ACÓRDÃO Nº 750/2022
Processo n.º 1030/20
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Assunção Raimundo
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, vem o Ministério Público interpor recurso obrigatório, ao abrigo do disposto no artigo 280.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, nºs. 1, alínea a), e 3 da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante, «LTC»), da sentença proferida naquele Tribunal, a 26 de maio de 2020, requerendo a apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 15.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto do Selo (CIS), na redação vigente à data dos factos, cuja aplicação foi recusada, com fundamento em inconstitucionalidade material.
2. No âmbito do processo de que estes autos constituem um incidente, A., ora recorrido, intentou impugnação judicial, que correu termos sob o n.º 966/16.9BEPNF, contra a Administração Tributária e Aduaneira (AT), com vista à anulação dos atos de liquidação de Imposto do Selo relativos à transmissão gratuita de ações, nºs. 2267771 e 2267777, de 15.02.2016, com os valores de € 1.249.143,85 e de € 1.249.143,85, respetivamente.
Os referidos atos de liquidação foram emitidos na sequência da outorga da escritura, realizada a 29 de janeiro de 2015, de doação modal, ao ora recorrido, de 6.910 ações do capital social da sociedade anónima “Sociedade de Ensino Central Vilameanense, S.A.”, com sede em Freira, Ataíde, Amarante, com o capital social de € 225.000,00, dividido em 45.000 ações ao portador, com o valor nominal de € 5,00, cujos títulos lhe foram entregues naquele ato.
Em virtude de as ações transmitidas não estarem cotadas, a Direção de Finanças do Porto procedeu ao cálculo do respetivo valor, nos termos previstos no artigo 15.º, n.º 3, do Código do Imposto de Selo (CIS).
De acordo com os ofícios nºs. 74000 e 72744, de 03.12.2015 e 30.11.2015, emitidos com o assunto “Valorização de ações” – artº 15º do C. I. Selo”, foi atribuído ao lote de 6.910 ações, o valor de € 25.024.877,08, com expressão nominal de € 34.550,00, tendo essa quantia sido “apurada com base na situação líquida reportada a 31/12/2014”.
Como método de cálculo do valor das ações, foi utilizada a fórmula constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do CIS, em que VA = 1/2 n [S + (R1 + R2)/2)f)], sendo “Va” (valor de cada ação à data da transmissão) € 3.621,55; “n” (número de ações representativas do capital social) 45.000; “S” (valor substancial da sociedade participada, calculado a partir do valor contabilístico correspondente ao último exercício anterior à transmissão) € 1.834.244,71; “R1” e “R2” (resultados líquidos obtidos pela sociedade participada nos dois últimos exercícios anteriores à transmissão) € 324.104,82; e “f” (fator de capitalização dos resultados líquidos calculado com base na taxa de juro aplicada pelo BCE às suas principais operações de refinanciamento, tal como publicada no Jornal Oficial e em vigor à data em que ocorra a transmissão) 2.000 (cf. fls. 27 e 43 do processo administrativo tributário apenso).
Na pendência da impugnação judicial, tendo o ora recorrido requerido a prestação de garantia mediante constituição de penhor sobre as referidas ações, destinada a suspender a execução fiscal contra si instaurada, a Administração Tributária, em 21 de dezembro de 2016, procedeu à “Avaliação de garantias – valorização de ações – Artº 15º do C. I. Selo”, usando a mesma fórmula de cálculo. De acordo com a avaliação efetuada, foi atribuído ao lote de 6.910 ações o valor global de € 472.389,70, com expressão nominal de € 34.550,00, quantia essa “apurada com base na situação líquida reportada a 31/12/2015”, sendo que, nesse apuramento, o valor de “Va” foi fixado em € 68,36320 e o fator “f” em 25,00 (cf. fls. 115-v.º).
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, em sentença proferida a 26 de maio de 2020, julgou procedente a impugnação judicial, anulando as liquidações de Imposto do Selo impugnadas, com fundamento na recusa de aplicação da fórmula constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do CIS, na redação vigente à data dos factos, por a sua utilização, in casu, conduzir a um resultado materialmente injusto e inconstitucional, violador dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva.
Na parte relevante da respetiva fundamentação, o tribunal a quo destaca o seguinte:
Na determinação do valor tributável das ações não cotadas para efeitos de IS, a solução preconizada pelo Legislador para o cálculo do fator de capitalização (na redação que vigorou até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 41/2016) afigura-se desajustada à realidade, porquanto não antecipou nem a vulnerabilidade da taxa de juros de referência do BCE que contribui para o seu apuramento (muito menos a possibilidade de esta taxa se cifrar em zero), nem as desigualdades que seria suscetível de proporcionar entre transmissões de participações sociais economicamente equiparáveis, nem as enormes disparidades que a mínima flutuação percentual desta taxa de juros (especialmente quando próximas de zero) seria suscetível de causar entre os contribuintes com a mesma capacidade contributiva.
Disso mesmo demos exemplo supra, quando evidenciámos que a mínima alteração (de centésimas) da taxa de juros implica gigantescas alterações no valor de cada ação não cotada: v.g., se a taxa de juros descer de 0,05% para 0,01%, o fator de capitalização passaria de 2000 para 10.000 (100/0,01), o que corresponderá a uma quintuplicação imediata do valor tributável das ações sem correspondência económica possível.
Este cenário põe a descoberto a efetiva violação do princípio da igualdade no que se refere à transmissão de participações sociais economicamente comparáveis, designadamente das ações com cotação oficial face às ações não cotadas, como é o caso.
É que, se atentarmos na redação do n.° 3, do artigo 15.° do CIS, constatamos que foi intenção do Legislador estabelecer que o valor tributável das ações fosse o mais próximo possível do seu valor real, encerrando na fórmula prevista na alínea a), dessa disposição legal uma forma de determinar, presuntivamente, o valor real das ações não cotadas transmitidas (…).
Todavia, como pode verifica-se in casu, a aplicação da fórmula prevista para a determinação do fator de capitalização das 6.910 ações não cotadas, com base numa taxa de juro de 0,05%, é de tal modo desajustada e exagerada, que o valor tributável de cada ação apurado (€ 3.621,55) passou a ser cerca de 724 vezes superior ao respetivo valor nominal (€ 5,00), o que, num simples juízo de senso comum, permite concluir que o valor tributável determinado pela ATA não corresponde minimamente ao valor real presumido de cada ação. […]».
3. Notificado dessa decisão, o Ministério Público interpôs o presente recurso obrigatório, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC (cf. fls. 225).
4. Admitido o recurso no tribunal a quo (cf. fls. 227), prosseguiu o processo para alegações, vindo o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional pronunciar-se no sentido da improcedência do recurso, por não ocorrer erro de julgamento quanto à questão de constitucionalidade, embora com fundamentos não inteiramente coincidentes com os do julgado a quo (cf. fls. 229-244), concluindo nos seguintes termos:
«[…]
III
(Conclusões)
1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos artigos 280º, nºs 1, al. a), e 3, da Constituição da República Portuguesa, 70º, n.º 1, al. a), 71º, n.º 1, 72º nºs 1, al. a) e 3, 75º, n.º 1, 75º-A, nº 1 e 78.º, nº 4, todos da LOFPTC, da “douta sentença, proferida no dia 26 do corrente mês de maio de 2020 e exarada a fls. 345ss (do SITAF) (…) recusando, assim, a aplicação da (…) norma constante da alínea a), do n.º 3 do artigo 15.º do CIS, na redação vigente à data dos factos, por reputar que o uso da fórmula aí prevista, conduz(iu), in casu, a resultado materialmente injusto e inconstitucional, por violação dos invocados princípios(s) da igualdade e da capacidade contributiva, constitucionalmente consagrado(s) – artigo 13.º da CRP)”.
2.ª) Vem recorrida a interpretação normativa da variável “f”, constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º do CIS, na redação que, por último, lhe foi conferida pelo artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 287/2013 (…altera o Código do Imposto do Selo…), de 12 de novembro, na medida em que estabelece que o fator de capitalização dos resultados líquidos é calculado segundo a fórmula 100/i, sendo no caso, “f” = 100/0,05, posto que “taxa de refinanciamento” (MRO) do BCE, vigente à data da transmissão das ações não cotadas, era de 5%, ou seja, “f” = 2000.
3.ª) Na exata medida em que “a avaliação de uma ação, tal como a avaliação de uma empresa, é um problema económico e deverá ser com recurso aos métodos que têm sido desenvolvidos para o resolver que se encontrará a respetiva solução” (FREITAS PEREIRA), importa, preliminarmente, determinar qual a razão de ser que, em geral, subjaz à metodologia da avaliação fiscal das ações não cotadas, constante da variável “f”, da alínea a), do n.º 3 do artigo 15.º do CIS , à luz dos pontos de vista, económicos e financeiros, que matéria concita.
4.ª) Assim, a alteração das taxas de juro diretoras, em particular da “taxa de refinanciamento” (MRO), do BCE, desencadeia o denominado “mecanismo de transmissão monetária”, o qual, através dos “canais de transmissão”, vem a influir, ceteris paribus, no estado da economia real e no nível geral de preços (relativos), em particular no preço dos ativos económicos e financeiros, em particular do curso das cotações bolsitas (BCE, HENRY, DI GIORGIO, ISSING et alii).
5.ª) A relação causal entre a taxa de juros e os preços relativos é, tendencialmente, de sinal inverso, ou seja, no caso, através de arbitragens entre o mercado bancário e financeiro, a diminuição da “taxa de refinanciamento” (MRO), do BCE, valoriza as ações, na medida em que torna menos rendíveis as aplicações financeiras tipicamente sem risco, enquanto que o incremento da “taxa de refinanciamento” (MRO), do BCE, desvaloriza as ações, na medida em que torna mais rendíveis as aplicações financeiras tipicamente sem risco.
6.ª) Portanto, é fundamentalmente acertada a consideração desta taxa de juro, a “taxa de refinanciamento” (MRO), do BCE, na variável “f”, da fórmula da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º do CIS, no quadro da economia da zona euro.
7.ª) Por outra parte, convém notar que, ao aumento da “taxa de refinanciamento” (MRO), do BCE, corresponde uma redução do fator de capitalização dos resultados líquidos, e vice-versa, à redução da “taxa de refinanciamento” (MRO), do BCE, corresponde um aumento, do fator de capitalização dos resultados líquidos, congruente com a já mencionada correlação inversa entre “taxa de refinanciamento” (MRO), do BCE, e o curso das cotações bolsistas.
8.ª) Parece, pois, que por efeito da variação do valor de “f”, opera um equitativo nivelamento, tendencial, entre o custo de oportunidade do investimento de capital no mercado financeiro (ações cotadas) e do investimento de capital no mercado económico (ações não cotadas).
9.ª) O método de cálculo realmente efetuado pela administração tributária, no caso em apreço, foi o de considerar “100” no numerador, obtendo assim “f” = 2000 (100/0,05).
10.ª) Tal método de cálculo contravém, ostensivamente, por uma parte, os precedentes da própria administração tributária, jurisprudenciais e doutrinários (que usam a fórmula 1/i),
11.ª) por outra parte, o senso comum (um lote de 6.910 ações, de um total de 45.000, de uma sociedade comercial que tem por objeto social o ensino básico (2.º ciclo) e os ensinos secundário tecnológico, artístico e profissional, com um valor substancial de “1.834.244,71€”, e com resultados líquidos de “180.147,91€” (R1) e “143.956,91€” (R2), teria o astronómico valor de 25.024.877,08 €),
12.ª) e, finalmente, os sãos critérios de interpretação da lei (a presunção legal segundo a qual as palavras da lei “consagram as soluções mais acertadas”).
13.ª) Tal método de cálculo é, pois, infundado e conduz a resultados do foro da enormidade, propendendo para ter natureza confiscatória.
14.ª) O imposto do selo tem caráter heterogéneo, pois tributa o consumo, rendimento e aquisição de património, sendo que no caso estamos perante esta última hipótese, uma tributação da transmissão gratuita de riqueza.
15.ª) Não está aqui em causa a quinta-essência da manifestação da efetiva “força económica”, que é o rendimento, mas ainda assim poderá ser chamado à colação, como chave geral de leitura do caso, o princípio da (efetiva) capacidade contributiva, nos termos do qual “o imposto [deve] correspond[er] à força económica do contribuinte” (SÉRGIO VASQUES).
16.ª) No caso, a administração tributária, ao considerar “f” = 2000, sobrevalorizou, desproporcionalmente, em detrimento do contribuinte, o valor tributável do lote de 6.910 ações objeto de transmissão gratuita, computado em 25.024.877,08€, logo o imposto apurado não corresponde (rectius, excede, desproporcionadamente) à “força económica do contribuinte”.
17.ª) Não estará em causa, todavia, um tratamento desigualitário, nos termos dos n.ºs 1 (igualdade perante a lei) e 2 (situação económica) do artigo 13.º (Princípio da igualdade), mas, antes, uma “exação excessiva”, gerando uma restrição exorbitante do direito à transmissão da propriedade privada (rectius, direitos patrimoniais privados), por desproporcionada, nos termos do n.º 2 do artigo 18.º (Força jurídica) e do n.º 1 do artigo 62.º (Direito de propriedade privada), todos da Constituição.
18.ª) Ou seja, estará consubstanciada uma violação do princípio da proporcionalidade, no aspeto da “adequação”, na medida em que considerar “f” = 2000, como fator de capitalização dos resultados líquidos da sociedade comercial em causa, determinando que, a final, “Va” = 25.024.877,08€, não está, por notoriamente exorbitante, numa relação proporcionada “com comprovadas hipóteses sobre a realidade” das coisas.
19.ª) Especificamente do ponto de vista do direito fiscal, segundo a mais conceituada doutrina, “o princípio constitucional da proporcionalidade (…) é considerado como como princípio de quantificação [dos tributos]. Ele é reputado pela jurisprudência, ultimamente, como fundamento do princípio da equivalência; é pela mesma estabelecido que, entre tributo e capacidade contributiva individual, deverá interceder uma relação proporcionada (ou, pelo menos, não deverá existir uma disparidade)” (KIRCHHOF).
5. Notificado, o recorrido não apresentou contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. Importa começar por analisar a conformação do objeto material do presente recurso.
Como se extrai do percurso anteriormente traçado, o tribunal a quo veio recusar a aplicação da norma constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do Código do Imposto do Selo (CIS), na redação vigente à data dos factos, por reputar que o uso da fórmula aí prevista, neste caso, «põe a descoberto a efetiva violação do princípio da igualdade no que se refere à transmissão de participações sociais economicamente equiparáveis, designadamente das ações com cotação oficial face às ações não cotadas», convocando, como fundamento do juízo de inconstitucionalidade, o parâmetro constitucional consagrado no artigo 13.º da Constituição e o princípio da capacidade contributiva.
No requerimento de interposição de recurso apresentado nos autos, vem, assim, requerida a apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 15.º, n.º 3, alínea a), do CIS, na redação vigente à data dos factos. Porém, como justamente observou o Ministério Público nas alegações produzidas neste Tribunal, não obstante do teor textual do decisum a quo resultar a recusa de aplicação da fórmula constante da referida norma legal, no raciocínio lógico-jurídico que lhe está subjacente é apenas a interpretação normativa da variável f, da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º do CIS, que tem projeção na sua ratio decidendi e que está na origem do juízo de desaplicação, neste caso concreto.
Deste modo, o objeto do presente recurso de constitucionalidade incide apenas sobre o segmento normativo constante da variável f, integrada na fórmula prevista na alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do CIS, assente esse fator de capitalização dos resultados líquidos na fórmula f = 100/i, em que f = 100/0,05 (ou f = 2000), por aplicação da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu às suas principais operações de refinanciamento, tal como publicada no Jornal Oficial da União Europeia, em vigor na data em que ocorreu a transmissão.
É, assim, com a referida delimitação que o presente recurso será objeto de conhecimento de mérito.
7. O artigo 15.º, n.º 3 do Código do Imposto do Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de setembro, na redação que lhe foi dada pelo artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro (cuja epígrafe foi alterada pela Lei 39-A/2005, de 29 de julho), estabelece o seguinte:
«Artigo 15.º
Valor tributável de participações sociais e títulos de crédito e valores monetários
1 - O valor das quotas ou partes em sociedades que não sejam por ações e o dos estabelecimentos comerciais, industriais ou agrícolas com contabilidade organizada determina-se pelo último balanço, ou pelo valor atribuído em partilha ou liquidação dessas sociedades, salvo se, não continuando as sociedades com o herdeiro, legatário ou donatário do sócio falecido ou doador, o valor das quotas ou partes tiver sido fixado no contrato social.
2 - Se o último balanço referido no número anterior precisar de ser corrigido, o valor do estabelecimento ou das quotas e partes sociais determinar-se-á pelo balanço resultante das correções feitas.
3 - O valor das ações, títulos e certificados da dívida pública e outros papéis de crédito é o da cotação na data da transmissão e, não a havendo nesta data, o da última mais próxima dentro dos seis meses anteriores, observando-se o seguinte na falta de cotação oficial:
a) O valor das ações é o correspondente ao seu valor nominal, quando o total do valor assim determinado, relativamente a cada sociedade participada, correspondente às ações transmitidas, não ultrapassar (euro) 500 e o que resultar da aplicação da seguinte fórmula nos restantes casos:
Va = 1/2n[S + ((R1 + R2)/2)f]
em que:
Va representa o valor de cada ação à data da transmissão;
n é o número de ações representativas do capital da sociedade participada;
S é o valor substancial da sociedade participada, o qual é calculado a partir do valor contabilístico correspondente ao último exercício anterior à transmissão com as correções que se revelem justificadas, considerando-se, sempre que for caso disso, a provisão para impostos sobre lucros;
R1 e R2 são os resultados líquidos obtidos pela sociedade participada nos dois últimos exercícios anteriores à transmissão, considerando-se R1 + R2 = 0 nos casos em que o somatório desses resultados for negativo;
Na sequência da aprovação da Lei do Orçamento de Estado para 2016 (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março), foi o governo autorizado a introduzir alterações àquele enunciado legal, no sentido de estabelecer que à taxa de juro referida na parte final da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, acresce, para efeitos de cálculo do fator de capitalização, um spread de 4 % (cf. o respetivo artigo 156.º).
Em execução da referida autorização legislativa, foi aprovado o Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, vindo o legislador, no respetivo preâmbulo, assumir a necessidade de «corrigir uma distorção criada pela redação anterior, na medida em que a taxa de referência do Banco Central Europeu se encontra atualmente em níveis próximos do zero e se procurou, alterar a ratio subjacente à fórmula criada para o efeito». Nesse sentido, na nova formulação legal, a variável f representa o fator de capitalização dos resultados líquidos calculado com base na taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu às suas principais operações de refinanciamento, tal como publicada no jornal da União Europeia e em vigor na data em que ocorra a transmissão, «acrescida de um spread de 4 %». Este diploma entrou em vigor a 2 de agosto de 2016 (cf. artigo 15.º). No entanto, de acordo com a norma transitória prevista no n.º 2, do respetivo artigo 13.º, a alteração legislativa constante da alínea a), do n.º 3, do respetivo artigo 15.º, do CIS, seria ainda aplicável «quando o montante do imposto aí resultante seja inferior, para os factos tributários, ocorridos a partir de 1 de janeiro de 2016, que ainda não tenham sido objeto de liquidação».
8. Convém encetar esta análise atentando ao efetivo impacto da referida variável f, que corresponde ao fator de capitalização dos resultados líquidos calculado com base na taxa de juro aplicada pelo BCE às suas principais operações de refinanciamento em vigor na data em que ocorra a transmissão, recorrendo aos elementos probatórios constantes dos autos. Com efeito, no caso em apreço, tendo sido aplicada a mesma metodologia de avaliação fiscal do lote de ações em causa, de acordo com a redação do artigo 15.º, n.º 3, alínea a), do CIS, vigente antes e após a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, a distorção gerada pela simples alteração dessa variável – expressamente reconhecida pelo legislador – é elucidativa.
Vejamos.
Na avaliação subjacente às liquidações impugnadas (constante dos ofícios nºs. 74000 e 72744, de 03.12.2015 e 30.11.2015, antes mencionados), foi atribuído ao lote de 6.910 ações o valor de € 25.024.877,08, com expressão nominal de € 34.550,00, tendo essa quantia sido “apurada com base na situação líquida reportada a 31/12/2014”.
Na referida avaliação foi usada a fórmula de cálculo constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do CIS (na redação anterior à que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016), em que: VA = 1/2 n [S + (R1 + R2)/2)f)]. Essa operação contabilística compreende duas etapas, a primeira de apuramento da situação líquida corrigida da sociedade avaliada. Feito esse apuramento e aplicando a fórmula anteriormente referida, é calculado o valor tributável das ações não cotadas, que, nessa avaliação, teve por base os seguintes parâmetros:
Va (representa o valor de cada ação à data da transmissão) € 3.621,55
n (número de ações representativas do capital social) 45.000
S (valor substancial da sociedade participada, que é calculado a partir do valor contabilístico correspondente ao último exercício anterior à transmissão) € 1.834.244,71
R1 e R2 (resultados líquidos obtidos pela sociedade participada nos dois últimos exercícios anteriores à transmissão) € 324.104,82
f (fator de capitalização dos resultados líquidos calculado com base na taxa de juro aplicada pelo BCE às suas principais operações de refinanciamento, tal como publicada no Jornal Oficial e em vigor à data em que ocorra a transmissão) 2.000,00
na (número de ações a avaliar) 6.910
(Va) x (na) € 25.024.877,08
O mesmo lote de ações foi objeto de uma nova avaliação pela Administração Tributária, em 21 de dezembro de 2016, à luz da mesma disposição legal, mas já com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, por ter sido requerida a prestação de garantia mediante constituição de penhor sobre as referidas ações, destinada a suspender a execução fiscal instaurada contra o ora recorrido. De acordo com essa avaliação, foram apurados os seguintes valores:
Va (representa o valor de cada ação à data da transmissão) € 68,36320
n (número de ações representativas do capital social) 45.000
S (valor substancial da sociedade participada) € 2.167.016,59
R1 e R2 (resultados líquidos obtidos pela sociedade participada nos dois últimos exercícios anteriores à transmissão) € 318.853,70
f (fator de capitalização dos resultados líquidos, acrescido de um spread de 4%) 25,00
na (número de ações a avaliar) 6.910
(Va) x (na) € 472.389,70
Constata-se, assim, que, entre as duas avaliações efetuadas pela Administração Tributária, este lote de ações sofreu uma “desvalorização” de € 25.024.877,08 para € 472.389,70, por simples alteração do referido fator de capitalização, que deixou, por força da alteração legislativa operada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, de ser f = 2000 para ser f = 25, considerando o acréscimo do spread de 4% (f = 100/4,00), uma vez que a “taxa de refinanciamento” do BCE, em 2016, se encontrava fixada em 0,00% (v. https://www.bportugal.pt/page/taxas-de-juro-oficiais-do-eurosistema-pol-mon). Ou, dito de modo mais preciso, foi justamente a alteração da variável f que conduziu à diminuição do valor de Va (valor de cada ação) de € 3.621,55 para € 68,36.
Com efeito, de acordo com os dados apurados nas respetivas avaliações, resultantes do apuramento da situação líquida corrigida da sociedade participada, o seu valor patrimonial ou de capitais próprios (representado pela variável S), em 31 de dezembro de 2015, era de € 2.167.016,59, sendo, por isso, superior ao valor apurado na primeira avaliação, reportada a 31 de dezembro de 2014, que se cifrava em € 1.834.244,71, e o valor da variável R (dos resultados líquidos obtidos nos dois últimos exercícios), apesar de ter um ligeiro decréscimo, de € 324.104,82 para € 318.853,70, não teria a virtualidade de produzir uma alteração significativa do valor das ações avaliadas.
9. Constatando que a mínima alteração (de centésimas) da taxa de juro de referência aplicada pelo BCE às operações de refinanciamento «implica gigantescas alterações no valor de cada ação não cotada», a decisão recorrida recusou, como antes se referiu, a aplicação da fórmula constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do CIS, como critério válido para a determinação do valor tributável das ações não cotadas para efeitos de Imposto do Selo, com fundamento na violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva.
No seu percurso decisório, o tribunal a quo fez apelo aos seguintes argumentos:
A solução preconizada pelo legislador para o cálculo do fator de capitalização (na redação vigente que vigorou até à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 41/2016) afigura-se desajustada à realidade, por não ter antecipado a vulnerabilidade da taxa de juros de referência do BCE que contribui para o seu apuramento (e muito menos a possibilidade de esta taxa se cifrar em zero);
Esta solução legal é suscetível de gerar desigualdades entre a transmissão de participações sociais economicamente equiparáveis, designadamente entre ações com cotação oficial e ações não cotadas – cf. nºs. 1, 2 e 3, do artigo 15.º, do CIS.
A aplicação da fórmula prevista para a determinação do fator de capitalização das 6.910 ações não cotadas, com base numa taxa de juro de 0,05%, é de tal modo desajustada e exagerada, que o valor tributável de cada ação apurado (€ 3.621,55) passou a ser cerca de 724 vezes superior ao respetivo valor nominal (€ 5,00), o que, num simples juízo de senso comum, permite concluir que o valor tributável determinado pela ATA não corresponde minimamente ao valor real presumido de cada ação, contrariando, assim, o espírito da lei ou a ratio subjacente a essa disposição legal.
10. Num primeiro momento, importa compreender a razão de ser que subjaz à introdução do fator de capitalização – ou variável f – na metodologia da avaliação fiscal das ações não cotadas, na fórmula constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º do CIS.
Note-se, porém, que esta fórmula não difere da solução anteriormente prevista no Decreto-Lei n.º 155/82, de 6 de maio, para efeitos de cálculo da valorização de títulos não cotados, no âmbito do Código de Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações e do Código do Imposto de Mais-Valias. Na exposição de motivos do referido diploma, esclarecia o legislador que, na escolha dos critérios a seguir para a valorização geral dos títulos não cotados, procurou-se que os mesmos fossem moldados por regras de generalidade, objetividade e simplicidade, estabelecendo-se através do fator de capitalização a usar para as ações e da taxa de desconto a utilizar nos outros títulos, e sujeitos a revisão periódica, uma ligação entre valores cotados e não cotados, de modo a favorecer a igualdade de tratamento tributário das várias situações. Nessa medida, o valor de cada ação teria em consideração, simultaneamente, o valor substancial da empresa determinado segundo o último balanço eventualmente corrigido e a média dos resultados líquidos obtidos nos dois últimos exercícios, solução que, respeitando os princípios atrás enunciados, se julgava a mais ajustada às finalidades visadas e às possibilidades administrativas existentes.
À data, a variável f representava o fator de capitalização dos resultados líquidos, que seria publicado anualmente por portaria do Ministro de Estado e das Finanças e do Plano, por proposta da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, após audição das bolsas de valores, que o determinavam de modo a corresponder ao fator de capitalização revelado no mercado financeiro. De acordo com a Portaria n.º 12/92, de 13 de janeiro, o fator de capitalização f incluído na fórmula prevista na alínea a) da regra 5.ª do § 3.º do artigo 20.º do CIMSISD era de 30 (cf. F. Pinto Fernandes e Nuno Pinto Fernandes, “Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, Anotado e Comentado”, Rei dos Livros, 3.ª edição, 1993, p. 351).
Como observou Freitas Pereira, uma importante característica desta solução legislativa «é a ligação que se pretendeu estabelecer entre valores cotados na bolsa e valores não cotados, o que se concretiza através do factor de capitalização, que é calculado de modo a ter em conta o mercado financeiro. Tem-se em vista, afinal, assegurar uma igualdade de tratamento entre as ações cotadas e não cotadas. Acolhe-se, deste modo e em certa medida, um valor de comparação, que é o valor das ações cotadas na bolsa, numa metodologia próxima do que certos autores denominam de price earning ratio” (cf. “Avaliação Fiscal de ações não cotadas”, Estudos/Centro de Estudos Fiscais, Direção Geral das Contribuições e Impostos, Lisboa, 1983, p. 22).
Esta metodologia de avaliação foi transposta, para efeitos de cálculo do valor tributável de ações não cotadas em sede de Imposto do Selo, com a reforma da tributação do património (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 283/2003, de 12 de novembro), deixando o fator de capitalização de ser revelado pelo mercado financeiro, através das bolsas de valores, anualmente corrigido, para ser calculado a partir da taxa de juro aplicada pelo BCE às suas principais operações de refinanciamento, tal como publicada no Jornal Oficial, em vigor à data em que ocorra a transmissão.
Em julho de 2003, a taxa de refinanciamento do BCE estava fixada em 2%, aumentando, progressivamente, a partir de 2006, até aos 4,5%. Em 2008, assistiu-se à sua quebra acentuada, em resultado da crise financeira global e, no ano de 2009, atingiu o valor de 1%. No ano de 2011, esta taxa oscilou entre 1,25%, 1,5% e 1%, tendo, a partir de 2013, vindo, novamente, a descer de 0,5% (em maio) para 0,250% (em novembro). Em 2014, essa taxa foi fixada em 0,05%, tendo, em 2016, atingindo o valor mínimo de 0,000% (cf. https://www.euribor-rates.eu/pt/juros-bce/).
Esta oscilação da principal taxa diretora do BCE tem uma relevância central na análise do caso sub judice.
Com efeito, sendo as taxas de juro diretoras do BCE um instrumento crucial na política monetária convencional do BCE, para consecução do seu objetivo estatutário primordial, de manutenção da estabilidade dos preços (cf. artigo 282.º, n.º 1 do TFUE), a alteração das mesmas – e, de modo particular, da taxa de refinanciamento – desencadeia, como devidamente sublinhou o Ministério Público, o denominado “mecanismo de transmissão monetária”, o qual, através dos “canais de transmissão”, vem a influir, ceteris paribus, no estado da economia real e no nível geral de preços (relativos), em particular no preço dos ativos económicos e financeiros.
Deste modo, as flutuações da taxa de refinanciamento do BCE – na qual assenta a variável f, constante da alínea a), do n.º 3 do artigo 15.º do CIS – tem um impacto direto no preço (relativo) dos ativos, em especial das ações e obrigações não cotadas. Ora, não sendo introduzido qualquer mecanismo de ajustamento ou correção, essa relação causal entre a taxa de juro de referência e os preços relativos será de sentido ou de correlação inversa. Isto é, a diminuição da taxa de refinanciamento valorizará as ações, enquanto o seu aumento as desvalorizará, tornando mais rendíveis as aplicações financeiras tipicamente sem risco. Retomando o exemplo evidenciado na sentença recorrida, «a mínima alteração (de centésimas) da taxa de juros implica gigantescas alterações no valor de cada ação não cotada: v.g., se a taxa de juro descer de 0,05% para 0,01%, o fator de capitalização passaria de 2000 para 10.000 (100/0,01), o que corresponderá a uma quintuplicação imediata do valor tributável das ações sem correspondência económica possível».
11. A avaliação de sociedades cotadas obedece a uma diferente metodologia. Com efeito, nos termos previstos, na primeira parte, do n.º 3, do artigo 15.º, do CIS, o valor das ações é obtido pela cotação em bolsa na data da transmissão ou, não havendo nesta data, o da última mais próxima dentro dos seis meses anteriores. Considera o legislador que esse é o valor correto e atual no respetivo mercado financeiro desses títulos. Ou seja, em tais casos, o legislador prescinde da utilização de critérios estáticos, usados na avaliação das sociedades não cotadas, em que o valor de cada ação é determinado em função do valor do valor substancial ou intrínseco da empresa e do seu rendimento, por considerar que o valor de mercado, revelado pela respetiva cotação em bolsa, é resultado da ponderação de diversos fatores e interesses por parte dos investidores, agindo o mercado reactivamente e em tempo real, de acordo com a informação que é divulgada, seja pública, privada ou privilegiada.
12. Por outro lado, importa considerar que na determinação do valor tributável das ações não cotadas, segundo a fórmula consagrada na alínea a), do n.º 3, do respetivo artigo 15.º, do CIS, sobressai o elemento objetivo da incidência do Imposto do Selo. O legislador instituiu um padrão de avaliação (de quantificação) com base em critérios de “normalidade média”, por forma a tributar este ato (neste caso, a transmissão gratuita de ações) como manifestação de riqueza, enquanto índice real de uma capacidade contributiva parcelar de quem dela beneficiou, sem tomar em consideração os elementos pessoais de revelação da capacidade contributiva total do respetivo titular. Este imposto assume, assim, uma natureza real, incidindo sobre o valor patrimonial tributável das ações transmitidas, apurado nos termos da avaliação efetuada, sem atender à situação pessoal do contribuinte.
No entanto, sendo certo que a capacidade contributiva se mede, neste imposto, pela titularidade de um determinado património (composto pelo conjunto de ações de uma sociedade não cotada), a opção político-legislativa de tributar esta particular manifestação de riqueza não poderá deixar de ter como limite a medida da força económica do contribuinte e respeitar os limites materiais da tributação.
13. No caso vertente, o recorrente entende que a interpretação normativa controvertida – a variável f da fórmula de cálculo constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do CIS – encerra uma violação do princípio da proporcionalidade, no aspeto da “adequação”, por considerar que a medida não reveste aptidão para o fim visado. Aponta, nesse sentido, que considerar f = 2000, como fator de capitalização dos resultados líquidos da sociedade comercial em causa, determinando que, a final, “Va” = 25.024.877,08 €, não está, por notoriamente exorbitante, numa relação proporcionada “com comprovadas hipóteses sobre a realidade” das coisas.
Diverso foi o entendimento do tribunal a quo, que assentou o juízo de inconstitucionalidade da norma em causa na ofensa dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, tendo por referência a transmissão de participações sociais economicamente comparáveis, designadamente as ações com cotação oficial.
Comecemos por apreciar os parâmetros de constitucionalidade convocados pela decisão a quo.
13.1. A respeito dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, afirmou-se no Acórdão n.º 590/15:
«O princípio constitucional da igualdade tributária, como expressão específica do princípio geral estruturante da igualdade (artigo 13.º da Constituição), encontra concretização “na generalidade e na uniformidade dos impostos. Generalidade quer dizer que todos os cidadãos estão adstritos ao pagamento de impostos (…); por seu turno, uniformidade quer dizer que a repartição dos impostos pelos cidadãos obedece ao mesmo critério idêntico para todos” (TEIXEIRA RIBEIRO, Lições de Finanças Públicas, 5.ª edição, pág. 261). E tal critério, como sublinha CASALTA NABAIS, encontra-se no princípio da capacidade contributiva: “Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)” (Direito Fiscal, 7.ª edição, 2012, pág. 155). Como pressuposto e critério de tributação, o princípio da capacidade contributiva “de um lado, constituindo a ratio ou causa da tributação afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na seleção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objeto e matéria coletável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto” (CASALTA NABAIS, ob. cit., pág. 157).
Assim o tem afirmado o Tribunal Constitucional, de que é exemplo o Acórdão n.º 84/2003:
«O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de “uniformidade” – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação», entendendo-se esse critério como sendo aquele em que «a incidência e a repartição dos impostos – dos “impostos fiscais” mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou “capacidade de gastar” (…) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício). (…) Não obstante o silêncio da Constituição, é entendimento generalizado da doutrina que a “capacidade contributiva” continua a ser um critério básico da nossa “Constituição fiscal” sendo que a ele se pode (ou deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados nos artigos 103º e 104º da CRP (…)».
Este Tribunal tem, todavia, salientado que o princípio da capacidade contributiva não dispensa o concurso de outros princípios constitucionais. Como se referiu no Acórdão n.º 711/2006, «é claro que o “princípio da capacidade contributiva” tem de ser compatibilizado com outros princípios com dignidade constitucional, como o princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, indispensáveis também para o cumprimento das finalidades do sistema fiscal». E prossegue: «Averiguar, porém, da existência de um particularismo suficientemente distinto para justificar uma desigualdade de regime jurídico, e decidir das circunstâncias e fatores a ter como relevantes nessa averiguação, é tarefa que primariamente cabe ao legislador, que detém o primado da concretização dos princípios constitucionais e a correspondente liberdade de conformação. Por isso, o princípio da igualdade se apresenta fundamentalmente aos operadores jurídicos, em sede de controlo da constitucionalidade, como um princípio negativo (…) - como proibição do arbítrio».
Em suma, na síntese do Acórdão n.º 695/2014, “o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional”.
O princípio da igualdade tributária é um corolário do princípio da igualdade perante a lei, consagrado no artigo 13.º da Constituição. Ora, tal princípio não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado, nem constitui função deste princípio garantir que todas as escolhas do legislador sejam racionais, coerentes ou correspondem à melhor solução possível.
Neste sentido, pode ainda trazer-se à colação a posição firmada no Acórdão n.º 546/2011:
«[O] n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os atos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de sistemas legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003 – que o carácter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjetivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, “racionais”. O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do “merecimento” – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou a igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face à ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por desrazoabilidade, as escolhas do legislador. Fora destas circunstâncias, e, nomeadamente, sempre que estiver em causa a simples verificação de uma menor “racionalidade” ou congruência interna de um sistema legal, que contudo se não repercuta no trato diverso – e desrazoavlmente diverso, no sentido acima exposto – de posições jurídico-subjetivas, não pode o Tribunal Constitucional emitir juízos de inconstitucionalidade. Nem através do princípio da igualdade (artigo 13.º) nem através do princípio mais vasto do Estado de direito, do qual em última análise decorre a ideia de igualdade perante a lei e através da lei (artigo 2.º), pode a Constituição garantir que sejam sempre “racionais” ou “congruentes” as escolhas do legislador. No entanto, o que os dois princípios claramente proíbem é que subsistam na ordem jurídica regimes legais que impliquem, para as pessoas, diversidades de tratamento não fundados em motivos razoáveis.»
No caso em apreço, a argumentação que conduziu ao juízo de inconstitucionalidade e, consequente, recusa de aplicação da fórmula de cálculo constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º do CIS – ou, com maior precisão, da dimensão da variável f integrante dessa norma – por ofensa ao princípio da igualdade, elege um tertium comparationis (um «par comparativo») que não tem razão de ser perante o objetivo e função da norma em análise. Com efeito, a decisão a quo acaba por olvidar que não estamos perante situações objetivamente comparáveis – num caso, estamos perante ações com cotação oficial, cujo valor é imediatamente aferível, quer pelo titular das ações, quer por terceiros, e, no outro caso, não. Ora, é justamente pelo facto de estas últimas não terem uma cotação oficial que o legislador teve de adotar um critério (válido) de determinação do seu valor tributável. E, muito embora se reconheça que, ao estabelecer um critério ou método de avaliação fiscal das ações não cotadas, o legislador deve ter por desiderato último que o valor obtido nesse procedimento de avaliação (o valor presumido das ações) se aproxime do seu valor real, cabe ao legislador definir, com ampla margem de discricionariedade, qual é o melhor método para o fazer e tipificar a respetiva fórmula de cálculo.
Estando em causa a aplicação de métodos de avaliação distintos e situações objetivamente diversas, não se pode concluir que a solução jurídica consagrada pelo legislador ao integrar a dimensão normativa da variável f na fórmula constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do CIS, como método de avaliação das sociedades não cotadas, contende com o princípio da igualdade ou que o legislador tenha adotado uma solução discriminatória, arbitrária e carecida de fundamento racional. Aliás, tal asserção seria, desde logo, desmentida (e refutável) se estivesse em causa o apuramento do valor tributável de ações não cotadas a que fosse aplicável a taxa de juro de referência do BCE em vigor no ano de 2006 que, como se assinalou, se encontrava fixada em 4,5%. Por outro lado, não se pode também esquecer que as bolsas de valores sofrem também flutuações muitas vezes abruptas, podendo as ações cotadas sofrer valorizações ou desvalorizações inesperadas, provocadas por fatores efémeros ou conjunturais, muitas vezes alheios ao próprio funcionamento da empresa, que se refletem no seu valor tributável, em igual medida.
É, assim, de concluir que a dimensão normativa objeto de apreciação sub specie constitutionis não colide com o princípio da igualdade fiscal e, por essa via, não atinge o princípio da capacidade contributiva, entendido este, nos termos anteriormente referidos, como um critério de «autovinculação» do legislador.
14. Como tem este Tribunal sublinhado, no domínio da chamada «constituição fiscal», por força dos princípios formais e materiais que conformam o conceito constitucional de imposto e das garantias que são conferidas aos contribuintes, o exercício, por parte do Estado, do poder de tributar não pode ser concebido como uma afetação ou restrição de direitos fundamentais (cf. Acórdãos nºs. 846/2014 e 362/2016). O pagamento do imposto surge como um dever fundamental do contribuinte, orientado para a satisfação das necessidades públicas, e não como afetação de um direito, desde que respeitados os limites que decorrem do artigo 103.º da Constituição. Porém, como se fez notar naquele aresto, «se a conceção constitucional de tributo» […] é inimiga de qualquer construção que veja similitudes entre estas imposições e as vulgares restrições a direitos, liberdades e garantias, tal como estas últimas são reguladas pelo artigo 18.º da CRP, nem por isso se dispensa, quanto a elas, o requisito ou crivo da proporcionalidade, enquanto expressão de um princípio que, como já se disse, vale em Estado de direito (artigo 2.º) para todo o agir estadual. […].»
Ora, sendo certo que, como adverte o Acórdão n.º 285/2020, seja qual for o método de avaliação utilizado, «assiste uma inescapável margem de incerteza: não existe um «valor exato» quando se trata de avaliar uma determinada empresa», a liberdade tipificadora ou conformadora do legislador não pode deixar de ser sujeita a controlo, não podendo o legislador fazer uso de critérios que conduzam a um resultado de avaliação totalmente arbitrário, sem substrato ou aderência à realidade económica, ou eivado de «erro manifesto».
O princípio da proibição do excesso surge, assim, como parâmetro e princípio de controlo da atuação dos poderes públicos. Como se referiu no Acórdão n.º 362/2016, «o princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, pelas suas conotações históricas e devido à sua natureza de “princípio fundamental”, é expressão da ideia de que a garantia da liberdade, igualdade e segurança dos cidadãos se funda na sujeição do poder público a normas jurídicas: um Estado informado pela ideia de Direito não pode, sem negar a sua essência, ser um Estado prepotente, arbitrário ou injusto (cfr. os Acórdãos n.ºs 205/2000 e 491/2002)». Nessa mesma perspetiva, o Acórdão n.º 73/2009 entendeu «o princípio da proporcionalidade [como um] princípio geral de limitação do poder público que pode ancorar-se no princípio geral do Estado de Direito, impondo limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas públicas, devendo o Estado (também o Estado legislador) adequar a sua ação aos fins pretendidos, e não estatuir soluções desnecessárias ou excessivamente onerosas ou restritivas». Na síntese do Acórdão n.º 387/2012, «o Estado de direito não pode deixar de ser um “Estado proporcional”».
Num juízo prima facie, a fórmula de cálculo acolhida na alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do CIS, como critério de avaliação das ações que titulam o capital social de uma sociedade não cotada, parece respeitar o chamado teste da adequação, por permitir aferir do valor tributável destas ações, em sede de Imposto do Selo. Ou seja, a medida seria apta a atingir o fim a que se propõe.
Por outro lado, gozando o legislador de uma ampla liberdade de conformação na definição dos métodos ou critérios de avaliação a utilizar para avaliar as ações não cotadas, e apesar de poder haver outros métodos de avaliação igualmente eficazes, a solução legal encontrada parece ainda respeitar o crivo da necessidade (ou da exigibilidade).
De igual modo, ter-se-á de reconhecer que, ao estabelecer um critério de avaliação das sociedades não cotadas, com a consequente imposição da tributação deste facto tributário em sede de Imposto do Selo, não obstante a mesma implicar ipso facto uma ablação do património do titular das ações, não estamos perante uma medida restritiva de um direito fundamental (designadamente, do direito à propriedade privada, consagrado no artigo 62.º da Constituição).
Sucede, porém, que o princípio da proibição do excesso tem uma dimensão axiológica inequívoca, impedindo o sacrifício desproporcionado do que seja valioso. Ora, no caso em apreço, o comportamento estadual – consubstanciado na imposição da tributação sindicada nos autos – atinge um desvalor ostensivo e manifesto. Com efeito, é inegável que o critério normativo legalmente previsto para a avaliação deste lote de 6.910 ações, assente na aplicação da variável f da fórmula de cálculo constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do CIS, como fator de capitalização dos resultados líquidos da sociedade comercial em causa, em que f = a 2000, conduzindo a um valor final de avaliação em que “Va” = € 25.024.877,08, é notoriamente (frontalmente) iníquo e excessivo. Retomando os valores resultantes do apuramento efetuado pela Administração Tributária na avaliação reportada a 31 de dezembro de 2014, num juízo de normalidade das coisas e perante a nossa realidade económica, não é de todo equacionável que um lote de 6.910 ações de uma sociedade com o capital social de € 225.000,00, dividido em 45.000 ações, que tem um valor substancial de € 1.834.244,71 e resultados líquidos, nos dois últimos exercícios, de € 324.104,82, atinja o valor de € 25.024.877,08 (note-se que, se estivesse em causa a avaliação da global da sociedade – das 45.000 ações – tal corresponderia, com base no mesmo critério, a um valor aproximado de € 162.661.700,5).
Recorde-se aliás, como anteriormente se deixou exposto, que este lote de ações foi avaliado novamente, em 21 de dezembro de 2016, com base na mesma fórmula de cálculo, mas já com a redação que foi dada à norma legal em apreço pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, em que o fator de capitalização dos resultados líquidos foi calculado com base na taxa de juro de refinanciamento do BCE, acrescida de um spread de 4%, do qual resultou f = 25. De acordo com essa avaliação, foi atribuído a este lote de 6.910 ações o valor de € 472.389,70. Ou seja, estas ações teriam sofrido uma desvalorização, diga-se meramente artificial, por força da introdução (pelo próprio legislador) de um mecanismo destinado à correção da distorção gerada pelo facto de a taxa de refinanciamento do BCE se encontrar em valores (anormalmente) baixos.
Fica, assim, patente que a aplicação do segmento normativo sindicado conduziu a um resultado de avaliação do valor de “Va” – e, consequente, liquidação em sede de Imposto do Selo – que padece de erro manifesto.
III. Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional o segmento normativo constante da variável f, integrada na fórmula prevista na alínea a), do n.º 3, do artigo 15.º, do Código do Imposto do Selo, em que o fator de capitalização f = 100/0,05 (ou f = 2000), por aplicação da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu às suas principais operações de refinanciamento, tal como publicada no Jornal Oficial da União Europeia, em vigor na data em que ocorreu a transmissão, por violação do princípio da proporcionalidade, enquanto proibição de excesso.
b) Negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 4 de novembro de 2022 - Assunção Raimundo - José Eduardo Figueiredo Dias - Pedro Machete
A relatora atesta o voto de conformidade da Senhora Conselheira Mariana Canotilho e do Senhor Conselheiro António Ascensão Ramos, que intervieram por meios telemáticos.
Assunção Raimundo