº. 20º-1 da mesma Lei». Não enunciaram, pois, qualquer sentido normativo, contido nas alíneas f) e g) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal, que reputassem inconstitucional e cuja aplicação devesse ser recusada por aquele tribunal.
Por força do disposto no n.º 2 do artigo 72.º da LTC, constitui pressuposto de admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do respetivo artigo 70.º que a questão de constitucionalidade enunciada no requerimento de interposição do recurso haja sido suscitada «durante o processo» e «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e n.º 2 do artigo 72.º da LTC). Este pressuposto — que decorre da alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição —, para além de vincular o recorrente à antecipação da questão de constitucionalidade ulteriormente enunciada no requerimento de interposição do recurso (exigindo-lhe que a defina antes de esgotado o poder jurisdicional da instância recorrida), tem uma evidente dimensão formal, impondo ao recorrente um ónus de delimitação e especificação, perante o tribunal a quo, do objeto do recurso. Conforme recorrentemente notado na jurisprudência deste Tribunal, a suscitação processualmente adequada da questão de constitucionalidade pressupõe que o sentido normativo questionado tenha sido «enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito, ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, desse modo, afrontar a Constituição» (cfr. Acórdão n.º 367/94).
Ora, compulsados os autos, não se pode considerar previamente suscitada, perante o tribunal que proferiu o acórdão aqui recorrido, qualquer questão de constitucionalidade reportada às alíneas f) e g) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal. Razão pela qual, nos termos do disposto do n.º 2 do artigo 72.º da LTC, carecem os recorrentes de legitimidade, o que obsta ao conhecimento do objeto do recurso».
3. Inconformados com tal decisão, os recorrentes reclamaram para a Conferência, nos seguintes termos:
« A. e B., recorrentes nos autos supra id., notificados da Decisão Sumária n.° 634/2022 proferida em 17-10-2022 e não se conformando com a mesma, vêm ao abrigo do art.º 78-A – n.° 3 da Lei do Tribunal Constitucional, RECLAMAR para a Conferencia.
A não apreciação da questão de constitucionalidade por questões meramente formalistas traduz negação do acesso ao Tribunal: art.º 6.º -1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Neste sentido veja-se o acórdão proferido no "affaire Dos Santos Calado et autres" contra Portugal em 31-7-2000 no processo 55997/14 no qual o TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM condenou Portugal pelo formalismo excessivo conforme se transcreve:
130. Eu égard à ces constatations, la Cour conclut que le Tribunal constitutionnel a fait preuve d'un formalisme excessif en ce qui concerne l'application des articles 70 et 72 § 2 de la LOTC posant l'obligation d'épuisement préalable de la question tirée de l’inconstitutionnalité, ce qui les a privés de voir examiner au fond la question de l’inconstitutionnalité portée devant le Tribunal constitutionnel. Il y a donc eu violation de l’article 6 § 1 de la Convention.
130. À luz destas conclusões, o Tribunal de Justiça conclui que o Tribunal Constitucional tem sido excessivamente formalista no que diz respeito à aplicação dos artigos 70.º e 72.º § 2 da LOTC, que os obrigam a esgotar previamente a questão da inconstitucionalidade, o que os privou de ver examinado o mérito da questão da inconstitucionalidade apresentada ao Tribunal Constitucional. Houve, portanto, uma violação do artigo 6.º § 1 da Convenção.
Termos em que se RECLAMA para a Conferencia, devendo o recurso ser apreciado como é da mais elementar JUSTIÇA sob pena de ostensiva violação do art.º 6.º-1 da CEDH.».
4. O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação, com os seguintes fundamentos:
«(…)
2.º
Com efeito, conforme resulta do exposto naquela douta decisão sumária, os ora reclamantes identificaram como objeto da sua pretensão recursiva o artigo 449.º, alíneas f) e g) do Código de Processo Penal.
3.º
Ora, perante tal formulação do objeto de um recurso de constitucionalidade a sujeitar ao Tribunal Constitucional, não poderia o Exm.º Sr. Conselheiro relator, em nosso entender, deixar de decidir, como decidiu, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto.
4.º
Na verdade, conforme resulta do exposto na douta decisão sumária que ponderou o conteúdo da intervenção processual dos ora reclamantes, “verifica-se que os recorrentes não questionaram, de modo algum, a constitucionalidade de qualquer norma contida nas alíneas f) e g) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal”, tendo-se limitado a declarar que interpunham o recurso ao abrigo, para além do mais, do disposto no artigo 449.º, alíneas f) e g) do C.P.P.
5.º
Apura-se, assim, que os recorrentes não cumpriram o ónus de suscitação prévia - em termos tempestivos e procedimentalmente adequados - de uma questão de constitucionalidade normativa, de modo a criar, para o douto tribunal “a quo”, o dever de sobre ela se pronunciar nos termos do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC, o que determina a sua ilegitimidade e inviabiliza, igualmente, o conhecimento, por parte deste Tribunal, do objeto do recurso.
6.º
Com efeito, no que respeita a esta dimensão, há que sublinhar que os reclamantes, no requerimento de interposição de recurso de revisão de sentença para o Supremo Tribunal de Justiça, não lograram suscitar qualquer questão da inconstitucionalidade, em termos processualmente adequados, não logrando, consequentemente, enunciá-la, como lhes era exigido, de forma expressa, direta, clara e percetível em termos de criar para aquele tribunal um dever de pronúncia sobre a mesma.
7.º
Por força do agora apurado, sempre teria o Tribunal Constitucional de decidir pelo não conhecimento do objeto do recurso.
8.º
Porém, a acrescer ao agora inferido, resulta com clareza da sucinta materialização da suposta questão de constitucionalidade enunciada que, conforme percebido pelo Exm.º Sr. Conselheiro relator, a matéria do dissídio e, consequentemente, o objeto da discordância jurídica, não se corporiza num conteúdo de natureza normativa mas, distintamente, consubstancia-se na própria decisão recorrida e, mais tangivelmente, no critério concreto de tal decisão.
9.º
Em tal objeto não se vislumbra uma interpretação normativa cuja inconstitucionalidade possa ser questionada mas, exclusivamente, a adequação e a correção da concreta aplicação, por parte do tribunal “a quo”, das disposições legais enumeradas pelo recorrente, aplicação à qual imputa, sem fundamentar, a violação material da Constituição, o que justifica um implícito juízo de inidoneidade de tal objeto recursivo e a decisão sobre a constatação da ilegitimidade processual do recorrente.
10.º
Ou seja, resulta com evidência, do teor do requerido pelos ora reclamantes, que o objeto do recurso por eles interposto não se corporiza em qualquer conteúdo de natureza normativa, uma vez que não lograram enunciar “qualquer sentido normativo, contido nas alíneas f) e g) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal, que reputassem inconstitucional e cuja aplicação devesse ser recusada por aquele tribunal [STJ]”, uma vez que se limitaram “a declarar que interpunham o recurso ao abrigo dos artigos 449.º f) e g) do CPP”.
11.º
Efetivamente, ao apurar-se que o intuito dos recorrentes se traduz na sindicância da decisão jurisdicional concreta, na vertente de interpretação do direito infraconstitucional e de apreciação casuística, há que concluir que o conhecimento de tal objeto recursivo se encontra subtraído à competência do Tribunal Constitucional.
12.º
Isto é, conforme já resultava do teor da douta decisão reclamada, atenta a omissão da suscitação adequada da questão de inconstitucionalidade, bem como a evidência da falta de normatividade da mesma, não podia a decisão a proferir deixar de ser a de não conhecimento do objeto do recurso.
13.º
Confrontado com as inferências alcançada pela douta Decisão Sumária n.º 634/2022, não conseguem, os ora reclamantes, contradizer as premissas jurídico-formais nas quais se sustentou a douta decisão reclamada, limitando-se a imputar-lhe um excesso de formalismo, sustentando que o recurso deverá ser conhecido.
14.º
De tudo o exposto, resulta com evidente clareza, que o objeto da questão colocada pelos ora reclamantes perante o Tribunal Constitucional não apresenta natureza normativa e, para além disso, que não alcançam om reclamantem o desiderato de demonstrar que cumpriram o ónus de suscitação prévia, em termos tempestivos e procedimentalmente adequados, de uma questão de constitucionalidade normativa.
15.º
Assim sendo, tendo-se os reclamantes limitado a discordar do entendimento expresso por este Tribunal na douta decisão sumária reclamada, não poderá a sua pretensão deixar de ser, segundo sustentamos, desatendida.
16.º
Por força do acabado de expor, deve a presente reclamação, em nosso entender, ser indeferida».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. Através da Decisão Sumária n.º 634/2022, ora reclamada, concluiu-se pela impossibilidade de conhecimento do objeto do recurso interposto no âmbito dos presentes autos com fundamento na ilegitimidade dos recorrentes. Para assim se concluir, fez-se notar, naquela decisão, não terem os recorrentes suscitado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, qualquer questão de inconstitucionalidade reportada às nas alíneas f) e g) do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal, o que dita a sua ilegitimidade processual (n.º 2 do artigo 72.º da LTC).
Expressando a sua discordância quanto à decisão reclamada, os reclamantes não aduzem qualquer argumento que permita inverter o juízo ali alcançado quanto à inadmissibilidade do recurso interposto, limitando-se a afirmar que «A não apreciação da questão de constitucionalidade por questões meramente formalistas traduz negação do acesso ao Tribunal: art.º 6.º -1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem» sem indicar as razões da sua discordância do fundamento de ilegitimidade que suportou a decisão sumária reclamada.
Nos termos do n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional «[d]a decisão sumária do relator pode reclamar-se para a conferência (…)». A possibilidade de reclamação visa facultar ao recorrente a oportunidade de ver apreciado o seu requerimento de interposição do recurso por uma formação colegial, sendo por isso de admitir que a mesma deva ser apreciada ainda que não tenham sido invocadas razões específicas destinadas a contrariar o sentido da decisão proferida pelo relator quanto à admissibilidade do recurso.
Procedendo a essa reponderação, não se deteta na decisão reclamada qualquer fundamento que não mereça confirmação.
Pelo que, nada se acrescentando em argumentação, a reclamação deverá ser integralmente indeferida.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro, ponderados os critérios estabelecidos no respetivo artigo 9.º, sem prejuízo do apoio judiciário de que eventualmente beneficie.
Lisboa, 17 de novembro de 2022 – Afonso Patrão – João Pedro Caupers
Atesto o voto de conformidade do senhor Conselheiro Lino Ribeiro, que participa por videoconferência.
Afonso Patrão