ACÓRDÃO Nº 490/2022
Processo n.º 1183/21
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Mariana Canotilho
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Juízo de Instrução Criminal de Santarém (Tribunal Judicial da Comarca de Santarém), foi interposto pelo Ministério Público recurso de constitucionalidade, obrigatório ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), da sentença proferida por aquele Tribunal, em habeas corpus, em 6 de outubro de 2021.
2. No que aqui releva, a decisão recorrida recusou a aplicação da interpretação normativa resultante do artigo 3.º, n.º 1, alínea b), dos Regimes Anexos às Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 135-A/2021, de 29 de setembro e 114-A/2021, de 20 de Agosto, segundo a qual os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde, no domicílio ou, não sendo aí possível, noutro local definido pelas autoridades competentes. O Tribunal a quo entendeu que tal dimensão normativa contraria os comandos dos artigos 19.º, n.º 1, 18.º, n.ºs 2 e 3, 27.º, n.º 1, e 165.º, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa.
Com isso, aquele juízo determinou a desaplicação, com base em inconstitucionalidade, da dimensão normativa explicitada e deu provimento ao habeas corpus, determinando a libertação da requerente. Pode ler-se na decisão recorrida (fls. 75-82):
«Ora, no caso presente, as Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 114-A/2021 de 20/08 e 135-A/2021 de 29/09, nos seus Artigos 3.º, n.º 1, al. b) (Anexo) determinaram que os cidadãos a quem as autoridades de saúde tivessem determinado vigilância ativa teriam que ficar em confinamento obrigatório.
Ora, tais resoluções declararam o território nacional em estado de contingência (o que ocorria até ao dia 30/09/2021) e, posteriormente, em estado de alerta (o que ocorre desde 01/10/2021).
[…]
Ora, no caso presente, no dia 30 de setembro de 2021, vigorava o regime de estado de contingência e posteriormente, a partir do dia 01/10/2021, o regime de estado de alerta, não o regime de estado de sítio ou de emergência. Assim, não poderiam ter sido os direitos, liberdades e garantias da Requerente restringidos, mormente a liberdade, prevista no Artigo 27º, nº 1 da C.R.P., sem ser nos casos previstos no nº 3 do artigo 27º, exceções não aplicáveis no caso presente.
[…]
A Requerente encontra-se desde o dia 30/09/2021, em isolamento profilático, por 12 dias, não podendo sair da sua habitação, por ter tido um contacto de risco com pessoa infetada com covid 19. Tal situação consubstancia uma verdadeira detenção e ilegal, por não estar preenchida no âmbito das exceções previstas no nº 3 do Artigo 27º da C.R.P. e violar o nº 1 de tal normativo. Mostram-se, pois, preenchidos os requisitos legais para a procedência da presente providência de habeas corpus.
Carece, assim, de fundamento o presente habeas corpus quanto ao primeiro dos fundamentos invocados (entidade incompetente).
Já não assim quanto ao segundo dos fundamentos invocados, porquanto a situação presente não se enquadra em nenhuma das elencadas no Artigo 27º da CRP ou suas exceções, que se mostra violado, seja pela aludida norma da DGS, seja pelo artigo 5º do Dec.-lei nº 135/2013 de 04/10, seja pelas Resoluções do Conselho de Ministros supra referenciadas.
Para além do mais, igualmente se mostra violado o disposto no artigo 165º, nº 1 al. b) do mesmo diploma legal na medida em que tais diplomas (Resoluções do Conselho de Ministros), ao legislar sobre direitos, liberdades e garantias e, em concreto, sobre restrições à liberdade prevista no Artigo 27º, nº 1 da CRP, não tiveram em conta a competência da Assembleia da República quanto a tais matérias, imiscuindo-se um diploma com origem no Governo em matérias da competência de tal órgão constitucional.
São assim tais normas legais, material e organicamente inconstitucionais, inconstitucionalidade que se declara, não sendo aplicáveis e não podendo ser aplicadas no caso presente.
Desta forma, sendo ilegais e inconstitucionais, por violadores dos mencionados normativos legais (Artigo 19º, nº 1, 18º, nºs 2 e 2, 27º, nº 1, 165º, nº 1, al. b) da C.R.P.) os Artigos 3º, nº 1, al. b) do Anexo das Resoluções do Conselho de Ministros 135-A/2021 de 29/09 e 114-A/2021 de 20/08, bem como a situação de isolamento profilático a que a Requerente está sujeita, impondo-se a sua imediata libertação, declarando-se assim a inconstitucionalidade de tais normativos legais.»
3. Perante esta decisão, o Ministério Público junto do Tribunal a quo veio apresentar requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 94), que foi admitido (fls. 95). Nesta sequência, subidos os autos e verificando-se que se encontravam preenchidos os pressupostos processuais, as partes foram notificadas para apresentar as suas alegações.
4. O recorrente apresentou alegações, postulando pela inconstitucionalidade da norma e, assim, pela improcedência do recurso, no seguinte sentido:
«Conclusões
43. O Ministério Público interpôs, em 15 de Outubro de 2021, a fls. 94 dos autos supra-epigrafados, recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta decisão judicial de fls. 76 a 82, proferida pelo Juízo de Instrução Criminal de Santarém – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Processo n.º 872/21.4T8TNV, “(…) nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.ºs 1 al. a) e 3 da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.º n.º 1 alínea a) e 72.º n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional”.
44. Este recurso tem como objecto a douta decisão que aplicou a “(…) a norma constante dos artigos 3º, nº 1, al. b) do Anexo das Resoluções do Conselho de Ministros 135-A/2021 de 29/09 e 114-A/2021 de 20/08, cuja aplicação foi recusada com fundamento em inconstitucionalidade orgânica e material”.
45. Os parâmetros de constitucionalidade cuja violação se invoca são os constantes dos “(…) artigos 19.º, nº 1, 18º, nº 2 e [2], 27º, nº 1, 165º, nº 1, al. b) da Constituição da República Portuguesa”.
46. Procuraremos, nesta alegação, reflectir sobre as desconformidades constitucionais – material e orgânica – imputadas pela douta decisão impugnada à norma ínsita no artigo 3.º, n.º 1, alínea b), dos Regimes Anexos às Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 114-A/2021, de 20 de Agosto e 135-A/2021, de 29 de Setembro, confrontando-a com o teor do comando contido na alínea b), do n.º 1, do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, no que concerne à inconstitucionalidade orgânica e com o teor do princípio da liberdade plasmado no artigo 27.º, da Lei Fundamental, no que concerne à inconstitucionalidade material.
47. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 114-A/2021, de 20 de Agosto, continente do regime anexo do qual consta a norma sob análise – declarou a situação de contingência no âmbito da pandemia da doença COVID-19, “nos termos do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 54-A/2021, de 25 de junho, dos artigos 12.º e 13.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, por força do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, das Bases 34 e 35 da Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro, do artigo 17.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto, do n.º 6 do artigo 8.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, e da alínea g) do artigo 199.º da Constituição”.
48. Este diploma foi sucedido pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 135-A/2021, de 29 de Setembro, continente da norma que aqui se fiscaliza (idêntica à plasmada na Resolução do Conselho de Ministros n.º 114-A/2021, de 20 de Agosto), que declarou a situação de alerta em todo o território nacional continental, igualmente “nos termos do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 54-A/2021, de 25 de junho, do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, por força do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, das Bases 34 e 35 da Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro, do artigo 17.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto, do n.º 6 do artigo 8.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, e da alínea g) do artigo 199.º da Constituição”.
49. Com este respaldo, emitiu o Governo as normas ínsitas na alínea b), do n.º 1, do artigo 3.º, do Regime da situação de contingência anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 114-A/2021, de 20 de Agosto; e na alínea b), do n.º 1, do artigo 3.º, do Regime da situação de alerta anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 135-A/2021, de 29 de Setembro, as quais permitem confinar obrigatória e coercivamente, em estabelecimento de saúde, no respetivo domicílio ou noutro local definido pelas autoridades de saúde, “os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa”, admitindo a restrição do direito à liberdade dos cidadãos que viessem a estar sujeitos à mencionada «vigilância activa».
50. Na apreciação da presente questão, alertamo-lo, seguiremos de perto as alegações que, para além de outras, elaborámos no âmbito do Processo n.º 504/21, da 1.ª Secção, incidentes sobre norma infraconstitucional semelhante à desaplicada nos presentes autos embora corporizada na alínea b), do n.º 1, do artigo 3.º, do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de Abril.
51. O confinamento de uma pessoa física ao espaço de um estabelecimento de saúde, do respetivo domicílio ou de qualquer outro local definido pelas autoridades de saúde constitui, sem dúvida, mais do que uma mera compressão, uma restrição à liberdade física, a liberdade de movimentos corpóreos ou, nas palavras de outros autores, à «liberdade de ir e vir».
52. Ou seja, não poderemos deixar de concluir que a norma suspeita consagra uma privação da liberdade não excepcionada pelos n.ºs 2 e 3 do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, e que, por conseguinte, viola materialmente o direito à liberdade proclamado no n.º 1 deste mesmo artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa.
53. Todavia, ainda que não adoptemos este entendimento e aceitemos que o direito à liberdade pode ser, sem ofensa do Texto Fundamental, restringido, por lei, se colidente com outros direitos fundamentais ou interesses constitucionalmente protegidos concretamente prevalecentes, em situações distintas das elencadas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, não poderemos deixar de considerar se tal compressão pode ser decidida pelo Governo (por meio de Resolução do Conselho de Ministros) sem autorização da Assembleia da República.
54. De acordo com o prescrito no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre (…) [d]ireitos, liberdades e garantias”, não existindo qualquer dúvida, designadamente pela sua inserção sistemática, que o Governo, ao estipular sobre restrições ao direito à liberdade consagrado no artigo 27.º, da Constituição da República Portuguesa, legislou, sem, para tal, ter obtido autorização parlamentar, sobre matéria de direitos, liberdades e garantias, integrada na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
55. Na verdade, a Assembleia da República nunca autorizou, em qualquer momento relevante, o Governo a legislar sobre o poder de confinamento de uma pessoa física ao espaço de um estabelecimento de saúde, do respetivo domicílio ou de qualquer outro local definido pelas autoridades de saúde.
56. Assim, torna-se evidente ter o Governo legislado sobre matéria excluída da sua competência constitucional, em violação do disposto no já mencionado artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, o que consubstancia, à partida, uma inconstitucionalidade orgânica porque violada uma norma de competência.
57. Para além disso acrescente-se, para a boa análise da questão, que o comando ínsito no artigo 3.º, n.º 1, alínea b), dos Regimes Anexos às Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 114-A/2021, de 20 de Agosto e 135-A/2021, de 29 de Setembro, não se corporiza num preceito que se limite a reproduzir um outro validamente aprovado pela Assembleia da República, razão pela qual não poderemos deixar de inferir que a norma nele contida exibe carácter inovador.
58. Em suma, somos forçados a concluir que o Governo, ao legislar, inovatoriamente e sem autorização legislativa, sobre direitos, liberdades e garantias, matéria da reserva relativa da competência da Assembleia da República, violou o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa.
59. Assim, atento o agora explanado, não pode o recorrente Ministério Público deixar de concluir que a norma contida no artigo 3.º, n.º 1, alínea b), dos Regimes Anexos às Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 114-A/2021, de 20 de Agosto e 135-A/2021, de 29 de Setembro, se revela, material e organicamente, violadora da Constituição da República Portuguesa, designada e respectivamente do princípio do direito à liberdade ínsito no artigo 27.º, n.º 1; e do prescrito na alínea b), do seu artigo 165.º.
60. Por força do exposto, deverá o Tribunal Constitucional tomar decisão no sentido de julgar orgânica e materialmente inconstitucional a norma inscrita nos Regimes Anexos às Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 114-A/2021, de 20 de Agosto e 135-A/2021, de 29 de Setembro, negando, assim, provimento ao presente recurso.»
5. Regularmente notificada, a contraparte não se manifestou.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
a) Delimitação do objeto do recurso
6. Conforme resulta das transcrições e destaques supra, a dimensão normativa cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida se reportou ao estatuído no artigo 3.º, n.º 1, alínea b), dos Regimes Anexos às Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 135-A/2021, de 29 de setembro e 114-A/2021, de 20 de Agosto, na interpretação segundo a qual “os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde, no domicílio ou, não sendo aí possível, noutro local definido pelas autoridades competentes”, que corresponde, aliás, integralmente, ao teor textual do preceito normativo em referência:
Anexo
Resolução do Conselho de Ministros n.º 114-A/2021, de 20 de agosto
e
Resolução do Conselho de Ministros n.º 135-A/2021, de 29 de setembro
«Artigo 3.º
Confinamento obrigatório
1 – Ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde, no domicílio ou, não sendo aí possível, noutro local definido pelas autoridades competentes:
[…]
b) Os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa».
É relevante notar que, nos termos do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 82/2009, de 2 de abril, que estabelece o regime jurídico da designação, competência e funcionamento das entidades que exercem o poder de autoridades de saúde, a estas compete a decisão de intervenção do Estado na defesa da saúde pública, na prevenção da doença e na promoção e proteção da saúde, bem como no controlo dos fatores de risco e das situações suscetíveis de causarem ou acentuarem prejuízos graves à saúde dos cidadãos ou dos aglomerados populacionais, detendo “os poderes necessários ao exercício” destas competências. Segundo o n.º 1 do artigo 5.º do diploma em causa, as autoridades de saúde asseguram a intervenção oportuna e discricionária do Estado em situações de grave risco para a saúde pública, e a desobediência a ordem ou a mandado legítimos dela emanados e regularmente comunicados é punida nos termos da lei penal (artigo 16.º do mesmo diploma). Ora, o Código Penal prevê, no artigo 348.º, n.º 1, pena de prisão até um ano e multa até 120 dias para “quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente”. Nestes termos, e em regra, o não cumprimento da ordem de confinamento deverá conduzir à aplicação de sanção penal.
Assinale-se ainda que, apesar de a decisão recorrida fazer referência a outros preceitos da Constituição, designadamente, ao disposto no artigo 19.º da CRP, o recorrente, em sede de alegações, delimitou a questão de constitucionalidade somente em função dos parâmetros constitucionais decorrentes do artigo 27.º, n.º 1, e do artigo 165.º, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa, que determinam:
Artigo 27.º
Direito à liberdade e à segurança
1. Todos têm direito à liberdade e à segurança.
Artigo 165.º
Reserva relativa de competência legislativa
1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
[…]
b) Direitos, liberdades e garantias.
Cumpre analisar e decidir.
b) Inconstitucionalidade orgânica e formal
7. Entendeu-se, na decisão recorrida, que a medida de confinamento em causa ultrapassa a mera limitação, ou condicionamento da liberdade de circulação, configurando-se como uma verdadeira restrição do direito fundamental à liberdade. Tal restrição viola, segundo o juízo a quo, o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, na medida em que, “tais diplomas (Resoluções do Conselho de Ministros), ao legislar sobre direitos, liberdades e garantias e, em concreto, sobre restrições à liberdade prevista no Artigo 27.º, n.º 1, da CRO, não tiveram em conta a competência da Assembleia da República quanto a tais matérias, imiscuindo-se um diploma com origem no Governo em matérias da competência de tal órgão constitucional”. Nestes termos, e estando em causa a restrição a um direito, liberdade e garantia, encontramo-nos no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, não podendo a medida fundar-se em resoluções do Conselho de Ministros.
No mesmo sentido se pronunciou o Ministério Público, em sede de alegações, reiterando o entendimento segundo o qual as normas questionadas estabelecem uma restrição do direito à liberdade, invadindo a esfera de competência exclusiva do Parlamento.
8. O Tribunal Constitucional tem já um acervo significativo de decisões, respeitantes ao contexto da pandemia de Covid-19, incluindo uma série de julgamentos de inconstitucionalidade de normas paralelas às que agora se encontram em apreciação. No recente Acórdão n.º 334/2022, de Plenário, fez-se a síntese da análise do problema de inconstitucionalidade orgânica e formal levada a cabo até ao momento, nos seguintes termos:
«Assim, no Acórdão n.º 424/2020, foram julgadas inconstitucionais “as normas contidas nos pontos 1 a 4 e 7 da Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020 e nos pontos 3, alínea e), e 11 da Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, nos termos das quais se impõe o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores”, com fundamento na violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º, por referência ao artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa. Nesse aresto, e apelando a jurisprudência constitucional anterior, designadamente ao afirmado no Acórdão n.º 479/94, o Tribunal Constitucional entendeu estar perante uma privação total da liberdade, contrária ao previsto no artigo 27.º, n.ºs 1 e 2, da CRP; adiantou ainda que, mesmo que assim não se entendesse, e se tivessem as medidas de confinamento por tuteladas por outro direito fundamental – em particular, pela liberdade de deslocação, consagrada no n.º 1 do artigo 44.º da CRP – sempre se estaria no domínio da reserva de competência da parlamentar. Por isso, este Tribunal não pode, então, deixar de concluir que a matéria em causa se encontra abrangida pela reserva de competência legislativa prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, competência esta que apenas pode ser objeto de autorização ao Governo, e no cumprimento das exigências constitucionais aplicáveis.
Esta jurisprudência foi reafirmada, no essencial, nos Acórdãos n.º 687/2020, 729/2020, 769/2020 e 173/2021 que, porém, abordavam de questão distinta – apreciaram-se, então, normas relativas à validação judicial de medidas de confinamento obrigatório decretadas pela autoridade regional de saúde; entendeu-se, nestes arestos que, tratando-se de medidas administrativas lesivas do direito à liberdade das pessoas visadas, não poderia deixar de se considerar que as normas questionadas disciplinavam matéria respeitante ao regime dos direitos, liberdades e garantias, mais concretamente, matéria atinente ao direito à liberdade consagrado no referido artigo 27.º da Constituição, pelo que estariam abrangidas pela reserva de competência legislativa da Assembleia da República, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP.
10. Mais recentemente, a orientação deste Tribunal plasmada no Acórdão n.º 424/2020 foi de novo reiterada pelos Acórdãos n.º 88/2022, 89/2022 e 90/2022. Os dois primeiros assumem especial relevância para o caso a decidir nos presentes autos, visto que ali se julgam inconstitucionais normas praticamente equivalentes às que estão agora em causa, e parcialmente assentes nos mesmos preceitos normativos.
São pressupostos da análise levada a cabo nos Acórdãos n.º 88/2022 e 89/2022, por um lado, um quadro normativo marcado pela declaração da situação de calamidade, nos termos do artigo 19.º da Lei n.º 27/2006 (Lei de Bases da Proteção Civil); e, por outro lado, um entendimento das medidas então em causa – confinamentos profiláticos por contacto de risco com portadores de Covid-19, em contexto escolar – como privativas da liberdade, tutelada pelo artigo 27.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.
Os arestos citados afirmam, sem margem para dúvidas, que a obrigação de confinamento se integra na previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, uma vez que se trata de uma medida que afeta direitos, liberdades e garantias. Assim, passam a indagar acerca da existência de normas, em particular na Lei de Bases da Proteção Civil ou na Lei que cria o Sistema de Vigilância em Saúde Pública, que pudessem configurar previsão legal adequada, autorizando medidas de natureza administrativa restritivas de direitos fundamentais (no caso, as ordens de confinamento por razões preventivas, ou profiláticas). Concluiu-se, sobre esta questão, em ambos os acórdãos:
“As normas da LBPC não conferem adequada cobertura legal à atuação do Governo, visto que se trata, no essencial, de normas de competência, não especificamente dirigidas à privação da liberdade, muito menos à privação da liberdade através de um confinamento.
O artigo 17.º da LSP, diretamente, não dispõe sobre a matéria. Na verdade, o confinamento no domicílio de pessoas na sequência de contacto com outras pessoas infetadas – é este o caso da ordem administrativa apreciada na decisão recorrida – não se reconduz a “separação de pessoas que não estejam doentes” (n.º 1 do artigo 17.º da LSP). Por outro lado, a expressão “normas regulamentares no exercício dos poderes de autoridade, com força executiva imediata, no âmbito das situações de emergência em saúde pública com a finalidade de tornar exequíveis as normas de contingência para as epidemias ou de outras medidas consideradas indispensáveis cuja eficácia dependa da celeridade na sua implementação” (n.º 2 do artigo 17.º da LSP) é uma expressão demasiado ampla, que, uma vez mais, não vai especial e claramente dirigida à privação da liberdade pessoal, em particular à que tenha a intensidade de um confinamento por 13 dias.
Encontrando-se a Lei de Bases da Saúde de 1990 revogada à data em que foi aprovada a Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, a sua relevância enquanto base legal para a atuação do Governo só poderia aceitar-se entendendo a remissão do n.º 1 do artigo 17.º da LSP enquanto remissão estática. Sucede que, sendo as remissões legais, por regra, dinâmicas [cfr. António Menezes Cordeiro, “Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de julho de 1988”, O Direito, ano 121, I (janeiro-março de 1989), pp. 193/194], não há elementos diretos ou indiretos na LSP que permitam concluir que se trata de uma remissão estática.
Tratando-se, no artigo 17.º, n.º 1 da LSP, de uma remissão dinâmica, deverá entender-se que vai dirigida, com atualidade, à base 34 da Lei de Bases da Saúde de 2019, supra transcrita. No entanto, esta não oferece qualquer suporte legal à imposição de uma medida prolongada de confinamento. Não se trata, manifestamente, de “internamento ou […] prestação compulsiva de cuidados de saúde a pessoas que, de outro modo, constituam perigo para a saúde pública” nem de mera “vigilância sanitária” (alíneas b) e c) do n.º 2 da citada base 34. Por outro lado, a previsão de “medidas de exceção indispensáveis, se necessário mobilizando a intervenção das entidades privadas, do setor social e de outros serviços e entidades do Estado” (n.º 3 da mesma base) não é – uma vez mais – especificamente dirigida à privação da liberdade pessoal nos termos particularmente intensos que aqui estão em causa.
Mas, ainda que se tratasse, no artigo 17.º, n.º 1 da LSP, de uma remissão estática (como vimos, não há elementos para assim concluir) para a base XX da Lei de Bases da Saúde de 1990, a conclusão – no sentido da falta de cobertura legal para a atuação do Governo – continuaria a manter-se. Na verdade, a expressão “as medidas de exceção que forem indispensáveis”, por muita latitude que se lhe possa reconhecer, não é suficientemente densa para que dela se possa extrair uma previsão de restrição da liberdade pessoal como aquela que foi prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021.
Em suma, a interpretação deste último preceito segundo a qual permite a privação administrativa da liberdade de um grupo indeterminado de pessoas por período de 13 dias, com base em ordem administrativa e sem controlo judicial não encontra, manifestamente, previsão legal.”
11. Não pode deixar de renovar-se, nesta sede, a jurisprudência que acaba de se transcrever. Com efeito, nenhuma das disposições legais invocadas na Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021 pode, atento o seu concreto teor, ser tida como fonte primária da intervenção restritiva em direitos, liberdades e garantias que – e independentemente da disposição constitucional cuja proteção se entenda estar em causa (vide infra, ponto 12 e segs.) – as medidas de confinamento na habitação, de caráter profilático, decretado por decisão administrativa, sem controlo ou validação judicial, indiscutivelmente configuram.
Assim, e ainda que se admitisse - como parece indiciar a referência à alínea g) do artigo 199.º da CRP, na Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021 - que esta resolução configura uma atuação de natureza administrativa do Governo, com vista à satisfação, em situação de urgência pandémica, das necessidades coletivas, nos termos da Constituição, apenas efetivando, por isso, uma restrição aos direitos fundamentais já contida na lei (na Lei de Bases da Proteção Civil e/ou na Lei que cria o Sistema de Vigilância em Saúde Pública), a verdade é que, como se demonstrou nos acórdãos acima transcritos, nenhuma das disposições normativas daqueles diplomas pode ser qualificada como fonte concreta de uma restrição a direitos, liberdades e garantias com o recorte preciso dos confinamentos obrigatórios que aqui estão em causa. Deste modo, é indiscutível que a restrição é operada, em primeiro lugar, pelas normas ora questionadas, já que são elas que definem o universo de afetados pela restrição, atribuem competência às autoridades para a decretar, elencam os locais onde pode ser cumprido o confinamento e determinam a vigilância pelas forças e serviços de segurança. Naturalmente, se se partir de uma qualificação da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021 como ato normativo do Governo no exercício de funções administrativas, tanto bastará para determinar a inconstitucionalidade do disposto no n.º 1, alínea b), e n.º 2 do artigo 3.º da Resolução de Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, por violação não apenas da reserva de competência parlamentar determinada pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, mas também do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, que consagra uma reserva de lei restritiva, em matéria de direitos, liberdades e garantias.
12. Idêntico julgamento de inconstitucionalidade caberia, contudo, se se entendesse que, apesar da menção da alínea g) do artigo 199.º da CRP pela Resolução do Conselho de Ministros em apreciação, esta configura uma atuação do Governo no exercício da função legislativa, posto que inexiste lei de autorização, nos termos do mencionado artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP.
Além disso, sempre se dirá, que, mesmo tendo em consideração – e este Tribunal não poderia deixar de o fazer – as dificuldades levantadas pela situação de pandemia, a verdade é que um instrumento com a natureza e as caraterísticas da resolução do conselho de ministros se apresenta como manifestamente desadequado para assegurar o cumprimento das exigências constitucionais atinentes às restrições de direitos fundamentais. Com efeito, o que de mais relevante a CRP dispõe, nesta matéria, e que deve presidir a uma análise sistemicamente adequada da problemática em questão, é que o legislador constituinte erigiu como pedra-de-toque da democracia constitucional o funcionamento do sistema de freios e contrapesos instituído pela Lei Fundamental, que procura assegurar um exercício equilibrado dos poderes estaduais. Isso mesmo se nota, desde logo, na previsão constante do n.º 7 do artigo 19.º, nos termos da qual, em situação de estado de emergência, não fica posta em causa “a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e de governo próprio das regiões autónomas ou os direitos e imunidades dos respetivos titulares”. Ou seja, mesmo no contexto de crise grave que necessariamente fundamentará o decretamento do estado de emergência, a Constituição não prescinde da intervenção e atuação de todos os órgãos de soberania, com vista à defesa do Estado de direito, e à garantia de reposição, assim que possível, de um estado de normalidade constitucional. Ora, se assim é no excecionalíssimo quadro do estado de emergência, afigura-se incontornável que o mesmo suceda fora da sua vigência, e ainda que se esteja em situação declarada de calamidade, como acontece no caso em apreço. Por isso, e desde logo, há que assinalar que o recurso à resolução do conselho de ministros permite contornar, evitando-os, todos os mecanismos de checks and balances que a Constituição instituiu no plano do controlo da atividade do legislador, em especial em matéria de direitos fundamentais.
Desde logo, note-se que a resolução do conselho de ministros não está sujeita a promulgação pelo Presidente da República, à luz do disposto no artigo 136.º da CRP. De facto, enquanto que as leis (n.º 1 do artigo 136.º da CRP) e os decretos-leis (n.º 4 do artigo 136.º da CRP) – ou seja, os atos legislativos emanados dos órgãos de soberania, nos termos do artigo 112.º, n.º 1, da Constituição, – devem ser promulgados pelo Chefe de Estado, estando, por isso, sujeitos a um exame jurídico e político, por parte deste, prévio à sua entrada em vigor, o mesmo não acontece com as resoluções do conselho de ministros, que são simplesmente aprovadas nessa sede e seguidamente publicadas no Diário da República. Por outro lado, é também importante notar que as resoluções do conselho de ministros escapam aos instrumentos de controlo que a CRP atribui ao Parlamento, no que se refere aos atos legislativos da competência do Governo, em particular o previsto na alínea c) do artigo 162.º da Constituição.
13. Por todas estas razões, confirma-se o juízo de censura jurídico-constitucional afirmado na decisão recorrida, no que respeita à inconstitucionalidade orgânica e formal da interpretação normativa cuja aplicação foi recusada».
Ora, desde já se expressa, nesta sede, a concordância com a jurisprudência acima transcrita, que bem se adapta ao presente recurso, cujo objeto é também constituído por uma norma constante de duas resoluções do Conselho de Ministros. Deste modo, cabe reafirmar o juízo de censura jurídico-constitucional feito pela decisão recorrida, no que respeita à inconstitucionalidade orgânica e formal da interpretação normativa cuja aplicação foi recusada.
c) Inconstitucionalidade material
9. O pedido apresenta, ainda, fundamentos atinentes à inconstitucionalidade material das normas em análise, nos termos afirmados pela decisão recorrida. Nesta, conclui-se pela violação do direito fundamental à liberdade. Em sede de alegações, o Ministério Público sustenta estarmos perante uma modalidade de privação da liberdade não excecionada pelos n.ºs 2 e 3 do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, e, portanto, materialmente violadora do direito à liberdade proclamado no n.º 1 deste mesmo artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa. Neste quadro, alega que “o confinamento de uma pessoa física ao espaço de um estabelecimento de saúde, do respetivo domicílio ou de qualquer outro local definido pelas autoridades de saúde constitui, sem dúvida, mais do que uma mera compressão, uma restrição à liberdade física, a liberdade de movimentos corpóreos ou, nas palavras de outros autores, à «liberdade de ir e vir»”. Mais acrescenta o recorrente que, ainda que se não adotasse este entendimento e se aceitasse que o direito à liberdade pode ser restringido por lei, se se revelar em conflito com outros direitos fundamentais ou interesses constitucionalmente protegidos concretamente prevalecentes, em situações distintas das elencadas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, não poderia deixar de se considerar que tal compressão não pode ser decidida pelo Governo (por meio de Resolução do Conselho de Ministros) sem autorização da Assembleia da República, e atentas as demais normas constitucionais relevantes.
10. Tendo em consideração tudo o que acaba de se relatar, afigura-se indispensável, para análise da questão de inconstitucionalidade material da interpretação normativa questionada, traçar o enquadramento jurídico-constitucional relevante para a questão que aqui nos ocupa. A primeira questão a esclarecer é, cremos, relativa à tutela jusfundamental relevante nesta sede; ou seja, é premente determinar que direitos fundamentais concretos estarão em causa, no caso da restrição a direitos fundamentais operada pelas normas em análise, que prevê a possibilidade de “ser decretado o isolamento profilático, por ordem da autoridade de saúde pública, a alunos de uma instituição de ensino e respetivos agregados familiares”, mesmo não estando doentes e, como acima se deu nota, sendo possível a imputação de crime de desobediência no caso de incumprimento. Esta é uma questão delicada, para a qual não surgiu, até agora, uma resposta unívoca.
De facto, confrontando as distintas posições sobre a problemática que nos ocupa, e atento o contexto de emergência sanitária em que foram emanadas as normas questionadas, cabe indagar se não será possível – e até mais adequado, do ponto de vista jusconstitucional – introduzir algumas distinções relevantes, na análise da medida de confinamento obrigatório, entendida como restrição a direitos, liberdades e garantias. Isto é, e em sentido diverso do que parece decorrer de boa parte da reflexão doutrinal, não se crê que sejam idênticas, no que respeita ao respetivo enquadramento dogmático, todas as situações de internamento de portador de doença contagiosa como a Covid-19 ou de confinamento profilático de não doentes, por razões preventivas, em qualquer espaço e por qualquer período temporal. Pelo contrário, pode, fundamentadamente, sustentar-se ser distinto, do ponto de vista substancial – e, consequentemente, da tutela jusfundamental, um confinamento com e sem enquadramento institucional, bem como um confinamento prolongado e outro de curta duração e claramente delimitado no tempo. Assim, se em certos casos estará, certamente, em questão o direito à liberdade, consagrado no artigo 27.º da Constituição, noutras situações poderemos estar perante uma restrição, tão-só, à liberdade de deslocação, prevista no artigo 44.º, n.º 1, da CRP. Por isso, atento o diferente recorte das normas constitucionais tuteladoras de um e outro direito fundamental, a possibilidade de restrição desses direitos obedecerá a pressupostos de validade com divergências relevantes. Esta distinção não é, contudo, pacífica. Para alguns – e dessa posição parecem ser tributárias as alegações do Ministério Público – qualquer tipo de norma que imponha um confinamento obrigatório, ou seja, uma obrigação jurídica, sancionável, de permanência em determinado lugar, contra vontade do cidadão afetado, configurará sempre uma verdadeira restrição ao direito à liberdade, consagrado no artigo 27.º da Lei Fundamental.
Analisemos as duas posições.
I) O direito à liberdade pessoal, constante do artigo 27.º da CRP, como parâmetro único de análise.
11. Segundo uma primeira abordagem metodológica, o parâmetro jusconstitucional relevante para o escrutínio de medidas de confinamento será, em qualquer caso, o constante do artigo 27.º da CRP, que consagra e tutela o direito à liberdade. Neste quadro, levantam-se duas questões metódicas incontornáveis. A primeira consiste em determinar em que termos o disposto no n.º 1 do artigo 27.º se articula com o que se prevê nos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo, designadamente, se pode estabelecer-se uma distinção entre as restrições à liberdade, nos termos gerais, que afetariam apenas o disposto no artigo 27.º, n.º 1, e as circunstâncias, mais graves, de privação (total ou parcial) da liberdade, que seriam reguladas à luz dos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo. Neste caso, caberia, evidentemente, explicitar o critério diferenciador entre as duas situações. Em segundo lugar, haverá que decidir acerca da taxatividade das exceções à proibição constitucional de privação da liberdade, listadas no n.º 3 do artigo 27.º da CRP.
Têm, como é natural, especial relevância para o caso presente os trabalhos desenvolvidos já no contexto pandémico, ainda que sob enquadramento normativo e jusconstitucional distinto.
Assim, sobre
questão próxima da que nos ocupa, embora num debate situado no quadro da vigência do estado de emergência, Reis Novais («Estado de emergência – Quatro notas
jurídico-constitucionais sobre o decreto presidencial», in Observatório
Almedina, 19 de março de 2020, disponível em https://observatorio.almedina.net/index.php/2020/03/19/estado-de-emergencia-quatro-notas-juridico-constitucionais-sobre-o-decreto-presidencial/;
e “Direitos Fundamentais e inconstitucionalidade em situação de crise – a
propósito da epidemia COVID-19” in E-Pública, Vol. 7, n.º 1),
criticando a não suspensão do direito à liberdade pessoal pelo decreto do
Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, que declarou o estado de
emergência, explica o seu entendimento: “quando o Estado determina o
internamento compulsivo ou o confinamento domiciliário (eventualmente com
excepções taxativamente enumeradas), independentemente de se saber se o pode ou
não fazer, que é questão a abordar posteriormente, é claro que o direito
fundamental directa e especificamente posto em causa é o direito fundamental à
liberdade consagrado no art. 27.º no que respeita à garantia da não privação
total ou parcial da liberdade especificamente consagrada nos n.ºs 2 e 3 daquele
artigo”. E acrescenta: “O direito à liberdade física ou à liberdade
pessoal, considerado como um todo, é limitável, como qualquer outro direito.
Portanto, quando se considera o específico direito consagrado no artigo 27.º,
n.º 1, é também assim”. Ou seja, o que a Constituição faz relativamente ao
direito à liberdade constante do artigo 27.º consiste em consagrar “um n.º 1
onde se consagra o direito como um todo (naturalmente, sujeito a limitações);
um n.º 2 em que se consagra uma garantia especial com carácter absoluto
relativamente a agressões mais graves ou extremas ao bem especificamente ali
protegido; finalmente, no caso do artigo 27.º, e para não deixar dúvidas quanto
à taxatividade e reserva constitucional desta garantia e das suas excepções,
adita-se um n.º 3 onde se
enumeram todas as excepções admitidas a essa garantia absoluta”. Ou seja, o
autor admite a possibilidade de diferenciação entre restrições ao direito à
liberdade, cujo escrutínio deverá assentar numa avaliação à luz do regime
jurídico e da dogmática geral das restrições a direitos fundamentais, e as
situações de privação da liberdade, absolutamente proibidas pela Lei
Fundamental fora das exceções constantes do n.º 3 do artigo 27.º, cujo elenco é
taxativo; não avança, porém, um critério distintivo entre as duas
circunstâncias.
Posição semelhante, e especialmente firme no sentido da taxatividade das autorizações de restrição plasmadas no n.º 3 do artigo 27.º da CRP, é a de Pedro Fernández Sánchez (“Sobre os Poderes Normativos do Presidente da República e do Governo em Estado de Excepção”, in Revista da Ordem dos Advogados, 81, n.ºs III-IV: 2021, pp. 755-805), que alerta para os riscos sistémicos de uma interpretação assente na ideia de derrotabilidade de normas-regra, entendendo que tal proposta tem subjacente um conceito de norma jurídica que contém um elemento de precariedade inerente, estando sujeito a uma “contínua subordinação à ponderação de um intérprete que exige receber o poder de rever a decisão normativa aprovada pela autoridade competente e, consequentemente, de recriar a solução aplicável a cada caso concreto”. Assim, o autor preconiza uma leitura do artigo 27.º, n.º 2, da Constituição, como “uma previsão de condutas específicas, já delimitadas em termos definitivos por um legislador constituinte que preferiu antecipar as ponderações potencialmente emergentes deste direito e predeterminar os casos e termos em que ele seria derrotado. Também por isso, longe de se estar perante um problema decorrente da difícil aplicação da exigência prevista no n.º 2 do art. 18.º (exigência de previsão constitucional expressa de qualquer restrição a um direito fundamental), aqui se identifica o problema mais específico da fixação de uma norma-regra, aplicável numa lógica de tudo ou nada, para a qual a própria Constituição fixa os critérios excepcionais que permitem a derrota daquela regra geral”.
12. Outros autores procuram encontrar vias de distinção entre as situações de privação (total) da liberdade, enquanto forma mais severa de afetação da liberdade física, e as restantes restrições do direito à liberdade. José de Melo Alexandrino («Devia o direito à liberdade ser suspenso? – Resposta a Jorge Reis Novais», in Observatório Almedina, 7 de abril de 2020, disponível em https://observatorio.almedina.net/index.php/2020/04/07/devia-o-direito-a-liberdade-ser-suspenso-resposta-a-jorge-reis-novais/ e «Devia o direito à liberdade do artigo 27.º da Constituição ter sido suspenso? », in Revista do Ministério Público, Número Especial Covid-19: 2020, pp. 79-92), louvando-se na doutrina alemã, sugere que “é fluída a fronteira entre a restrição da liberdade e a privação da liberdade”, pelo que devem ser levadas em consideração, na sua delimitação, “a intensidade, a duração da afectação e eventualmente outras circunstâncias”. Nestes termos, e uma vez que não se afigura claro o alcance do conceito de privação parcial da liberdade, questiona-se a admissão, sem reservas, de um princípio de tipicidade das privações totais ou parciais da liberdade. Nessa senda, conclui o autor que “independentemente do estrito respeito pelos limites definidos no artigo 27.º, n.ºs 2 e 3, o direito à liberdade, tal como o direito à segurança, são passíveis de restrições nos termos gerais, estando sujeitas ao correspondente regime”, uma vez que o direito à liberdade consagrado no n.º 1 do artigo 27.º da CRP teria a natureza de norma princípio, e não de uma norma regra. Posição paralela, embora com distinta fundamentação, é assumida, entre outros, por Pedro Moniz Lopes (“Significado e Alcance da «Suspensão» do Exercício de Direitos Fundamentais na Declaração de Estado de Emergência”, in E-Pública, Vol. 7, n.º 1) e Rúben Ramião (“O Direito à Liberdade e o Estado de Emergência numa Releitura de Alf Ross (2.ª Resposta a Jorge Reis Novais)” e “Lendo a Constituição em Estado de Emergência (3.ª Resposta a Jorge Reis Novais)”, disponíveis em http://www.icjp.pt/publicacoes/papers/4).
13. A jurisprudência deste Tribunal parece subscrever, por um lado, a tese da taxatividade das autorizações constitucionais de restrição contidas no n.º 3 do artigo 27.º da CRP; e, por outro, admitir a possibilidade de uma diferenciação entre privação total da liberdade (de que seriam exemplo as circunstâncias elencadas no artigo 27.º, n.º 3) e restrição do direito à liberdade (geral), plasmado no artigo 27.º, n.º 1, da Constituição.
Com efeito, o já citado Acórdão n.º 479/94, que constitui uma das mais relevantes decisões sobre esta matéria, sustentou o seguinte:
“A Constituição, depois de no nº 1 do artigo 27º garantir o direito à liberdade e à segurança, "dois direitos que, embora distintos, estão intimamente ligados desde a sua formulação nas primeiras constituições liberais", significando o primeiro "o direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, ou seja, o direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar" e o segundo "garantia de exercício seguro e tranquilo dos direitos, liberto de ameaças ou agressões" (cfr. Gomes Canotilho, ob. cit., 3ª ed., p. 184), autoriza, nos nºs 2 e 3 do mesmo preceito, a existência de restrições ao direito à liberdade, definindo os termos e os limites a que estas hão-de ater-se.
Deste modo, as restrições ao direito à liberdade que se traduzam na sua privação total ou parcial não podem ser outras que as ali expressamente previstas, sendo vedado à lei criar outras restrições para além daquelas - princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas da liberdade.
(...)
A norma do artigo 27º da Constituição é particularmente exigente em relação às restrições que consente ao direito fundamental nela consagrado, impondo ao legislador um grau de vinculação muito intenso.
(...)
Neste contexto jurídico-constitucional tem sido reconhecido pela doutrina como de "duvidosa constitucionalidade" a consagração legal de uma medida de detenção para fins exclusivos de identificação, quando a identificação não puder ser de imediato provada (cfr. Maia Gonçalves, ob. cit., pp. 319 e 324 e João Castro e Sousa, Os meios de coacção no novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal - O novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1992, pp. 160 e 161).
Com efeito, o procedimento de identificação a que se reporta o artigo 3º, nº 1, do Decreto sob exame, ao permitir que se imponha aos identificandos, com base em exclusivas razões de segurança interna, uma permanência num posto policial que pode prolongar-se até seis horas, há-de considerar-se como uma privação total da liberdade não cabível no quadro das excepções que taxativa e tarifadamente a Constituição prevê.
Tem-se por inaceitável o entendimento de que a privação da liberdade assim verificada possa ser entendida como mera restrição da liberdade, implicando tão só um condicionamento da liberdade ambulatória dos identificandos autorizado no quadro das restrições consentidas pela Constituição em sede de direitos, liberdades e garantias.
E tem-se por inaceitável, porque a norma sob sindicância na sua "máxima dimensão abstracta" - permanência coactiva até seis horas em posto policial para efeito de identificação por razões de segurança interna - (e só esta aqui importa considerar, sendo de todo irrelevante, dentro da delimitação do objecto do pedido, a consideração de outras hipotéticas dimensões), se traduz manifestamente numa privação da liberdade, numa privação total da liberdade, já que o identificando durante este lapso temporal fica circunscrito ao espaço confinado das instalações de um posto policial, de todo impedido de circular e de livremente se movimentar.
Independentemente da questão de se averiguar, com inteiro rigor dogmático, qual a diferença de natureza ou de grau e de intensidade entre a "privação total ou parcial da liberdade" e "as restrições à liberdade que não se traduzem na sua privação total ou parcial" [cfr. a decisão de 6 de Novembro de 1980 (Caso Guzzardi contra a Itália) do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Publications de la Cour Européenne des Droits de l'Homme, Série A - Arrêts et decisions, vol. 39, Affaire Guzzardi, Conseil de L'Europe, Strasbourg, 1981, pp. 32 e 33, na qual se considera a situação da "privação da liberdade" (artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e a restrição à liberdade de circulação (artigo 2º do Protocolo Adicional nº 4)] poder-se-á dizer que a distinção se suporta num critério qualitativo e não quantitativo, isto é, a privação da liberdade atinge directamente uma dimensão da dignidade da pessoa humana, enquanto a mera restrição ou limitação da liberdade apenas condiciona o pleno desenvolvimento dessa dimensão.
Segundo Maunz-Dürig, a privação da liberdade (Freiheitsentziehung) existe quando alguém contra a sua vontade é confinado, coactivamente, através do poder público, a um local delimitado, de modo que a liberdade corporal-espacial de movimento lhe é subtraída. Local delimitado (eng umgrenzter Ort) pode ser o espaço de um edifício ou um acampamento. Haverá ainda privação da liberdade quando a pessoa detida puder deixar o estabelecimento prisional para trabalhar sob vigilância das autoridades prisionais.
A mera limitação de liberdade (Freiheits-beschränkung) existe quando alguém é impedido, contra a sua vontade, de aceder a um certo local que lhe seria jurídica e facticamente acessível ou de permanecer num certo espaço. A liberdade de movimentação não é, assim, em contraposição à privação da liberdade, subtraída, mas apenas limitada numa certa direcção (cfr. Grundgesetz, Kommentar, § 104, 6 e 12).
A privação da liberdade traduz-se numa perturbação do âmago do direito à liberdade física, à liberdade de alguém se movimentar e circular sem estar confinado a um determinado local, sendo a essência do direito atingida por um determinado tempo (que pode ser, aliás, de duração muito reduzida).
A limitação ou restrição da liberdade (que não implique a sua privação) concretiza-se através de uma perturbação periférica daquele direito mantendo-se, no entanto, a possibilidade de exercício das faculdades fundamentais que o integram.”
Mantendo-se fiel a estes pilares argumentativos, o Tribunal foi procurando traçar distinções entre as situações de privação da liberdade (reconduzíveis à proteção do artigo 27.º da CRP) e meras limitações à liberdade. Assim fez, por exemplo, no Acórdão n.º 436/2000, no qual se explicou a diferença entre a situação então analisada – limitação de acesso a salas de jogo aos empregados das concessionárias que aí prestam serviço, fora do período laboral – e o problema que se apreciara no aresto acima citado:
“No acórdão nº 479/94, designadamente, não se colocava um problema de limitação ou restrição da liberdade, onde a liberdade de alguém se movimentar e circular sem estar confinado a um determinado espaço se concretizava numa perturbação periférica daquele direito, sem atingir o exercício das faculdades fundamentais que o integram. Como então se observou, a mera liberdade de movimentação é apenas limitada numa certa dimensão, não podendo, assim, contrapor-se à privação da liberdade: a privação da liberdade atinge diretamente uma dimensão da dignidade da pessoa humana, enquanto a mera restrição ou limitação da liberdade apenas condiciona o pleno desenvolvimento dessa dimensão”.
No Acórdão n.º 471/2001, este Tribunal esclareceu, uma vez mais, o sentido interpretativo da norma constante do n.º 1 do artigo 27.º da CRP, advogando uma leitura do preceito que exclua do seu âmbito de aplicação dimensões da liberdade que se situam em plano totalmente distinto da liberdade física (como era o caso da liberdade contratual, então em causa):
“O que está em causa, na primeira parte do nº 1 do artigo 27º, é o direito à liberdade como expressão do direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, uma vez que, como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 184), não está acolhido constitucionalmente o direito à liberdade em geral, mas sim os direitos que se englobam neste, como o direito de não ser detido ou preso pelas autoridades públicas, salvo nos casos e termos previstos no próprio artigo 27º, o direito de não ser aprisionado ou fisicamente impedido ou constrangido por parte de outrem, o direito à protecção do Estado contra os atentados de outrem à sua própria liberdade.
É a liberdade física de "ir e vir" da pessoa que está em causa e que, como tal, deve ser compreendida, de harmonia, aliás, com o estatuído no artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, entendimento que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem por firme (cfr. Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, 2ª ed., 1999, pág. 88).”
Esta conceção foi reiterada, posteriormente, por diversas vezes, nos Acórdãos n.º 71/2010, 181/2010, 54/2012, 204/2015. Por outro lado, e como acima se deu conta, esta compreensão do direito à liberdade parece estar, de igual modo, subjacente às decisões dos Acórdãos n.º 424/2020, 687/2020, 729/2020, 769/2020, 173/2021, 88/2022, 89/2022 e 90/2022, embora o fundamento destes arestos se limite ao plano da inconstitucionalidade orgânica, não sendo, pois, possível deles retirar uma conclusão definitiva sobre a temática em apreço.
14. No plano comparado, cumpre assinalar, neste sentido, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), citada no Acórdão acima transcrito, e que tem servido de ponto de partida argumentativo para a jurisprudência constitucional. Este órgão tem pugnado por uma interpretação autónoma, e própria, do conceito de privação da liberdade. Neste âmbito, tem sustentado uma contraposição entre privação da liberdade e simples restrição da liberdade de circulação, defendendo que a diferença entre ambas é de «grau ou intensidade e não de natureza ou de essência» (v. De Tommaso c. Italie, Queixa n.º 43395/09, § 80; v., já nesse sentido, Guzzardi c. Italie, Queixa n.º 7367/76, § 93 e ainda Buzadji c. Republic of Moldova, Queixa 23755/07, § 103). Esta distinção surge na jurisprudência do TEDH a propósito do disposto no artigo 5.º-1 da CEDH e do artigo 2.º do Protocolo 4, tendo-se a privação de liberdade, em geral, por absolutamente proibida, sendo a sua possibilidade excecional e limitada aos casos previstos nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 5.º, enquanto as limitações à liberdade de circulação são tidas por meras restrições. A decisão final do caso Buzadji c. Republic of Moldova, de 5 de julho de 2016, importa alguns elementos importantes, já que ali se qualifica a prisão domiciliária como verdadeira privação da liberdade, com fundamento na existência de um claro elemento de coerção neste tipo de medida. Contudo, é também relevante o facto de, neste caso, a prisão domiciliária ser uma alternativa a prisão preventiva.
Contudo, mais recentemente, no caso Terhes c. Roumanie (Queixa n.º 49933/20), o TEDH declarou inadmissível a queixa acerca de uma medida de confinamento generalizado por 52 dias, decretada pelas autoridades romenas para mitigar os efeitos da pandemia Covid-19, que fora interposta ao abrigo do artigo 5.º da CEDH (e não do artigo 2.º do Protocolo 4). O TEDH entendeu que a medida em causa, geral e aprovada pelas autoridades competentes, não poderia ser considerada uma verdadeira privação de liberdade. O Tribunal de Estrasburgo adiantou que o concreto desenho da legislação acautelava a liberdade de sair de casa por vários motivos e ir para diferentes lugares, a qualquer hora do dia que a situação exigisse. Também não impunha a vigilância individual por parte das autoridades pelo que o grau de intensidade da medida não poderia ser equiparado à privação de liberdade.
II) A necessidade de distinção entre situações enquadráveis no direito à liberdade (artigo 27.º da CRP) e na liberdade de circulação (artigo 44.º da Constituição)
15. Uma segunda abordagem metodologicamente possível assenta na possibilidade de estabelecer uma gradação entre medidas de confinamento, incluindo-se, algumas, no âmbito do artigo 27.º (por afetarem a liberdade pessoal) e outras no âmbito do artigo 44.º (por afetarem somente a liberdade de circulação).
Para tal, é antes de tudo necessário, claro está, compreender adequadamente a diferença de tutela entre os direitos constantes do artigo 27.º e do artigo 44.º da CRP.
No caso do artigo 27.º, e na senda do que se tem afirmado na jurisprudência constitucional acima destacada, parece acertado o entendimento segundo o qual a Constituição aí protege um direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, ou seja, o direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar, autorizando simultaneamente, nos nºs 2 e 3 do mesmo preceito, a privação desse direito, definindo os termos e os limites que deverão respeitar-se. Por esta razão, as limitações à liberdade “que se traduzam na sua privação total ou parcial não podem ser outras que as ali expressamente previstas, sendo vedado à lei criar outras restrições para além daquelas - princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas da liberdade” (Acórdão n.º 479/94, ponto V-3).
Já não é assim, no caso do direito à liberdade de deslocação, previsto no n.º 1 do artigo 44.º da CRP. Este direito fundamental, que configura, tal como o direito consagrado no artigo 27.º, um direito, liberdade e garantia pessoal, inclui o direito de livre passagem e permanência em qualquer lugar público, bem como o direito de circulação pelas vias públicas. Corresponde, pois, em termos genéricos, a um direito a livremente entrar e sair de locais públicos ou privados, sem que as autoridades públicas possam interferir ou impedir essas deslocações. Assim, encontramos no n.º 1 do artigo 44.º da CRP um corolário do direito à liberdade, sendo significativa a vontade do legislador constituinte de individualizar esta dimensão, consagrando-a como direito fundamental autónomo, e diferenciando-a, no que ao regime jusconstitucional diz respeito, do previsto no artigo 27.º da Constituição, do qual as faculdades acima referidas sempre decorreriam. Deste modo, esta liberdade pode ser restringida, desde que observadas as normas constitucionais aplicáveis às restrições de direitos fundamentais, designadamente as exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade. A doutrina assinala, em particular, a possibilidade de restrição quando se verifique um estado de exceção (como é a situação de calamidade), e com fundamento em razões de saúde pública, a título preventivo, em face de determinado tipo de doenças (vejam-se, neste sentido, as anotações ao artigo 44.º nas obras de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007; e Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Volume I, 2.ª Edição Revista, Universidade Católica Editora).
No sentido da relevância de uma distinção entre situações enquadráveis na liberdade pessoal constante do artigo 27.º da CRP e outras reconduzíveis à tutela do direito consagrado no artigo 44.º da Lei Fundamental, cabe ainda fazer notar a posição de Miguel Nogueira de Brito («Pensar no estado da exceção na sua exigência», in Observatório Almedina, 7 de abril de 2020, disponível em https://observatorio.almedina.net/index.php/2020/04/02/pensar-no-estado-da-excecao-na-sua-exigencia/), que procura esclarecer em que termos se articulam as liberdades previstas nos artigos 27.º e 44.º da Constituição. Nestes termos, explica que a “relevância desta determinação parece ser a seguinte: o direito de deslocação não prevê qualquer restrição expressa, mas também não a exclui, pelo que a mesma seria em princípio admissível; pelo contrário o direito à liberdade física do artigo 27.º da Constituição apenas prevê restrições nos casos nele previstos, não se incluindo aí a quarentena, ou o confinamento de pessoas suspeitas de contágio epidémico. Nessa medida, seria possível entender que o direito à liberdade não é suscetível de restrição pelo legislador para estes efeitos e, nessa medida, pode apenas ser suspenso mediante declaração de estado de emergência ou de sítio”. Por esta razão, o autor defende que “o âmbito de proteção da liberdade protegida pelo artigo 27.º parece ser apenas a liberdade de movimento em face de ameaças físicas que visem impedi-las. Assim, a proibição de abandonar um lugar, bem como a obrigação de se manter nele, surge apenas como uma restrição à liberdade do artigo 27.º quando for acompanhada do recurso à força ou da sua ameaça”. Por isso, propõe uma leitura deste artigo nos termos da qual “se limita à proteção da pessoa perante qualquer supressão ou redução da sua liberdade de movimento de âmbito penal, caindo os restantes casos de movimento da pessoa sob a proteção do artigo 44.º. De resto, é esta inserção do artigo 27.º no âmbito dos direitos fundamentais de âmbito penal que justifica a rigidez do respetivo regime. A liberdade do artigo 27.º é a liberdade que pode ser decretada por um tribunal, ou tendo em vista a sua confirmação por uma decisão judicial”.
16. O Tribunal Constitucional italiano analisou recentemente uma situação (v. Sentenza n. 127, de 2022, de 7 de abril) na qual se revelou decisiva a distinção entre medidas escrutináveis à luz da liberdade pessoal e da liberdade de circulação. Nessa ocasião, realçou a relevância do contexto pandémico e das concretas circunstâncias que decorrem da aplicação de medidas de confinamento para a aferição da sua conformidade constitucional e do seu enquadramento num parâmetro atinente à liberdade pessoal (equivalente ao disposto no artigo 27.º da CRP) ou à liberdade de circulação (equivalente à consagrada no artigo 44.º da CRP). No caso concreto, tratava-se de julgamento em que um cidadão era acusado de sair do domicílio, apesar de ser portador do vírus SARS-Cov2/Covid 19, tendo o juiz a quo considerado que as normas jurídicas acerca de tal delito eram contrárias ao artigo 13 da Constituição italiana (liberdade pessoal).
O Tribunal Constitucional italiano declarou ser evidente que a faculdade de autodeterminação quanto à mobilidade de uma pessoa no espaço, em princípio, constitui um componente essencial tanto da liberdade pessoal como da liberdade de circulação. Advertiu também que, na linha de jurisprudência anterior, era claro que “razões de saúde” poderiam fundamentar limitações, de forma geral, à liberdade de circulação de pessoas, atingindo até, se necessário, a obrigação de isolar os indivíduos acometidos por doenças contagiosas. Nestes termos, medidas do tipo de “cordão sanitário” para evitar a propagação de doenças contagiosas de alta gravidade justificariam, em princípio, quaisquer restrições, desde que se mantivessem dentro dos padrões constitucionais de proporcionalidade e adequação às circunstâncias do caso concreto. O Tribunal recordou ainda que, nos termos da sua jurisprudência, devem inserir-se no âmbito da liberdade pessoal não apenas as restrições que suponham a mobilização da força física (como a prisão), mas quaisquer obrigações que comportem a sujeição da pessoa a um poder externo, sujeição que comprometeria a liberdade moral do indivíduo, a sua degradação jurídica. Com base nestes princípios, o Tribunal italiano sustentou que, no caso então em apreço, era evidente que a extensão da quarentena obrigatória não implicava qualquer degradação do estatuto jurídico de quem a ela era sujeito e, portanto, não afetava a liberdade pessoal. O contexto – a existência de um vírus respiratório altamente contagioso que pode ser contraído por qualquer pessoa, seja qual for o seu estilo de vida e condições pessoais e sociais – justificava a medida questionada e era demonstrativo de que o critério de confinamento (ser portador de SARS-Cov2/Covid 19) não implicava qualquer estigma moral, e não poderia causar diminuição da igual dignidade social. Por esta razão, as normas em causa, consideradas como mera restrição à liberdade de circulação, foram tidas por conformes aos parâmetros constitucionais.
17. Tendo em atenção as considerações que acima se teceram, e nos termos desta segunda posição metodológica, parece poder encontrar-se, no texto constitucional, uma distinção entre intervenções restritivas no âmbito da liberdade que permite situá-las na esfera de um ou outro dos direitos mencionados (direito à liberdade, nos termos do artigo 27.º da CRP, e liberdade de deslocação, tutelado pelo artigo 44.º, n.º 1, da Constituição). Apesar de não ser tratada pela doutrina nos exatos termos que se apresentarão, a verdade é que a linha divisória que se traçará tem correspondência com os preceitos constitucionais, em particular com o disposto no n.º 3 do artigo 27.º da CRP, permitindo, ao mesmo tempo, fazer uma interpretação do texto da Constituição adequada aos desafios e problemas que se nos apresentam no contexto pandémico.
Assim, uma leitura atenta da lista constante do n.º 3 do artigo 27.º revela um elemento fundamental para a presente análise: todas as situações ali definidas como privação da liberdade, e excecionadas da regra plasmada no n.º 1 do mesmo artigo, ficando ao abrigo de uma autorização constitucional de restrição, podem ser reconduzidas a prisão ou detenção, com exclusão de duas; essas duas outras situações são a da sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente (alínea e) do n.º 3 do artigo 27.º da CRP) e o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente (alínea h) do mesmo artigo). Ora, o que todas estas condições têm em comum, além de configurarem, obviamente, situações de privação da liberdade, em particular da liberdade de movimentos, é o facto de esta privação de liberdade ocorrer num contexto de institucionalização. Assim, as restrições expressamente autorizadas do direito à liberdade, constantes do n.º 3 do artigo 27.º da CRP, prefiguram-se como circunstâncias em que a pessoa, além de ser, naturalmente, tolhida da sua liberdade de se movimentar, nos termos por si mesma definidos, é colocada, contra a sua vontade, numa instituição, o que tem implicações profundas no exercício da sua liberdade em planos que vão além da simples liberdade de ir e vir, entrar ou sair dessa mesma instituição.
De facto, o enquadramento institucional levanta diversos problemas, no plano dos direitos fundamentais: a pessoa institucionalizada fica isolada da sua comunidade, ao mesmo tempo que é forçada a conviver com os outros sujeitos que se encontram nas mesmas circunstâncias; perde um grau significativo de controlo sobre a própria vida, e fica impossibilitada de tomar livremente uma série de decisões que a afetam; além disso, no contexto de institucionalização, as exigências da organização prevalecem, em regra, sobre as necessidades e desejos individualizados de cada pessoa. Estar institucionalizado implica, pois, perder uma importante parte da liberdade de decisão sobre si mesmo, nas pequenas e grandes coisas: a pessoa institucionalizada não escolhe o que come, não define os seus horários ou rotinas, nem as visitas que pode ou não receber, não estabelece livremente os percursos de deslocação dentro da instituição, vê significativamente limitados os seus direitos à privacidade e à intimidade. Há, assim, nestas circunstâncias, uma restrição de tal modo profunda da liberdade individual – uma degradação jurídica do sujeito de direitos, para mobilizar a terminologia italiana - que bem se compreende que, fora das situações em que para tal dê consentimento o titular do direito fundamental afetado, a Constituição só a permita no quadro de um conjunto, necessariamente restrito, taxativo e fundamentado, de ocasiões excecionais.
É, pois, claramente equivalente às exceções previstas no n.º 3 do artigo 27.º da CRP, por configurar uma situação de privação de liberdade, em contexto de institucionalização (ou circunstância equivalente), o confinamento obrigatório em estabelecimento de saúde. Sê-lo-ão, também, todas as situações que se lhe assemelhem no plano substancial, como é o caso da restrição analisada no já mencionado Acórdão n.º 424/2020. Tratava-se então, de medida de confinamento em estabelecimento hoteleiro, tendo-se demonstrado, através da análise dos factos, claramente reveladores da potencialidade abstrata de restrição da liberdade, resultante da execução das normas questionadas, o seguinte:
“a maior parte das restrições descritas – mas, acima de tudo, o seu conjunto – corresponde, inequivocamente (e recuperando a classificação do Acórdão n.º 479/94), a uma “privação total da liberdade”. Assim se conclui, seja pela verificação de que a norma, “na sua máxima dimensão abstrata”, implica que o visado “fica circunscrito [a um] espaço confinado […], de todo impedido de circular e de livremente se movimentar” (expressões do referido Acórdão), seja ao constatar, por comparação, que a execução de uma medida como a descrita em muito pouco [e, descontada a envolvência (um quarto de hotel) porventura mais “amigável”, em nada de substancialmente significativo] se afasta do que resultaria da aplicação de uma (hipotética) pena curta de prisão, porventura até com aspetos mais gravosos (por exemplo, a falta de acesso a um espaço comum para exercício físico), seja até, por maioria de razão, face ao que se concluiu no citado Acórdão n.º 479/94, no qual se qualificou como inequívoca privação da liberdade a circunscrição a um espaço confinado até 6 horas (quando no caso dos autos está em causa um período até 56 vezes superior a esse).”
Assim, por tudo o que acima se disse, e não cabendo a medida restritiva de confinamento obrigatório em instituição, ou equivalente, em qualquer uma das exceções previstas no seu n.º 3, mais não restaria do que concluir pela sua inconstitucionalidade material, por violação do disposto no artigo 27.º da Constituição.
18. Todavia, a medida restritiva de confinamento mais típica - que corresponde a uma obrigação de permanência na habitação, por período pré-determinado pela autoridade administrativa competente, e de curta duração, sem quaisquer obrigações ou imposições adicionais – pode ser analisada por outro prisma. De facto, não podem deixar de se assinalar as diferenças de relevo entre esta circunstância – que, ainda para mais corresponde, no quadro da situação de calamidade, ao exercício de um dever constitucional – e uma privação de liberdade assimilável à aplicação de uma pena de prisão.
Na verdade, no plano abstrato, a restrição aos direitos fundamentais imposta a quem fica obrigado a confinamento profilático, no seu domicílio, e nos demais termos expostos, corresponde a uma compressão bem menos ampla da sua liberdade individual, quando comparada com o sacrifício imposto aos cidadãos forçados a cumprir tal medida em contexto de institucionalização, ou equivalente. Isto, porque, exceto no que respeita à liberdade de ir e vir, que é objeto de restrição, em tudo o mais a pessoa permanece livre. Resulta, assim, preservada, no grau máximo compatível com a restrição, a margem individual de decisão sobre a própria vida. Ainda que em confinamento profilático obrigatório, o cidadão continua a poder autodeterminar-se, definindo as suas rotinas, hábitos e horários, deslocando-se sem entraves por todo o espaço habitacional, podendo receber visitas que cumpram as regras de segurança aplicáveis à pandemia, usufruir de espaço exterior, se dele dispuser, e mantendo os direitos fundamentais à privacidade e à intimidade.
Não se ignora, naturalmente, que o confinamento obrigatório não deixa de ser, apesar do que se assinalou, uma medida gravosa, com importantes efeitos na esfera jusfundamental de cada cidadão. Implica quase sempre a restrição, consequente, mais ou menos limitada, de um conjunto de outros direitos fundamentais, como o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, o direito ao trabalho, ou o direito à saúde. Contudo, não se afigura que este facto justifique a equiparação, em termos práticos e substanciais, de um confinamento, repita-se, no domicílio, de curta duração, e sem obrigações adicionais, à situação de prisão, detenção, ou à sujeição a institucionalização forçada ou circunstância equivalente. Isto mesmo tendo em consideração a possibilidade de o cidadão que viole a ordem de confinamento poder vir a responder por crime de desobediência. Por esta razão, deste ponto de vista, parece poder sustentar-se que as medidas deste tipo poderão, dependendo do seu concreto recorte, ser consideradas como uma restrição da liberdade de deslocação, tendo por parâmetro de controlo o artigo 44.º, n.º 1, da Constituição e as demais disposições constitucionais aplicáveis às restrições de direitos fundamentais.
19. Esta avaliação material não pode, como é óbvio, olvidar o contexto de emanação das normas relativas às obrigações de confinamento, marcado pela emergência pandémica e pela necessidade de tomar medidas para proteção da saúde pública. Com efeito, é relevante que as normas que impõem confinamentos obrigatórios sejam mobilizadas num quadro de declaração da situação de calamidade no território nacional. São, pois, normas adotadas em contexto de emergência administrativa, assim explicado por Pedro Gonçalves («Breves notas sobre o Direito Administrativo em modo de crise» in Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2020-II, pp. 261-286): “Ao conceito de emergência administrativa reconduzimos múltiplas figuras previstas em legislação que, em circunstâncias anormais – que podem envolver um ato de declaração que mobiliza a aplicação de um certo regime -, de associam à investidura em órgãos da Administração da competência para a adoção de providências de recorte excecional que, em geral, visam prevenir, mitigar ou combater o impacto negativo de acontecimentos ou de situações anormais e imprevistas que põem em risco bens jurídicos individuais, como a vida ou a saúde, ou bens coletivos, como o ambiente e a saúde pública. (...) Neste patamar da emergência administrativa, entra em cena um “direito de emergência”, definido na legislação ordinária e em normas da própria Administração autorizadas por aquela legislação. As providências e medidas administrativas adotadas nesse âmbito, embora excecionais ou extraordinárias, fundam-se nas regras específicas previstas no “direito legal de emergência”. Todavia, acrescenta o autor, “em qualquer caso, as medidas de emergência adotadas têm de encontrar habilitação em norma legal, a qual, se se tratar de medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias, deve ser uma lei da Assembleia da República ou um decreto-lei autorizado”.
Nestes termos, este Tribunal não pode deixar de levar em conta os princípios constitucionais que fundamentam a intervenção estadual que conduz à adoção de normas atinentes a confinamentos. Desde logo, destaca-se, neste quadro, com particular acuidade, a obrigação estadual de proteção da saúde pública, bem como a importância do dever constitucional de proteção da saúde.
Com efeito, a CRP estatui, no n.º 1 do artigo 64.º, que “todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover”. Assim, além de consagrar um direito fundamental à proteção da saúde, a Constituição institui também o correspetivo dever dos cidadãos, chamados a defendê-la e a promovê-la. De facto, sendo os sujeitos do direito (todos, na expressão constitucional) igualmente destinatários deste dever, não pode deixar de considerar-se que, além das evidentes obrigações estaduais de proteção e promoção da saúde – que, aliás, são detalhadamente desenvolvidas nos números 2 e 3 do artigo 64.º da CRP –, o texto constitucional impõe, de igual modo, obrigações aos cidadãos. Evidentemente, não são equivalentes, neste plano, as obrigações do Estado e de cada cidadão individual, sendo muitíssimo mais extensas as primeiras; por outro lado, pode discutir-se a forma como este dever será recortado e limitado por outros direitos fundamentais, como é o caso, por exemplo, do direito ao livre desenvolvimento da personalidade; por fim, pode ainda questionar-se o alcance da eficácia horizontal de um dever genérico de proteção da saúde, isto é, indagar até que ponto um dever deste tipo legitima a imposição de comportamentos aos indivíduos, em nome da proteção da saúde pública.
Independentemente, porém, da definição em termos mais ou menos amplos do âmbito do dever de proteção da saúde, sempre se dirá que, se em algum momento ele deve ser mobilizado na interpretação constitucional, é, precisamente, em contexto de emergência pandémica - um desafio particularmente difícil, com uma inultrapassável dimensão coletiva, e não superável sem medidas aplicáveis a todos, mesmo que não afetados de forma direta pela doença.
Isto mesmo afirmou o Tribunal Constitucional alemão (veja-se, por exemplo, a decisão de 19 de novembro de 2021, relativa a um conjunto de queixas constitucionais fundadas na alegada inconstitucionalidade de medidas de confinamento obrigatório e restrição de contactos que visavam conter a pandemia de Covid-19; 1 BvR 781/21, 1 BvR 889/21, 1 BvR 860/21, 1 BvR 854/21, 1 BvR 820/21, 1 BvR 805/21, 1 BvR 798/21), explicando que, com as medidas restritivas perante si questionadas o legislador pretendia assegurar a proteção da vida e da saúde, objetivos que exigiam a instituição de regras eficazes para reduzir o contato entre as pessoas. Só isso permitiria desacelerar a propagação do vírus e interromper seu crescimento exponencial, a fim de evitar sobrecarregar o sistema de saúde como um todo, garantindo assim a prestação de assistência médica em todo o país. “Proteger a vida e a saúde e manter o bom funcionamento do sistema de saúde”, esclareceu aquele Tribunal, “são ambos interesses excecionalmente significativos do bem comum, por direito próprio, sendo, portanto, objetivos legislativos constitucionalmente legítimos”. Efetivamente, e também entre nós, o passado recente evidenciou como as medidas de confinamento impostas em determinados períodos foram fundamentais não apenas para a contenção da pandemia, mas também na perspetiva da sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde.
20. Resta, assim, a análise da norma questionada para determinar a sua conformidade com a Lei Fundamental. Neste ponto, deve adiantar-se que, atentando no concreto desenho da norma sob sindicância, surgem objeções incontornáveis a um juízo de não inconstitucionalidade. Assim sucede, de facto, nesta situação, mesmo que se adote a segunda posição mencionada, e pese embora a constatação de que o confinamento concretamente em causa teve uma duração que pode ainda ser classificada como curta.
Em primeiro lugar, releva o facto de a norma sub iudice não estabelecer qualquer prazo máximo absoluto de duração da medida de confinamento, nem regular a possibilidade e condições da sua prorrogação ou renovação. Efetivamente, esta falta de estatuição de um prazo concreto impede a adequada antevisão, por parte dos cidadãos, da restrição à liberdade que lhes pode efetivamente ser imposta. Assim, em rigor, este vazio de previsão normativa, permite, em abstrato, a imposição de confinamentos de tal modo amplos que não podem deixar de cair na tutela do artigo 27.º da CRP. Além disso, e mesmo que o confinamento concretamente imposto tivesse uma duração com limites tais que justificassem, nos termos da segunda perspetiva metodológica, a sua classificação como mera medida restritiva da liberdade de circulação, prevista no artigo 44.º, n.º 1, da CRP, a determinação do prazo legal sempre teria que ser feita por lei, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, visto que se trata de um elemento essencial da medida restritiva. O mesmo se diga da previsão da possibilidade e condições de prorrogação ou renovação da medida de confinamento obrigatório, acerca das quais a norma questionada nada diz, não estabelecendo quem, em que termos, e por quanto tempo, poderá tomar essa decisão.
Em segundo lugar, a norma sindicada não estatui quaisquer mecanismos específicos de garantia dos direitos dos cidadãos, nem qualquer tipo de controlo judicial; também não se exige que sejam prestadas, aos afetados, informações sobre os meios de tutela à sua disposição, para reação contra as medidas que lhes são impostas. Ou seja, resulta da norma em crise que a restrição aqui analisada se aplica num quadro de sistemática insindicabilidade, em particular por via jurisdicional, tanto prévia, quanto subsequente. Ora, tendo em consideração a gravidade e possível amplitude de uma medida como o confinamento obrigatório, não pode deixar de exigir-se a previsão, por um lado, de efetivos mecanismos de acesso ao direito e, por outro, de um procedimento que garanta a comunicação a quem fica sujeito ao dito confinamento dos motivos e fundamento legal que lhe subjazem, dos direitos de que é titular e do modo de sindicar a decisão. Na ausência destas garantias, a interpretação normativa que é objeto do presente recurso permite uma ingerência de tal modo ampla na esfera pessoal que, uma vez mais, não pode deixar de cair na alçada do direito fundamental consagrado no artigo 27.º da Lei Fundamental.
Em terceiro lugar, a fiscalização das pessoas sujeitas ao confinamento não foi alvo do devido enquadramento normativo, emanado pelo órgão legislativo competente, não sendo claras as competências e os procedimentos destinados a assegurar o cumprimento da obrigação de confinamento, decretado nos termos da norma sindicada. Assim, resulta claro que se deixa, também neste ponto, um elemento essencial da interferência na esfera da liberdade às autoridades administrativas (no caso, às autoridades de saúde e às autoridades policiais a quem esta comunique a obrigação de isolamento profilático), circunstância que, além dos evidentes problemas de competência, em face das normas constitucionais aplicáveis, levanta, ainda, questões de igualdade, podendo, na falta de linhas de atuação previamente definidas, a mesma medida de confinamento obrigatório assumir natureza substancialmente distinta, e de gravidade muito diferente. Deste modo, e uma vez mais, a indeterminabilidade e amplitude da afetação da liberdade pessoal permitida pela norma questionada são de tal ordem que deverá ser mobilizado o parâmetro constante do artigo 27.º da CRP.
Por fim, é de assinalar, em sentido positivo, mas insuficiente, o facto de o n.º 3 do artigo 3.º dos Regimes Anexos às Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 135-A/2021, de 29 de setembro e 114-A/2021, de 20 de agosto, prever o acompanhamento, pelas autoridades, dos cidadãos sujeitos a confinamento obrigatório, para efeitos de provisão de necessidades sociais e de saúde, mediante visita conjunta da proteção civil municipal, dos serviços de ação social municipais, dos serviços de ação social do Instituto da Segurança Social, I. P., das autoridades de saúde pública, das unidades de cuidados e das forças de segurança, bem como, de quaisquer outros serviços ou organismos do Estado. Com efeito, assume intensa relevância na classificação da medida concreta a previsão de mecanismos deste tipo, bem como de alternativas para aqueles que não possam cumprir a obrigação de confinamento, no seu domicílio, em condições de dignidade, e, ainda, de esquemas de deteção ou sinalização dos cidadãos para quem tal obrigação possa representar um risco, individualmente avaliado, que se afigure desproporcionado.
21. Nestes termos, e independentemente da posição metodológica – de entre as acima explanadas – que se prefira, parece claro que a medida de confinamento consagrada por via da norma sob escrutínio deverá ser sujeita a um incontornável juízo de inconstitucionalidade material. Isto porque, tendo em consideração tudo o que acaba de se expor, com ênfase na ausência de previsões legais acerca de um conjunto de elementos centrais para o concreto desenho da medida de confinamento obrigatório não pode deixar de se concluir que esta representa, neste caso, uma verdadeira privação da liberdade pessoal. Efetivamente, a indeterminação e latitude que a norma questionada permitem às autoridades, aliada à potencial duração prolongada da medida, bem como à possibilidade de mobilização das autoridades policiais para assegurar o seu cumprimento, remetem-na inevitavelmente para uma classificação como privação da liberdade, violadora do disposto no artigo 27.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
III. Decisão
Nestes termos e pelos presentes fundamentos decide-se:
a) julgar inconstitucional a norma constante do artigo 3.º, n.º 1, alínea b), dos Regimes Anexos às Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 135-A/2021, de 29 de setembro e 114-A/2021, de 20 de agosto, na interpretação segundo a qual “os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde, no domicílio ou, não sendo aí possível, noutro local definido pelas autoridades competentes”, por violação do artigo 27.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa;
b) julgar inconstitucional a norma constante do artigo 3.º, n.º 1, alínea b), dos Regimes Anexos às Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 135-A/2021, de 29 de setembro e 114-A/2021, de 20 de agosto, na interpretação segundo a qual “os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde, no domicílio ou, não sendo aí possível, noutro local definido pelas autoridades competentes”, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), com referência ao artigo 27.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Sem custas.
Lisboa, 14 de julho de 2022 - Mariana Canotilho - António José da Ascensão Ramos Voto a decisão, discordando da fundamentação quanto à inutilidade material pelas razões explanadas nos acórdãos nº 464/2022, 465/2022 e 466/2022, desta secção. - José Eduardo Figueiredo Dias Acompanhando a declaração de voto da Conselheira Maria Assunção Raimundo. - Assunção Raimundo (não acompanho a fundamentação do Acórdão, nomeadamente o apelo ao parâmetro do artigo 44º, nº1, da Constituição, remetendo-me totalmente para a posição defendida nos Acórdãos nº.s 464/2022, 465/2022 e 466/2022, desta secção). - Pedro Machete (vencido quanto à alínea a) do dispositivo, nos termos da declaração de voto junta).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido quanto à alínea a) do dispositivo (inconstitucionalidade material), no essencial, pelas razões invocadas na declaração de voto junta ao Acórdão n.º 489/2022 (Processo n.º 732/21).
Pedro Machete