ACÓRDÃO Nº 124/2022
Processo n.º 1224/2019
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Gonçalo Almeida Ribeiro
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Cível de Lisboa, em que é recorrente A., S.A. e recorridos o Ministério Público e B., Lda., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (adiante designada «LTC»), do despacho proferido por aquele Tribunal, em 6 de novembro de 2019, que indeferiu o requerimento apresentado pela ora recorrente, através do qual esta, invocando a inconstitucionalidade do n.º 6 do artigo 530.º do Código de Processo Civil e do n.º 3 do artigo 13.º do Regulamento das Custas Processuais (adiante designado «RCP»), e da respetiva Tabela I, Coluna C, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de abril, pretendia que lhe fosse restituído o valor pago a título de agravamento da taxa de justiça.
2. Indeferido o pedido, a recorrente interpôs o presente recurso de constitucionalidade, através de requerimento com o seguinte teor:
«A., S.A., Autora nos autos da ação com processo especial acima identificada, notificada do douto despacho de 6.11.2019, que indeferiu o requerimento da Autora de 9.4.2019, no qual pedia que o Tribunal declarasse inconstitucionais e, consequentemente, desaplicasse as normas que lhe impõem o pagamento de uma taxa de justiça agravada e de outros custos também agravados e que, por conseguinte, fossem restituídos à Autora os montantes pagos em excesso pelo agravamento da taxa de justiça, mas não se conformando com o referido despacho, vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
O recurso é interposto ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com alterações), por o Tribunal recorrido ter aplicado normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo.
As normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada são as normas dos artigos 13.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais (e respetiva Tabela I, coluna C), e do artigo 530.º, n.º 6, do Código de Processo Civil.
As normas em causa são inconstitucionais por violarem o disposto nos artigos 20.º e 268.º da Constituição da República Portuguesa (dado que põem em causa o direito de acesso à justiça e a uma tutela jurisdicional efetiva), o princípio constitucional da proporcionalidade que vigora em matéria de limitação de direitos fundamentais, mormente nas suas dimensões da proporcionalidade em sentido estrito, da necessidade e da adequação, o princípio constitucional da igualdade e ainda, se o agravamento da taxa de justiça for configurado como um imposto, os princípios constitucionais da igualdade tributária, da generalidade e abstração e da capacidade contributiva, que regem em matéria de impostos.
A questão da inconstitucionalidade das normas acima identificadas, nos termos e com o alcance que se pretende sindicar, foi suscitada pela Autora no seu requerimento de 9 de Abril de 2019 (…).»
3. Admitido o recurso, a recorrente foi notificada para apresentar alegações, concluindo nos termos seguintes:
«Conclusões
A. O presente recurso vem interposto do despacho com data de 06/11/2019, proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 9, no decurso do processo n.º 21046/19.0YIPRT, indeferindo a pretensão suscitada pela ora Recorrente para que fossem declaradas inconstitucionais e, consequentemente desaplicadas naquele caso concreto, as normas que lhe impõem o pagamento de uma taxa de justiça agravada.
B. Em concreto, as normas do n.º 6 do artigo 530.º do Código de Processo Civil (CPC) e o n.º 3 do artigo 13.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP).
C. No contexto dos autos acima indicados, a Recorrente, após ter efetuado o pagamento da taxa agravada a que estava adstrita na qualidade de grande litigante, requereu nos autos, mediante requerimento apresentado em 9 de Abril de 2019, a restituição do valor de taxa de justiça pago em excesso.
D. Alegou para o efeito que as normas do n.º 6 do artigo 530.º do CPC e do n.º 3 do artigo 13.º do RCP, nos termos que ditaram a liquidação da taxa agravada, eram inconstitucionais, pelo que deveriam ser desaplicadas in casu.
E. Em resposta ao solicitado o requerimento foi indeferido, concluindo-se ali que «…por se entender que a norma em causa não está ferida de qualquer inconstitucionalidade, indefere-se a restituição da taxa de justiça peticionada».
F. Por ter suscitado oportunamente a questão nos autos, a ora Recorrente interpôs recurso para este Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, concretamente por o Tribunal a quo ter aplicado normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo.
G. Entende a Recorrente que as normas invocadas naquele despacho são manifestamente inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 13.º, 17.º, 18.º, 20.º, 80.º e 268.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), as normas do n.º 6 do artigo 530.º do CPC, do n.º 3 do artigo 13.º do RCP e da Tabela II-B, com o sentido com que foram aplicadas no despacho recorrido.
H. Ainda que se reconheça que a taxa de justiça, per se, é um tributo bilateral (taxa pela prestação de um serviço público), já o mesmo não se pode admitir quanto à sobretaxa que advém do agravamento que recai sobre os grandes litigantes, a qual, não sendo uma taxa extrafiscal, é um imposto anómalo.
I. O desiderato de moderação do acesso aos serviços de justiça que se perspetivava com o agravamento da taxa de justiça sobre os grandes litigantes não se coaduna minimamente com a realidade a moldar e, logo, não é atingido.
J. A base de incidência não delimita aqueles que efetivamente recorrem de forma abusiva aos serviços de justiça, recaindo essencialmente sobre quem, no legítimo exercício dos seus direitos, pelo simples facto de a natureza da sua atividade exigir a contratação em massa, pretender obter justiça nos tribunais.
K. A exigência de recurso à via judicial resulta sobremaneira de imposição direta do legislador, mormente quanto às exigências resultantes do tratamento contabilístico e fiscal a dar aos denominados créditos incobráveis ou à necessidade de assegurar os seus créditos, não restando aos litigantes qualquer alternativa efetiva para atingir esses fins; tal exigência resulta também da inexistência efetiva de vias alternativas que permitam a estes credores em concreto fazerem valer os seus créditos, agravada pela irredutibilidade dos prazos de prescrição exíguos.
L. A A. é um reputado operador no serviço de comunicações electrónicas, que, nos termos da lei (concretamente da alínea d) do n.º 1 da Lei n.º 23/96, de 23 de julho), é qualificado como um serviço público essencial, o que importa, desde logo, que o direito ao recebimento do preço pelos serviços que presta (nessa qualidade de prestador de serviços públicos essenciais) prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação, sendo este o prazo para a propositura da ação ou da injunção pelo prestador, contado da prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos (artigo 10.° da Lei n.°23/96).
M. Não subjaz qualquer critério objetivo na determinação do limite de duzentas ações por ano para definir um grande litigante, o que, em rigor, subverte o princípio de utilizador-pagador que alegadamente suporta o gravame.
N. A taxa de justiça agravada para os grandes litigantes é, na prática, uma taxa sancionatória excecional aplicada de forma sistemática e reiterada (e que, assim, se comuta em ordinária) tendo por base uma efetiva presunção inilidível (reconhecidamente proibidas em matéria tributária, como é o caso) de que todas as sociedades comerciais que no ano anterior acionaram os serviços de justiça 200 ou mais vezes, o fizeram de forma abusiva e, por isso, merecedora da cominação punitiva.
O. Nesta medida, a aplicação deste regime de custas agravadas comporta uma inelutável violação do princípio de igualdade ínsito no artigo 13.º da CRP.
P. Não servindo o cumprimento dos propósitos extrafiscais em que alegadamente se suporta – para os quais, em todo o caso, sempre seria de considerar desadequado e excessivo, como adiante se invoca –, o agravamento da taxa de justiça consubstancia uma restrição prática ao direito de acesso à justiça e a uma tutela jurisdicional efetiva dos grandes litigantes, ditando a violação dos artigos 20.º e 268.º da Constituição da Republica Portuguesa (CRP).
Q. Parte substancial das solicitações aos tribunais resultam de exigência do próprio legislador que, por vezes com base em discutíveis razões substanciais, o impõe aos contribuintes ou sujeitos passivos em sede do IRC e do IVA para poderem deduzir certos gastos e perdas económicos e contabilísticos no apuramento do montante desses impostos.
R. Por conseguinte, o agravamento da taxa de justiça tem o inequívoco sentido de um inadmissível venire contra factum proprium do legislador.
S. A apontada falta de um mínimo de correspondência entre o agravamento da taxa de justiça e a evitação ou atenuação do recurso abusivo aos tribunais tem ainda uma outra expressão muito significativa, qual seja a de esse agravamento ser um pagamento definitivo para os grandes litigantes mesmo no caso de obterem ganho de causa, conforme resulta do disposto nos termos do n.º 4 do artigo 26.° do RCP.
T. Nos casos em que esteja em causa uma ação declarativa de condenação para obter o cumprimento de uma obrigação pecuniária resultante do incumprimento de obrigações previstas em contratos de adesão – que é, invariavelmente, o tipo de situação que a A. enfrenta -, nem é sequer possível o recurso a alguns dos meios alternativos de resolução de litígios, como sejam os julgados de paz e a arbitragem.
U. O que alegamos relativamente ao agravamento da taxa de justiça vale, mutatis mutandis, para a sujeição a certos encargos processuais apenas dos grandes litigantes, como são as custas a que se reportam o nº 8 do artigo 749.° e o n° 12 do artigo 780.° do Código de Processo Civil.
V. Não sendo um tributo bilateral extrafiscal (taxa moderadora), o agravamento da taxa de justiça, em rigor, também não pode ser considerado como um verdadeiro imposto – tributo unilateral sobre os litigantes em massa, com a receita consignada aos serviços de justiça, incidente sobre uma especial manifestação de capacidade contributiva; sendo que, configurado como um imposto, não cumpriria, desde logo, o princípio da capacidade contributiva, uma vez que não se funda em qualquer índice objetivo daquela capacidade.
W. Não ignoramos, obviamente, que sobre esta matéria, ainda que noutros termos e dentro de um enquadramento fáctico substancialmente diferente, já se pronunciou o TC, através do acórdão 238/2014, nos termos do qual decidiu não julgar inconstitucional «…a norma, decorrente da conjugação do n.º 6 do artigo 447.º-A [atual artigo 530.º], do Código de Processo Civil, e do n.º 3 do artigo 13.º, do Regulamento das Custas Processuais, de acordo com a qual as sociedades comerciais que tenham dado entrada em qualquer tribunal, balcão ou secretaria, no ano anterior, 200 ou mais ações, procedimento ou execuções, são responsáveis pelo pagamento de taxa de justiça agravada nas ações, procedimentos e execuções que interponham».
X. Importa ter noção clara das diferenças substanciais entre as duas causas e consequentemente entre os dois acórdãos, o ali proferido e o que aqui virá a ser proferido: entre o primeiro, de 6 de março de 2014, e o que vier a ser proferido nestes autos, terão passado já mais de 6 anos, período esse em que ficou cabalmente demonstrado, do ponto de vista empírico, que as normas em apreço, afinal, contrariamente ao assumido, não visaram (ou, pelo menos, não concretizaram) o pretenso fim de moralização e racionalização do recurso aos tribunais, a operacionalizar através do tratamento diferenciado dos litigantes em massa, a que aludia o Decreto-Lei n.º 34/2008, sobre o qual se erigiu a Reforma.
Y. O acórdão 238/2014 basta-se com a aferição da conformidade constitucional das normas à luz do princípio da igualdade, mormente no que tange à igualdade no acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, não cuidando de fazer um efetivo teste à proporcionalidade das normas, desde logo considerando que implicam uma constrição direta a diretos fundamentais.
Z. Conforme lapidarmente atesta o acórdão n.º 56/2018, de 31 de janeiro de 2018, o direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais da República inclui uma posição subjetiva «de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias» (cfr. Acórdão n.º 347/2009, ponto 8, cfr. também o Acórdão n.º 189/2016, ponto 7), que está aqui em presença. Nesses termos, por força do artigo 17.º da Constituição, «é igualmente pacífico que o regime jurídico material e orgânico dos direitos, liberdades e garantias se deve aplicar ao direito de acesso à justiça».
AA. A violação do direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva afere-se, quanto às normas em apreço, nestes dois níveis: o que vem de se expor, por violação do princípio da igualdade, e o que de seguida se expõe, quanto às restrições impostas à limitação de direitos, liberdades e garantias.
BB. A ter-se como um tributo, atenta a sua configuração, o agravamento da taxa de justiça aproximar-se-ia de um imposto, mas não cumpriria, porém, os requisitos constitucionais impostos pelos artigos 17.º e 18.º da CRP quanto à limitação de direitos fundamentais e de direitos análogos, como é o caso.
CC. Além do condicionamento ilícito ao direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva, por clamorosa violação do princípio da igualdade (desde logo violação da igualdade no acesso a esses direitos), é ainda notório que a constrição a esses direitos, ainda que porventura fosse admitida, sempre haveria de se conter dentro dos limites impostos pela Constituição no que concerne à limitação dos direitos, liberdades e garantias (ou dos direitos de natureza análoga), nos termos expressamente previstos no artigo 18.º da CRP.
DD. A aferição da legitimidade dessa restrição, em concreto, não supera o teste do princípio da proporcionalidade em sentido amplo, em nenhuma das suas três dimensões de proporcionalidade (em sentido estrito), necessidade e adequação.
EE. Desde logo, o agravamento da taxa de justiça em causa não parece minimamente apta a conseguir a moderação da utilização dos serviços de justiça, objetivo para o qual foi gizada, não sendo, por isso, adequada.
FF. Não tendo os litigantes em causa verdadeira alternativa para a efetivação dos seus direitos senão recorrendo aos tribunais, naturalmente que a medida em causa não é apta a diminuir a litigação, mas apta antes à obtenção de (mais) receitas públicas, se bem que a título de uma taxa pretensamente moderadora. Assim, o agravamento da taxa de justiça, enquanto efetiva restrição à garantia de acesso aos tribunais, não supera com êxito o primeiro teste de adequação.
GG. Tais normas não superam, ou melhor, não superariam, ainda, o teste da necessidade, caso a medida fosse apta para a prossecução do objetivo que o legislador pretensamente lhe conferiu, qual seja o da limitação do direito de acesso aos tribunais de uns, dos que abusem, para assegurar um melhor e mais eficaz acesso de outros, dos que fazem correto uso desse direito, porquanto, há, a nosso ver, outros meios potencialmente bem mais aptos, justos e eficazes para atingir o fim visado pela medida em análise, como os meios de prevenção dos litígios.
HH. Ainda que o agravamento da taxa de justiça se revelasse apto e necessário à moderação da utilização dos serviços de justiça, verificar-se-ia que se trata de uma medida excessiva, em que não há uma ponderação final global entre as vantagens alcançadas com a prossecução da finalidade e as desvantagens ocasionadas pela aplicação da medida.
II. As normas aqui sindicadas implicam uma incomportável e injustificada derrogação do princípio da liberdade de iniciativa e de organização empresarial, assente na ordem económica concorrencial, a que alude o artigo 80.º da CRP».
4. Notificados os recorridos para se pronunciarem, apenas o Ministério Público veio apresentar contra-alegações, que concluiu nos seguintes termos:
«IV. Conclusões
1. “Questão prévia”: sendo entendimento reiteradamente expresso por este Tribunal que, ao enunciar no requerimento de interposição de recurso as questões de constitucionalidade que pretende ver apreciadas, o recorrente delimita, em termos definitivos, o respetivo objeto, não lhe sendo lícito ampliá-lo (mas apenas restringi-lo) em momento ulterior, mormente nas alegações produzidas (cfr. Acórdãos n.os 487/2008 e 283/2014);
2. No caso vertente nos autos, verificou-se o preenchimento de uma tal hipótese, em virtude da invocação da incompatibilidade das normas impugnadas com o princípio da igualdade e a liberdade de iniciativa e de organização empresarial, apenas em sede de alegações;
3. Assim, para além não terem conexão problemático-normativa com os parâmetros indicados no requerimento de interposição do recurso – note-se que os princípios constitucionais da igualdade tributária, da generalidade e abstração e da capacidade contributiva, que regem em matéria de impostos foram invocados convocados pela recorrente apenas para a hipótese de a prestação em causa vir a ser qualificada como imposto –, os princípios convocados pela primeira vez no âmbito das alegações remetem para questões de constitucionalidade de natureza distinta daquelas que foram identificadas naquele requerimento, e, como tal, insuscetíveis de serem incluídas no objeto do presente recurso;
4. Sendo este o regime que emerge do artigo 75.º-A, n.ºs 1 e 2, da LTC, e na medida em não foi oportuna e adequadamente suscitada processualmente a questão da violação, pelas normas sob escrutínio, do princípio da liberdade de iniciativa e de organização empresarial (art. 80.º, al. c) da CRP) e por tal parâmetro não se encontrar axiologicamente conexo com a violação dos princípios e normas tempestivamente suscitada pela recorrente, o Tribunal deverá abster-se de conhecer de tal segmento do objeto do recurso;
5. Porém, mesmo que assim não se entendesse, sempre se dirá que o recurso, nesse aspeto, também deveria ser julgado improcedente.
6. Na verdade, a imposição de um acréscimo de taxa de justiça a «grandes litigantes» de forma alguma poderia configurar violação do princípio da liberdade de iniciativa e de organização empresarial, uma vez que, por um lado, não se encontra diretamente ligado a qualquer atividade naturalmente desenvolvida por qualquer entidade empresarial, designadamente inscritas no seu objeto estatutário; o recurso à atividade de litigância judicial será sempre, pode dizer-se, acessório ou marginal à atividade económico-empresarial desenvolvida. Pode haver empresas que não ultrapassando o limite de processos para serem consideradas «grandes litigantes», nunca tenham de pagar o acréscimo da taxa de justiça.
7. Por outro lado, o acréscimo de taxa de justiça a aplicar a «grandes litigantes», nos termos dos artigos 530.º, n.º 6 do CPC e 13.º, n.º 3 e Tabela I-C Anexa do RCP, não pode constituir óbice ou restrição – muito menos intolerável – à liberdade de iniciativa e de organização empresarial, consagrada no art. 80.º, al. c) da CRP.
8. A aceitar a tese da recorrente a este propósito, tal equivaleria a considerar que os regimes normativos que condicionam as atividades reguladas e supervisionadas seriam, eles também, violadores de tal liberdade. Conclusão que se afiguraria contrária à nossa Constituição económica em que vigora um modelo de economia mista e em que a regulação e supervisão de atividades económicas é consentido e, diríamos, desejável.
9. Por fim, mesmo que se configurasse que o acréscimo da taxa de justiça a aplicar a «grandes litigantes» pudesse restringir alguma dimensão da atividade de uma empresa «grande litigante», tal nunca significaria um atentado à própria liberdade de desenvolvimento da atividade económica em si mesmo considerada, mas apenas uma limitação – razoável e não desproporcionada – a eventuais abusos de recurso ao aparelho judicial.
10. Nessa medida, não encerrando as normas sub judicio qualquer afronta à liberdade de iniciativa e de organização empresarial, deveria sempre o recurso – a ser conhecido nessa parte – ser julgado improcedente.
11. O Ac. TC n.º 238/14 elabora, quanto a nós, uma penetrante análise relativamente à questão da suposta violação das normas sob escrutínio do princípio da igualdade, na dimensão do acesso ao direito e aos tribunais, que nos parece manter validade e atualidade, perante a argumentação da recorrente relativamente à sua “desatualização”.
12. Ali são expostos, de forma esclarecedora, os fundamentos que levaram a um julgamento de conformidade constitucional «(d)a norma, decorrente da conjugação do n.º 6 do artigo 447.º-A, do Código de Processo Civil, e do n.º 3 do artigo 13.º, do Regulamento das Custas Processuais, de acordo com a qual as sociedades comerciais que tenham dado entrada em qualquer tribunal, balcão ou secretaria, no ano anterior, 200 ou mais ações, procedimento ou execuções, são responsáveis pelo pagamento de taxa de justiça agravada nas ações, procedimentos e execuções que interponham».
13. No Ac. TC n.º 391/2020 (de 13.07.2020), por seu turno, o Tribunal Constitucional – em recurso também interposto pela recorrente – teve oportunidade de se pronunciar, igualmente, sobre a alegada inconstitucionalidade da «(…) norma resultante do artigo 530.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, artigo 13.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de abril, e respetiva Tabela II - B, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 126/2013, de 13 de fevereiro, que prevê uma agravação da taxa de justiça nas ações propostas por sociedades comerciais que tenham dado entrada em qualquer tribunal, no ano anterior, a 200 ou mais ações, procedimentos ou execuções», julgando-a não inconstitucional.
14. O Ac. TC n.º 391/2020 não incide, pois, sobre a mesma exata norma, uma vez que estava nele em causa uma hipótese de ação executiva e a Tabela II-B anexa ao RCP, sendo que no caso em apreço se encontra em causa uma ação declarativa especial e a Tabela I-C.
15. Em todo caso, afigura-se-nos ser incontroversa a essencial similitude de situações de base – entre a tratada no referido Ac. n.º 391/2020 e a dos presentes autos –, a merecer, quanto a nós, idêntico tratamento normativo, com a especialidade de ali se estar perante ação executiva e aqui, perante ação especial declarativa.
16. Relativamente à aplicação a sociedades e demais pessoas coletivas do princípio da proporcionalidade importa ter presente que o critério geral é o de que, a partir da regra do artigo 12.º, n.º 2, da CRP («As pessoas coletivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza»), não há equiparação, mesmo que só formal, entre a personalidade coletiva e a personalidade individual.
17. Essa eventual equiparação dependerá da própria natureza da pessoa coletiva e de cada um dos concretos direitos fundamentais em causa. Serão, pois, desde logo, incompatíveis com a personalidade coletiva os direitos originariamente ligados à personalidade individual (direito à vida, direito à reserva da vida privada, à imagem, à palavra, à liberdade ambulatória, entre outros). Mas não basta, também, que certo direito fundamental seja compatível com a natureza da pessoa coletiva para que ao mesmo possa ser reconhecido o mesmo conteúdo, alcance e intensidade dos que o são relativamente aos indivíduos: estarão nesse caso, p. ex., o direito ao sigilo da correspondência e o direito à privacidade.
18. Serão, pois, aplicáveis às pessoas coletivas e entidades equiparadas as garantias apenas compatíveis com a sua natureza e configuração, podendo o legislador introduzir limitações daí decorrentes à própria constituição, conformação, estrutura e atividade, sem que se possa, pois, afirmar que tais limitações – por causa daquele princípio de adaptação do art. 12.º, n.º 2 da CRP – vulnerem de alguma forma os direitos fundamentais de pessoas coletivas.
19. Tal modelação poderá, de resto, ter como consequência que as regras da proporcionalidade (art. 18.º da CRP) tenham diferente operacionalidade no tocante aos critérios de restrição ou de limitação de direitos fundamentais, tratando-se de pessoas coletivas, relativamente a pessoas humanas.
20. Não se afigura, por outro lado, que fosse conjeturável qualquer outro mecanismo igualmente apto e eficaz para a prossecução dos fins visado pela agravação da taxa de justiça – bem podendo dizer-se que os alternativos redundariam em maiores prejuízos para os litigantes de massa – sobrando indagar se existe alguma desproporção entre o nível de realização do interesse visado e o grau do sacrifício imposto aos grandes litigantes em resultado da medida adotada.
21. Em primeiro lugar, a classificação de qualquer sociedade como «grande litigante» para efeitos de aplicação da taxa de justiça agravada, não é nem definitiva, nem automática: para além de periodicamente revista, tal avaliação é precedida de procedimento especial de natureza contraditória, que assegura, além do mais, o efeito suspensivo da reclamação que qualquer sociedade venha a apresentar contra a sua perspetivada inclusão na lista de sociedades com mais 200 ações.
22. Em segundo lugar, a medida do agravamento da taxa de justiça aplicável aos grandes litigantes está longe de poder ser considerada, como o presente caso bem o demonstra, excessiva ou desproporcionada, assim claudicando as alegações de violação de adequação e de proibição do excesso.
23. Gozando o legislador de uma margem de liberdade conformadora na concretização prática do volume da litigância, não é desrazoável, quer o tipo de intervenção ponderada, quer o número de ações, procedimentos ou execuções cuja interposição acarreta a tributação por taxa de justiça agravada no ano subsequente.
24. Além disso, o critério legal não conduz a um agravamento excessivo da taxa de justiça, nem a uma diferenciação desproporcionada, considerando a capacidade económica dos sujeitos passivos afetados, o que se revela pelo volume de litigância instaurada.
25. Quanto muito, comporta condicionamento, e não restrição, do acesso ao Direito e aos Tribunais, assegurado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, pois não se vê que torne incomportável o recurso à via judiciária, ao invés do que afirma a recorrente.
Nestes termos, e noutros, que Vossas Excelências seguramente saberão suprir, deve o Tribunal Constitucional:
I. Rejeitar o objeto do recurso interposto na parte em que suscita a desconformidade das normas sub judicio à liberdade de iniciativa e de organização empresarial (art. 80.º al. c) da CRP), abstendo-se o Tribunal de o conhecer, ou,
caso assim não se entenda,
II. ser o mesmo julgado improcedente nesse segmento; e
III. Julgar improcedente o recurso interposto pela A., mantendo-se, nessa medida, a decisão recorrida do Juízo Local Cível de Lisboa - J9, de 06.11.2019, porquanto, ao ter aplicado as normas dos artigos 530.º, n.º 6 do CPC e 13.º, n.º 3 e Tabela I-C anexa ao RCP, não violou qualquer norma, parâmetro ou princípio da Constituição, designadamente os artigos 13.°, 17.°, 18.°, 20.°, e 268.° da Constituição da República Portuguesa. (…)»
5. Tendo a primitiva titular do processo cessado funções como Juíza Conselheira do Tribunal Constitucional, foram os autos redistribuídos.
6. A recorrente foi notificada, em 2 de novembro de 2021, das contra-alegações do recorrido, «para que, querendo, responda exclusivamente à questão prévia enunciada nas conclusões 1 a 4, no prazo de 10 (dez) dias.»
Esgotado o prazo, nada acrescentou.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
7. Constituem objeto do presente recurso as normas do artigo 530.º, n.º 6, do Código de Processo Civil e do artigo 13.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais (adiante designado «RCP»), e da respetiva Tabela I, Coluna C, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de abril, na medida em que determinam o agravamento da taxa de justiça a pagar, quando o responsável passivo seja uma sociedade comercial que tenha dado entrada num tribunal, secretaria judicial ou balcão, no ano anterior, a um número igual ou superior a duzentos procedimentos, providências cautelares, ações ou execuções.
Este Tribunal teve oportunidade de se pronunciar recentemente sobre uma questão suscitada em termos idênticos, no Acórdão n.º 391/2020, desta mesma Secção. Nesse processo, tal como nos presentes autos, verificou-se existir uma divergência entre as questões de constitucionalidade formuladas pela recorrente no requerimento de interposição de recurso e as questões suscitadas nas alegações apresentadas. Compulsados os autos, verifica-se que no requerimento de interposição de recurso a recorrente não invocou nenhuma «derrogação do princípio da liberdade de iniciativa e de organização empresarial, assente na ordem económica concorrencial, a que alude o artigo 80.º da CRP», arguida nas alegações entretanto produzidas. Assiste, pois, razão ao recorrido quando aponta esta divergência nas suas contra-alegações; já no que respeita à ofensa ao princípio da igualdade, não é possível acompanhar a sua alegação, visto que a recorrente se refere expressa e autonomamente ao «princípio constitucional da igualdade» no requerimento de interposição do recurso.
A alegada violação do artigo 80.º da Constituição não deve ser apreciada, uma vez que, tal como se concluiu no Acórdão n.º 391/2020, «os princípios convocados pela primeira vez no âmbito das alegações remetem para questões de constitucionalidade de natureza distinta daquela que foi identificada naquele requerimento, e, como tal, insuscetíveis de serem incluídas no objeto do presente recurso a não ser através da respetiva – e não consentida – ampliação». Com efeito, o Tribunal Constitucional não tem o dever de conhecer quaisquer questões de constitucionalidade que não tenham sido colocadas no requerimento de interposição ou que não tenha sido suscitadas, de modo processualmente adequado, perante o tribunal recorrido (v., neste sentido, o Acórdão n.º 139/2003, reiterado pelos Acórdãos n.ºs 698/2016, 33/2018 e 896/2021, todos da 3.ª Secção). Embora o Tribunal tenha o poder, atribuído pelo artigo 79.º-C da LTC, de julgar inconstitucional ou ilegal a norma aplicada na decisão recorrida com fundamento em parâmetros diversos dos invocados pelo recorrente, tal poder constitui uma faculdade de exercício oficioso, constituindo uma exceção ao princípio do pedido, essencialmente ditada pela função objetiva do recurso de constitucionalidade, e não um desvio em relação à natureza recursória e subsidiária da intervenção da jurisdição constitucional no domínio da fiscalização concreta da constitucionalidade.
De resto, chamada a pronunciar-se sobre a possibilidade de não serem conhecidas as questões que foram suscitadas apenas no momento em que foram apresentadas alegações, a recorrente nada veio contrapor.
8. Quanto às demais questões suscitadas, estas não divergem substancialmente das apreciadas no já referido Acórdão n.º 391/2020, em que se decidiu «[n]ão julgar inconstitucional a norma resultante do artigo 530.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, artigo 13.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de abril, e respetiva Tabela II - B, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 126/2013, de 13 de fevereiro, que prevê uma agravação da taxa de justiça nas ações propostas por sociedades comerciais que tenham dado entrada em qualquer tribunal, no ano anterior, a 200 ou mais ações, procedimentos ou execuções.»
Depois de detidamente analisado o regime legal de que foram extraídas as normas que constituem o objeto do recurso, afirmou o Tribunal nesse aresto:
«17. É dado assente que a Constituição não consagra um direito de acesso ao direito e aos tribunais gratuito ou tendencialmente gratuito. O que prescreve é que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos» (artigo 20.º, n.º 1).
Na sua dimensão defensiva, o direito de acesso ao direito tem como seu correlativo o dever do Estado se abster de privar qualquer categoria de sujeitos da faculdade de aceder aos tribunais para defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como de restringir desproporcionadamente essa faculdade, designadamente onerando-a em termos tais que, na prática, inviabilizem ou mesmo impeçam a obtenção da declaração do direito do caso através do recurso aos tribunais. Já na sua dimensão positiva ou prestacional, o direito de acesso ao direito pressupõe que o Estado organize e disponibilize a todos os indivíduos — pessoas individuais e pessoas coletivas — os meios judiciários e instrumentos processuais indispensáveis à efetivação daquele direito, levando em linha de conta a finitude dos recursos financeiros disponíveis e os custos económicos implicados no funcionamento do sistema de administração da justiça.
Em matéria de fixação da taxa de justiça devida pelos litigantes, o Tribunal vem reconhecendo ao legislador uma «uma larga margem de liberdade de conformação» na repartição dos «pesados custos do funcionamento da máquina da justiça, fixando a parcela que deve ser suportada pelos litigantes e a que deve ser inscrita no orçamento do Estado». Sem preterir, todavia ¾ afirmou-o também ¾ «a vinculação decorrente da tutela do acesso ao direito e à justiça, direito fundamental consagrado no artigo 20.º da Constituição, incompatível com a fixação de taxas de tal forma elevadas que percam um mínimo de conexão razoável com o custo e a utilidade do serviço prestado e, na prática, impeçam pela sua onerosidade a generalidade dos cidadãos de aceder aos Tribunais» (Acórdão n.º 361/2015). Deste último ponto de vista, está sobretudo em causa a ideia de que, apesar de não implicar uma equivalência rigorosa de valor económico entre o custo suportado pelos litigantes e o serviço que lhes é prestado pelo sistema de administração da justiça, a taxa de justiça, como taxa que é, continua a pressupor que «a causa e justificação do tributo possa ainda encontrar-se, materialmente, no serviço recebido pelo utente», de tal modo que «uma desproporção manifesta ou flagrante com o custo do serviço e com a sua utilidade para tal utente afeta claramente uma tal relação sinalagmática que a taxa pressupõe» (Acórdão n.º 361/2015).
Na conformação do regime da taxa de justiça e fixação dos respetivos valores, pode dizer-se, pois, que a margem de discricionariedade legislativa se encontra sujeita a dois limites de natureza diversa: o primeiro é imposto pela bilateralidade inerente ao próprio conceito de taxa e veda a fixação de valores que não possam justificar-se à luz da relação sinalagmática que caracteriza e singulariza aquela espécie de tributo; o segundo resulta do artigo 20.º da Constituição e traduz-se na impossibilidade de onerar os litigantes com o pagamento de uma contraprestação pecuniária de tal modo elevada que comprometa ou frustre a efetivação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva.
18. A possibilidade de dissociar o diferencial correspondente ao agravamento que recai sobre os grandes litigantes do conceito de taxa a que o Tribunal vem reiteradamente reconduzindo a taxa de justiça (cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 349/2002, 227/2007, 301/2009, 151/2011, 238/2014 e 615/2018) foi afastada no Acórdão n.º 238/2014 com base nos seguintes argumentos:
«[A] circunstância de parte da receita obtida com a taxa de justiça agravada estar adstrita ao financiamento de um ente público, para prossecução de específicas medidas de política de justiça, não a converte [também] em tributação autónoma, nem afeta de qualquer modo a sua natureza de taxa (de justiça). Persiste como contrapartida pecuniária da utilização do serviço da administração da justiça, constituído por uma pluralidade de elementos interconetados e que, enquanto sistema, envolve componentes de índole geral, transversais a todos as ações, procedimentos e execuções, mormente no que respeita a recursos centralizados, partilhados pelos tribunais, secretarias e balcões, por exemplo, no domínio dos sistemas de informação. Contrariamente ao que pretende o recorrente, a fixação da taxa de justiça a pagar pela parte atende necessariamente também a esse dispêndio por parte do Estado, não se podendo contrapor, como realidades díspares ou desgarradas – que não são -, um custo individual, atomístico, de cada pleito ou ato e um custo geral. Todos integram os custos do sistema de administração de justiça a financiar.
Compreende-se, então, numa visão integrada, que o legislador afete parte das receitas obtidas com o pagamento da taxa de justiça à modernização desses componentes centrais, entre as quais [parte da] a parcela da taxa de justiça especial imposta aos grandes litigantes, atendendo ao peso específico que tais utentes assumem no congestionamento da procura de justiça e correspondente pressão para a obtenção de maior eficácia, suscetível de garantir a pronta intervenção judicial para todos os que procurem aceder aos tribunais.
Ora, como vincou este Tribunal no Acórdão nº 76/88: "o que releva para a definição da relação sinalagmática, característica da taxa, não é propriamente a destinação financeira das receitas obtidas, mas antes a prestação, aos sujeitos tributados, de um serviço".
Esta doutrina foi seguida nos Acórdãos que não julgaram inconstitucional a norma do artigo 13º, nº 3, do Decreto-Lei nº 423/91, de 30 de outubro, na parte em que estabelecia que, em caso de condenação penal, o arguido seria também condenado a pagar uma quantia equivalente a 1% da taxa de justiça aplicável, resultando implicitamente da mesma norma que tal quantia se destinava a contribuir para custear o pagamento da indemnização, por parte do Estado, às vítimas de crimes violentos (cfr., entre outros, Acórdãos n.ºs 377/94 e 323/99). Diz-se no citado Acórdão n.º 377/94, que “no que diz respeito à natureza sinalagmática, aquele adicional em nada se distingue da taxa de justiça propriamente dita. Se a taxa de justiça é, em geral, a contrapartida que o Estado autoritariamente cobra pela administração da justiça, aquele adicional de 1%, em termos gerais, nada mais representa, afinal, do que um agravamento dessa taxa em 1%.»
Não há qualquer razão para divergir de tal entendimento.
Para além de pouco razoável em si mesma, a possibilidade de fragmentação da natureza jurídica da taxa de justiça unitária estabelecida para os grandes litigantes de modo a reconduzir ao conceito de imposto — «imposto anómalo», na expressão da recorrente — o adicional que resulta da confrontação dos valores estabelecidos nas colunas A (taxa de justiça normal) e B (taxa de justiça agravada) da tabela II anexa ao RCP é contrariada pela contida significância, tanto em termos percentuais como absolutos, dos diferenciais em que se exprime a medida do agravamento, os quais, sendo insuscetíveis de comprometer a bilateralidade da relação entre o serviço prestado e a contraprestação devida, estão longe de justificar ou impor, ainda que apenas nessa parte, a requalificação do tributo.
Não há, assim, fundamento para convocar os princípios constitucionais da igualdade tributária, da generalidade e abstração e da capacidade contributiva, que regem em matéria de impostos, como parâmetros de validade da norma em causa.
19. Resta verificar se a norma sindicada constitui, relativamente aos grandes litigantes, uma restrição do direito de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição, e, em caso afirmativo, se tal restrição é compatível com as exigências a que o artigo 18.º, n.º 2, sujeita as leis restritivas de direitos liberdades e garantias. Ou, ainda que a resposta à primeira questão deva ser negativa, se a medida prevista observa em qualquer caso as exigências de equilíbrio, ponderação e justa medida a que o princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição, sujeita a atuação do poder legislativo.
Em matéria de taxa de justiça, pode dizer-se que toda a contraprestação pecuniária cujo pagamento deva preceder a prática de certo ato processual ou, mais amplamente, a intervenção ou participação na lide do sujeito processual a tal obrigado, constitui uma forma de oneração do direito de acesso ao direito e aos tribunais. Ao impor ao litigante o encargo constituído pelo pagamento da taxa de justiça como condição da possibilidade de realização do seu interesse em provocar (ou reagir a) determinada intervenção do sistema judicial, a taxa de justiça constitui, paradigmaticamente aliás, um ónus de acesso ao direito.
Sucede que nem todos os ónus constituem, só por essa razão, verdadeiras restrições do direito onerado. Sê-lo-ão certamente aqueles que, pela sua dimensão, intensidade ou significado, interferirem com as reais possibilidades de efetivação do direito sobre que incidem, mas já não, pelo menos com igual evidência, os ónus ou encargos que se quedem pela indispensável definição das condições ou pressupostos do seu exercício, sem chegarem a comprometer verdadeiramente qualquer das faculdades que integram o conteúdo respetivo.
Ora, em matéria de fixação da taxa de justiça, apenas seria possível falar em restrição de um direito sem levar em linha de conta o valor, significado e expressão da contraprestação exigida no património de quem se encontra a ela obrigado se a Constituição consagrasse — e vimos já que não consagra — um direito geral de acesso gratuito ou tendencialmente gratuito ao direito e aos tribunais. Quanto ao direito de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, a possibilidade de classificar como verdadeira restrição a subordinação do impulso processual do interessado ao pagamento de uma taxa de justiça depende sempre do nível de condicionamento a que é por essa forma sujeita a faculdade levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional para defesa de um direito ou de um interesse legalmente protegido. Fora deste âmbito, a obrigação de pagamento da taxa de justiça constituirá apenas um limite objetivo que os custos implicados no funcionamento do sistema judicial traçam à dimensão prestacional do direito de acesso ao direito, cuja concretização, como se sabe, se encontra sujeita à reserva do financeiramente possível, em tudo o que exceda o conteúdo mínimo essencial do direito.
20. Notou-se já que a introdução de uma taxa de justiça agravada para sociedades comerciais que tenham dado entrada (num tribunal, secretaria judicial ou balcão) no ano anterior, a 200 ou mais providências cautelares, ações, procedimentos ou execuções, levada a cabo pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, teve em vista não apenas a «moralização e racionalização do recurso aos tribunais, com o tratamento diferenciado dos litigantes em massa», mas também uma «repartição mais justa e adequada dos custos da justiça» (vide supra, ponto 10.), tendo como pressuposto que a grande litigância, entendida como o recurso massivo aos tribunais por parte de um número limitado de utilizadores, constitui um relevante fator de congestionamento e retração da resposta do sistema judicial.
Perante a impossibilidade de maximização da capacidade de reação do aparelho judiciário de modo a neutralizar o impacto dessa procura massiva, o legislador encontrou no agravamento da tributação dos grandes litigantes um meio necessário e adequado para superar tal disfunção.
Como se assinalou no referido Acórdão n.º 238/2014:
«[A] ratio da norma em apreço assenta fundamentalmente no impacto global e sistémico que a grande litigância assume.
Na verdade, tais utentes do serviço de justiça, pela escala que atingem, são responsáveis por afetação significativa de recursos, materiais e humanos, e, inerentemente, numa visão agregada e de conjunto, a respetiva quota parte na utilização do sistema de administração de justiça mostra-se proporcionalmente mais elevada relativamente ao utilizador ocasional do sistema de administração da Justiça.
Do mesmo jeito, o volume de litigância desencadeado por tais agentes económicos significa que, globalmente, são também aqueles que maior vantagem retiram do serviço de justiça, traduzindo a massificação das ações, muitas vezes com causa de pedir similares, igualmente uma posição de maior facilidade no acesso ao direito e à justiça relativamente aos demais sujeitos processuais.
Como, em especial, na medida em que canalizam para si parte importante dos recursos disponíveis, tais utilizadores penalizam a prontidão da apreciação das pretensões apresentadas por quem recorre de forma pontual ou acidental ao sistema de administração da justiça.
Mostra-se razoável, então, e de acordo com o sentido de equilíbrio de valores ínsito no princípio da equivalência, que o montante de taxa de justiça a pagar pela interposição em juízo de ações, procedimentos ou execuções por tais agentes económicos se aproxime mais do custo integral do serviço, reduzindo correspondentemente a margem suportada pelo Estado».
Para além da racionalização do recurso aos tribunais — finalidade cuja pertinência é menos evidente quando se trate de um direito que não possa ser exercido senão através do direito de ação judicial —, a diferenciação estabelecida ao nível da tributação dos grandes litigantes encontra, assim, justificação na intensidade do nível de utilização do aparelho judiciário por parte daqueles agentes económicos e nas consequências que essa acentuada procura produz ao nível da estruturação, dimensionamento e gestão do sistema de administração da justiça.
No caso dos litigantes em massa, a vantagem ou benefício retirado de cada processo interposto supõe, em termos reais, uma prestação mais onerosa por parte do sistema de administração de justiça, na qual vai refletido o custo económico inerente, quer à concentração de meios exigida pelo volume de pendência desencadeada por aquele universo específico de utilizadores, quer ao decréscimo dos níveis de desempenho e de eficiência na resposta às solicitações dos demais utentes.
Ora, através da agravação da taxa de justiça a cargo daqueles que, provocando a intervenção dos tribunais duzentas ou mais vezes em cada ano, colocam ao serviço da tutela dos seus próprios interesses uma parte significativa dos recursos disponíveis, visa-se projetar sobre a contraprestação pelos mesmos devida o impacto do recurso quantitativamente diferenciado aos tribunais, fazendo-a incorporar o valor económico associado ao peso assim gerado sobre o aparelho judiciário, bem como à correlativa diminuição da sua capacidade para, em prazo razoável — que é o tempo constitucionalmente devido (artigo 20.º, n.º 4) — assegurar uma tutela jurisdicional efetiva às pretensões provindas de outros sectores da comunidade.
Para além da tradução que encontra nos próprios pressupostos de aplicação da norma sindicada, tal propósito é, de resto, inteiramente confirmado pela alocação parcial do diferencial que resulta do agravamento da taxa de justiça ao financiamento das reformas essenciais do sistema de administração da justiça (vide supra, ponto 13.), de cujos resultados poderão beneficiar todos os respetivos utilizadores no futuro.
21. Tendo apenas lugar quando os litigantes em massa intervenham como partes ativas na lide e encontrando-se, além do mais, excluído do âmbito dos valores que a parte vencida pode ser obrigada a pagar à parte vencedora a título de custas de parte (vide supra, ponto 14.), o agravamento da taxa de justiça a suportar pelos grandes litigantes não constitui, do ponto de vista da finalidade prosseguida, uma medida inidónea ou inadequada. Contemplando tal finalidade uma repartição mais equitativa dos custos inerentes ao funcionamento do sistema de administração da justiça através do aumento da contraprestação devida pelos seus principais utilizadores, pode mesmo dizer-se que os argumentos invocados pela recorrente, se em algum sentido apontam, é justamente no contrário. Com efeito, se, nos últimos cinco anos, «ficou cabalmente demonstrado, do ponto de vista empírico, que as normas em apreço, afinal, contrariamente ao assumido, não visaram (ou, pelo menos, não concretizaram) o pretenso fim de moralização e racionalização do recurso aos tribunais», o que isso significa é que os grandes litigantes continuam a ser aqueles que mais diretamente consomem e absorvem os recursos disponíveis do sistema de justiça, conclusão para a qual, de resto, cabalmente apontam os dados empíricos mais recentes: de acordo com a última lista disponível (acessível https://www.citius.mj.pt/portal/consultas/Custas/Portaria200-2011.aspx), setenta entidades deram entrada a mais de 200 ações, procedimentos ou execuções no ano de 2019, trinta e seis das quais, entre elas a recorrente, a mais de 500.
Não sendo configurável qualquer outro mecanismo igualmente apto e eficaz para a prossecução do fim visado ¾ o que contraria a alegação de que o legislador recorreu a um meio desnecessário para aquele efeito ¾, resta verificar se existe alguma desproporção entre o nível de realização do interesse visado e o grau do sacrifício imposto aos grandes litigantes em resultado da medida adotada. A resposta é negativa por duas ordens de razão.
Em primeiro lugar, a qualificação de qualquer sociedade como grande litigante para efeitos de aplicação da taxa de justiça agravada não é nem definitiva, nem automática: para além de anualmente revista, tal classificação encontra-se subordinada a um procedimento especial de natureza contraditória, que assegura, além do mais, o efeito suspensivo da reclamação que qualquer sociedade venha a apresentar contra a sua perspetivada inclusão na lista de sociedades com mais 200 ações (vide supra ponto 12).
Em segundo lugar, a medida do agravamento da taxa de justiça aplicável aos grandes litigantes (vide supra, ponto 15.) está longe de poder ser considerada, como o presente caso bem o demonstra, excessiva ou desproporcionada.
No âmbito de uma execução até € 30.000,00 e sempre que as diligências de execução não sejam realizadas por oficial de justiça, a taxa de justiça a suportar pela exequente é no valor de € 32,25 (equivalente a 0,375 UC, correspondente ao valor de inscrito na tabela II-B, anexa ao RCP), comportando assim o diferencial de € 6,75 (0,125 UC), relativamente à taxa de justiça normal (€ 25,50, correspondente a 0,25 UC, valor inscrito na tabela II-A).
Fácil é, assim, de concluir que o critério legal adotado no caso sub judice não conduziu à aplicação de uma taxa agravada manifestamente excessiva. A taxa devida continua a encontrar justificação no princípio da cobertura parcial dos custos inerentes ao funcionamento do aparelho judiciário, estando numa relação de correspondência sinalagmática perfeitamente tangível com a prestação a que a recorrente deu causa, sobretudo quando avaliada a partir do impacto originado pela elevada pendência de ações similares da iniciativa do mesmo litigante e a contribuição do seu somatório para a diminuição da oferta disponibilizável pelo sistema de administração da justiça.
A norma sindicada não é, em suma, constitucionalmente censurável, pelo que o recurso deverá improceder».
9. É esta posição que ora cumpre reafirmar, negando-se provimento ao recurso.
A outra conclusão não induz a circunstância de o objeto do recurso, nos presentes autos, ser retirado de uma diferente Tabela anexa ao RCP (a Tabela I, Coluna C), por não estar em causa qualquer das hipóteses especialmente contempladas na Tabela II (v. o n.º 3 do artigo 13.º do RCP). A norma objeto do recurso não deixa de ser idêntica à apreciada no Acórdão n.º 391/2020, na medida em que impõe um agravamento da taxa de justiça a aplicar, sem haver evidência de que o critério legal aplicado conduziu à aplicação de uma taxa agravada manifestamente excessiva.
Tão-pouco a ofensa ao princípio da igualdade, que se admitiu ter sido oportunamente invocada diante deste Tribunal nos presentes autos, obriga a reponderar ou desenvolver a fundamentação do aresto citado. Com efeito, depois de ter recusado reconhecer ao agravamento da taxa de justiça a natureza de uma sanção ou de um imposto, o Tribunal não deixou de se pronunciar sobre a conformidade do tributo com o princípio da igualdade, segundo um critério de equivalência, reiterando aliás a posição já adotada no Acórdão n.º 238/2014, em que se concluiu:
«Na espécie, tendo em atenção a ratio da norma em apreço, a diferença de tratamento no domínio da taxa de justiça entre os sujeitos jurídicos litigantes em função da sua natureza e do volume de litigância desenvolvida não se mostra irrazoável, arbitrária ou desproporcionada, falecendo razão aos argumentos avançados pela recorrente nesse sentido».
Resta, pois, negar provimento ao recurso.
10. Por decair no presente recurso, é a recorrente responsável pelo pagamento de custas, nos termos do artigo 84.º, n.º 2, da LTC. Ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro, a prática do Tribunal em casos semelhantes e a moldura abstrata aplicável prevista no artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, afigura-se adequado e proporcional fixar a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional as normas do artigo 530.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, do artigos 13.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais e da respetiva Tabela I-C, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de abril, na medida em que determinam o agravamento da taxa de justiça a pagar, quando o responsável passivo seja uma sociedade comercial que tenha dado entrada num tribunal, secretaria judicial ou balcão, no ano anterior, a um número igual ou superior a duzentos procedimentos, providências cautelares, ações ou execuções;
b) Negar provimento ao recurso;
c) Condenar a recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 3 de fevereiro de 2022 - Gonçalo Almeida Ribeiro - Afonso Patrão - Joana Fernandes Costa - João Pedro Caupers
Atesto o voto de conformidade do Senhor Conselheiro Lino Ribeiro, que não assina porque participou na sessão por videoconferência.
Gonçalo Almeida Ribeiro