ACÓRDÃO Nº 191/2022
Processo n.º 46/20
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Ribeiro
Acórdão na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de execução fiscal, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente A., SGPS, SA e recorrida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), o Ministério Público, ao abrigo do artigo 280.º, alínea a) do n.º 1, e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), interpõe recurso, para si obrigatório, do acórdão da Secção do Contencioso Tributário (2.º Secção) daquele Tribunal, datado de 6 de novembro de 2019, que julgou organicamente inconstitucional a norma contida no n.º 2 do artigo 147.º do Código das Sociedades Comerciais, com a consequente procedência do recurso e extinção da execução.
2. Recebido o recurso, o Ministério Público apresentou alegações neste Tribunal, onde conclui o seguinte:
1.ª - Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do estatuído nos artigos 280.º/1/a) / 3 da CRP e 70.º/1/a) e 72.º/3 da LTC (Lei 28/82, de 15 de novembro) do acórdão de 06/11/2019 [do Supremo Tribunal Administrativo – 2.ª secção/Contencioso Tributário, proc. n.º 1173/16-30/Recursos jurisdicionais, fls. 404 a 429] no segmento em que julgou organicamente inconstitucional a norma contida no art.º 147.º/2 do CSC. De facto, sustenta a decisão recorrida que a definição dos pressupostos legais da responsabilidade tributária, seja subsidiária ou solidária, integra matéria de incidência subjetiva ou de garantias dos contribuintes. Assim, no entender da decisão recorrida, o normativo do artigo 147.º/2 do CSC, de caráter inovatório, interpretado, como deve ser interpretado, de acordo com as regras da hermenêutica jurídica, no sentido de estabelecer uma responsabilidade solidária e ilimitada por dívidas de terceiro, é organicamente inconstitucional, por violação do princípio da legalidade tributária, na vertente da reserva de lei parlamentar, ínsito nos artigos 103.º/2 e 165.º/1/ i) (a que correspondem os artigos 168.º/1/i) e 106.º/2 da CRP, na versão vigente à data da em entrada em vigor do CSC), uma vez que o normativo em causa não foi criado por Lei da Assembleia da República ou por Decreto-Lei autorizado, mas sim pelo DL 262/86, de 02/09, emitido ao abrigo do, então, artigo 201.º/1/ a) (atual artigo 198.º/1/ a)) da CRP”.
2.ª - O discurso em que se funda esta tese da inconstitucionalidade orgânica procede de três proposições fundamentais, quanto ao caráter da norma jurídica constante do n.º 2 do artigo 147.º do CSC, a qual, segundo tal ponto de vista, é de “incidência subjetiva” ou de “garantia dos contribuintes”, de “responsabilidade tributária” e inovatória, premissas essas que não podemos subscrever e pretendemos refutar, nos termos subsequentes.
3.ª - Antes, importa referir que para apreciar esta questão de constitucionalidade, como pressuposto lógico e pragmático do juízo de constitucionalidade, é necessário proceder à determinação do sentido de diversos preceitos da lei ordinária, muito em particular da norma jurídica expressa pelos preceitos conjugados dos n.ºs 1 e 2 do artigo 147.º, e n.º 1 do artigo 156.º, todos do CSC, justamente a exceção típica aos limites do conhecimento do direito infraconsitucional, em sede da jurisdição constitucional.
4.ª - A história, a letra, o sistema e o sentido da lei, bem como a melhor doutrina, são concordes em reconhecer o caráter dipositivo (permissivo) do instituto da partilha imediata, tal como previsto, nomeadamente, no n.º 1 do 147.º do CSC.
5.ª - Os preceitos conjugados dos n.ºs 1 e 2 do artigo 147.º do CSC consagram um direito subjetivo societário à partilha imediata, subsequente à dissolução da sociedade, cujo exercício determina, ipso jure, a constituição de uma situação jurídica complexa, integrada, nomeadamente, pela responsabilidade de todos os sócios pelas dívidas de natureza fiscal, ainda não exigíveis à data da dissolução, ilimitada e solidariamente.
6.ª - Essa responsabilidade, que é uma adstrição ao cumprimento de um dever de prestar decorrente de um facto tributário de outrem (KELSEN), é imperativa, sim, mas apenas no pressuposto de previamente ter ocorrido o livre exercício do direito subjetivo societário da partilha imediata.
7.ª - Portanto, a responsabilidade não decorre imediatamente da lei, antes apenas vem a ser constituída, por virtude da autonomia de vontade dos sócios, através do exercício do direito subjetivo societário à partilha imediata, como efeito necessário, correlativo daquela opção societária.
8.ª - A constituição dessa responsabilidade dos sócios, ilimitada e solidariamente, enquanto efeito necessário do exercício do direito subjetivo societário à partilha imediata, visa, segundo o comentário mais autorizado, prevenir “a hipótese de uma dissolução destinada, precisamente, a defraudar o fisco” (JOANA PEREIRA DIAS e CAROLINA CUNHA).
9.ª - Este sentido dispositivo (permissivo) do regime legal está consubstanciado na vontade societária da “B., S. A.”, pois na sequência da respetiva dissolução, em 29 de abril de 2008, dispensando a liquidação, deliberou a partilha imediata dos haveres sociais, expressamente assumiu ilimitadamente as eventuais dívidas de natureza fiscal não exigíveis à data e, bem assim, a representação da sociedade extinta em eventuais atos futuros decorrentes desta liquidação e dissolução, nomeadamente junto da administração fiscal e, não menos importante, afetando a verba de € 523.168,50, então recebida, às despesas de liquidação e os reembolsos, devoluções e pagamentos a efetuar.
10.ª - O comentário societário de referência (RAUL VENTURA), quer no âmbito do direito antigo (artigos 130.º a 143.º do Código Comercial) quer, com especial relevância no caso em apreço, no âmbito do direito vigente (especificamente dos artigos 146.º, 147.º e 156.º do Código das Sociedades Comerciais), sublinha o caráter dispositivo do regime legal em causa.
11.ª - O sentido da douta declaração de voto, de vencido, exarada no acórdão recorrido, em substância, concorre com este entendimento, ao ajuizar que “o n.º 2 do 147.º do CSC não pode ser tomado como um "caso de "responsabilidade tributária", antes “estamos perante uma transmissão do dever de cumprir uma obrigação fiscal e não perante a constituição ex lege de uma obrigação fiscal na esfera do transmissário”, sendo que “o ou os transmissário(s) recebem a parte dos bens resultante da partilha e assume(m), por força da sua opção (a partilha imediata tem de ser requerida pelos beneficiários), o ónus do pagamento das "dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis à data da dissolução".
12.ª - O princípio da legalidade fiscal, como reserva de lei formal, tem subjacente uma ponderosa razão substantiva, que lhe determina respetiva feição e função: a tributação deve proceder da vontade dos cidadãos para ser, em razão do prévio autoconsentimento, antes que imposição, uma genuína autoimposição (Nil de nobis, sine nobis!) [CARDOSO DA COSTA, CASALTA NABAIS, JESCH e HEY].
13.ª - A responsabilidade dos sócios, ilimitada e solidária, pelas dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis à data da dissolução, em sede da partilha imediata nos termos do n.º 2 do artigo 147.º do CSC, não decorre, imediata e inelutavelmente da lei, mas da vontade societária.
14.ª - Portanto, tal responsabilidade procede da autonomia da vontade dos sócios, após a dissolução da sociedade, expressa através do exercício do direito subjetivo societário à partilha imediata, que tem como efeito necessário a constituição da posição jurídica passiva de responsabilidade.
15.ª - Assim, a norma jurídica constante, nomeadamente, do n.º 2 do artigo 147.º do CSC, não é uma norma de incidência subjetiva do imposto, ao menos para efeitos do princípio da legalidade, como reserva de lei formal.
16.ª - Por conseguinte, no caso não é necessária a intervenção parlamentar, pois aqui a assunção da responsabilidade pelo pagamento da dívida tributária está na inteira dependência de uma prévia e expressa manifestação de autonomia da vontade societária dos visados, através do exercício do direito subjetivo societário à partilha imediata, ou seja, não é necessária a proteção da lei perante a deslocação patrimonial, já que a garantia dos contribuintes está confiada pela lei ao consentimento dos próprios interessados, os sócios.
17.ª - Portanto, não sendo a norma jurídica constante do n.º 2 do artigo 147.º do CS de incidência subjetiva do imposto, não há nela antagonismo com o preceituado no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição, que reserva para a lei, designadamente, a determinação da incidência (subjetiva) do imposto.
18.ª - A responsabilidade tributária (ou fiscal) “verifica-se quando, ao lado do sujeito passivo, outra ou outras pessoas ficam também sujeitas por força da lei ao pagamento do imposto devido pelo primeiro. Referindo-se a estas pessoas, fala então a lei de «responsáveis» ou, mais frequentemente, de «responsáveis subsidiários» ou «responsáveis solidários»” (CARDOSO DA COSTA).
19.ª - Aqui, em sede de responsabilidade tributária, como ali, em sede da incidência subjetiva do imposto, não é por força da lei, mas por efeito de uma manifestação de autonomia da vontade societária, exercendo o direito subjetivo societário à partilha imediata expresso nos preceitos conjugados dos n.ºs 1 e 2 do artigo 147.º do CSC, que fica constituída responsabilidade de todos os sócios, ilimitada e solidária, pelas dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis à data da dissolução.
20.ª - Também aqui, portanto, não sendo caso de responsabilidade tributária, não há verdadeiramente violação do preceituado no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição, que reserva para a lei, designadamente, a determinação dos responsáveis pelo imposto, que estão compreendidos na noção de incidência (subjetiva) do imposto.
21.ª - O regime da responsabilidade dos liquidatários, pessoal e solidária, pelas dívidas fiscais das sociedades dissolvidas, não é inovatório, antes tem larga tradição no direito português, sendo que para os presentes efeitos será suficiente recensear o artigo 4.º do Decreto n.º 17730, de 7 dezembro de 1929, e o artigo 17.º do CPCI, de 27 de abril de 1973.
22.ª - É certo que no presente caso, é dispensada a fase da liquidação, antes se procedeu à partilha imediata dos haveres sociais, mas o termo “liquidação”, em sentido amplo, inclui a partilha, sendo que o comentário qualificado carateriza mesmo a partilha imediata como “procedimento abreviado de liquidação” (CAROLINA CUNHA), sendo essa a afinidade funcional justifica tais preceitos, corroborada pelo princípio geral da “satisfação ou acautelamento dos direitos dos credores da sociedade” consagrado, expressamente, no n.º 1 do artigo 156.º, aplicável na partilha imediata, ex vi do n.º 1 do artigo 147.º, ambos do CSC.
23.ª - Finalmente, a ora recorrida A., SGPS, SA, era a sócia única da B., S. A.”, ou seja, concorria no caso uma relação de grupo societário, na modalidade de domínio total desta última por aquela primeira.
24.ª - Ora, à data da constituição da sociedade, o Código das Sociedades Comerciais já consagrava, para os casos significativos do sócio único (art. 84.º, n.º 1) e quanto aos grupos de sociedades, em relação de domínio (art. 501.º, n. º1 491.º, ex vi do art. 491.º) a responsabilidade pessoal e ilimitada, pelas dívidas sociais.
25.ª - Face ao exposto, concluímos, que a norma jurídica constante, em particular, do n.º 2 do artigo 147.º do CSC, conjugado com o seu n.º 1, e ainda o n.º 1 do artigo 156.º, sempre desse diploma legal, não é de incidência subjetiva do imposto, ou de responsabilidade tributária, nem consagra, em essência, um regime inovatório da responsabilidade do sócio, ilimitada e solidária, por dívidas fiscais da sociedade dissolvida, pelo que esta norma jurídica não exigia prévia habilitação através de lei formal (lei parlamentar ou decreto-lei autorizado), não concorrendo assim inconstitucionalidade orgânica, por violação do princípio da legalidade fiscal, enquanto reserva de lei formal, consagrado nos artigos 103.º, n. º 2, e 165.º, n. º 1, alínea i), ambos da Constituição.
3. A aqui recorrida A., SGPS, SA, contra-alegou, onde formulou as seguintes conclusões:
A. Toda a construção do Recorrente assenta num sofisma, segundo o qual a responsabilidade tributária ilimitada e solidária dos sócios por dívidas tributárias da sociedade participada, que resulta da norma prevista no n.º 2 do artigo 147.º do CSC, não decorre "da lei, mas [sim] da vontade societária".
B. Este sofisma conduz o Recorrente a um segundo sofisma, segundo o qual esta responsabilidade tributária ilimitada e solidária, prevista no referido n.º 2 do artigo 147.º, "não pode ser tomado como um caso de «responsabilidade tributária»".
C. Trata-se, como facilmente se percebe, de uma conclusão inaceitável que, a tolerar-se, conduziria a um verdadeiro "descarrilhamento" de todo o "edifício" sobre o qual se alicerça o princípio da legalidade fiscal.
D. Com efeito, é de mediana clareza que a norma sub judice estabelece a responsabilidade ilimitada e solidária por dívidas tributárias de sujeitos passivos em relação aos quais não ocorreu o facto tributário.
E. Isto porque está evidentemente em causa uma "obrigação de responsabilidade tributária solidária ou subsidiária dos sujeitos em relação aos quais se não verificam os factos tributários que constituem a causa jurígena da obrigação de imposto, como são os sujeitos passivos originários da obrigação de imposto, mas que ficam obrigados ao seu pagamento por virtude do preenchimento de um pressuposto que os responsabiliza, precisamente, por esse pagamento" (cfr. acórdão n.º 311/2007, de 16.05.2007, replicado nos doutos acórdãos deste Venerando TC n.º 331/2007, de 29.05.2007, n.º 149/2013, de 19.03.2013, bem como das decisões sumárias n.ºs 528/2007 e 352/2010).
F. Esta mui douta jurisprudência deste Venerando TC versou precisamente sobre uma norma que estabelecia a responsabilidade ilimitada e solidária de sujeitos em relação aos quais não se verificam os factos tributários subjacentes... tendo a mesma sido considerada organicamente inconstitucional.
G. No caso da norma prevista no n.º 2 do artigo 147.º do CSC, os "pressupostos que responsabilizam" (nas palavras do TC) os sócios pelo pagamento do imposto decorrente de factos tributários relativos às entidades participadas são (i) Por um lado, a realização de uma dissolução com partilha imediata do sujeito passivo "em relação ao qual se verificam os factos tributários que constituem a causa jurígena da obrigação de imposto"; e (ii) por outro lado, a qualidade de sócios desse sujeito passivo.
H. O Recorrente contrapõe que esta responsabilidade apenas ocorre caso os sócios optem por realizar uma dissolução com partilha imediata, o que, no seu entendimento, significaria que a responsabilidade ilimitada e solidária prevista neste n.º 2 do artigo 147.º do CSC "não decorre imediatamente da lei" mas sim "da autonomia da vontade das partes".
I. Com o devido respeito, o Recorrente incorre aqui no falacioso silogismo de sorites, cujo exemplo escola foi dado pelo líder grego Temístocles, na seguinte forma: 1. A dissolução com partilha imediata decorre da vontade dos sócios; 2. A responsabilidade tributária ilimitada e solidária decorre da dissolução com partilha imediata; 3. Logo, a responsabilidade tributária ilimitada e solidária decorre da vontade dos sócios (e não da lei).
J. A falácia resulta, como bem se vê, do uso impreciso da palavra "decorre", uma vez que, como é evidente, a responsabilidade tributária ilimitada e solidária não está na disponibilidade do sujeito passivo, antes decorre exclusivamente da lei.
K. Com efeito, não é porque um casal opta por invocar a união de facto para efeitos fiscais, ao abrigo do n.º 1 do artigo 14.º do Código do IRS, que é uma norma dispositiva (permissiva, como sublinha o Exmo. PGA), que a decorrente responsabilidade solidária pela dívida de imposto para os unidos de facto resulta da vontade destes... e não da lei.
L. Por outro lado, a categoria a que alude o Recorrente - a de um regime de responsabilidade tributária que (mais uma vez supostamente) decorreria da vontade das partes - afigura-se totalmente ausente de qualquer referência doutrinal ou jurisprudencial de suporte, não se vendo de que forma uma tal vontade revelada poderia influir, como um fator ou elemento normativo determinante!
M. Aceitando-se a tese do Recorrente, todo e qualquer regime de responsabilidade tributária seria excluído do âmbito do princípio da legalidade fiscal, pois a aplicação de um determinado regime de responsabilidade tributária é sempre intermediada por um comportamento do particular que suscita o seu enquadramento num dado regime de responsabilidade tributária.
N. O erro interpretativo do Recorrente leva-o a outro erro pois, fazendo fé na tese da "vontade societária", o Recorrente afirma que não estamos perante "um caso de responsabilidade tributária," mas sim perante um caso de "atribuição de um ónus do pagamento de dívidas tributárias".
O. No entanto, não há, nem tão pouco alguma vez existiu, qualquer distinção na lei fiscal nacional a fazer entre os "responsáveis tributários" e os "onerados tributários", pois, quer se chame "ónus", "obrigação" ou "dever" de pagar o imposto decorrente de factos tributários relativos a outro sujeito passivo, o "onerado", "obrigado" ou "devedor" solidário será sempre - sempre - o responsável pelo pagamento do imposto.
P. Isto porque, nas doutas palavras deste Venerando TC, "o responsável tributário cumpre a prestação tributária nos termos em que a mesma se constituiu em relação ao devedor originário", conforme dispõe o n.º 3 do artigo 18.º da LGT, que qualifica o responsável solidário como "sujeito passivo do imposto".
Q. E conforme resulta da jurisprudência unânime deste Venerando TC, as normas que definem e estipulam os termos de aplicação de um determinado regime de responsabilidade tributária encontram-se necessariamente abrangidas pelo princípio da legalidade tributária sob uma dupla vertente, a saber: (i) no âmbito da incidência tributária, na medida em que a LGT qualifica o responsável como um "sujeito passivo", adstrito ao cumprimento das prestações tributárias nos mesmos moldes do devedor originário (cfr. n.º 3 do artigo 18.º da LGT); e (ii) no contexto das garantias dos contribuintes, uma vez que é o seu património que responderá pela dívida de imposto, cabendo-lhe direitos de defesa e reação perante atuações do ente público, a exemplo do que acontece também com o devedor originário.
R. São os pressupostos que responsabilizam os sócios pelo pagamento dos impostos, por força da norma constante do n.º 2 do artigo 147.º do CSC, que estão sujeitos a princípio da legalidade, naquelas duas vertentes.
S. E conforme muito bem salienta o Venerando STA no acórdão recorrido, a norma constante do artigo 147.º, n.º 2, do CSC constitui uma inovação de previsão normativa, porquanto foi a primeira vez que se associou uma responsabilidade tributária solidária e ilimitada de dívidas fiscais imputável a sócios de sociedades dissolvidas, no caso de haver lugar à dissolução com partilha imediata dos haveres sociais.
T. Não tendo esta norma sido aprovada por lei da AR, a mesma é necessariamente inconstitucional, padecendo de um vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação do princípio de reserva de lei estabelecido no n.º 2 do artigo 103° e, sobretudo, na alínea i) do nº 1 do artigo 165º, ambos da CRP.
Cumpre apreciar e decidir
II – Fundamentação
4. O objeto do presente recurso é integrado pela norma constante do n.º 2 do artigo 147.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, cuja aplicação foi recusada na decisão recorrida com fundamento em inconstitucionalidade orgânica.
Inserido no Capítulo XIII - «Liquidação da sociedade» - o artigo dispõe o seguinte:
Artigo 147.º
(Partilha imediata)
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 148.º, se, à data da dissolução, a sociedade não tiver dívidas, podem os sócios proceder imediatamente à partilha dos haveres sociais, pela forma prescrita no artigo 156.º
2 - As dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis à data da dissolução não obstam à partilha nos termos do número anterior, mas por essas dívidas ficam ilimitada e solidariamente responsáveis todos os sócios, embora reservem, por qualquer forma, as importâncias que estimarem para o seu pagamento.
Para fundamentar a recusa de aplicação do n.º 2 deste preceito, o tribunal considerou que a norma nele contida depende de lei formal da Assembleia da República ou de decreto-lei precedido de autorização legislativa que defina a extensão e o sentido da responsabilidade dos sócios em caso de dissolução da sociedade com partilha imediata dos bens sociais, nos termos impostos na alínea i) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 165.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 103.º da CRP – que correspondem ao n.º 1 da alínea i) e n.º 2 do artigo 168.º e n.º 2 do artigo 106.º da CRP, na versão vigente à data da entrada em vigor do CSC.
A decisão foi tomada num processo de execução fiscal por dívida do imposto municipal de SISA, que foi direcionada contra a sócia – ora recorrida – da sociedade devedora originária, na sequência da dissolução desta com partilha imediata dos bens sociais.
A sentença de primeira instância interpretou o n.º 2 do artigo 147.º, em conjugação com os artigos 197.º, n.º 3 e 163.º do CSC, no sentido de que a responsabilidade dos sócios não é limitada pelo valor da respetiva quota, mas pelo valor global dos bens partilhados, e por isso, não cria novas responsabilidades tributárias à revelia da Assembleia da República, podendo apenas ser vista, quando muito, como mero desincentivo à partilha dos bens da sociedade dissolvida, enquanto não estiverem liquidadas todas as dívidas fiscais da mesma.
Entendimento diferente teve o acórdão recorrido, ao considerar que aquela interpretação não tem suporte na letra do artigo 147.º, n.º 2, que prevê a responsabilidade solidária e ilimitada sem qualquer distinção quanto a sócios de responsabilidade ilimitada ou limitada, devendo ser interpretada no sentido de que os sócios respondem com todo o seu património; trata-se de disposição de caráter “inovatório” relativamente às leis fiscais anteriores à aprovação do CSC – não se enquadrando sequer nas leis tributárias posteriores –, que, ao definir os pressupostos legais da responsabilidade tributária, seja solidária ou subsidiária, integra matéria de “incidência subjetiva ou de garantia dos contribuintes”; e por isso, depende de lei formal da Assembleia da República ou de decreto-lei do Governo precedido de autorização legislativa.
Por sua vez, o recorrente argumenta que os preceitos conjugados dos n.ºs 1 e 2 do artigo 147.º do CSC consagram um direito subjetivo societário à partilha imediata, subsequente à dissolução da sociedade, cujo exercício determina ipso jure a constituição de uma situação jurídica complexa, integrada, nomeadamente, pela responsabilidade, ilimitada e solidária, de todos os sócios pelas dívidas de natureza fiscal, ainda não exigíveis à data da dissolução; a responsabilidade não decorre imediatamente da lei, antes é constituída em virtude da autonomia de vontade dos sócios, através do exercício do direito subjetivo societário à partilha imediata, como efeito necessário e correlativo daquela opção societária; por isso, o n.º 2 do artigo 147.º «não pode ser tomado como um caso de “responsabilidade tributária”, antes estamos perante uma transmissão do dever de cumprir uma obrigação fiscal e não perante a constituição ex lege de uma obrigação fiscal na esfera do transmissário, sendo que os transmissário(s) recebem a parte dos bens resultante da partilha e assume(m), por força da sua opção (a partilha imediata tem de ser requerida pelos beneficiários), o ónus do pagamento das dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis à data da dissolução»; assim, a norma constante daquele preceito do CSC não é norma de incidência subjetiva do imposto, ao menos para efeitos do princípio da legalidade, na vertente de reserva de lei formal.
A questão jurídico-constitucional circunscreve-se, assim, aos efeitos que o processo de extinção de uma sociedade comercial tem no relacionamento com a administração tributária, no que respeita aos factos tributários que em vida da sociedade geram obrigação tributária que só vem a ser liquidada depois da extinção.
O problema não se coloca nos mesmos termos em todos os tipos de sociedades comerciais que a lei reconhece, nem quanto às diversas formas da sua extinção. No caso de liquidação de sociedades de responsabilidade ilimitada ou de outras entidades sujeitas ao mesmo regime de responsabilidade – sociedades em nome coletivo e sociedades em comandita –, que se caracterizam pela responsabilidade pessoal, solidária e ilimitada, dos sócios (ou de alguns deles) perante os credores sociais, o n.º 2 do artigo 21.º da Lei Geral Tributária (LGT) – Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro – prevê que «os sócios ou membros são solidariamente responsáveis, com aquelas e entre si, pelos impostos em dívida»; e os casos de extinção de sociedades por fusão, cisão ou modificação extintiva, que importam a transmissão global do ativo e do passivo (artigos 97.º, n.º 4, 118.º, 122.º e 130.º, n.º 4 do CSC), não obedecem às regras da liquidação previstas nos artigos 141.º e seguintes do CSC.
Não obstante a devedora direta, originária e principal, do imposto ser uma sociedade unipessoal (desconhecendo-se se a unipessoalidade é originária ou superveniente), integrada num grupo de sociedades, na modalidade de domínio total do sócio único – a recorrida –, contra quem foi interposta a execução fiscal e sobre a qual se pode questionar o benefício da responsabilidade limitada (artigos 84.º, 501.º, n.º 1, e 491.º do CSC), o juízo de inconstitucionalidade formulado no acórdão recorrido incide sobre a aplicabilidade do n.º 2 do artigo 147.º do CSC a sociedades comerciais cujo tipo pressupõe a limitação da responsabilidade dos sócios, de que são paradigma as sociedades por quotas e as sociedades anónimas. Sendo certo que, nas sociedades unipessoais, o sócio único também pode proceder à partilha imediata, nos termos previstos naquele preceito.
5. O artigo 147.º, de que se extrai a norma impugnada, faz parte de conjunto normativo regulador da última fase da vida de uma sociedade comercial em processo de extinção. Dispõe o n.º 1 do artigo 146.º do CSC que, «salvo quando a lei disponha diferentemente, a sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação». A extinção da personalidade jurídica de pessoa coletiva não ocorre instantaneamente, como acontece com a morte de pessoa singular (artigo 68.º do Código Civil), mas de forma dinâmica, passando, em regra, por uma fase de dissolução e por outra de liquidação. A dissolução e a liquidação constituem fases de um procedimento complexo destinado à cessão da existência de uma sociedade comercial. Como refere Raul Ventura, «a dissolução da sociedade é a modificação da relação jurídica constituída pelo contrato de sociedade, consistente em ela entrar na fase da liquidação» (Dissolução e Liquidação de Sociedades, Almedina, 1987, p. 16). A dissolução desencadeia um processo progressivo de extinção da sociedade que culmina com o encerramento da liquidação, em que são aprovadas as contas finais, e cujo objetivo é a partilha do ativo patrimonial após a liquidação do passivo.
Como primeiro passo do procedimento de extinção da sociedade, a dissolução é um efeito que decorre dos factos jurídicos tipificados nos artigos 141.º, n.º 1, 142.º e 143.º do CSC. Tais «causas de dissolução» funcionam de forma diferente: (i) nuns casos, o facto dissolutivo tem efeitos imediatos ou automáticos, com posterior reconhecimento por deliberação social ou justificação notarial (a «dissolução imediata», prevista no artigo 141.º); (ii) noutros, é requerida na conservatória do registo comercial pelos sócios ou credores («dissolução administrativa ou por deliberação dos sócios», enunciados no artigo 142.º); (iii) e noutros ainda, instaurada oficiosamente pelos serviços de registo comercial, mediante comunicação da administração tributária («dissolução oficiosa», referida no artigo 143.º).
Para além das cláusulas contratuais de dissolução – factos dissolutivos previstos no contrato de sociedade – o CSC contém ainda, em disposições dispersas, outras causas de recurso ao procedimento administrativo de dissolução a requerimento dos interessados (artigos 226.º, n.º 2, 240.º, n.º 6 e 345.º, n.º 10). No que se refere ao procedimento administrativo de dissolução, o artigo 144.º do CSC remete o seu regime para diploma próprio, que corresponde atualmente ao “Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e Liquidação de Entidades Comerciais” (RJPADL), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, que veio simplificar todo o processo de dissolução e liquidação das sociedades comerciais.
A dissolução opera a modificação da situação ou estado da sociedade, mas não põe fim à sua personalidade jurídica. O n.º 2 do artigo 146.º da CSC é inequívoco nesse sentido: «A sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, salvo quando outra coisa resulte das disposições subsequentes ou da modalidade de liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas». Apesar de entrar «imediatamente» em liquidação, a sociedade dissolvida conserva a personalidade jurídica até ao registo do encerramento da liquidação (n.º 2 do artigo 160.º do CSC). Para além de outros efeitos, como a extinção da administração ou gerência da sociedade – cujos administradores passam a ser liquidatários, se o contrário não resultar do contrato de sociedade ou de deliberação social (n.º 1 do artigo 151.º do CSC), o aditamento à firma da menção «sociedade em liquidação», e a inscrição da dissolução no registo comercial (artigo 146.º, n.º 3, do CSC), o efeito central da dissolução é a liquidação da sociedade, num duplo sentido: torna atual o direito dos sócios ao resultado da liquidação; e os atos que a sociedade pratica passam a ser no sentido da sua extinção e não no sentido da prossecução do objeto social.
A fase subsequente do procedimento extintivo da sociedade - a liquidação - constitui um conjunto de atos praticados pelo liquidatário que visam a finalização dos negócios pendentes, o pagamento de dívidas da sociedade, a cobrança de devedores e a partilha do resultado da liquidação aos sócios. Como refere Menezes Cordeiro, «em termos práticos, a liquidação implica o levantamento de todas as situações jurídicas relativas à sociedade em liquidação, a resolução de todos os problemas pendentes que a possam envolver, a realização pecuniária (se for o caso) dos seus bens, o pagamento de todas as dívidas e o apuramento do saldo final, a distribuir pelos sócios» (Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2011, p. 1150).
Com este objetivo, a liquidação é organizada em favor de interesses eventualmente conflituantes: o interesse dos credores sociais, que têm o direito de verem satisfeito os seus créditos através do património social; e o interesse dos sócios, que pretendem recuperar o valor das suas entradas e receber o saldo final, se o houver. Como refere Raul Ventura, «a liquidação tem por finalidade última realizar um interesse dos sócios, mas que ela deve ser conseguida sem postergação dos interesses dos credores sociais» (ob. cit. p. 218). E na verdade, o n. º 1 do artigo 156.º do CSC acautela os interesses dos credores sociais quando prescreve que os sócios podem partilhar entre eles o «ativo restante, depois de satisfeitos ou acautelados, nos termos do artigo 154, º, os direitos dos credores da sociedade». Se bem que o pagamento aos credores antes da partilha dos bens também possa constituir interesse dos próprios sócios – evitando conflitos judiciais com credores ou com outros sócios –, é sobretudo no interesse dos credores que a divisão dos bens entre os sócios se dá após o pagamento de todas as dívidas da sociedade.
Nesse sentido, os liquidatários, enquanto representantes legais da sociedade, equiparáveis aos membros da administração (artigo 151.º), sob pena de responsabilidade pessoal para com os credores sociais (artigo 158.º), estão obrigados a «pagar todas as dívidas da sociedade para as quais seja suficiente a ativo social» (n.º 1 do artigo 154.º). Assim, para se atingir o saldo líquido partilhável, impõe-se conhecer e extinguir todo o passivo, seja ele constituído por dívidas existentes à data da dissolução ou dívidas constituídas durante a fase de liquidação. Com exceção do reembolso de suprimentos (alínea a) do n.º 3 do artigo 245.º), o CSC não prevê uma ordem de satisfação das dívidas sociais, nem qualquer procedimento que possa conduzir ao rateio de pagamentos aos credores.
O mesmo não acontece com as dívidas fiscais que se tenham tornado exigíveis antes ou no decurso do processo de liquidação. É que o artigo 26.º da LGT estabelece uma prioridade sobre os créditos sociais: «na liquidação de qualquer sociedade, devem os liquidatários começar por satisfazer as dívidas fiscais, sob pena de ficarem pessoal e solidariamente responsáveis pelas importâncias respetivas». Em face desta norma – que já vem do Decreto n.º 17730, de 7 de dezembro de 1929 –, se os liquidatários pagarem, antes dos créditos fiscais, outras dívidas da sociedade que não gozem de preferência sobre eles, serão imediatamente responsáveis, pessoal e solidariamente, pelo pagamento da totalidade da dívida fiscal.
Nem sempre a dissolução tem por efeito a liquidação: a inexistência de ativo e de passivo possibilita o recurso ao procedimento especial de extinção imediata (artigo 27.º do RJPADL); nos casos de “cisão-dissolução”,” “cisão-fusão” e “transformação-dissolução”, apenas há transmissão ou conservação do património da pessoa dissolvida; e nos casos de “liquidação por transmissão global” (artigo 148.º do CSC) ou de “partilha imediata” (artigo 147.º do CSC), só há liquidação consoante se entenda que a partilha dos haveres sociais está ou não abrangida na fase de liquidação. Entendida em termos restritos – que não comporta operações da partilha –, existe liquidação na hipótese do artigo 148. º, embora não idêntica à liquidação normal, mas não existe na hipótese de partilha imediata prevista no artigo 147.º; entendida em sentido amplo – que abrange a partilha – a hipótese de partilha imediata ainda seria de liquidação. Todavia, é no sentido restrito que deve ser entendida a dissolução sem liquidação prevista no artigo 147.º do CSC.
Por força da regra geral estabelecida no artigo 146.º do CSC, a sociedade dissolvida só pode deixar de entrar imediatamente em liquidação stricto sensu quando a lei o determine («salvo quando a lei disponha diferentemente»). É o que sucede nos casos previstos nos artigos 147.º e 148.º do CSC, em que a própria lei admite a extinção da sociedade com dispensa do procedimento destinado à satisfação das dívidas sociais. Não há verdadeira liquidação em virtude das circunstâncias especiais em que a sociedade se encontra: havendo ativo, mas não havendo passivo, os sócios optam pela partilha imediata; ou havendo ou não ativo e/ou passivo, os sócios optam, mediante acordo de todos os credores, pela transmissão global do património da sociedade a algum ou alguns dos sócios.
6. Como se vê, o artigo 147.º permite que, nas condições nele previstas, os sócios procedam à partilha imediatamente a seguir à dissolução.
Uma das condições exigidas para a licitude da partilha imediata, enunciada no n.º 1, consiste em a sociedade não ter dívidas à data da dissolução. Havendo dívidas, qualquer que seja o seu número ou montante, a partilha imediata será nula por violação de norma imperativa (artigo 56.º, n.º 1, alínea d), do CSC). Sendo a partilha imediata à dissolução, por os sócios estarem de acordo quanto à inexistência de dívidas e quanto à forma de partilhar o ativo, não há necessidade de substituir os administradores ou de nomear liquidatários (n.º 1 do artigo 151.º). Os atos cuja realização a lei comete aos liquidatários, como sejam o apuramento da situação patrimonial da sociedade, a apresentação do projeto de partilha, a transmissão e entrega dos bens partilhados e o registo de encerramento da liquidação (artigos 149.º, 157.º, 159.º e 160.º do CSC), podem ser executados pelos próprios sócios ou pelos administradores da sociedade.
Outra condição de partilha imediata, enunciada no n.º 2, consiste na responsabilidade dos sócios pelas dívidas fiscais ainda não exigíveis à data da dissolução. A existência de obrigações fiscais que à data da dissolução não se encontram liquidadas não é impeditiva da partilha imediata, não precisando os sócios de aguardar o ato de liquidação para que as mesmas se tornem certas e exigíveis. Mas o exercício dessa faculdade tem como condição a responsabilidade ilimitada e solidária dos sócios pelas dívidas fiscais que vierem a ser liquidadas após extinção da sociedade.
Como refere Raul Ventura, «(P)or força dos mecanismos tributários é quase certo que, à data da dissolução, a sociedade terá responsabilidades fiscais, que só virão a concretizar-se meses ou anos mais tarde. Assim, também quase sempre a sociedade teria dívidas e os sócios não poderiam proceder à partilha imediata. O art. 147.º, n.º 2, encara essa situação, estabelecendo um compromisso entre os interesses do Fisco e dos sócios. A existência, à data da dissolução, de dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis não obsta à partilha imediata, ao contrário do que sucede com a existência naquela data ou de dívidas de natureza fiscal já exigíveis ou de dívidas de natureza diferente da fiscal exigíveis ou não. Em contrapartida, a responsabilidade pelas dívidas fiscais ainda não exigíveis alarga-se a todos os sócios, ilimitada e solidariamente (portanto, muito mais gravemente do que o estabelecido no art.º 163.º para o passivo superveniente). Por cautela pessoal contra essa responsabilidade pessoal, pode suceder que os sócios retirem do ativo social alguma importância e a reservem para o pagamento de tais dívidas, Isso, porém, é inoperante para com o Fisco que, desde a partilha, beneficia da citada responsabilidade dos sócios» (ob. cit. p. 271).
A ratio da norma do n.º 2 do artigo 147.º parece evidente: prevenir que os sócios utilizem a partilha imediata como expediente para defraudar o Fisco. Extinta a sociedade, com a inscrição no registo do encerramento da liquidação lato sensu, deixa de existir a garantia geral dos credores da sociedade sobre o património desta (artigo 601.º do Código Civil), com preferência relativamente aos credores pessoais dos sócios, uma vez que, por efeito da partilha imediata, os bens da sociedade passam para o património dos sócios. Não fora o “compromisso” entre o interesse do Fisco e o dos sócios, refletido naquele preceito, impondo a estes a responsabilidade pelas dívidas fiscais ainda não liquidadas à data da dissolução, o credor fiscal ficaria sujeito a prejuízos graves na satisfação dessas dívidas. Por isso, a lei dispensa o procedimento normal de liquidação, durante o qual o Fisco poderia tornar certa e exigível a dívida fiscal e ver satisfeito o respetivo crédito através do ativo social, sob condição do património individual dos sócios passar a garantir tal dívida.
É verdade que para as sociedades de responsabilidade limitada, a responsabilidade pelas dívidas fiscais prevista no n.º 2 do artigo 147.º é muito mais gravosa do que a estabelecida no n.º 1 do artigo 163.º do CSC para o passivo superveniente: enquanto aquela é «ilimitada e solidária», esta é limitada «ao montante que receberam na partilha» e solidária até esse limite. A diferença encontra justificação no facto da responsabilidade pelo passivo superveniente pressupor a extinção da sociedade através de processo de liquidação sticto sensu, encerrado com a partilha dos bens sociais, em que subsiste passivo não satisfeito ou acautelado. Com efeito, o passivo superveniente é aquele que surge após extinção da sociedade, porque não foi satisfeito durante o processo de liquidação. Existindo um procedimento eminentemente destinado à satisfação das dívidas sociais nos termos do artigo 154.º do CSC – a fase liquidatária –, têm os credores sociais, incluindo a administração tributária, oportunidade de apurar eventuais créditos contra a sociedade, para que possam ser incluídos na lista do passivo societário e pagos com o ativo eventualmente existente. É nesse procedimento que os credores da sociedade dissolvida devem fazer valer os seus direitos, designadamente, no que se refere às dívidas fiscais, deve a administração tributária torná-las certas, líquidas e exigíveis e notificar os representantes da sociedade antes do encerramento da liquidação. Neste caso, se as dívidas não forem satisfeitas ou acauteladas por causa não imputável ao credor, a responsabilidade recai sobre os ex-sócios, até ao montante por eles recebido na partilha, uma vez que receberam mais do que era seu direito; e também sobre os liquidatários, por terem partilhado o ativo sem satisfação dos direitos dos credores (artigo 158.º do CSC).
Mas quando os sócios optam pela partilha imediata, hipótese em que não há liquidação nem responsabilidade adicional dos liquidatários, compreende-se que a administração fiscal beneficie da responsabilidade ilimitada e solidária dos sócios como contrapartida da permissão do exercício de tal faculdade. Não tendo sido dada oportunidade à Fazenda para apurar a situação tributária da sociedade e corrigir ou apurar o imposto antes da respetiva extinção, percebe-se que a solução consagrada no CSC seja a responsabilidade ilimitada e solidária de todos os sócios por dívidas desta natureza.
A mesma modalidade de responsabilidade está prevista no caso de liquidação por transmissão global, por remissão do n.º 2 do artigo 148.º. Através do contrato de sociedade ou por deliberação unânime dos sócios, todo o património da sociedade pode ser transmitido a algum ou alguns dos sócios, isto é, por «transmissão global», um ou mais sócios podem ficar com todo o ativo e passivo da sociedade. Tratando-se de transmissão do património global de pessoa coletiva para uma ou mais pessoas singulares, os créditos não se extinguem, havendo apenas alteração da pessoa detentora daquele património. A transmissão do passivo depende, porém, do consentimento prévio, expresso e escrito, de todos os credores (n.º 1 do artigo 148.º), sendo a assunção das dívidas pelos sócios transmissários liberatória relativamente à sociedade, primitiva devedora. Relativamente às dívidas fiscais ainda não exigíveis à data da dissolução, respondem, ilimitada e solidariamente, todos os sócios, quer os transmissários quer os que partilharam a contrapartida da transmissão, já que o credor tributário não participa no acordo de credores que torna lícita a transmissão global. Como refere Raul Ventura «a remissão para o n.º 2 do artigo 147.º do CSC «significa que no caso de transmissão global, não será necessário o acordo prévio do credor quanto a essas dívidas» (ob. cit. p. 279). Pelas mesmas razões acima referidas quanto à partilha imediata, se não há processo normal de liquidação, nem intervenção do Fisco no acordo de transmissão de dívidas, compreende-se que seja o património particular dos sócios a garantir as dívidas fiscais liquidadas após a extinção da sociedade.
Para responder à questão jurídico-constitucional colocada pelo recorrente importa, pois, determinar a natureza da responsabilidade prevista nestes preceitos. Os sócios respondem, ilimitada e solidariamente, por dívidas fiscais respeitantes a factos tributários realizados pela sociedade, que geram obrigação de imposto que só vem a ser liquidado depois da extinção da sociedade. Estará esse tipo de responsabilidade coberto pela reserva de lei parlamentar resultante da conjugação da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º com o n.º 2 do artigo 103.º da CRP?
7. Cumpre, desde já, salientar que o direito tributário não regula suficientemente a possibilidade de liquidação do imposto depois de extinta a personalidade jurídica das pessoas coletivas.
Não há dúvida que a morte de pessoa singular ou a extinção de pessoa coletiva entre o momento em que se realiza o facto tributável e aquele em que se pratica o ato tributário – a liquidação – tem repercussões na natureza, número e sujeitos dos direitos e obrigações que formam a relação jurídica tributária. No momento em que se realiza o facto descrito na previsão normativa, o sujeito passivo da obrigação que se gera é o de cujus ou a sociedade, sendo possível identificar eventuais responsáveis solidários e ainda aqueles sobre quem poderá recair, observados os respetivos pressupostos, a responsabilidade subsidiária; mas no momento em que se liquida o imposto, condição de exigibilidade da obrigação fiscal, aquelas pessoas já não podem ser sujeitos das operações de lançamento, liquidação e cobrança, sendo necessário, nesse momento, determinar ou identificar o sujeitos passivos (lato sensu) da relação jurídico fiscal – o chamado “lançamento subjetivo”.
Ora, a Lei Geral Tributária, que nos n.ºs 1 e 3 do artigo 29.º estabelece o princípio da intransmissibilidade dos créditos e dívidas fiscais, em conformidade com o seu caráter indisponível e irrenunciável, não deixa de admitir situações excecionais de transmissão da obrigação tributária pelo lado passivo: (i) a sucessão mortis causa (n.º 2 do artigo 29.º); (ii) e a responsabilidade solidária dos sócios de sociedades de responsabilidade ilimitada ou outras entidades sujeitas ao mesmo regime, em caso de liquidação societária (n.º 2 do artigo 21.º). O fundamento destas normas radica numa ideia de sucessão na titularidade da relação jurídica tributária, porque é por virtude da cessação da personalidade jurídica que se transfere para os herdeiros ou antigos sócios a propriedade dos bens que formam o património do de cujus ou da sociedade.
Em caso de sucessão universal por morte, as obrigações fiscais do de cujus – originárias ou subsidiárias – transmitem-se aos respetivos sucessores «mesmo que não tenham sido ainda liquidadas». Esta transmissão ou sucessão integra-se no âmbito mais vasto do fenómeno sucessório, sendo-lhe aplicáveis as regras dos artigos 2068.º e 2071.º do Código Civil: por morte do contribuinte transmitem-se para os seus herdeiros as dívidas tributárias, juntamente com a generalidade das relações jurídicas patrimoniais do de cujus. Quer isto dizer que a responsabilidade do herdeiro pelas dívidas fiscais do autor da herança nem sequer precisava de estar afirmada na legislação fiscal, pois sempre resultaria do regime geral do direito sucessório. Ainda que aquela norma não o diga expressamente, a responsabilidade dos herdeiros (ou legatários) é limitada às forças da herança (ou, se for o caso, do legado), conclusão que se extrai não só daquele regime geral, mas também do artigo 155.º do Código do Procedimento e Processo Tributário (CPPT) sobre a efetivação da responsabilidade dos sucessores na execução fiscal.
Em todo o caso, a norma do n.º 2 do artigo 29.º da LGT tem a virtualidade de reafirmar a natureza declarativa do ato administrativo de liquidação. Com efeito, ao abranger os impostos ainda não liquidados, a norma admite a sucessão na obrigação fiscal, independentemente da prática do ato tributário, o que significa atribuir à liquidação valor declarativo da obrigação fiscal. Assim, o que se transmite aos herdeiros são as obrigações fiscais que se constituíram em períodos anteriores à morte do de cujus com a realização do facto tributável descrito na norma de incidência. Ou seja, a obrigação fiscal que se transmite nasce no momento em que ocorrem os pressupostos de facto da tributação e não no momento em que a administração fiscal procede à liquidação. A existir transmissão da sujeição do sucessor ao direito potestativo da Administração a liquidar o imposto, ela será sempre consequência da modificação que, por efeito da sucessão na obrigação fiscal, também ocorreu na relação procedimental tende à liquidação e cobrança do imposto.
Já a responsabilidade solidária dos sócios de sociedades de responsabilidade ilimitada prevista no n.º 2 do artigo 21.º da LGT, tem justificação nas características deste tipo de sociedades. Nestas sociedades – sociedades em nome coletivo ou em comandita – a participação social inclui tipicamente a responsabilidade subsidiária, solidária e ilimitada dos sócios perante os credores sociais. Significa isto que o credor do imposto pode exigir o cumprimento integral da dívida tributária tanto à sociedade como aos sócios. A responsabilidade destes em relação à sociedade é subsidiária, porque são os próprios bens da sociedade que em primeira linha respondem pelas dívidas sociais, e só no caso destes não chegarem é que os credores são admitidos a fazer-se pagar pelos bens dos sócios (artigos 175.º, 465.º e 478.º do CSC). Porém, com a liquidação, necessariamente se remove a subsidiariedade, uma vez que a sociedade deixa de ter bens para pagar as dívidas sociais, embora os credores sociais continuem a poder satisfazer o seu crédito pelo património pessoal dos sócios. E assim é porque no pacto social os sócios assumem a responsabilidade de prestar à sociedade as somas necessárias para total ressarcimento dos credores sociais uma vez esgotado o património social. Para estes sócios, a responsabilidade não resulta do n.º 1 do artigo 163.º do CSC, mas sim do próprio contrato de sociedade, mantendo-se depois de extinta a sociedade. Daí que neste tipo de sociedades, em que os sócios são devedores originários, a norma do n.º 2 do artigo 21.º da LGT também se limite a reiterar o que já consta do CSC.
No que se refere às sociedades de responsabilidade limitada – sociedades por quotas e sociedades anónimas –, que se caracterizam pela isenção de responsabilidade pessoal dos sócios, que nunca respondem, como tais, perante os credores da sociedade, os quais só se podem pagar pelos bens sociais (artigo 197.º, n.º 3, do CSC), o Direito Tributário, designadamente a LGT, não contém disposição que expressamente preveja a responsabilidade dos sócios pelas dívidas da sociedade em caso de extinção. O Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC) refere-se expressamente à liquidação das sociedades, para regular a determinação do lucro tributável das sociedades dissolvidas (artigo 79.º), o resultado da liquidação (artigo 80.º) e o englobamento do resultado da partilha (artigo 81.º), mas sem qualquer referência à responsabilidade dos sócios pelas dívidas fiscais liquidadas após a extinção da sociedade que gerou a obrigação de imposto.
Porém, o facto de a lei fiscal não regular a liquidação de impostos sobre factos tributários ocorridos na esfera da sociedade de responsabilidade limitada que se extinguiu durante o período de caducidade do direito à liquidação, não significa que a extinção da sociedade e o termo da sua personalidade jurídica tenha como consequência necessária a extinção das obrigações tributárias não liquidadas. Tal como acontece com a morte de pessoas físicas, em que as obrigações existentes à data da morte se transmitem à herança jacente, caso não tenha havido aceitação, ou aos herdeiros, o que implica a subsistência do direito à liquidação dos impostos por factos tributários verificados ante mortem na esfera do de cujus (n.º 2 do artigo 29.º), o mesmo fenómeno ocorre com a extinção da sociedade, subsistindo as relações jurídicas de que ainda era titular.
Não é necessário sequer preencher a lacuna através de integração analógica com recurso à norma do n.º 2 do artigo 21.º da LGT, porque a transmissão da titularidade de direitos e obrigações para os sócios explica-se pelo fenómeno sucessório. Na verdade, o que melhor justifica que as relações jurídicas de que a sociedade é titular subsistam depois da sua extinção é a transmissão para a esfera jurídica dos sócios através de sucessão. Escreve Ferrer Correia que «(à) dissolução da sociedade, abre-se necessariamente uma relação de sucessão: os sócios vêm suceder à pessoa jurídica social na titularidade dos seus bens e direitos. O alcance deste conceito reveste-se sobretudo de importância em matéria fiscal» (Lições de Direito Comercial, Vol. II, Impressão João Abrantes, Coimbra, 1968, pág. 92); no mesmo sentido, Raul Ventura, ao explicar como os débitos, bens, créditos que tinham como sujeitos a sociedade passam a ser encabeçados nos sócios, diz que «(o) como não pode deixar se ser uma sucessão; só assim não seria se admitíssemos que, antes de extinta a sociedade, tais ativo e passivo já pertenciam aos sócios, ou seja, se desprezássemos a personalidade jurídica da sociedade. Como tal não podemos fazer, temos de aceitar este corolário» (ob. cit. pág. 480); e de igual modo, Carolina Cunha, sobre a responsabilidade dos antigos sócios pelo passivo superveniente, considera que «(o) fundamento da solução legalmente consagrada radica numa ideia de sucessão na titularidade da relação jurídica» (Código das Sociedades Comerciais em Comentário, coordenado por Jorge M. Coutinho de Abreu, Vol. II, 2.ª ed. Almedina, p. 760).
Não se trata, porém, de sucessão de direitos e obrigações a título universal, como acontece na sucessão fiscal por morte de pessoas singulares. Não constitui sucessão a título universal a aquisição do património social depois de liquidadas as dívidas. Ao contrário da sucessão por morte, em que o herdeiro se torna titular dos bens e dos débitos, na liquidação societária partilha-se os bens sociais depois de pagas as dívidas. A partilha dos bens sociais pelos sócios no termo de vida jurídica da sociedade tem o significado de cumprimento da obrigação, resultante do contrato de sociedade, de atribuir a cada sócio uma parte determinada do saldo de liquidação. Por isso, o facto que determina o ingresso dos sócios nas posições jurídicas de que a sociedade é titular é a partilha do ativo restante, com a consequente transmissão dos bens aos sócios (artigos 156.º e 159.º do CSC). Há aqui, como comenta Raul Ventura, «uma sucessão a título particular nos bens recebidos pelos sócios, mas esta sucessão resulta de um ato translativo praticado pela sociedade através de um seu órgão, em cumprimento de uma obrigação anterior» (ob. cit, pág. 412).
A transmissão a título particular do património social explica a responsabilidade dos sócios pelo passivo não satisfeito. A deliberação que aprova a partilha é um marco importante no processo de pôr termo à existência jurídica da sociedade, porque é em virtude dela que se acerta o objeto de cada uma das obrigações que a sociedade tem para cada um dos sócios e se legitima a transferência da propriedade dos bens sociais. Até esse momento os sócios não têm direito individual sobre quaisquer bens sociais, formando estes um património autónomo, propriedade da sociedade que se constituíra. Mas quando esse património se desmembra pela entrega aos sócios, desaparece a razão de ser da autonomia da sociedade e passam os sócios a ser proprietários em nome individual dos bens que pertenciam à sociedade. Os bens que na partilha são “atribuídos” a cada sócio correspondem ao direito à quota que cada um deles tem no produto de liquidação. É em função do excedente do ativo líquido sobre o capital inicialmente formado pelos sócios, apurado em face do balanço de liquidação, que se mede a extensão do direito de cada um ao saldo de liquidação. Ora, se posteriormente à partilha surgirem débitos sociais que não foram considerados na liquidação, isso significa, como já referido, que os sócios receberam mais bens sociais do que o seu direito ao saldo da liquidação lhes permitia, e por isso terão que os satisfazer.
É também um fenómeno de transmissão ou sucessão a título particular que justifica a responsabilidade ilimitada dos sócios prevista no n.º 2 do artigo 147.º da CSC. Pode mesmo dizer-se que a norma deste artigo e a do n.º 1 do artigo 163º do CSC estabelecem, para as sociedades de responsabilidade limitada, uma regulação paralela à prevista no n.º 2 do artigo 29.º da LGT. Através da «partilha imediata» procede-se à divisão entre os sócios do ativo líquido, sendo esta divisão feita na proporção devida a cada um, nos termos determinados no contrato de sociedade. Como as dívidas tributárias não liquidadas não impedem a partilha imediata à dissolução, o direito de cada sócio ao património social a dividir é sempre superior ao que lhe corresponderia se houvesse balanço de liquidação. O próprio artigo 147.º o reconhece quando, na última parte do n.º 2, por cautela contra a responsabilidade pessoal, sugere aos sócios que «reservem», por qualquer forma, as importâncias que estimarem para o pagamento das dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis, precaução que é inoperante para com o fisco. Por isso, ao decidirem que não há ativo nem passivo e que não haverá, como tal, liquidação, partilhando imediatamente os bens, os sócios assumem a responsabilidade, ilimitada e solidária (entre eles), pelos impostos que vierem a ser cobrados no prazo de caducidade do direito à liquidação, uma vez que nessa hipótese receberam mais do que lhe permitiria a liquidação stricto sensu. A partilha imediata constitui, pois, o facto jurídico que produz a transmissão a título particular dos bens sociais e, consequentemente, o facto gerador da responsabilidade dos sócios transmissários pelas dividas fiscais ainda não liquidadas.
Importa, assim, conhecer se a responsabilidade do transmissário está coberta pela reserva de lei prevista na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 103.º da CRP.
8. O acórdão recorrido considerou que a definição dos pressupostos legais da responsabilidade, seja solidária ou subsidiária, constitui incidência subjetiva e/ou garantia dos contribuintes; e assim sendo, decidiu que a norma contida no artigo 147.º, n.º 2, padece de inconstitucionalidade orgânica, porque não existiu lei formal da Assembleia da República ou lei do Governo precedida de autorização legislativa que definisse a extensão e sentido da responsabilidade.
O artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP, reserva à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a competência para legislar sobre a «criação de impostos e sistema fiscal». Este preceito deve ser lido conjuntamente com o artigo 103.º, subordinado à epígrafe, «sistema fiscal», em cujo n.º 2 se fixa que «os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes». Resulta, assim, da Constituição, que a legalidade fiscal se traduz na exigência de uma reserva de lei formal que implica a intervenção do parlamento (lei do parlamento ou decreto-lei autorizado), e de uma reserva material de lei, que impõe que esta determine os elementos essenciais de cada imposto (incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias concedidas aos contribuintes). Por conseguinte, constitui matéria da exclusiva competência legislativa da Assembleia da República não só a criação de cada imposto, mas também a determinação dos respetivos elementos essenciais enunciados no n.º 2 do artigo 103.º. Nesta última dimensão, a reserva de lei «implica a tipicidade legal, devendo o imposto ser desenhado na lei de forma suficientemente determinada, sem margem para desenvolvimento regulamentar nem para discricionariedade administrativa quanto aos seus elementos essenciais» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, Vol. II, 4ª ed. Coimbra Editora, p. 1091).
Em contrapartida, já não cabe na reserva relativa de competência da Assembleia da República, enquadrando-se no domínio da competência legislativa concorrencial com o Governo, tudo o que, em matéria fiscal, excede a determinação daqueles elementos essenciais, designadamente, as regras procedimentais relativas ao lançamento, liquidação e cobrança do imposto (artigo 103.º, n.º 3, da CRP).
Do ponto de vista jurídico-constitucional, o conceito de incidência é bem mais amplo do que o sentido que lhe é dado no direito tributário. A incidência tributária, diz Alberto Xavier, «é a aceção normativa do facto tributário, a realidade prevista pela norma tributária e sobre a qual esta «incide»»; e, atendendo à sua estrutura, o facto tributário decompõe-se num elemento objetivo, que «é o próprio facto considerado em si mesmo, independentemente da sua ligação a um sujeito» (o «pressuposto objetivo» ou a «incidência real») e num elemento subjetivo, que «é aquele que prende ou vincula o facto a uma dada categoria de sujeitos, em termos de determinar quanto a eles o nascimento da obrigação de imposto» («pressuposto subjetivo» ou incidência pessoal») – Manual de Direito Fiscal, Vol. I, 1974, p. 248 e 249.
Ora, sob pena da reserva de lei não cumprir a sua função garantística, a incidência a que se refere o n.º 2 do artigo 103.º não pode limitar-se ao facto tributário e ao sujeito passivo, em sentido restrito, devendo abranger, como refere Casalta Nabais, «todos os pressupostos de cuja conjugação resulta o nascimento da obrigação de imposto e bem assim, os elementos da mesma obrigação». O que significa que, no domínio da incidência, a reserva de lei parlamentar reconduz-se à definição normativa: «1) do facto ou situação que dá origem ao imposto (pressuposto de facto, facto gerador ou facto tributário); 2) dos sujeitos ativo e passivos (contribuinte, responsáveis, substitutos) da obrigação de imposto; 3) o montante de imposto, em regra (sempre que não se trate de impostos de quota fixa) definido através do valor ou da quantidade sobre que recai o imposto (definição ou determinação em abstrato da matéria coletável), da percentagem desse valor ou do montante pecuniário por unidade da matéria coletável a exigir do contribuinte (definição da taxa e das taxas ad valorem ou específicas) e das deduções à coleta (caso as haja); 4) dos benefícios fiscais» (O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Almedina, p. 362).
Nestes termos, a reserva de lei parlamentar constante do n.º 2 do artigo 103.º, quanto ao conceito de incidência, abrange todas as regras que contribuem para a determinação do an e do quantum do imposto. Cabe, assim, à Assembleia da República fixar quem deve pagar o imposto – incidência subjetiva – e sobre que matéria ele há de incidir – incidência objetiva –, em termos de serem calculáveis e previsíveis para os contribuintes, há de ser sempre a lei a determinar o sujeito passivo, o objeto do imposto e os elementos que concorrem para a determinação da medida do imposto (a base tributável). O que de mais importante e relevante há, a final, no poder tributário, na estrutura interna do imposto, e na relação obrigacional fiscal, são as pessoas, factos e as situações a eles sujeitos.
A reserva de lei contida no artigo 103.º, n.º 2, não abrange apenas os elementos intrusivos do imposto (criação, incidência e taxa), mas também elementos favoráveis, com a «garantia dos contribuintes». Uma das dimensões essenciais do estado de direito é o direito dos cidadãos exigir dos poderes públicos a proteção dos seus direitos, bem como o reconhecimento dos meios processuais e procedimentais adequados à sua realização. A reserva das garantias dos contribuintes abrange garantias de natureza adjetiva ou processual, mas também pode integrar garantias de natureza substantiva ou material. Asseguradas estão, desde logo, as garantias fundamentais dos administrados e as respeitantes ao domínio sancionatório, consagradas respetivamente nos artigos 268.º, 29.º e 32.º da CRP; e nas matérias não cobertas pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, abrange garantias gerais relativas ao procedimento e ato tributário (v,g. direito à informação, fundamentação, audição, notificação), garantias graciosas (v,g. reclamação, recurso hierárquico, revisão oficiosa) e garantias contenciosas (v.g. impugnação judicial ou recurso de atos tributários lesivos de direitos e interesses legalmente protegidos). Apesar da Constituição não determinar expressamente o conteúdo das garantias dos contribuintes, a função garantística e democrática da reserva de lei pode também sujeitar à reserva de lei parlamentar garantias materiais que incidam sobre matérias essenciais que interfiram com a legalidade da relação jurídica tributária ou com o montante do imposto a pagar (v.g. prescrição, caducidade).
Impõe-se, pois, averiguar se a responsabilidade do transmissário prevista no n.º 2 do artigo 147.º do CSC é matéria abrangida por norma de incidência tributária ou ligada a garantias dos contribuintes, começando por confrontá-la com a responsabilidade tributária.
9. A par do contribuinte direto e do substituto tributário, o «responsável» constitui uma das categorias de sujeitos passivos reconhecida no artigo 18.º, n.º 3, da LGT. Significa isto que o Direito Fiscal coloca a responsabilidade tributária na disciplina jurídica dos sujeitos passivos da relação jurídico-tributária, configurando o responsável como um dos sujeitos passivos «que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária».
A constituição do vínculo do responsável tributário não resulta do facto de em relação a ele se verificar o facto tributário, uma vez que não é titular da manifestação de capacidade contributiva que a lei visa atingir. A pessoa em relação à qual se verifica o facto gerador do imposto é o contribuinte direto, quem tem a obrigação de pagar o imposto, a título direto, originário e principal. Como refere Ana Paula Dourado, «o responsável é um sujeito passivo obrigado ao pagamento da dívida de imposto, cujos pressupostos tributários se verificam relativamente ao devedor originário, e essa responsabilidade resulta normalmente do incumprimento culposo de deveres fiscais determinados por lei, sendo-lhe atribuído direito de regresso» («Substituição e Responsabilidade Tributária», in, Cadernos de Técnica Fiscal, n.º 391, p. 55).
Não obstante ser estranho aos pressupostos da norma de incidência cuja ocorrência fáctica faz nascer a obrigação tributária, a lei põe o débito de imposto a cargo do responsável quando o contribuinte não seja capaz de o fazer, a fim de reforçar a garantia do cumprimento da obrigação fiscal. Nas situações excecionais de responsabilidade tributária previstas nos artigos 24.º a 27.º da LGT – responsabilidade dos membros dos corpos sociais, responsabilidade de titular de estabelecimento individual de responsabilidade limitada, responsabilidade dos liquidatários de sociedades, responsabilidade de gestores de bens ou direitos de não residentes, responsabilidade dos técnicos oficiais de contas – verifica-se que a responsabilidade tributária surge quase sempre por força da existência de uma relação especial entre o devedor originário e o responsável.
De facto, nessas situações, em virtude das suas funções, o responsável encontra-se numa posição em relação ao devedor originário que permite afetar e influenciar o cumprimento das obrigações tributárias deste. É precisamente por estar numa relação de poder que implica o cumprimento de deveres fiscais que o legislador estende aos responsáveis a obrigação do pagamento do imposto. Ou seja, apesar do facto tributável não ocorrer em relação a ele, o responsável «garante com o seu património o cumprimento da prestação tributária na medida em que da sua atuação depende a declaração desse facto ou a preservação do património do contribuinte direto» (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, p. 408).
A responsabilidade tributária tem sobretudo a função de garantia, em via subsidiária, do pagamento do imposto, quando o devedor originário não tenha meios suficientes para satisfazê-lo. Mas porque se estabelece em conexão com deveres que incumbem aos responsáveis, como forma de levar ao seu cumprimento pela ameaça que assim recai sobre o seu património, também se lhe atribui uma função sancionatória ou inibidora. Como refere Cardoso da Costa, «o legislador, por via de regra, só utiliza o expediente da responsabilidade para garantia dos créditos fiscais quando ele possa justifica-se, de alguma forma, por essa última ideia» (Curso de Direito Fiscal, 2.ª ed. Almedina, p. 300).
A responsabilidade caracteriza-se por ser pessoal, no sentido de que é a própria pessoa que realiza a prestação devida ou que suporta a execução fiscal nos seus bens; ilimitada, porque, em regra, todo o património pessoal do responsável está sujeito a execução; acessória, porque depende da existência da relação tributária obrigacional principal; subsidiária, porque o responsável só responde depois de previamente esgotado o património do dever originário; e solidária, no sentido de que, havendo mais do que um responsável, a dívida pode ser exigida a qualquer um deles.
A responsabilidade tributária, tendo por pressuposto o incumprimento de deveres fiscais, está sujeita à reserva de lei parlamentar, prevista no n.º 2 do artigo 103.º. Com efeito, a responsabilidade é matéria de incidência lato sensu, na medida em que assenta em pressupostos conexionados com o facto tributável ou com o cumprimento da obrigação de pagamento do imposto: não se ter promovido o cumprimento das obrigações fiscais de outrem, como era devido (artigo 32.º da LGT), ou ter-se omitido o cumprimento de deveres acessórios de colaboração cuja finalidade seja a de assegurar ou facilitar a exigência de imposto (artigo 31.º da LGT). A obrigação de responsabilidade justifica-se, essencialmente, no facto do responsável, à face do direito e das circunstâncias de facto, se encontrar na posição de poder cumprir a obrigação de imposto pelo sujeito passivo originário, por ser através dele que este expressa e executa a sua vontade de cumprimento da obrigação. Como representante da sociedade, cabe-lhe, no exercício das suas funções, fazer com que a sociedade cumpra as suas obrigações (n.º 1 do artigo 78.º do CSC). A responsabilidade tem, assim, natureza tributária, uma vez que impõe ao responsável o dever de pagar o tributo por não ter exigido e fiscalizado, como lhe era devido, que o contribuinte direto cumprisse as obrigações tributárias. Ou seja, coloca-se na situação jurídica de sujeito passivo da relação obrigacional tributária um terceiro que não cumpriu os deveres, previstos na lei, que lhe permitiam fiscalizar e exigir do devedor originário o pagamento do imposto.
É nesse sentido que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem seguido, integrando a responsabilidade tributária no conceito constitucional de incidência. No Acórdão n.º 311/2007, reiterado nos Acórdãos n.ºs 331/2007, 149/2013 e 734/2021 e nas Decisões Sumárias n.ºs 528/2007 e 352/2010, considerou-se que a responsabilidade dos membros da direção dos clubes desportivos por dívidas tributárias dos clubes desportivos é matéria de incidência tributária.
Afirmou-se aí o seguinte:
«Como quer, porém, que se qualifique a obrigação de responsabilidade tributária, subsidiária ou solidária, é inquestionável que o sujeito passivo dessa obrigação de responsabilidade cumpre uma obrigação de pagamento de imposto cujos pressupostos de facto da obrigação tributária ocorreram relativamente a outro devedor, o devedor originário, desempenhando ele uma função de garante legal desse pagamento.
Conquanto sendo alheio à conexão especial com certa pessoa dos factos materiais que concretizam a incidência objetiva do tributo, assumida pela norma tributária como seu critério de incidência subjetiva, o responsável tributário não deixa, por virtude da concretização de outros pressupostos elegidos pela lei para o investir na titularidade passiva da obrigação de responsabilidade, de ficar constituído na obrigação de pagamento de imposto gerada, originariamente, em relação a outrem.
Desde que, preenchidos estes outros pressupostos, o responsável tributário cumpre a prestação tributária nos termos em que a mesma se constituiu em relação ao devedor originário.
Assim sendo, há de entender-se que a definição destes outros pressupostos legais, por virtude de cuja ocorrência o responsável fica, igualmente, obrigado ao cumprimento da prestação tributária, tornando-o “sujeito passivo da relação tributária”, integram, ainda, o conceito de incidência, relevado pela nossa Lei Fundamental como elemento essencial dos impostos para efeitos de sujeição ao princípio da legalidade tributária, de reserva de lei formal, na aceção já precisada».
Por sua vez, no Acórdão n.º 331/2007, acompanhando de perto a fundamentação do Acórdão n.º 311/2007, afirmou-se ainda o seguinte:
«Nestes normativos [– isto é, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 67/97, de 3 de abril a –] estendeu-se a responsabilidade pessoal, ilimitada e solidária dos administradores e gerentes das sociedades comerciais de responsabilidade limitada, pela satisfação das dívidas tributárias da respetiva sociedade, que vigora no nosso sistema fiscal desde o Decreto nº 17.730, de 7 de dezembro de 1929, e que atualmente consta do artº 13º, do Código de Processo Tributário, aos titulares dos órgãos dirigentes das secções profissionais dos clubes desportivos.
Considerou-se que apesar dos clubes desportivos que não se constituíram em sociedade desportiva, não estarem sujeitos ao regime jurídico estabelecido para as sociedades comerciais, o facto das suas secções profissionais terem uma dinâmica empresarial, justificava que aos seus dirigentes fosse imputada uma responsabilidade tributária solidária pela satisfação das dívidas fiscais resultantes de incumprimento do clube.
Contudo, no artº 103º, nº 2, da C.R.P., encontra-se consagrado o princípio da legalidade tributária, segundo o qual os impostos têm de ser criados por lei, a qual determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes. E, nos termos do artº 165º, nº 1, i), da C.R.P., a aprovação dessa lei fiscal é reserva relativa de competência da Assembleia da República, a qual poderá autorizar o Governo a legislar sobre essa matéria.
O referido artº 39º, nº 1, e 2, que estendeu a responsabilidade pessoal, ilimitada e solidária dos administradores e gerentes das sociedades comerciais de responsabilidade limitada, pela satisfação das dívidas tributárias da respetiva sociedade, aos titulares dos órgãos dirigentes das secções profissionais dos clubes desportivos, pertence ao Decreto-Lei nº 67/97, de 3 de abril, aprovado pelo Governo.
Independentemente da posição que se adote na controversa qualificação jurídica desta responsabilidade tributária pelo pagamento da dívida de outrem, a sua consagração integra o conceito de “incidência”, referido no artº 103º, nº 2, da C.R.P., pois determina mais um responsável pela satisfação de impostos, pelo que deve constar de lei aprovada pela Assembleia da República ou pelo Governo, devidamente autorizado pela Assembleia para esse efeito».
10. O mesmo juízo já não pode ser efetuado relativamente à responsabilidade do transmissário, prevista no n.º 2 do artigo 147.º do CSC.
Como já referido, a responsabilidade do sócio por dívidas tributárias liquidadas após a extinção da sociedade tem fundamentos e pressupostos diferentes da responsabilidade tributária: enquanto a responsabilidade tributária assenta num ato ilícito, que se reflete na falta de pagamento da obrigação tributária ou na prática de atos que impossibilitem efetuar tal pagamento, a responsabilidade do sócio transmissário tem fundamento na sucessão a título particular dos bens sociais; enquanto que o pressuposto comum às situações de responsabilidade tributária é o ato de incumprimento de determinados deveres fiscais por parte do responsável, o pressuposto da responsabilidade do transmissário é o ato de cumprimento da obrigação, resultante do contrato de sociedade, de se atribuir a cada sócio uma parte determinada do saldo da liquidação; enquanto a responsabilidade tributária surge com a fundada “insuficiência dos bens” do devedor originário (n.º 2 do artigo 23.º da LGT), a responsabilidade do transmissário resulta da transmissão dos bens da devedora originária para os sócios; e por fim, enquanto na responsabilidade tributária, o património do responsável reforça a garantia dada pelo património do devedor originário, na responsabilidade do transmissário só o património dos sócios responde pelo integral cumprimento da prestação tributária.
A diferença ainda mais se acentua quando se tenha como ponto de partida a relação existente entre o devedor principal – a sociedade – e os responsáveis. Na responsabilidade tributária existe, desde a realização do facto tributável, uma relação especial entre o devedor originário e o responsável que possibilita a sua integração numa norma de incidência lato sensu; já na responsabilidade por transmissão ou sucessão dos bens patrimoniais em consequência da dissolução da sociedade, os antigos sócios não têm qualquer participação na ocorrência do facto gerador do tributo, nem influência nas obrigações tributárias que se constituíram até à data da dissolução. Apesar de liquidada em fase posterior à extinção da sociedade, a obrigação tributária é sempre reportada às condições de facto existentes no momento da ocorrência do facto gerador do imposto, respondendo os sócios por créditos tributários que são devidos pela sociedade, em razão da realização de factos tributários descritos na norma de incidência. É assim porque o artigo 36.º da LGT, ao dispor que a relação tributária se constitui com a verificação do facto tributário, assumiu a natureza declarativa da liquidação, cujos efeitos se reportam àquele momento. Por isso, na responsabilidade por sucessão, transmite-se uma obrigação já constituída na esfera jurídica da sociedade transmitente; e o que despoleta a sucessão é um ato translativo da sociedade – a partilha dos bens sociais – que foi praticado em cumprimento da obrigação de satisfazer o direito dos sócios a uma parte determinada dos haveres sociais, os chamados lucros finais ou de liquidação.
Sendo a liquidação da sociedade e a partilha imediata uma faculdade dos sócios, há aqui uma situação de assunção de dívidas da sociedade pelos sócios, sendo a responsabilidade um mecanismo tendente a assegurar o cumprimento da obrigação tributária da sociedade. Neste contexto, a transmissão das dívidas tributárias não envolve qualquer peculiaridade no direito tributário em face das regras de direito civil ou comercial: extinta a sociedade só os sócios podem ser os novos titulares do seu ativo e passivo. Os pressupostos da responsabilidade por sucessão – dissolução com partilha imediata dos bens sociais – não têm conexão com os pressupostos de cuja conjugação resulta o nascimento da obrigação de imposto, nem com os elementos da obrigação tributária transmitida. A transmissão pelo lado passivo da obrigação tributária, que ocorre com a partilha imediata, significa apenas o ingresso dos sócios na relação jurídica tributária anteriormente constituída. Ora, uma transmissão de dívida, com identidade de posição jurídica entre transmitente e transmissário, constitui modificação subjetiva que se situa além da norma de incidência do imposto. A transmissão decorre da sucessão a título particular do património do devedor originário e não da prática de quaisquer atos relacionados com a descrição legal do facto tributário.
Daí que, contrariamente ao que se verifica com a responsabilidade tributária, a responsabilidade do transmissário não esteja abrangida pelo conceito constitucional de incidência, mesmo em sentido amplo, não sendo aqui invocável o princípio da tipicidade dos impostos. A matéria da transmissibilidade dos créditos e das dívidas fiscais, seja pelo lado ativo seja pelo lado passivo, faz parte da disciplina da liquidação lato sensu e da cobrança dos impostos. O que há de específico no direito fiscal, dado o caráter indisponível do crédito e da obrigação tributária, é o princípio da intransmissibilidade dos créditos e das dívidas fiscais: salvo disposição em contrário da lei, os créditos e as dívidas tributárias são insuscetíveis de transmissão (n.ºs 1 e 3 do artigo 29.º da LGT). Simplesmente, os casos excecionais em que tal ocorre, como a transmissão mortis causa, prevista no n.º 2 do artigo 29.º da LGT, e a transmissão a título particular, prevista no n.º 2 do artigo 147.º da CSC, não estão sujeitos à reserva de lei parlamentar. Trata-se de matéria extra Tatbestand (factualidade típica) de imposto, que não contende com o princípio constitucional da legalidade fiscal.
Não relevam aqui sequer as preocupações garantísticas - associadas à previsibilidade e calculabilidade da obrigação de imposto - e democráticas subjacentes à reserva de lei fiscal, na medida em que a transmissão ou sucessão, independentemente da prática do ato tributário, tem por objeto uma obrigação fiscal que já se encontra constituída com base em norma fiscal material que deve observar aquela reserva. É em relação a esta norma tributária que a reserva de lei fiscal cumpre a sua função garantística dos direitos fundamentais (liberdade e propriedade), assegurada em termos mais adequados através da intervenção parlamentar.
11. Por fim, resta apreciar se a responsabilidade do transmissário integra a “garantia dos contribuintes”, matéria também sujeita a reserva de lei formal e parlamentar (artigo 103.º, n.º 3, da CRP).
Tem-se presente que a Constituição, fora dos casos de possível interferência com outras garantias em matéria penal, processual penal ou administrativa (tal como as consagradas nos artigos 29.º, 32.º e 268.º), não define expressamente o conteúdo da garantia dos contribuintes, nem estabelece um elenco taxativo de institutos que possam considerar-se incluídos nesse conceito, pelo que a caracterização de um determinado regime legal para efeito de incidência na reserva parlamentar constituirá sempre um problema de interpretação da lei que terá de ser analisado à luz dos critérios gerais de hermenêutica jurídica.
A responsabilidade, no sentido de vinculação ao pagamento da obrigação tributária de prestação pecuniária, pelo contribuinte ou por terceiro, constitui em primeira linha uma garantia da relação jurídica tributária. Como essa garantia se efetiva e concretiza através de bens que respondem pelo cumprimento da obrigação, a responsabilidade de pessoas alheias à constituição do vínculo tributário acaba por representar uma das mais importantes garantias dos créditos tributários. Nesse sentido, quer a responsabilidade tributária quer a responsabilidade do transmissário integram o sistema de proteção coativa do direito de crédito tributário.
Com efeito, nos termos do disposto no artigo 50.º da LGT, o património do devedor constitui a garantia geral dos créditos tributários. Regra que já decorre do artigo 601.º do Código Civil, relativo à garantia geral das obrigações, segundo a qual, pelo cumprimento das obrigações, respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes estabelecidos em consequência da separação de patrimónios. Ora, nas situações de responsabilidade tributária, ao lado da garantia geral do património do devedor originário, o cumprimento da obrigação tributária é assegurado pela garantia especial da responsabilidade tributária. Dada a especial conexão do responsável com o devedor originário ou com o objeto do imposto, a norma fiscal determina que o seu património reforce a garantia geral que é dada pelos bens e direitos patrimoniais deste.
De igual modo, a responsabilidade do transmissário prevista no n.º 2 do artigo 147.º do CSC surge de a necessidade da Fazenda Pública garantir a satisfação dos seus créditos. A dissolução da sociedade com partilha imediata implica necessariamente a passagem dos bens da sociedade para os sócios. Desse facto resultam consequências lógicas quanto à garantia dos créditos: o credor tributário deixa de poder agir sobre o património do sujeito passivo originário; e, como não há liquidação stricto sensu, a dívida tributária deixa de ser satisfeita prioritariamente à custa do património coletivo. A sucessão por extinção da pessoa coletiva, sem liquidação em sentido restrito, explica a transmissão das dívidas fiscais não exigíveis à data da partilha, bem como a responsabilidade ilimitada e solidária do património pessoal dos sócios transmissários. O património dos ex-sócios passa assim a constituir a garantia geral das obrigações fiscais liquidadas após a extinção da sociedade. Contrariamente ao que se verifica com a responsabilidade tributária, não há aqui mais de um património a responder pelo integral cumprimento da prestação tributária.
No que respeita aos interesses dos sujeitos à obrigação de imposto, admite-se que a responsabilidade tributária seja abrangida pelo conceito constitucional de «garantias dos contribuintes», cuja finalidade é protegê-los contra pretensões de liquidação e cobrança de tributos fora das condições previstas na lei. A garantia pessoal derivada da responsabilidade tributária, com o alcance de fiança legal, pode constituir matéria ligada à garantia dos contribuintes, na medida em que, além do património do devedor principal, há mais um património pessoal a garantir a obrigação tributária. Do caráter subsidiário da responsabilidade, assim como da acessoriedade que a caracteriza, decorre que só depois de excutidos os bens do devedor originário se pode ser reverter a execução contra o responsável subsidiário. Neste regime de efetivação da responsabilidade tributária subsidiária – por reversão da execução fiscal (artigos 23.º da LGT e 153.º do CPPT) – o benefício da excussão prévia é matéria que integra a garantia dos contribuintes.
Incidindo sobre um aspeto essencial da relação jurídica tributária é generalizado o entendimento de que o respetivo regime consubstancia uma garantia material dos contribuintes. Assim considerou o Tribunal Constitucional no já referido Acórdão n.º 311/2001: «Mas, independentemente de um tal entendimento, poderá ainda ver-se o estabelecimento de um regime de responsabilidade tributária solidária ou subsidiária pelas dívidas tributárias de outrem como implicando com as “garantias dos contribuintes”, elevadas, igualmente, à categoria de elemento essencial dos impostos pela norma constitucional e sujeitas ao mesmo princípio da legalidade tributária. Na verdade, a obrigação de responsabilidade tributária não deixa de corresponder à imposição, sobre certo sujeito jurídico, de uma obrigação de cumprimento de imposto a título solidário e subsidiário, afetando, pela via da constituição de uma tal garantia patrimonial solidária ou subsidiária, o seu património, em favor do credor tributário».
Todavia, à mesma conclusão não se pode chegar quanto à responsabilidade dos transmissários, prevista no n.º 2 do artigo 147.º do CSC.
Em primeiro lugar, não se trata de norma de garantia procedimental ou processual relacionada com a legalidade da relação jurídica de imposto. Sucedendo na mesma posição jurídica do transmitente – a sociedade extinta –, os ex-sócios dispõem de todos os meios procedimentais e processuais para evitar e sancionar a violação dos direitos e interesses legalmente protegidos face à administração tributária. A norma não versa, portanto, sobre garantias gerais de procedimento, graciosas ou contenciosas, que impliquem atuação de órgãos ou tribunais fiscais. O seu sentido é o de transferir para os ex-sócios – que se tornaram proprietários dos bens sociais – as responsabilidades fiscais da sociedade em consequência do desaparecimento do sujeito passivo originário dos créditos tributários.
Em segundo lugar, a afetação do património pessoal dos sócios é uma consequência da transmissão da titularidade dos bens e das dívidas da sociedade dissolvida. Os novos titulares de direitos e obrigações ficam na mesma posição jurídica que o anterior titular: o seu património passa a constituir a garantia geral das obrigações tributárias transmitidas, nos mesmos termos em que já eram garantidas pelo património coletivo. O legislador não deixa de manifestar essa identidade quando, na parte final do n.º 2 do artigo 147.º da CSC, determina que os sócios reservem, por qualquer forma, as importâncias que estimarem para o pagamento das dívidas fiscais ainda não liquidadas, acautelando desse modo a responsabilidade pessoal dos sócios.
Em terceiro lugar, a responsabilidade do transmissário é ilimitada e solidária, entre si, nos mesmos termos em que já era a responsabilidade da devedora originária – a sociedade transmitente –, no sentido de que estão sujeitos a execução todos os bens do responsável. A responsabilidade não é limitada ao valor do património transmitido porque a partilha imediata a seguir à dissolução faz desaparecer a garantia de satisfação do débito fiscal antes de ser efetuada a partilha. Se os sócios optarem por preparar a partilha através do procedimento de liquidação stricto sensu, o crédito fiscal pode ser satisfeito ou acautelado, com prioridade sobre os credores sociais, à custa do ativo social. Nessa eventualidade, surgindo débitos fiscais posteriormente à extinção da sociedade que, por causa não imputável à administração fiscal, não tenham sido satisfeitos ou acautelado, por eles respondem, ilimitada e solidariamente, os liquidatários, mas os sócios só respondem até ao montante que receberam na partilha.
Assim sendo, não se coloca qualquer problema de “garantias dos contribuintes”, porque a partilha imediata está configurada no n.º 2 do artigo 147.º como faculdade dos sócios: «podem os sócios proceder imediatamente à partilha dos haveres sociais». Havendo obrigações fiscais ainda não liquidadas, está assegurado aos sócios a possibilidade de as mesmas serem satisfeitas à custa do património social, seja através da liquidação do passivo social (n.º 1 do artigo 154.º da CSC), seja através do montante que receberam na partilha (n. º 1 do artigo 163. º do CSC). Parece seguro que a partilha imediata é uma faculdade atribuída aos sócios para seu benefício; se entenderem que não há vantagem em que o património individual dos sócios responda pelas dívidas fiscais não liquidadas têm sempre a opção de dissolução com liquidação.
Neste condicionalismo, não imposto coativamente aos sócios, não podem invocar qualquer expectativa legitima de responderem pelas dívidas fiscais apenas com os bens que receberam na partilha. Estamos perante um regime específico de extinção de sociedades comerciais, instituído no interesse dos próprios sócios, que, por essa via, beneficiam da possibilidade de partilha imediata dos bens sociais, sendo a responsabilidade pelas dívidas da sociedade ainda não liquidadas um pressuposto necessário do próprio regime legal assim instituído. Por conseguinte, uma condição que não introduz qualquer alteração no regime geral dos impostos (incluindo em matéria de incidência), nem qualquer alteração que não fosse esperada pelos sócios.
Se a função garantística da reserva de lei fiscal, como se deixou esclarecido, visa assegurar a previsibilidade dos elementos essenciais do imposto (e da situação tributária), e a tutela de confiança dos contribuintes, torna-se claro que nenhum motivo existia para a intervenção parlamentar, no caso vertente, quando o que estava em causa era a definição das condições em que é facultado aos sócios procederem à partilha imediatamente a seguir à dissolução.
Não se trata, pois, de garantia dos contribuintes que, perante o estatuído no n.º 2 do artigo 103.º da CRP, tenha de ser determinada por lei parlamentar.
III - Decisão.
Pelo exposto, decide-se
a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 147.º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro;
b) Consequentemente, concedendo provimento ao recurso, ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 17 de março de 2022 - Lino Rodrigues Ribeiro - Gonçalo Almeida Ribeiro - Afonso Patrão - Joana Fernandes Costa - João Pedro Caupers