ACÓRDÃO N.º 133/2022
Processo n.º 180/2022
Plenário
Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O partido político Volt Portugal (VP) veio, ao abrigo do disposto nos artigos 117.º e 118.º, da Lei n.º 14/79, de 16 maio, na redação que lhe foi dada pela Lei Orgânica n.º 4/2020, de 11 de novembro (Lei Eleitoral para a Assembleia da República, adiante designada pela sigla «LEAR»), interpor recurso contencioso para o Tribunal Constitucional de uma deliberação da Mesa de Apuramento Geral do Círculo da Europa no âmbito das eleições legislativas de 30 de janeiro de 2022. Tal deliberação, tomada na sequência de protesto apresentado pelo Partido Social Democrata (PPD/PSD), veio declarar a nulidade de votos em cento e cinquenta e uma mesas de voto do círculo eleitoral, por não terem os boletins de voto sido acompanhados de uma cópia do documento de identificação do eleitor. Pede o recorrente que o Tribunal Constitucional revogue tal decisão e, em consequência, julgue válidos todos os boletins de voto.
2. O recurso vem fundamentado do seguinte modo:
«O partido político Volt Portugal, de sigla VP, inscrito junto do Tribunal Constitucional desde 25 de Junho de 2020 e candidato no acto eleitoral de Eleições Legislativas à Assembleia da República em 30 de janeiro de 2022, vem, ao abrigo do disposto no artigo 118.°, n.° 1 da Lei n.° 14/79, de 16 de maio (Lei Eleitoral da Assembleia da República), e com os fundamentos constantes do articulado anexo, impugnar judicialmente a deliberação afixada no edital no dia 10 de fevereiro de 2022, referente ao apuramento geral eleitoral no círculo eleitoral da Europa, desta forma apresentando
1.°
O partido político de denominação Volt Portugal, sigla VP, com sede na Avenida Estados Unidos da América n.° 12, 2o Esquerdo, Lisboa, que participou no acto eleitoral das Eleições Legislativas à Assembleia da República em 19 círculos eleitorais, incluindo os círculos da Europa e Fora da Europa, vem requerer aos Exmos. Juízes do Tribunal Constitucional, instância de recurso das deliberações de Mesas de Apuramento Geral (n.° 1, artigo 118.° da Lei Eleitoral da Assembleia da República (LEAR)), a apreciação do presente recurso de impugnação da deliberação da Mesa de Apuramento Geral do Círculo da Europa, com Edital afixado a 10 de fevereiro de 2022, que impugna o apuramento eleitoral de 151 mesas de voto deste círculo eleitoral, em resultado do protesto/reclamação apresentado pela Mandatária do Partido Social Democrata (PSD).
2.°
O argumento apresentado pelo PSD, ao qual a Mesa de Apuramento Geral deste círculo eleitoral veio a dar razão, consiste na inadmissibilidade de boletins de voto que não sejam acompanhados de cópia do documento de identificação (Cartão de Cidadão, Bilhete de Identidade ou outro documento válido e admissível), de acordo com o n.° 6 do artigo 79.°- G da Lei Eleitoral da Assembleia da República (LEAR ou Lei n.° 14/79, de 16 de maio), que citamos: "6 — O envelope de cor verde, devidamente fechado, e' introduzido no envelope branco, juntamente com uma fotocópia do cartão de cidadão ou do bilhete de identidade, que o eleitor remete, igualmente fechado, antes do dia da eleição."
3.°
Numa primeira exposição, o Volt Portugal vem refutar o Protesto/Reclamação apresentado pelo Partido Social Democrata, no que diz respeito à inadmissibilidade de boletins de voto que não sejam acompanhados de cópia do documento de identificação.
1) Acrescentando às disposições legais da Lei Eleitoral para a Assembleia da República (LEAR) as seguintes considerações:
a) A deliberação do Conselho Nacional de Eleições de 2019, [em] que lê:
«Nota: Relativamente à descarga e procedimentos da mesa chama-se a atenção para a Deliberação da Comissão Nacional de Eleições, de 15 de outubro de 2019, tomada por ocasião da Eleição da Assembleia da Republica de 2019, e com o pedido de divulgação aos membros das mesas das assembleias de recolha e contagem dos votos dos residentes no estrangeiro:
"Descarga dos eleitores - situações de ausência de cópia do documento de identificação «O artigo 106.º-I, no seu n..º 4, determina que o presidente da assembleia (deve ler-se, mesa) entrega os "envelopes brancos aos escrutinadores, que descarregam o voto", contando-se em seguida as descargas (n.º 5) e, só depois, os envelopes brancos são contados e "imediatamente destruídos" (n.º 6).
De onde resulta que se procede à descarga com os envelopes brancos fechados, se fazem prova e contraprova das contagens e, só depois, são abertos para verificação e separação do seu conteúdo.
Acresce, por um lado, que não releva para o exercício do direito de voto a identificação através de documento apropriado, uma vez que ela é, em primeira mão, assegurada pela receção da correspondência eleitoral sob registo pelo destinatário ou pessoa próxima. A remessa pelo eleitor de cópia de documento de identificação serve, afinal e apenas, como reforço das, de si fracas, garantias do exercício pessoal do voto.
Por fim, se o voto nestas condições se há de ter por nulo deve para o efeito considerar-se exercido e, logo, ser previamente descarregado.»
b) Todos os Membros das Mesas de Voto do Círculo da Europa, nos dias 8 e 9 de fevereiro, receberam previamente, por via dos delegados dos partidos políticos ou coligações partidárias, o Manual dos Membros das Mesas Eleitorais - Assembleias de Recolha e Contagem de Votos dos Eleitores residentes no Estrangeiro (Anexo A), onde a citação supramencionada no n.° 1, alínea a) estava presente nas páginas 7 e 8 deste Manual;
c) Todas as Mesas de Voto do Círculo da Europa, nos dias 8 e 9 de fevereiro, tinham recebido, por parte da organização logística das Mesas de Voto, o Manual dos Membros das Mesas Eleitorais - Assembleias de Recolha e Contagem de Votos dos Eleitores residentes no Estrangeiro (Anexo A), onde a citação supramencionada no n.° 1, alínea a) estava presente nas páginas 7 e 8 deste Manual;
d) A dezoito de janeiro de 2022 (18/jan/2022) houve uma reunião pelas dez horas e trinta minutos, nas instalações da SIGMAI-AE, sitas na Praça do Comércio, Ala Oriental, em Lisboa, com os delegados e/ou mandatários dos partidos políticos (enumerados pelas suas siglas) IL, PSD, PS, A, BE, L, VP e CDU, "para procederem à escolha dos membros das mesas da Assembleia de Recolha e Contagem dos Votos dos Residentes no Estrangeiro" e para análise de outros assuntos. Na supramencionada reunião foi decidido por unanimidade dos delegados e mandatários presentes, incluindo do PSD, que:
"1. Escrutínio dos envelopes brancos
[...]
3.2 Aceitar como válidos todos os boletins cujos envelopes permitam a identificação clara do eleitor e descarga nos cadernos eleitores desmaterializados, mesmo que o envelope não contenha cópia do cartão de cidadão ou bilhete de identidade, já que a "remessa pelo eleitor de cópia de documento de identificação serve, afinal e apenas, como reforço das garantias do exercício pessoal do voto" (CNE, 2019)."
A ata assinada correspondente a esta reunião segue em anexo, como Anexo B.
4.°
O Volt Portugal vem desta forma requerer aos Exmos. Juízes do Tribunal Constitucional a revogação da deliberação de impugnação por parte da Mesa de Assembleia de Apuramento Geral do Círculo da Europa, que impugna aproximadamente cento e cinquenta e sete mil votos, dado as alíneas a), b) e c) acima descritas, que estabelecem e comunicam a clara "deliberação da Comissão Nacional de Eleições" aos Membros das Mesas de voto que "A remessa pelo eleitor de cópia de documento de identificação serve, afinal e apenas, como reforço das, de si fracas, garantias do exercício pessoal do voto." e que, como tal, a cópia do documento de identificação não é um elemento obrigatório para a validade do boletim de voto poder ser considerada. Acrescenta-se a decisão a 18 de janeiro de 2022, tomada por unanimidade de todos os delegados e mandatários presentes, incluindo do PSD (partido que apresentou o protesto/reclamação), de que todos os boletins de voto "cujos envelopes permitam a identificação clara do eleitor e descarga nos cadernos eleitorais desmaterializados, mesmo que o envelope não contenha cópia do cartão de cidadão ou bilhete de identidade" devem ser considerados válidos.
5.º
Numa segunda exposição, considerando o artigo 5.°, n.° 2, da Lei n.°7/2007, de 5 de fevereiro, número este inalterado pelos diplomas de alteração desta lei que lhe seguiram, onde se lê:
"2 - É igualmente interdita a reprodução do cartão de cidadão em fotocópia ou qualquer outro meio sem consentimento do titular, salvo nos casos expressamente previstos na lei ou mediante decisão de autoridade judiciária."
Ora, é do entendimento do Volt Portugal que o cidadão eleitor é coagido a reproduzir o seu documento de identificação (por exemplo, o Cartão de Cidadão) por parte da SGMAI-AE, órgão que organiza o processo do voto por correspondência aos eleitores no estrangeiro, quando lhe é colocado a condicionante de entrega de cópia deste (ou outro) documento de identificação para que o voto seja considerado válido. Desta forma, esta obrigatoriedade da qual dependeria a validade do seu voto constitui não só um incumprimento do estabelecido pelo n.° 2 do artigo 5.° da Lei n.°7/2007, de 5 de fevereiro, (forçando o cidadão eleitor a ceder a reprodução do seu documento de identificação) como também limitaria o pleno exercício de um direito constitucional elementar como o direito ao voto. Por esta segunda exposição, o Volt Portugal reitera o pedido de impugnação da deliberação da Mesa de Apuramento Geral do Círculo da Europa.
6.°
Acresce de que o procedimento é ainda incoerente com a descarga já ocorrida do eleitor nos Cadernos Eleitorais Desmaterializados (CED), uma vez que a verificação de existência de cópia do documento de identificação a acompanhar o boletim de voto ocorre somente depois de todas as descargas de eleitores em CED terem sido já efetuadas.
7.º
Acresce ainda uma terceira exposição, relevante por não se cumprirem os requisitos do disposto nos n.° 1 do art.° 119.° da Lei n.° 14/79, de 16 de maio (LEAR), que possibilitam e fundamentam o poder da Mesa de Apuramento Geral para a anulação dos votos em causa. No Protesto/Reclamação (presente no Anexo D), apresentada pela Mandatária do PSD, no n.° 10, lê-se a seguinte conclusão, após a sua exposição:
"Pela relevância e gravidade dos factos objeto do presente protesto e reclamação, e por estar manifestamente indiciada possível interferência no resultado eleitoral, o Partido Social Democrata considera que podem vir a estar reunidos os pressupostos e requisitos necessários [à] aplicação do disposto nos n.° 1 e 2 do art.° 119.° da Lei 14/79, de 16 de maio, Lei Eleitoral para a Assembleia da Republica."
O argumento apresentado neste número carece de prova de cumprimento dos "requisitos necessários [à] aplicação do disposto nos n.° 1 e 2 do art.° 119.° da Lei n.° 14/79, de 16 de maio, Lei Eleitoral para a Assembleia da Republica." O n.° 1 do art.° 119.° da Lei n.° 14/79, de 16 de maio dispõe:
"1 — A votação em qualquer assembleia de voto e a votação em todo o círculo só são julgadas nulas quando se hajam verificado ilegalidades que possam influir no resultado geral da eleição no círculo."
Caso os Exmos. Juízes do Tribunal Constitucional deliberem contra a primeira ou segunda exposições que o Volt Portugal aqui explana de que não foi cometida nenhuma ilegalidade, acresce ainda que mesmo com tais hipotéticas deliberações, não há evidência que as alegadas ilegalidades apontadas pelo protesto/reclamação do PSD tenham a capacidade de "influir no resultado geral da eleição no círculo", uma vez que se trata de um círculo eleitoral que apenas elege 2 mandatos, segundo o método de Hondt. Este ponto na LEAR claramente estabelece que as votações "só são julgadas nulas quando se hajam verificado ilegalidades que possam influir no resultado geral da eleição no círculo."
Para que a anulação de aproximadamente cento e cinquenta e sete mil votos fosse possível, estes votos teriam que corresponder a um número tal que fosse alterar o resultado final de atribuição de mandatos deste círculo eleitoral, algo que não se verifica. Se a anulação da Mesa de Apuramento Geral for revogada e todos os boletins de voto em questão forem contabilizados, verificar-se-á que o resultado eleitoral dos mandatos manter-se-á igual: 1 mandato para o Partido Socialista e 1 mandato para o Partido Social Democrata.
Relevante para este ponto, é que não foi apresentado um único protesto/reclamação em votos individualizados, para que estes fossem colocados de parte e considerados inválidos, como a lei assim o exige.
8.°
O Volt Portugal vem ainda refutar outros argumentos apresentados na reclamação/protesto apresentado pelo Partido Social Democrata à mesa de Assembleia de Apuramento Geral, no que diz respeito aos números:
- n.° 1, que carece de substância para o requerimento de anulação de votos por não especificar que outras "providências" poderiam ser tomadas, nem é este número relevante no caso dos boletins de voto que chegaram às mesas de voto sem uma cópia do documento de identificação;
- n.° 2, que carece de provas que substanciam a afirmação e que demonstrem comprovadamente que as situações descritas correspondem a boletins de voto recepcionados e considerados válidos pelas mesas de voto em questão;
- n.°s 3, 4 e 5, que ainda meritórios por denunciarem situações inadmissíveis de eleitores impedidos de votar em Madrid, são mais uma vez irrelevantes para os boletins de voto em questão, que são aqueles considerados válidos pelas mesas de voto, mesmo que não acompanhados de uma cópia do documento de identificação;
- n.°s 6 e 8, pois estes não dizem respeito ao Círculo Eleitoral da Europa, sendo por isso argumentos irrelevantes para a apreciação desta Mesa;
Da salvaguarda dos Direitos, Liberdades e Garantias das comunidades portuguesas residentes na Europa
9.°
O Volt Portugal recorre a este órgão da democracia portuguesa, no seu mandato de fiscalizador da constitucionalidade e do contencioso eleitoral em última instância, para salvaguardar o exercício dos direitos constitucionais dos aproximadamente cento e cinquenta e sete mil portugueses residentes na Europa, que por via desta interpretação excessiva do n.° 6 do artigo 79.°- G da Lei Eleitoral da Assembleia da República, vêem os seus direitos constitucionais de participação na vida pública (artigo 48.°) e de sufrágio (artigo 49.°) anulados.
Durante décadas de vida democrática, as comunidades portuguesas no estrangeiro viram-se limitadas no acesso facilitado e livre ao exercício pleno dos seus direitos de participação pública e democrática que a sua Constituição (em teoria) lhes garante, resultando em resultados de participação eleitoral preocupantemente baixos. Nesta eleição, onde 193.349 portugueses do círculo da Europa votaram, representando 20,87% do total de eleitores recenseados, foi a mais participada na história da democracia neste círculo. Com quase o dobro de votantes relativamente a 2019 e 10 vezes mais relativamente a 2015, estes direitos constitucionais tiveram a sua maior expressão de sempre.
Finalmente, em 2022, começamos, enquanto democracia, a conseguir fazer chegar a todas e todos eleitores portugueses o seu direito constitucional a votar e participar na vida política do país. Recorremos por isso a esta instância, defensora da Constituição Portuguesa, para que salvaguarde estes direitos constitucionais elementares e a legítima expectativa deste conjunto de eleitores do círculo da Europa de ver o seu voto efectivamente contabilizado e validado para efeitos do apuramento eleitoral do Círculo da Europa nas Eleições Legislativas para a Assembleia da República de 2022.
10.°
Por fim, o Volt Portugal interpõe este recurso de impugnação aos Exmos. Juízes do Tribunal Constitucional para a revogação da deliberação da Mesa de Assembleia de Apuramento Geral do Círculo da Europa, motivada pelo acima exposto e pelo dever constitucional desta instância na protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa, neste caso traduzidos nos artigos 48.° e 49.° e a que dizem respeito mais de uma centena de milhar de boletins de voto e, como consequência, mais de uma centena de milhar de direitos ao voto, que já foram exercidos, e que devem ser respeitados democraticamente, nos termos da Constituição da República Portuguesa.
3. Notificados os partidos recorridos, apenas respondeu o PPD/PSD, o que fez nos seguintes termos:
«PPD/PSD - Partido Social Democrata, notificado para responder aos recursos de contencioso eleitoral apresentados pelos partidos “Livre”, “Chega”, “PAN” e pelo partido “Volt”; o Secretário-Geral do PPD/PSD - Partido Social Democrata, em defesa da verdade dos factos e do interesse dos milhares de emigrantes cujos votos foram indevidamente anulados, por terem visto os seus votos misturados com os restantes, que se sabiam nulos, vem dizer o seguinte:
1. A Lei Eleitoral para a Assembleia da República (LEAR) é clara quanto ao procedimento de votação postal por eleitores residentes no estrangeiro, dispondo no artigo 79.º-G, n.ºs 4 a 6:
“4 – Cada boletim de voto é acompanhado de dois envelopes:
a) Um dos envelopes, de cor verde, destina-se a receber o boletim de voto e não contém quaisquer indicações;
b) O outro envelope, branco e de tamanho maior, de forma a conter o envelope do boletim de voto, é um envelope de franquia postal paga, tendo impressos, na face, os dizeres «Assembleia de recolha e contagem de votos dos eleitores residentes no estrangeiro – Círculo Eleitoral da Europa» ou «Assembleia de recolha e contagem de votos dos eleitores residentes no estrangeiro – Círculo Eleitoral fora da Europa», sendo pré-inscrito no remetente o nome do eleitor, o seu número de identificação civil, a sua morada, o consulado e país, e no destinatário o endereço correspondente à respetiva assembleia de recolha e contagem de votos dos eleitores residentes no estrangeiro.
5- O eleitor marca com uma cruz, no quadrado respetivo, a lista em que vota e dobra o boletim em quatro, introduzindo-o depois no envelope, de cor verde, que fecha.
6- O envelope de cor verde, devidamente fechado, é introduzido no envelope branco, juntamente com uma fotocópia do cartão de cidadão ou do bilhete de identidade, que o eleitor remete, igualmente fechado, antes do dia da eleição.”
2. Os votos postais que não cumpram estas condições são nulos, como resulta claramente do artigo 98, n.º 4, da LEAR, que tem a seguinte redação:
“4 - Considera-se ainda nulo o voto antecipado e o voto postal quando o boletim de voto não chega ao seu destino nas condições previstas nos artigos 79.º-B, 79.º-C, 79.º-D, 79.º-E e 79.º-G, ou seja, recebido em sobrescrito que não esteja devidamente fechado.”
3. A alegação de que apenas seria nulo o voto postal que seja recebido em sobrescrito que não esteja devidamente fechado é manifestamente improcedente, pois:
a. não decorre da letra do artigo 98.º, n.º 4, da LEAR, que se refere a esta hipótese como concretização ilustrativa, mas inclui todas as condições previstas no artigo 79.º-G;
b. contraria a razão de ser do artigo 79.º-G da LEAR, bastando notar que levaria a que, por exemplo, votos recebidos em envelopes que não preenchessem nenhuma das condições do n.º 4 desse artigo tivessem de ser também considerados válidos (por exemplo, inseridos só num envelope, ou em envelopes próprios ou até com outro destinatário), o que, por óbvio, não pode ser aceite.
4. A exigência legal constante do n.º 6 do artigo 79.º-G da LEAR, de que o voto seja acompanhado por uma fotocópia do cartão de cidadão ou do bilhete de identidade, que o eleitor remete, igualmente fechado, antes do dia da eleição, é imperativa e não pode ser derrogada (nem nunca foi, tanto quanto se sabe) por parecer da Comissão Nacional de Eleições, ou por entendimento, maioritário ou até unânime, das forças políticas concorrentes às eleições, em reuniões preparatórias do escrutínio (e também nunca o foi).
5. A referida exigência legal do n.º 6 do artigo 79.º-G da LEAR, de que o voto seja acompanhado por uma fotocópia do cartão de cidadão ou do bilhete de identidade, visa não apenas o reforço do controlo do carácter pessoal do voto, manifestado através do envio da cópia do documento de identificação, mas também um segundo controlo da identificação do eleitor, e tem de ser cumprida pela administração eleitoral e pelas entidades que realizam o escrutínio.
6. A lei (e sobretudo a lei eleitoral) é para ser cumprida de forma estrita, e desde logo pelas forças políticas que concorrem à Assembleia da República!
7. O PPD/PSD sempre manifestou claramente a sua posição, e insistiu no início e durante as operações de escrutínio dos votos dos círculos eleitorais da emigração pelo cumprimento estrito da lei, também por legitimamente temer que o não cumprimento deste requisito permitisse a validação de muitos votos que não tivessem sido pessoalmente emitidos pelas pessoas apenas identificadas (por um código de barras) da forma pré-inscrita na capa dos envelopes.
8. É manifestamente improcedente a alegação de violação do princípio da igualdade por comparação com o critério seguido pela assembleia de apuramento no círculo eleitoral de Fora da Europa, além do mais, porque qualquer partido concorrente podia ter impugnado o critério dessa Assembleia de Apuramento Geral, de computar (e não anular) todos os votos, mesmos nas mesas em que tinham sido misturados votos chegaram com e sem documento de identificação, apesar do protesto contra a inclusão destes.
9. Com efeito, em última instância a igualdade de tratamento é assegurada, apesar da possibilidade de diferentes decisões das assembleias de apuramento geral, pela possibilidade de recurso a esse Venerando Tribunal Constitucional, que sempre decidirá impondo critérios como isonomia.
10. A diferença de tratamento apontada apenas pode, pois, ser consequência da falta de impugnação dessa decisão da Assembleia de Apuramento Geral, a qual não é obrigatória, sendo certo também que a dimensão do número de votos numas e noutras condições, e os riscos de fraude pela falta da cópia do documento de identificação, podem ser diversos em cada círculo, competindo a cada partido concorrente avaliar tudo isso antes de decidir se impugna, ou não, a decisão da Assembleia de Apuramento Geral, o que não está obrigado a fazer.
11. Os presentes recursos são, pois, claramente improcedentes, contrariando exigência expressa da LEAR, pelo que devem ser considerados improcedentes.
12. Mas além disso, os presentes recursos constituem mesmo, provindo de partidos políticos que não contrariaram a violação dessa exigência legal e que depois defenderam a mistura de votos válidos com votos potencialmente nulos, e todos eles protestados, assim levando à anulação de 157.205 votos (!) no círculo da emigração, um verdadeiro exercício de cinismo e até de hipocrisia, pois foi pela atitude dos delegados desses recorrentes (e outros) que tantos votos, não separados dos potencialmente nulos, tiveram de ser anulados.
13. O que pode ser comprovado pela própria Ata da Assembleia de Apuramento Geral, em que se pode ler:
“Concelho: Europa
Freguesia: Europa
Secção: 1 a 7, 9 a 29, 31, 50, 51, 32, 57, 34, 59, 35, 60, 36, 38, 61, 62, 64, 58, 39,65,66,67,68,75,43.44,45.49,46.160.47,161. 163,164. 165, 166 167, 168, 169, 180, 181, 33, 56, 69, 76,78,121,95,125,99,126,101,108, 115,141, 116,149,176, 178,88,127,83, 84,130,89,90,131,91,92,93,132, 94, 134, 100, 136, 102, 137,103, 104, 105, 139, 106, 107, 140, 109, 110, 142, 111, 112, 143,144,114,148,150,170, 118, 117,119,177,179.80.81,122,186,187,183,189,190, 172, 175, 173,79,171, 172
Autor: Maria Ester Vargas de Almeida e Silva (Mandatária do PPD/PSD para o círculo eleitoral da Europa)
Motivo: Votos protestados não acompanharam o protesto.
Descrição dos factos: O Partido Social Democrata protestou por ter sido deliberado pelas respetivas mesas a violação do art.º 79 G n.º 6 da Lei n.º 14/79 de 16 de maio, concretamente por o envelope branco não conter fotocópia do Cartão de Cidadão ou do Bilhete de Identidade, nem de qualquer outro documento de identificação, sendo que a mesa decidiu considerar esses votos válidos. Posteriormente, veio o mesmo partido apresentar novo protesto no sentido de que as mesas passassem a identificar os votos protestados, ao abrigo do disposto no art.º 102.º, n.º 5 da LEAR.
Decisão da mesa: Indeferido (negado provimento)
A mesa entendeu manter a deliberação tornada no início dos trabalhos, no sentido de os votos não acompanhados de cópia do documento de identificação deverem ser considerados válidos.
Decisão da Assembleia de Apuramento Geral: Revogação da Deliberação da Mesa, julgando procedente o protesto e em consequência foi declarada a nulidade da votação, uma vez que, tendo sido apresentado protesto junto da Mesa com base na contabilização dos votos que não vieram acompanhados de cópia do documento de identificação, conforme legalmente exigido no artigo 79.°-G, n.º 6 da LEAR, foi tal protesto desconsiderado sem produzir qualquer efeito, sem que tenham tais votos sido separados e juntos ao protesto.
Em consequência. não obstante tais votos serem nulos nos termos do estatuído no art.º 98.º, n.° 4 da LEAR, foram os mesmos inseridos e misturados na urna, sendo agora impossível identificar quantos e/ou quais foram os votos protestados.
Existindo assim uma ilegalidade que pode influir no resultado geral da eleição, outra conclusão não se poderá tomar que considerar nula a votação nesta mesa, conforme previsto no art.º 119.° da LEAR.
Tal deliberação foi tomada com os votos favoráveis de todos os presentes e contra da Vogal Filomena Cristina Gonçalves Galhardo.”
(sublinhado e negrito aditados)
14. O PSD não deixará, aliás, de fazer a competente participação ao Ministério Público da atuação dos delegados das mesas de voto que, misturando dolosamente votos válidos com votos potencialmente nulos, por pretenderem impor como fato consumado a sua posição contra legem, assumiu mesmo relevância criminal, por preenchimento do tipo previsto no artigo 158.º da LEAR: essa atitude dolosa de mistura de votos potencialmente nulos e protestados com outros válidos constituiu uma atuação delituosa, que levou à anulação de 157.205 votos de emigrantes.
15. O PPD/PSD entende que deve expor a gravidade destas condutas porque já não é a primeira vez que tal ocorre, e em defesa dos votos dos emigrantes, pois é necessário evitar a repetição de tais comportamentos que inviabilizaram a expressão do voto desses nossos compatriotas emigrantes, incluindo dos que cumpriram as exigências legalmente previstas.»
4. A Assembleia de Apuramento Geral da eleição do círculo eleitoral da Europa realizou-se entre as 18:41 horas do dia 8 de fevereiro de 2022 e as 23:11 horas do dia 9 de fevereiro de 2022, de acordo com a respetiva ata.
A petição do presente recurso deu entrada neste Tribunal, por correio eletrónico, às 23:04 do dia 10 de fevereiro de 2022.
5. Da ata do apuramento geral da eleição no Círculo Eleitoral da Europa consta o seguinte, na parte relevante para o presente recurso:
«Concelho: Europa Freguesia: Europa
Secção: 1 a 7, 9 a 29, 31, 50, 51, 32, 57, 34, 59, 35, 60, 36, 38, 61, 62, 64, 58, 39,65,66,67, 68, 75,43,44,45, 49, 46, 160,47, 161, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 180, 181, 33, 56, 69, 76, 78, 121, 95, 125, 99, 126, 101, 108, 115, 141, 116, 149, 176, 178, 88, 127, 83, 84, 130, 89, 90, 131, 91, 92, 93, 132, 94, 134, 100, 136, 102, 137, 103, 104, 105, 139, 106, 107, 140, 109, 110, 142, 111, 112, 143, 144, 114, 148, 150, 170, 118, 117, 119, 177, 179, 80,81, 122, 186, 187, 183, 189, 190, 172, 175, 173,79, 171, 172
Autor: Maria Ester Vargas de Almeida e Silva (Mandatária do PPD/PSD para o círculo eleitoral da Europa)
Motivo: Votos protestados não acompanharam o protesto
Descrição dos factos:
O Partido Social Democrata protestou por ter sido deliberado pelas respetivas mesas a violação do art.° 79 G n.° 6 da Lei n.° 14/79 de 16 de maio, concretamente por o envelope branco não conter fotocópia do Cartão de Cidadão ou do Bilhete de Identidade, nem de qualquer outro documento de identificação, sendo que a mesa decidiu considerar esses votos válidos.
Posteriormente, veio o mesmo partido apresentar novo protesto no sentido de que as mesas passassem a identificar os votos protestados, ao abrigo do disposto no art.º 102.°, n.° 5 da LEAR.
Decisão da Mesa: Indeferido (negado provimento)
A mesa entendeu manter a deliberação tomada no início dos trabalhos, no sentido de os votos não acompanhados de cópia do documento de identificação deverem ser considerados válidos.
Decisão da Assembleia de Apuramento Geral: Revogação da Deliberação da Mesa, julgando procedente o protesto e em consequência foi declarada a nulidade da votação, uma vez que, tendo sido apresentado protesto junto da mesa com base na contabilização dos votos que não vieram acompanhados de cópia do documento de identificação, conforme legalmente exigido no artigo 79.°-G, n.° 6 da LEAR, foi tal protesto desconsiderado sem produzir qualquer efeito sem que tenham tais votos sido separados e juntos ao protesto.
Em consequência, não obstante tais votos serem nulos nos termos do estatuído no art.° 98.°, n.° 4 da LEAR, foram os mesmos inseridos e misturados na urna, sendo agora impossível identificar quantos e/ou quais foram os votos protestados.
Existindo assim uma ilegalidade que pode influir no resultado geral da eleição, outra conclusão não se poderá tomar que considerar nula a votação nesta mesa, conforme previsto no art.° 119.° da LEAR.
Tal deliberação foi tomada com os votos favoráveis de todos os presentes e contra da Vogal Filomena Cristina Gonçalves Galhardo.
NOTA: Contra a presente deliberação da Assembleia de Apuramento Geral foram juntos dois protestos, um apresentados pela Mandatária do Livre para o círculo da Europa, Patrícia Robalo, e outro pelo Mandatário do Partidos Socialista para o círculo da Europa, Paulo Pisco.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. Segundo o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 117.º e no n.º 1 do artigo 118.º da LEAR, as «irregularidades ocorridas no decurso da votação e no apuramento parcial e geral podem ser apreciadas em recurso contencioso, desde que hajam sido objeto de reclamação ou protesto apresentado no ato em que se verificaram», cabendo recurso para o Tribunal Constitucional da «decisão sobre a reclamação ou protesto», a interpor «no prazo de 24 horas, a contar da afixação do edital a que se refere o artigo 112.º». Tal recurso é interposto através de petição, que especifica os respetivos fundamentos, e «será acompanhada de todos os elementos de prova, incluindo fotocópia da ata da assembleia em que a irregularidade tiver ocorrido» (n.º 3 do artigo 117.º da LEAR).
O prazo de 24 horas para interpor tal recurso conta-se a partir da afixação do edital a que se refere o artigo 112.º da LEAR, ou seja, do meio de publicação dos resultados do apuramento geral, após a sua proclamação pelo presidente da respetiva assembleia, devendo ser afixado à porta dos edifícios designados para o efeito. Acresce que, de acordo com jurisprudência reiterada deste Tribunal, os prazos em horas constantes de leis eleitorais são contados hora a hora, não lhes sendo aplicável o disposto na alínea d) do artigo 279.º do Código Civil (neste sentido, v. os Acórdãos n.os 605/2019, 581/2019, 506/2017, 507/2017, bem como a abundante jurisprudência neles citada).
No caso vertente, verifica-se que a Assembleia de Apuramento Geral da eleição do círculo eleitoral da Europa encerrou os seus trabalhos pelas 23:11 do dia 9 de fevereiro de 2022, pelo que a afixação do respetivo edital terá sido posterior, o que permite considerar tempestiva a apresentação do recurso.
7. No âmbito do presente recurso contencioso está em causa a votação ocorrida no círculo eleitoral da Europa no âmbito da eleição dos Deputados à Assembleia da República, realizada no passado dia 30 de janeiro de 2022.
Como resulta da ata do apuramento geral da eleição no círculo eleitoral da Europa, foi apresentado, pela mandatária do PPD/PSD nesse círculo, protesto relativo a numerosas assembleias de voto, por as respetivas mesas terem deliberado aceitar como válidos os boletins de voto cuja remessa postal não tivesse sido acompanhada de uma fotocópia do cartão de cidadão ou do bilhete de identidade do respetivo eleitor, nos termos consignados no artigo 79.º-G, n.º 6, da LEAR.
A Assembleia de Apuramento Geral veio a reverter tais decisões, decidindo que esses votos deviam ser considerados nulos, nos termos do artigo 98.º, n.º 4, da LEAR. Porém, dado que os boletins que não vieram acompanhados de fotocópia do cartão de cidadão ou do bilhete de identidade do respetivo eleitor foram inseridos em urna, juntamente com os demais boletins nos quais tal omissão não se verificava, tornou-se impossível proceder à segregação e contagem dos votos tidos como válidos. Nessa medida, decidiu a Assembleia de Apuramento Geral, nos termos do artigo 119.º da LEAR, declarar a nulidade da totalidade da votação das assembleias de voto em que teve lugar tal confusão de votos tidos por válidos e inválidos.
8. O recorrente pugna pela revogação da decisão da Assembleia de Apuramento Geral, peticionando que sejam tidos como válidos todos os boletins de voto que não tenham sido acompanhados de fotocópia do documento de identificação do eleitor. Ora, os argumentos apresentados são insubsistentes e o efeito jurídico pretendido não pode produzir-se.
Como alegado pelo recorrente e comprovado pela ata do apuramento geral da eleição no círculo eleitoral da Europa, num número muito elevado de mesas de voto procedeu-se à inserção em urna e consequente confusão dos boletins de voto cuja remessa postal vinha desacompanhada de fotocópia do documento de identificação dos eleitores com aqueles em que tal não ocorreu. Por mor dessa decisão, impossibilitou-se a segregação dos boletins de voto tidos por válidos, obstando-se a que fosse identificado e contabilizado o sentido de voto neles expresso. Por outras palavras, tornou-se impossível, para as assembleias de voto em que a confusão de votos válidos e inválidos teve lugar, segregar os boletins de voto que não vieram acompanhados de fotocópia do documento de identificação e, por conseguinte, apurar a distribuição de votos válidos pelos partidos concorrentes a esse círculo.
9. Tal impossibilidade de segregação não impediria a revogação da deliberação da Assembleia Geral de Apuramento, caso os votos cujos boletins tenham sido remetidos desacompanhados da fotocópia do documento de identificação do respetivo eleitor também devessem ser considerados válidos, como defende o recorrente. Bastaria para o efeito contabilizar a totalidade dos votos anulados em tais assembleias, tomando-os como votos validamente expressos, e procedendo à sua consolidação com os votos das demais assembleias em que tal nulidade não foi decretada.
Porém, tal decisão seria manifestamente ilegal.
O artigo 79.º-G da LEAR regula a forma de exercício do direito de voto por via postal para eleitores residentes no estrangeiro. Nos termos do n.º 5 desse preceito, depois de assinalar o seu sentido de voto mediante uma cruz no quadrado respeitante à lista em que vota, o eleitor deve inserir o seu boletim de voto dobrado no envelope verde e fechá-lo. Nos termos do n.º 6, o envelope verde deve ser introduzido no envelope branco, juntamente com uma fotocópia do cartão de cidadão ou do bilhete de identidade, que o eleitor remete, igualmente fechado, antes do dia da eleição. Por sua vez, dispõe o n.º 4 do artigo 98.º da LEAR que se considera nulo o voto postal quando o boletim de voto não chega ao seu destino nas condições previstas nos artigos 79.º-B, 79.º-C, 79.º-D, 79.º-E e 79.º-G, ou seja, recebido em sobrescrito que não esteja devidamente fechado. O teor destes preceitos legais não deixa margem para dúvidas. Um voto postal que não observe as exigências consignadas no artigo 79.º-G, designadamente no seu n.º 6, é irremediavelmente inválido.
10. Não obsta a essa conclusão o argumento da recorrente, segundo o qual a remessa pelo eleitor de cópia de documento de identificação «serve, afinal e apenas, como reforço das, de si fracas, garantias do exercício pessoal do voto." e que, como tal, a cópia do documento de identificação não é um elemento obrigatório para a validade do boletim de voto poder ser considerada» − argumento esse que, segundo alega, tem por base a posição expressa pela Comissão Nacional de Eleições no Manual dos Membros das Mesas Eleitorais - Assembleias de Recolha e Contagem de Votos dos Eleitores Residentes no Estrangeiro, cuja cópia juntou aos autos.
A conclusão de que o envio da fotocópia do documento de identificação não constitui uma formalidade essencial à regularidade do voto postal, mas somente um mecanismo de reforço das garantias de exercício pessoal do voto, radica num determinado entendimento relativo aos procedimentos de recolha e contagem desses votos constante de deliberação da Comissão Nacional de Eleições, de 15 de outubro de 2019. Nos termos dessa deliberação, decorre do artigo 106.º-I, n.º 4, da LEAR, que os presidentes das mesas entregam os conjuntos de envelopes brancos aos escrutinadores, que descarregam o voto e rubricam os cadernos eleitorais na coluna a isso destinada e na linha correspondente ao eleitor. Assim, a descarga do voto é efetuada com os envelopes brancos fechados, isto é, antes de se saber se no seu interior está a fotocópia do documento de identificação do eleitor. Segundo o procedimento preconizado pela Comissão Nacional de Eleições nessa deliberação, só depois da contagem dos votantes pelas descargas efetuadas nos cadernos eleitorais, nos termos do n.º 5 do mesmo artigo, e da contagem dos envelopes brancos a que se refere o n.º 6, se procede à sua abertura para extração do envelope verde e da fotocópia do documento de identificação. Nesta medida, uma vez que a descarga do voto é feita com o envelope branco fechado, a existência da fotocópia do documento de identificação do eleitor no seu interior não é relevante para a descarga do voto, não constituindo, pois, condição para que o voto se tenha por validamente exercido.
Este entendimento não encontra respaldo nos n.os 5 e 6 do artigo 106.º-I da LEAR. Com efeito, não resulta do n.º 5 que a descarga do voto no caderno eleitoral seja feita somente com os elementos que constam das faces do envelope branco, independentemente dos que se encontrem no seu interior, entre os quais a fotocópia do documento de identificação do eleitor ou – usando aqui de reductio ad absurdum − o próprio envelope verde com o boletim de voto. Pelo contrário, a única interpretação razoável e que confere sentido à exigência do envio de tal elemento de identificação é que a descarga seja feita após a abertura do envelope branco, e uma vez verificada a identidade do remetente através da fotocópia do documento de identificação e apurada a consonância deste com os dados que constam das faces do envelope branco. Só nessas condições pode o voto ser considerado validamente exercido e descarregado nos cadernos eleitorais.
Parece ser esse o pressuposto da lei, nada nos n.os 5 e 6 do artigo 106.º-I da LEAR obstando a que se entenda que as operações de contagem e confirmação aí contempladas sejam feitas depois de abertos os envelopes brancos e descarregado os votos, caso venham instruídos nos termos do artigo 79.º-G, n.º 6, da LEAR. Nem se pode admitir, ao contrário do que parece entender a Comissão Nacional de Eleições, que a garantia da identidade do votante seja aferida unicamente pela remessa por via postal registada dos boletins de voto dos cidadãos inscritos nos cadernos eleitorais para as moradas indicadas nos cadernos de recenseamento, nos termos do artigo 79.º-G, n.os 2 e 3, da LEAR. Ao exigir o envio de fotocópia do documento de identificação, o legislador pretendeu seguramente reforçar a fidedignidade do voto, uma vez que nada assegura que a receção da remessa seja feita pelo destinatário, podendo, por exemplo, ser recebida por quem resida no mesmo local e a tenha aceite.
Com efeito, é em face da falibilidade da garantia representada pelo mecanismo de envio dos boletins de voto aos cidadãos eleitores inscritos nos cadernos eleitorais que se justifica a exigência desse elemento adicional de garantia de exercício pessoal do voto em que se consubstancia o ónus de fazer acompanhar o envio do boletim de voto de fotocópia do documento de identificação do eleitor. Só perante a conjugação desses dois elementos pode a mesa firmar, com o grau de fidedignidade que a lei procura assegurar, a identidade do eleitor que se apresenta a exercer o direito de voto por correspondência, nos termos do artigo 83.º da LEAR. Diga-se de passagem que desafia a inteligibilidade reconhecer-se a fragilidade da garantia de exercício pessoal do voto representada pelo mecanismo do envio dos boletins ao mesmo tempo que se abroga uma exigência legal que se destina precisamente a reforçar tal garantia.
11. Improcede naturalmente o argumento da recorrente baseado na reunião ocorrida no dia 18 de janeiro de 2022, entre os «delegados e/ou mandatários dos partidos políticos (enumerados pelas suas siglas) IL, PSD, PS, A, BE, L, VP e CDU, "para procederem à escolha dos membros das mesas da Assembleia de Recolha e Contagem dos Votos dos Residentes no Estrangeiro" e para análise de outros assuntos», reunião essa em que se terá deliberado, por unanimidade, «[a]ceitar como válidos todos os boletins cujos envelopes permitam a identificação clara do eleitor e descarga nos cadernos eleitores desmaterializados, mesmo que o envelope não contenha cópia do cartão de cidadão ou bilhete de identidade, já que a "remessa pelo eleitor de cópia de documento de identificação serve, afinal e apenas, como reforço das garantias do exercício pessoal do voto" (CNE, 2019)» (v. fls. 26 e 27).
A LEAR não atribui aos partidos políticos concorrentes à eleição, designadamente por via dos seus mandatários ou delegados, a faculdade de deliberar sobre os requisitos de validade dos votos. Toda essa matéria – como não podia deixar de ser – está sob reserva de lei, devendo as decisões concretas sobre a validade de votos ser tomadas pelos órgãos eleitorais competentes, segundo o procedimento expressamente regulado e mediante a aplicação dos critérios legais. Assim, qualquer «deliberação» − ou, melhor dizendo, acordo informal − que tenha sido tomada pelos partidos políticos no sentido de se dispensar a junção da fotocópia do documento de identificação ao boletim de voto é grosseiramente ilegal – ultra vires –, não produzindo os efeitos jurídicos conformes ao respetivo conteúdo.
12. Finalmente, improcede o argumento do recorrente, nos termos do qual a exigência de envio de fotocópia de documento de identificação viola o artigo 5.º, n.º 2, da Lei n.º 7/2007, de 5 de fevereiro, constituindo uma forma de «coação do eleitor» a reproduzir o seu documento de identificação, exercida pelo órgão da administração eleitoral que organiza o processo do voto por correspondência aos eleitores no estrangeiro.
O artigo 5.º, n.º 2, da Lei n.º 7/2007, de 5 de fevereiro, preceitua que «[é] igualmente interdita a reprodução do cartão de cidadão em fotocópia ou qualquer outro meio sem consentimento do titular, salvo nos casos expressamente previstos na lei ou mediante decisão de autoridade judiciária». Ora, o artigo 79.º-G, n.º 6, da LEAR, constitui um dos casos expressamente previstos na lei, pelo que não vislumbra aqui nenhuma violação da lei, nem caso algum de «coação do eleitor». De resto, note-se que o direito de sufrágio ativo é de exercício livre, e que a via postal para os eleitores residentes no estrangeiro é uma alternativa ao voto presencial, como resulta expressamente dos artigos 79.º, n.os 3 e 4 e 79.º-F, ambos da LEAR, de modo que nem em sentido figurado se pode falar em «coação». Trata-se, muito pelo contrário, de um ónus ditado por razões ponderosas atinentes à integridade do processo eleitoral, a qual por sua vez se reconduz ao princípio democrático.
13. Assente que o envio do boletim de voto não acompanhado de fotocópia do documento de identificação do respetivo eleitor, nos termos do artigo 79.º-G, n.º 5, da LEAR, gera a nulidade do voto, resta determinar a consequência que daí resulta para a deliberação impugnada.
Resulta da ata do apuramento geral da eleição no círculo eleitoral da Europa que, nas assembleias de voto objeto de protesto e ali identificadas, não tendo sido possível separar os boletins de voto remetidos com fotocópia do documento de identificação dos remetidos sem esse elemento, se procedeu à declaração de nulidade da totalidade dos votos exercidos. Em virtude dessa decisão, 157.205 (cento e cinquenta e sete mil, duzentos e cinco) votos foram considerados nulos, desconhecendo-se, dentro desse universo, quantos votos satisfaziam os requisitos de validade definidos pela lei, em especial o que respeita ao envio de fotocópia do documento de identificação no envelope branco em que se contém o envelope menor com o boletim de voto. Por conseguinte, tornou-se impossível determinar a distribuição desses votos válidos pelos partidos concorrentes ao círculo eleitoral da Europa.
Dispõe o artigo 119.º, n.º 1, da LEAR, que «[a] votação em qualquer assembleia de voto e a votação em todo o círculo só são julgadas nulas quando se hajam verificado ilegalidades que possam influir no resultado geral da eleição no círculo». A suscetibilidade de influência no resultado eleitoral constitui, pois, um requisito de admissibilidade do pedido de apreciação de ilegalidades, uma vez que só nesse caso esta se revela útil (v., entre muitos, o Acórdão n.º 535/2015). Ora, o recorrente supõe que no caso vertente tal apreciação seria inútil, dado que «[s]e a anulação da Mesa de Apuramento Geral for revogada e todos os boletins de voto em questão forem contabilizados, verificar-se-á que o resultado eleitoral dos mandatos manter-se-á igual: 1 mandato para o Partido Socialista e 1 mandato para o Partido Social Democrata».
Mas tal raciocínio, que repousa numa premissa já refutada – a validade dos votos cujo boletim não tenha vindo acompanhado de fotocópia do documento de identificação do eleitor −, está longe de ser cogente, uma vez que é perfeitamente impossível demonstrar que a decisão de declaração de nulidade total dos votos nas assembleias em que tal ocorreu não seja suscetível de ter reflexo sobre a atribuição dos mandatos reportados ao círculo eleitoral da Europa. Com efeito, o mapa de apuramento (fls. 28) revela que, com relevo para a distribuição de mandatos, foram considerados validamente expressos 36.191 (trinta e seis mil, cento e noventa e um) votos. Tal significa que o número de votos considerados validamente expressos é muito menor do que o dos votos declarados nulos pelas razões apontadas – mesmo desconsiderando aqueles que foram declarados nulos por outras razões, nos termos indicados na ata de apuramento geral. Ora, sabendo-se que uma parte indeterminada dos votos declarados nulos o foram apenas em razão da impossibilidade de separação daqueles que justificadamente assim deveriam ter sido declarados – desconhecendo-se, assim, a precisa proporção dos votos válidos dentro desse universo e qual a distribuição de votos pelos partidos concorrentes às eleições que resultaria da sua contagem –, é manifesto não ser possível afirmar que as ilegalidades verificadas não possam influir no resultado geral da eleição no círculo aqui sob consideração. Sublinhe-se o carácter modal do disposto a lei: para que se anule a votação em qualquer assembleia de voto ou a votação em todo o círculo, não é necessário comprovar que as ilegalidades verificadas tenham efetivamente influído no resultado geral da eleição nesse círculo, medido pela distribuição de mandatos; basta a possibilidade – porventura razoável, uma probabilidade atendível − de terem gerado esse efeito.
Quando o número total de votos anulados sobreleva o número total de votos considerados validamente expressos em cerca do quádruplo, é mais do que plausível conceber cenários em que o número de votos válidos, mas que acabaram anulados e desconsiderados em razão da sua confusão com votos inválidos, pudesse constituir uma grande parte dos votos considerados validamente expressos. Considerando que não é possível determinar a distribuição de votos nesse universo, e que nada nos autoriza a supor que, se a contagem tivesse sido efetuada, não se desviaria de forma significativa do padrão de distribuição que consta do mapa de apuramento geral, não se pode de modo nenhum concluir que a distribuição dos mandatos a efetuar segundo o método da média mais alta de Hondt, nos termos do artigo 16.º da LEAR, não seria diferente da que veio a ser determinada.
Esta conclusão – importa esclarecê-lo − em nada é infirmada pelos resultados provisórios constantes do sítio na internet do Ministério da Administração Interna, ou seja, antes da deliberação no sentido de que fossem tidos por nulos cerca de 80% dos votos. Com efeito, tamanha é a magnitude da diferença entre o número de votos expressos, mesmo considerando apenas os partidos mais votados segundo essa ordenação, e o número de votos expressos que veio a ser considerado após a deliberação aqui impugnada, que a hipotética contagem dos votos válidos declarados nulos por efeito da contaminação do conjunto poderia bem implicar uma recomposição das votações globais. Para esse efeito, bastaria um certo nível de desvio no padrão de distribuição dos votos válidos que acabaram descartados, por comparação com o que consta do mapa de apuramento geral. Em suma, não é possível concluir que a decisão de declaração de nulidade foi neutra do ponto de vista da distribuição de mandatos, uma vez que está longe de ser certo ou necessário que o padrão de distribuição dos mesmos fosse substancialmente idêntico ao que se veio a verificar no apuramento geral.
14. A argumentação até agora percorrida pode ser sintetizada nas seguintes proposições:
i. Considera-se que os votos remetidos por via postal cujos boletins não tenham sido acompanhados de fotocópia do documento de identificação do eleitor inserida no interior do envelope branco, segundo o disposto no artigo 79.º-G, n.º 6, da LEAR, devem ser considerados nulos, nos termos do artigo 98.º, n.º 4, da LEAR.
ii. Em consequência da adoção de procedimentos anómalos nas operações de contagem dos votos em cerca de cento e cinquenta secções de voto, tais boletins de voto – em número que se desconhece – foram inseridos em urna, juntamente com boletins que haviam sido acompanhados de fotocópia do documento de identificação do eleitor, o que impossibilitou a segregação de uns e os outros.
iii. Em virtude da impossibilidade dessa segregação entre votos nulos e votos válidos, a assembleia geral de apuramento decidiu – compreensivelmente − considerar nulos todos os votos das secções em que tais procedimentos anómalos haviam sido adotados, o que teve por consequência a declaração de nulidade de mais de 150.000 (cento e cinquenta mil) votos, sem que seja possível determinar, dentro desse universo, a proporção de votos efetivamente válidos e a sua distribuição pelos partidos que concorreram às eleições.
iv. Em face da grande desproporção entre o volume dos votos declarados nulos e o dos que relevaram para a distribuição dos mandatos neste círculo eleitoral, é perfeitamente possível que a decisão de declarar nulos todos os votos no universo em que se tenha verificado a confusão entre votos válidos e inválidos tenha influído no resultado geral da eleição no círculo, medida pela distribuição de mandatos. Assim é por não ser possível extrapolar para o primeiro o padrão de distribuição do sentido de voto que se verificou no segundo.
15. O pedido principal formulado pelo partido recorrente foi a revogação da decisão da Assembleia de Apuramento Geral, que decretou a nulidade dos votos em 151 mesas de voto do círculo eleitoral da Europa, na sequência de protesto apresentado pelo PPD/PSD. O pedido é parcialmente procedente, na medida em que a deliberação impugnada, ainda que por razões compreensíveis, invalidou todos os votos nas assembleias de voto do círculo eleitoral da Europa em que se deu a confusão entre votos válidos e inválidos – ou seja, invalidou votos que não padeciam de nenhuma irregularidade. Ora, dada a impossibilidade de apuramento efetivo de todos e somente dos votos válidos, resta proceder à repetição dos atos eleitorais em tais assembleias de voto, segundo o previsto no n.º 2 do artigo 119.º da LEAR.
Apesar de esta decisão assentar em fundamentos diversos dos invocados pelo recorrente e com consequências diversas das peticionadas, note-se bem que o Tribunal Constitucional não está vinculado pela qualificação dos vícios alegada pelas partes, nem pelas consequências jurídicas que deles deduzem. Note-se ainda que, nos termos do artigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 223.º da Constituição, compete ao Tribunal Constitucional «julgar em última instância a regularidade e a validade dos atos de processo eleitoral, nos termos da lei», e que os recursos previstos na legislação eleitoral têm uma vocação objetivista, não visando em primeira linha salvaguardar os interesses particulares dos recorrentes, mas garantir a legalidade e integridade dos atos eleitorais, de que depende a própria legitimidade democrática do poder político. É esse interesse público fundamental, que transcende os interesses particulares dos diversos intervenientes no processo eleitoral, que explica o universo alargado de pessoas ou entidades com legitimidade processual ativa para interpor recurso, nos casos do n.º 2 do artigo 117.º da LEAR.
16. Não há lugar ao pagamento de custas processuais, por o presente recurso beneficiar de isenção objetiva, a contrario sensu do disposto nos artigos 84.º, n.º 1, da LTC e 2.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:
a) Revogar a deliberação da Assembleia de Apuramento Geral do Círculo da Europa, na parte em que declara a nulidade de todos os votos nas assembleias de voto do círculo eleitoral da Europa em que se deu a confusão em urna entre votos cujos boletins foram remetidos à administração eleitoral devidamente acompanhados de fotocópia de documento de identificação do respetivo eleitor e votos em relação aos quais tal não se verificou.
b) Declarar a nulidade da eleição nas assembleias de voto do círculo eleitoral da Europa referidas no ponto anterior.
c) Determinar a repetição dos atos eleitorais nas assembleias de voto correspondentes, nos termos do n.º 2 do artigo 119.º da LEAR.
d) No mais, negar provimento ao recurso.
e) Determinar a comunicação imediata da presente decisão à Comissão Nacional de Eleições.
Sem custas.
Lisboa, 15 de fevereiro de 2022 - Gonçalo Almeida Ribeiro - Afonso Patrão - José Teles Pereira - António José da Ascensão Ramos - Pedro Machete - Joana Fernandes Costa - João Pedro Caupers
Atesto o voto de conformidade das Senhoras Juízas Conselheiras Mariana Canotilho e Maria Benedita Urbano, e dos Senhores Juízes Conselheiros Lino Rodrigues Ribeiro, José João Abrantes e José Eduardo Figueiredo Dias, que participam por meios telemáticos.
Gonçalo Almeida Ribeiro