ACÓRDÃO Nº 100/2022
Processo n.º 995/21
2.ª Secção
Relator: Conselheiro António José da Ascensão Ramos
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
I. Relatório
1. A. propôs Impugnação Judicial junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (Unidade Orgânica 1) do indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) no valor de € 94.594,53 (acrescida de juros compensatórios de € 4.828,03) referente ao ano de 2011, com fundamento em apuramento de mais-valia pela cessão de uma quota no capital de B., Lda. .
O Tribunal “a quo” decidiu nos seguintes termos, para o que aqui nos interessa:
“Em face do exposto e nos termos das disposições legais atrás citadas:
a) Recusa-se a aplicação das normas ínsitas nos artigos 10.º, n.º 1, 3 e alínea a) do n.º 4 e 44.º do CIRS, quando interpretadas no sentido de permitirem a tributação, no âmbito da categoria G do IRS, de rendimentos não percebidos ou postos à disposição do contribuinte, por serem normas materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da capacidade contributiva, consagrado no artigo 104.º da CRP e, em consequência, determina-se a sua desaplicação do caso concreto.
b) Julga-se a presente impugnação PROCEDENTE e, em consequência, anula-se a liquidação de IRS do ano de 2011 n.º (…)027188 no valor a pagar de € 111.456,91, que inclui a liquidação de juros compensatórios n.º (…)418142, no valor de € 4.828,03, que se consubstancia na nota de cobrança n.º (…)247818, no valor de € 94.594,53, com todas as consequências legais.”
2. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional da sobredita sentença ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.º 1, alínea a), ambos da Lei n.º 28/82 de 15.09 (LTC), nos seguintes termos:
“O Ministério Público, representado pelo respetivo Magistrado junto deste Tribunal, notificado do teor da aliás douta sentença proferida com data de 17.06.2021, de fls. 215/246 (SITAF), dos autos supra referenciados, pela qual, e de entre o mais, foi recusada a aplicação das normas previstas nos artigos 10º, nº 1, 3, e alínea a), do nº 4, e 44º, ambos do CIRS, vem interpor o presente recurso, para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea a), e nº 3, da Constituição, e dos artigos 70º, nº 1, alínea a), 71º, nº 1, e 72º, nº 1, alínea a), e 3, todos da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, para o que deverá o mesmo ser admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Pretende-se, por isso, a apreciação das referidas normas dos artigos 10º, nº 1, 3, e alínea a), do nº 4, e 44º, ambos do CIRS, cuja aplicação foi recusada quando interpretadas no sentido de permitirem a tributação, no âmbito da categoria G do IRS, de rendimentos não percebidos ou postos à disposição do contribuinte, por serem normas materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da capacidade contributiva consagrado no artigo 104º, da Constituição.
Requer-se pois a V. Exa. se digne mandar admitir o presente recurso, seguindo-se os demais trâmites processuais até final.”
3. O Tribunal “a quo” admitiu o recurso, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo (fls. 211).
4. O recurso foi recebido no Tribunal Constitucional.
O Ministério Público apresentou alegações, enunciando as seguintes conclusões:
“1. Interpôs o Ministério Público recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta sentença de 17-06-2021, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra - Processo nº2813/14.7BELRS, «(…) nos termos do disposto nos artigos 280º nº 1 alínea a), e nº 3 da Constituição, e dos artigos 70º nº 1 al. a), 71º nº 1, e 72º nº 1, alínea a) e 3, todos da Lei da Organização, funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (…)».
2. Este recurso tem como objeto a douta sentença de fls. 188 a 203 dos autos a qual recusou a aplicação das normas ínsitas nos artigos 10º, nºs 1, 3 e alínea a) do nº 4 e 44º do CIRS, quando interpretadas no sentido de permitirem a tributação, no âmbito da categoria G do IRS, de rendimentos não percebidos ou postos à disposição do contribuinte, por serem normas materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da capacidade contributiva, consagrado no artigo 104º da Constituição.
3. Começando por delimitar o objeto da decisão, afirmou o Mmo. Juiz a quo, que a questão essencial que importava apreciar e decidir prendia-se com a (i)legalidade do ato de liquidação de IRS, de 2011, designadamente, cumprindo aferir qual o valor que deve ser considerado como "valor de realização", para efeitos do cálculo da mais-valia tributada em IRS, e, por outro lado, importava determinar se a interpretação do artigo 10º, nºs 1 e 3 e alínea a) do nº 4 e artigo 44º, ao permitir a tributação de rendimentos não recebidos e incertos, por incumprimento do devedor, facto que foi reconhecido judicialmente, duplicando o montante do rendimento a tributar, é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 1º, 2º, 62º, 103º, nº 1 e nº 3 e 104º da CRP, para efeitos de desaplicação das referidas normas, ao caso concreto.
4. Para o impugnante, pelo facto de não ter recebido o valor total correspondente à alienação da sua quota, na sociedade B., o mesmo impugnante deveria ter sido tributado, apenas, pelo valor efetivamente recebido, isto é, € 67.500,00 e não pelo valor total de € 900.000,00. Já a Fazenda Pública sustenta que o ganho, inerente à referida alienação, considera-se obtido no momento da prática do ato, pelo que o ganho deve ser integralmente tributado no ano de 2011, uma vez que o valor da contraprestação corresponde ao preço estipulado entre as partes.
Questão prévia
5. Da leitura da decisão recorrida, afigura-se-nos estarmos perante um caso de «falsa» ou «aparente» desaplicação de normas. Se não, vejamos:
6. Em questão encontra-se a tributação das mais valias resultantes da alienação onerosa de partes sociais ou outros valores mobiliários, previstas no art. 10º nº 1 al. b) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS).
7. O nº 3 do mesmo artigo 10º dispõe que os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos atos previstos no nº1.
8. Já o nº 4 al. a) daquele artigo determina que o ganho sujeito a IRS é constituído pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, sendo caso disso.
9. Entende o Mmo. Juiz a quo, que a questão essencial que importava apreciar e decidir prendia-se com a (i)legalidade do ato de liquidação de IRS, de 2011, designadamente, cumprindo aferir qual o valor que deve ser considerado como "valor de realização".
10. Salvo melhor opinião, a resposta a essa questão encontra-se no art. 44º nº 1 al. f) o qual dispõe que, para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera-se valor de realização, o valor da respetiva contraprestação.
11. Assim, na realidade, em questão está em saber o que deve ser considerado como o valor da respetiva contraprestação.
12. No caso, como visto supra, entende o impugnante que só deverá ser tributado por referência ao valor efetivamente recebido, isto é, € 67.500,00, já que só esse foi o valor da contraprestação. Já a Autoridade Tributária, entende que o valor da contraprestação, corresponde ao valor estipulado entre as partes aquando da alienação, considerando que, se tal valor não foi recebido na íntegra, tal será indiferente uma vez que naquele momento, que é o relevante nos termos do art.10º nº 3, criou-se um direito de crédito.
13. Perante estas duas interpretações distintas do mesmo artigo – o art.44º nº 4 al. a) do CIRS e do que deve considerar-se o valor de realização, (ou melhor, valor da contraprestação), o Mmo. Juiz a quo analisa as normas jurídicas aplicáveis e socorre-se dos princípios estruturantes do Código do IRS, mormente a conceção de rendimento acréscimo.
14. De igual forma, e no sentido de concluir por uma das interpretações possíveis, o Mmo. Juiz a quo apela ao art. 4º nº 1, da Lei Geral Tributária – que consagra a medida da tributação assente na capacidade contributiva.
15.
E, por fim,
busca conforto na Constituição, bem como em decisões do Tribunal
Constitucional.
16. Após este périplo, o Mmo. Juiz acaba por concluir que o valor de realização a ter em conta para efeitos de tributação das mais valias, não poderá deixar de ser outro que não o valor efetivamente recebido, já que qualquer outra interpretação violaria o mencionado princípio da capacidade contributiva.
17. Assim, , não tendo ficado demonstrado, no caso, nem em sede de procedimento de inspeção tributária, nem nos autos, que o impugnante tenha recebido o total do valor estipulado, conclui o Mmo. Juiz a quo que este apenas poderá ser tributado pelo valor que comprovadamente recebeu.
18. Citando: Em conclusão, não ficou provado, nos presentes autos, que o Impugnante tivesse auferido a totalidade do preço de cessão da sua participação social, na sociedade B., à sociedade C., tendo-se comprovado, que recebeu, apenas € 67.500,00 dos € 900.000,00, contratualmente previstos, valor que foi declarado no anexo G da declaração de rendimentos [declaração de substituição], apresentada em 21.09.2012 [cf. alíneas G) e P) do probatório](…). Ora, não se comprovando o rendimento-acréscimo na esfera jurídica da Impugnante, por não ter recebido a totalidade do valor referente à alienação das sua participação social, na sociedade B., não pode ser tributado em sede de IRS sob pena de violação do princípio da capacidade contributiva, uma vez que a tributação se deve adequar ao esforço económico do contribuinte, devendo incidir sobre manifestações de riquezas efetivas e não meramente potenciais, latentes ou rendimentos que não foram efetivamente percebidos (sublinhado nosso).
19. E, assim, acaba por concluir que (sublinhado nosso):
Destarte, como ficou precedentemente expendido, o ato tributário foi praticado à luz de uma interpretação das normas legais aplicáveis - artigo 10º nºs 1, 3 e alínea a) do nº 4, bem como do artigo 44º do CIRS que é atentatória dos princípios basilares inerentes à tributação do rendimento das pessoas singulares, a saber, o princípio da igualdade tributária, na vertente da capacidade contributiva, ao permitir a tributação de rendimentos não percebidos/recebidos ou postos à disposição. Nesta conformidade, devem ser desaplicadas, no caso vertente, ao abrigo dos artigos 3º, nº 3, 204º e 277º nº 1 da CRP e artigo 1º nº 2 do ETAF, as normas contidas nos artigos 10º nºs 1, 3 alínea a) do nº 4, bem como do artigo 44º do CIRS, quando interpretadas com o sentido de que a tributação pode incidir sobre rendimentos que não foram efetivamente percebidos ou postos à disposição do contribuinte, por inconstitucionalidade material, por violação do principio da igualdade tributária, na vertente da capacidade contributiva, que decorre do artigo 104º da CRP e densificado no artigo 4º, nº 1 da LGT.
20. Verifica-se de todo o exposto, salvo melhor entendimento, que o que o Tribunal recorrido fez foi censurar a interpretação que o ato administrativo impugnado fez do art.44º nº 1 al. f) do CIRS, ao considerar que o valor da contraprestação corresponde ao preço estipulado entre as partes, sem cuidar de verificar se tal valor foi efetivamente recebido pelo contribuinte.
21. Tal censura, no que se refere à falta de diligência por parte da Autoridade Tributária, resulta expressamente do texto da decisão:
Aliás, também no caso em apreço, a AT não comprovou que a Impugnante auferiu a totalidade do rendimento da categoria G [mais-valias], conforme lhe competia [artigo 74º da LGT], uma vez que, quer em sede de procedimento inspetivo, quer em sede de reclamação graciosa, a AT reconhece que o contribuinte não recebeu a totalidade do valor [€ 900.000,00] reconhecendo, ainda, que as prestações seriam pagas até ao ano de 2015, não desenvolvendo quaisquer diligências instrutórias, ao abrigo do princípio do inquisitório, para se assegurar dos montantes efetivamente recebidos pelo Impugnante, designadamente, se alguma das prestações acordadas tinha sido paga, o que seria exequível, designadamente mediante o acesso à informação bancária. Ademais, olvidou todas as outras circunstâncias do caso concreto que apontam no não recebimento do preço, designadamente, a recusa expressa do devedor – C. – em pagar quaisquer outros valores aos cedentes, estando essa obrigação sujeita à apreciação da validade dos contratos celebrados, que envolveram os intervenientes em relações jurídicas complexas e interligadas pelos negócios jurídicos a que supra se fez referência.
22. Conforme resulta deste trecho, o Mmo. Juiz a quo, insurge-se, sobretudo, contra o fato de a Administração Tributária, ao contrário do que lhe impunha a lei, não ter cuidado de apurar se tal valor tinha efetivamente sido recebido pelo contribuinte.
23. Ou seja, o Mmo. Juiz a quo expôs as normas jurídicas aplicáveis, interpretou-as à luz dos princípios que enformam o CIRS e decidiu que o sentido normativo aplicado pelo ato administrativo impugnado não era o correto no plano legal, atento o conceito de rendimento acréscimo que informa o CIRS e o princípio da capacidade contributiva expresso no art.4º da Lei Geral Tributária.
24. Ora, tal como se pode ler na Decisão Sumária nº47/2019, de 23 de janeiro de 2019, também aqui: No entender do tribunal recorrido, a interpretação do direito ordinário que no caso se afigurava correta (ainda que em razão de um princípio constitucionalmente consagrado) «não poderia» ter sido aquela que a Administração fez. Quer isso dizer que o tribunal recorrido não considerou a norma em causa, na interpretação que lhe foi dada pela Administração, como sendo inevitavelmente aplicável ao caso, procedendo depois, ao abrigo do poder que lhe é conferido pelo artigo 204.º da Constituição, à sua desaplicação; o que o tribunal recorrido fez foi considerar que, na interpretação que lhe foi dada pela Administração, a norma em causa não tinha aplicação, procedendo depois, ao abrigo do poder que lhe assiste de interpretar o direito infraconstitucional, à aplicação daquela mesma norma na interpretação que considerava correta (…).
25. Também no caso ora em apreço, não considerou o Tribunal a quo que a interpretação dada àquela norma pela administração tributária era inevitável e, como tal, deveria ser desaplicada por inconstitucional.
26. Como de pode ler na decisão sumária citada (sublinhado nosso):
Por outras palavras ainda: a decisão recorrida concluiu que houvera uma incorreta aplicação ao caso, por parte da Administração, de uma determinada interpretação da norma ordinária contida no n.º 6 do artigo 139.º do CIRC, e não que essa interpretação normativa, sendo inevitável nesse plano infraconstitucional, deveria, todavia, ser desaplicada em razão da sua desconformidade com a Constituição.
27. É certo que, para além dos argumentos que relevam do direito ordinário, a sentença recorrida pondera as razões de ordem constitucional para repudiar a interpretação alternativa segundo a qual o valor da contraprestação corresponde ao preço estipulado entre as partes, mesmo que tal valor não tenha sido recebido pelo impugnante. Porém, afigura-se-nos que, tal como refere o Exmo. Senhor Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro na sua declaração de voto proferida no Acórdão nº 211/2017, de 2 de maio de 2017, também aqui, Trata-se, porém, de um «mero argumento de conforto da justeza do entendimento a que anteriormente se chegou quanto à interpretação tida por correta, ao nível da interpretação do direito ordinário aplicável» (Acórdão n.º 8/2008), surgindo o excurso constitucional «na economia do acórdão recorrido, a título de mero reforço argumentativo para a eventualidade de se não concordar com a interpretação da lei que se perfilhara, e não como razões justificativas para o afastamento da solução que imediatamente resulta da lei.» (Acórdão n.º 54/2008).
Quando «o apelo à Constituição…traduz, apenas, um reforço do resultado interpretativo a que se chegou por via do direito infraconstitucional» (Acórdão n.º 285/2002), tem o Tribunal Constitucional entendido, atendendo à função instrumental dos recursos de constitucionalidade, que não deve conhecer do objeto do recurso. Com efeito, nesses casos, o juízo de inconstitucionalidade não é indispensável para afastar a aplicação da norma sindicada, desempenhando um papel meramente subsidiário na fundamentação da decisão recorrida. Ora, em tais casos, o recurso de constitucionalidade não se afigura útil, porque ainda que o Tribunal Constitucional viesse a contrariar o juízo de inconstitucionalidade do Tribunal recorrido, sempre a decisão deste permaneceria inalterada, valendo-se para esse efeito dos fundamentos invocados no plano estritamente infraconstitucional. Tal inutilidade do recurso obsta, por si só, ao conhecimento do respetivo objeto. Como se afirma reiteradamente na jurisprudência constitucional «(…) não visando os recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso» (Acórdão n.º 366/96). Entendimento este que é válido nos casos de recurso fundado na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (v. o Acórdão n.º 152/2009).
28. Assim, e face a todo o exposto, afigura-se que o Mmo. Juiz a quo não desaplicou as normas ínsitas nos artigos 10º, nºs 1, 3 e alínea a) do nº 4 e 44º do CIRS, tal como afirma, tendo-as, isso sim, interpretado e aplicado, enquadrando-as nos princípios que enformam o Código do IRS e, naturalmente, à luz da Constituição.
29. Termos em que o objeto do recurso não deverá ser conhecido.
30. Caso assim não se entenda, sempre se diga que se concorda na íntegra com a conclusão a que chegou o Mmo. Juiz a quo no que se refere ao juízo de inconstitucionalidade de uma norma que determinasse que o valor da contraprestação para efeitos de tributação das mais valias fosse o valor estipulado entre as partes no contrato e não o valor efetivamente recebido pelo contribuinte.
31. Tal violaria, em nosso modesto entender, para além do mais, o princípio da capacidade contributiva.
32. A admitir-se que o art. 44º nº 1 al. f) do CIRS, ao referir que o valor de realização (e, como tal, um dos valores de referência para se encontrar o valor das mais valias a ser tributadas) é o valor da respetiva contraprestação, sendo esta o valor estipulado entre as partes independentemente de este ter sido recebido ou não, tal não levaria em conta a real capacidade contributiva do contribuinte já que este seria tributado por aquele valor, ainda que nada tivesse recebido, ou tivesse recebido um valor inferior.
33. De igual forma, afigura-se-nos que tal, levar-nos-ia a concluir que estarmos perante uma presunção inilidível.
34. Ora, o Tribunal Constitucional já, por diversas vezes, teve oportunidade de se debruçar sobre a questão das presunções inilidíveis em questões fiscais, não as admitindo - mais uma vez, pela sua clareza e referência a outras decisões relevantes, v. Acórdão nº 211/2017, de 02.05.2017:
35. Assim, a admitir-se que o art. 44º nº 1 al. f) do CIRS, ao referir que o valor de realização (e, como tal, um dos valores de referência para se encontrar o valor das mais valias a ser tributadas) é o valor da respetiva contraprestação, sendo esta o valor estipulado entre as partes independentemente de este ter sido recebido ou não, violaria o princípio da igualdade previsto no artigo 13º da CRP, manifestado na vertente da igualdade tributária e da capacidade contributiva.
Por força do exposto, deverá o Tribunal Constitucional:
a) Não conhecer o objeto do presente recurso.
Caso assim não se entenda,
b) Decidir julgar materialmente inconstitucional a norma ínsita no artigo 44º nº 1 al. f) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, quando interpretada no sentido de permitir a tributação, no âmbito da categoria G do IRS, de rendimento não percebido ou posto à disposição do contribuinte, por ser norma materialmente inconstitucional, por violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13º da CRP, manifestado na vertente da igualdade tributária e da capacidade contributiva.”
5. O recorrido, A., foi notificado para responder, no que bastou-se com declaração de adesão ao expendido pelo Ministério Público em alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Uma primeira questão que cabe apreciar respeita à regularidade da presente instância, colocada pelo recorrente em conclusões 5.º a 29.º das alegações de recurso.
Repescando o relatado resumidamente, entende o Ministério Público que a questão de inconstitucionalidade não conforma a fundamentação de essência da sentença recorrida, o que desprovê a instância de recurso de fiscalização concreta de efetiva utilidade e que, como tal, a fere de irregularidade processual preclusiva da apreciação de mérito.
Ora, a este propósito cabe fazer ver que o thema decidendum perante o Tribunal recorrido respeitava à tributabilidade de mais-valia no âmbito de contrato de cessão de quotas celebrado entre A. (e outros) e a sociedade “C. SGPS, SA” em 23.05.2011. Por esta convenção, o impugnante transmitiu pelo preço de € 900.000,00 à cessionária uma quota no capital de “B., Lda.” com o valor nominal de € 750,00, correspondente a 15% do capital da empresa participada. Com a assinatura, A. recebeu da cessionária por conta do preço acordado o valor de € 67.500,00, estipulando-se que o remanescente seria pago em seis prestações anuais de igual valor, a primeira das quais com vencimento em 15.06.2012 e as demais no dia 15.06 dos anos subsequentes, assim em tranches sucessivas cada uma pela cifra singular de € 138.600,00 (cfr. Factos Provados C.), D.), F.) e G.)).
A venda da participação social nestas condições impôs a necessidade de liquidar a mais-valia de A. no ano de 2011, classificável como rendimento de categoria G (incrementos patrimoniais – artigo 9.º, n.º 1, alínea a) do Código do Imposto de Rendimento de Pessoas Singulares [CIRS], ex vi artigo 10.º, n.º 1, alínea b) do CIRS, ambos na redação do diploma conferida à data, como doravante e salvo indicação expressa em contrário). A esse título, o impugnante declarou à administração tributária (AT), ainda que a destempo e mediante declaração de substituição apresentada em 21.09.2012, o valor de € 67.500,00, correspondente à parte do preço que recebeu da cessionária aquando da celebração do pacto (Factos Provados N.) e P.)).
A AT, porém, procedeu a liquidação oficiosa de IRS considerando o valor integral da contraprestação acordada, líquido do gasto de investimento, entendendo o montante assim apurado como sujeito a incidência como mais-valia (categoria G) por 50% (artigo 43.º, n.ºs 3 e 4 do CIRS e Decreto-Lei n.º 372/2007 de 06.11). A administração apurou um rendimento de A. no período de 2011 cifrado em € 449.625,00 (porque abatido do gasto de investimento) tributável a taxa de 20%, face ao quadro legal em vigor à data do facto gerador de imposto (artigo 72.º, n.º 4 do CIRS), concluindo a final pela liquidação de IRS devido pelo sujeito passivo de € 89.925,00 (cfr. Factos Provados S.)).
O impugnante insurgiu-se contra o lançamento de imposto nestes termos com o argumento de que o preço não foi por ele recebido por valor superior ao por ele declarado. A impugnação da liquidação assentou em duas ordens de razões diferentes: em primeiro lugar, tendo por base o facto de o contrato de cessão de quotas ter concedido à cessionária benefício de prazo de seis anos para satisfazer o remanescente em dívida; em segundo lugar, porque a sociedade compradora não cumpriu sequer esse plano de pagamentos, achando-se em falta por todas as seis prestações de preço diferidas à data da liquidação adicional de imposto.
Está bom de ver, a controvérsia entre impugnante e AT que se deparava perante o Tribunal respeitava a saber o regime de incidência e a tributabilidade do ganho por mais-valia.
Perante a evidência, consensual, de que o valor de realização da mais-valia equivale à contraprestação no negócio (artigo 44.º, n.º 1, alínea f) do CIRS), ou seja, ao preço estipulado para a cessão da parte de capital e que o apuramento impõe se abata a esse valor os gastos de investimento (artigo 10.º, n.º 4, alínea a) do CIRS), importava saber se o ganho tributário se verifica no momento da realização (com a operação) ou no momento do encaixe financeiro (com o recebimento do preço).
Por outras palavras, porque o cumprimento do valor de realização da mais-valia ficou distribuído, pela convenção, por sete exercícios fiscais diferentes e porque sobreveio mora debitori durante a execução do plano de pagamentos, a controvérsia entre o contribuinte e a AT residia na periodização do rendimento: se (i) toda a mais-valia se entenderia realizada no período tributário da operação de acordo com uma ótica financeira; ou se, adotando uma ótica de tesouraria, (ii) a diluição do pagamento acordada entre contratantes importaria a repartição da tributação do valor realizado pelos anos subsequentes, em consonância com o programa contratual para a contrapartida.
O Ministério Público apoia a arguição da irregularidade alegando que o Tribunal “a quo”, em essência, interpretou o quadro legal aplicável neste segundo sentido. Não haveria propriamente uma censura constitucional à Lei, mas uma sua interpretação em conformidade com princípios constitucionais (maxime, o princípio da capacidade contributiva) de que teria resultado a procedência da impugnação. A declaração de inconstitucionalidade dos “artigos 10.º, n.º 1, 3 e alínea a) do n.º 4 e 44.º do CIRS, quando interpretadas no sentido de permitirem a tributação, no âmbito da categoria G do IRS, de rendimentos não percebidos ou postos à disposição do contribuinte” teria sido introduzida na decisão apenas para propósito argumentativo, assim como forma de ilustrar que o entendimento defendido pela AT, localizando o facto tributário aquando da alienação da quota, colidiria com a Constituição fiscal. A sua integração no dispositivo e a declaração formal de desaplicação das normas referidas redundaria em algo próximo a um erro de organização da sentença, já que, em verdade, se trataria apenas de censurar a interpretação oposta à adotada pelo Tribunal.
Se assim tivesse sido, assistiria inteira razão ao Ministério Público: mesmo que este Tribunal Constitucional declarasse a não-inconstitucionalidade dos artigos 10.º, n.º 1, 3 e alínea a) do n.º 4 e 44.º do CIRS na interpretação normativa censurada, subsistiria a controvérsia, sendo admitido ao foro recorrido adotar a segunda das duas interpretações possíveis do programa legal aplicável, como de facto teria adotado, deixando por isso a decisão impassível de reversão por via deste patamar de recurso de fiscalização concreta (cfr. artigo 80.º, n.º 2 da LTC).
No entanto, não nos parece que seja essa a situação que se observa.
O artigo 10.º, n.º 3 do CIRS, na redação à data e a respeito de mais-valias, possuía por conteúdo: “os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos atos previstos no n.º 1”, localizando de forma inequívoca a data de verificação do facto tributário no momento da transmissão da participação social (“b) alienação onerosa de partes sociais”). Foi em face da transparência do preceito, por entender que a solução legal era incontornável e que impunha se tivesse a mais-valia como obtida na data da convergência de declarações de vontade à cessão da participação social (com inerente efeito translativo, ex vi artigo 408.º, n.º 1 do Código Civil [CC]), que o Tribunal “a quo” se dedicou a analisar a compatibilidade dessa solução legal para com o princípio da capacidade contributiva.
Preocupou o foro recorrido que a Lei não levasse em conta o fracionamento do preço estipulado e o prolongamento da sua satisfação por tranches, onerando o contribuinte com um output de imposto que não dispunha do offset de caixa inerente ao recebimento. Por outro lado, inspirou dúvidas sobre constitucionalidade o facto de a solução legal deixar a tributação permeável à possibilidade de o preço de realização jamais vir a ser recebido pelo alienante em caso de incumprimento definitivo da obrigação de preço, sem que por isso o ganho deixasse de ser tributável in toto. O Tribunal “a quo” fez notar que o caso dos autos possuía esses contornos, conquanto não havia prova de que o preço tivesse sido pago à data da liquidação do imposto. No ver do Tribunal, seria pacífico que a Lei impõe a tributação integral do ganho, ex vi artigo 10.º, n.º 3 do CIRS, e que o recebimento, exista ou não, seja irrelevante para efeitos de caracterização do rendimento sujeito a tributação.
Por ser assim, o Tribunal recorrido concluiu a final que o regime legal de tributação de mais-valias sobre partes de capital é inconstitucional, por rutura com o princípio da capacidade contributiva, quando o ganho por mais-valia se considere obtido sem que o valor de realização (preço) haja sido recebido ou colocado à disposição do contribuinte, por esta fórmula descrevendo o regime legal que resulta, textualmente, do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea b) e 3 do CIRS.
Em face do que fica dito, não estamos perante um debate sobre a melhor forma de interpretar o disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea b) e 3 (em conjugação com o artigo 10.º, n.º 4 do CIRS, que estabelece as regras para apuramento da mais-valia; e artigo 44.º, n.º 1, alínea a) do CIRS, que define o valor de realização), mas antes perante uma controvérsia sobre a compatibilidade constitucional de um programa normativo que se tem por inequívoco e presente na Lei: para o Tribunal “a quo”, como para a AT, as normas de incidência objetiva do CIRS impõem que o ganho por mais-valia se considere obtido no ano em que a operação de alienação da participação social seja realizada, a isso não obstando a modulação contratual que as partes ofereçam ao acordo no que respeita às condições para pagamento do preço (valor de realização), como também lhe são indiferentes (à norma de incidência objetiva) as incidências contratuais referentes a cumprimento (mora ou incumprimento definitivo) que se venham a verificar. É a conformidade constitucional deste regime para com o princípio da capacidade contributiva que constitui o centro nevrálgico da controvérsia e foi o juízo de inconstitucionalidade material que lhe foi dirigido pelo Tribunal “a quo” que determinou e que suporta o sentido final da sentença, anulatório da liquidação de IRS.
Em face do exposto, concluímos não estar precludida a utilidade do presente recurso. Conquanto a questão de inconstitucionalidade consubstancia o fundamento exclusivo da decisão, a sua revisão na presente sede de fiscalização concreta possuirá impacto direto no julgado, revestindo o recurso, por necessária deriva, adequada natureza instrumental face à causa principal e possuindo utilidade efetiva, por ser apto a importar a inversão do sentido decisório alcançado (cfr. artigos 70.º, n.º 1, alínea b), 79.º-C e 80.º, n.ºs 1 e 2, todos da LTC).
2. Capacidade Contributiva, Rendimento-Acréscimo e Mais-Valias
2.1. A igualdade fiscal conforma uma dimanação do princípio da igualdade quando colocado no domínio tributário, impondo por isso não apenas uma proibição absoluta de discriminação negativa (artigo 13.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), mas também um tratamento legal-fiscal uniforme de situações substancialmente iguais (igualdade horizontal) e diferenciador quanto a situações dissemelhantes (igualdade vertical). Resulta assim vedado um primado universalista que se reduzisse a uma paridade de mero cunho formal entre sujeitos dotados de personalidade tributária, antes se impondo um padrão de critério que alcance uma situação de equilíbrio funcional conforme com a substancialidade assimétrica das situações reguladas (cfr. artigos 13.º e 103.º, n.º 1, parte final, da Constituição da República Portuguesa; v., acórdão do Tribunal Constitucional n.º 590/2015).
Afirmada por esta via a igualdade material em sede tributária, o princípio da capacidade contributiva assinala-se como limite e fundamento da tributação, constituindo-se como seu pressuposto (ou substrato) e critério (ou parâmetro): na dimensão limitativa, por aqui se postula a isenção fiscal do mínimo de subsistência e, ao mesmo passo, a proibição de máximo confiscatório; de outra parte, a constituição fiscal impõe ainda que o imposto seja construído, no patamar infra constitucional, em consideração de indicadores efetivos de aptidão para suportar a prestação tributária, que se arvoram assim como a fonte da incidência do imposto; finalmente e enquanto princípio de parametrização da incidência, por ele se impõe que a carga económica inerente ao imposto seja regulada de modo a acompanhar as variações de poder aquisitivo do sujeito passivo obrigado a imposto, garantindo uma situação de igualdade material entre sujeitos e entre categorias de rendimentos (v., sobre o assunto, CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 2.ª ed., Almedina, 2004, pp. 148-153 e, de forma mais desenvolvida, CASALTA NABAIS, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Col. Teses, Almedina, 2004, pp. 435-524; também acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 80/2003, 84/2003, 197/2016 e 275/2016).
Do agasalho constitucional dos princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva resultou no plano infraconstitucional a consagração do arquétipo de rendimento-acréscimo como modelo primário de construção dos critérios de incidência dos impostos sobre o rendimento. Este paradigma assenta na consideração como matéria coletável de todos os incrementos patrimoniais verificados num único exercício na esfera do sujeito passivo, ou seja, num juízo concreto de aferição da variação líquida de poder económico operada entre o início e o fim do ano fiscal, acrescido do consumo no mesmo período: o modelo é, pois, inclusivo de todos os aumentos líquidos de valor numa esfera patrimonial, independentemente de destino, origem ou da atividade que os gerou e abarca os referentes a ativos que não hajam sido transacionados nem consumidos (v., sobre o assunto, XAVIER DE BASTO, IRS – Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra, 2007, pp. 39-45).
Este arquétipo representa um sensível aprofundamento do princípio da igualdade fiscal e da capacidade contributiva face ao paradigma do rendimento-produto (ou rendimento-fonte) que o precedeu, precisamente porque estoutra conceção cinge os ganhos tributáveis aos dotados de regularidade, ou seja, aos que previsivelmente se repetirão em ulteriores exercícios porque decorrentes de uma atividade produtiva desenvolvida pelo sujeito passivo de forma estável e como decorrência de empenho estrutural de recursos próprios. A noção de rendimento-acréscimo, como se vê, oferece maior amplitude aos indicadores de riqueza que despoletam a operatividade da incidência, oferecendo uma visão mais transparente das reais variações do poder aquisitivo e insuflando o sistema fiscal de maior justiça por oferecer maior segurança de não-discriminação entre categorias de rendimentos. O seu acolhimento em sede de imposto sobre o rendimento (singular e coletivo) tem merecido indisputável agasalho da Jurisprudência do Tribunal Constitucional:
“é o próprio princípio da capacidade contributiva que «exige a oneração do rendimento global, qualquer que seja a sua origem, natureza ou destino e daqui resulta necessariamente a exclusão da velha teoria do rendimento-fonte (Quellentheorie, source-income theory), pela qual se integravam no rendimento tributável apenas os fluxos periódicos e regulares de riqueza percebidos pelo contribuinte, uma teoria que serviu de apoio aos impostos cedulares que no passado se abatiam exclusivamente sobre os rendimentos do trabalho, lucros do comércio e da indústria, rendas ou juros. Em vez disso, o princípio exige que se alargue o rendimento tributável a todo o acréscimo patrimonial verificado na esfera do contribuinte em dado período de tempo, tal como ensina a teoria do rendimento-acréscimo” (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 211/17; v. também, entre outros, acórdãos n.ºs 127/2004, 162/2004, 85/2010, 451/2010, 42/2014 ou 430/2016, 506/2021 e 732/2021)”
Assim, do abandono do arquétipo de rendimento-produto resultou a sujeição a tributação de ganhos desenquadrados da atividade operacional do sujeito passivo e é aqui que encontramos a classificação da mais-valia que se debate nos autos: os capital gains (ou windfall gains) são aumentos inesperados do valor de ativos patrimoniais que, se previsivelmente se entendem irrepetíveis ou meramente conjunturais na lógica económica em que se encontra o sujeito passivo (já que não são decorrência da sua atividade ou do seu investimento de recursos à obtenção de proveitos), constituem incrementos patrimoniais do exercício e conformam indicadores de poder aquisitivo. São, como tal, elegíveis para tributação em imposto sobre o rendimento, assegurando a otimização da igualdade comparativa do sistema tributário (XAVIER BASTO, op. cit., p. 379 e GOMES DE LIMA, A Tributação de Mais-Valias da Alienação de Acções: Evolução Legislativa e Desafios Fiscais num Panorama de Crise Económica, Univ. Católica do Porto, 2013, pp. 8-11).
Significa isto que, em princípio, os processos de valorização de ativos classificáveis como mais-valias seriam tributáveis no período em que se verificassem, quer envolvessem operações financeiras dotadas de contrapartidas para o titular, quer não. No entanto, a Lei portuguesa, como a generalidade dos ordenamentos internacionais, adotou neste âmbito o princípio da realização, deslocando e cingindo a tributação das mais-valias, por regra, aos processos de negociação dos ativos valorizados, definindo o facto gerador de imposto por referência a um catálogo de negócios jurídicos (artigo 10.º, n.º 1 do CIRS e, sobre o assunto, GOMES DE LIMA, op. cit., pp. 11-13 e acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 08.01.2014 no Proc. 01078/12). Daqui se colhe que apenas as transações são abrangidas pela incidência fiscal, excluindo a generalidade das mais-valias potenciais ou latentes, que assim se entendem por conjunturais ou como ganhos de natureza reversível, ainda que representem o acesso a utilidades adicionais pelo seu titular mensuráveis e caracterizantes da sua situação de riqueza.
Já resulta do exposto que o princípio da realização corporiza um sacrifício relativo do princípio de rendimento-acréscimo e constitui um fator de degradação da igualdade fiscal e da coerência interna do sistema tributário. A desconsideração para efeitos fiscais da aquisição de valor de um ativo tem de se entender geradora de injustiça relativa entre contribuintes, permitindo questionar a compatibilidade do imposto para com o princípio constitucional da igualdade tributária, já que representa uma ação discriminatória de preterição de tributação de uma categoria de incrementos patrimoniais.
O regime de exceção vem sendo justificado por dificuldades na gestão do imposto noutros termos (outra opção legislativa imporia que, anualmente, a administração desenvolvesse processos de avaliação de todos os ativos por critérios de mensuração fidedignos, incluindo obras de arte, veículos, artigos de colecionador, ativos financeiros em mercados não-regulamentados, etc., o que se afigura tarefa impossível), mas, principalmente, por condicionantes relacionadas com o próprio contribuinte.
Por um lado, caso a dívida de imposto estivesse relacionada com bens não-transacionados, a tributação de uma mais-valia não-realizada poderia gerar problemas de cash-flow para o sujeito passivo, especialmente nos casos de valorização de propriedades imobiliárias ou de outros ativos caracterizados por reduzida liquidez. Por outro lado, colocar-se-iam problemas de gestão da perceção pública da tributação nos casos em que a valorização ocorresse sobre um ativo que o sujeito passivo jamais consideraria negociar ou envolver em processos de rendibilização, casos em que o ganho se cinge a um aumento valorimétrico baseado em perceções de mercado (paper gains), de si voláteis e potencialmente transitórias (XAVIER DE BASTO, op. cit., pp. 385-386).
Estas considerações vêm-se entendendo fundamento bastante para excluir a tributabilidade das mais-valias não-realizadas, mas nem por isso se podem haver por incontroversas. Às razões enumeradas para afastar a tributação pode opor-se o facto de as mais-valias latentes serem passíveis de monetarização (e que frequentemente são monetarizadas) antes da realização, designadamente através de contração de dívida. Ao reforço da garantia do sujeito pelo processo de valorização económica do ativo corresponderá maior disponibilidade de linhas de crédito e/ou um alívio do juro financeiro por aquelas de que o titular já beneficiasse (por diminuição do cálculo de risco para o credor). Em ambas as situações se amplia o acesso a disponibilidades e a estas fórmulas de converter mais-valias não-realizadas em cash flow, por assentarem em dívida, não se associa qualquer forma de tributação. É até possível que o juro financeiro por dívida nova concorra para a erosão da matéria coletável quanto a outras classes de rendimentos auferidos no período, no caso de sujeitos passivos que desenvolvam atividade empresarial (cfr. artigo 23.º, n.º 1, alínea c) do Código do Imposto sobre o Rendimento de pessoas Coletivas [CIRC] e artigo 32.º do CIRS).
A permeabilidade da elisão fiscal (que neste contexto terá de se entender lícita) que a adoção do princípio da realização representa, conforma uma entorse importante no princípio da igualdade (horizontal) no domínio tributário, está bom de ver, mas, ainda assim, haverá que conceder que nem sempre o sujeito passivo se acha em condições de aceder a mecanismos de conversão de mais-valias em liquidez que não assentem no envolvimento do bem valorizado em operações de mercado com efeitos translativos (se não for mesmo essa a generalidade dos casos).
Serve o exposto para concluir que, no âmbito da fixação do regime de tributação das mais-valias, é forçoso situar o problema num espaço de liberdade concedido ao legislador ordinário pela Constituição fiscal na modulação do imposto sobre o rendimento. As dificuldades na gestão administrativa de um regime de tributação por mais-valias não-realizadas, as preocupações que inspira o excesso de pressão na liquidez do contribuinte e a sensibilidade pública para o problema não são argumentos espúrios, antes justificam de forma consistente o acolhimento do princípio da realização como condicionante à tributabilidade de capital gains, também (e especialmente) porque a igualdade tributária não se pode entender como o escopo único do sistema fiscal, mesmo no contexto jurídico-constitucional.
Por esta via chegamos ao nó górdio da questão, para ter presente adiante: sem nenhuma dúvida que a capacidade contributiva conforma um verdadeiro limite material da tributação e que “não pode ser encarada como um princípio constitucional meramente programático ou ao qual se impute a solução de problemas manifestamente marginais (…) antes há-de servir como um dos princípios básicos por que passa o teste material do atual estado fiscal” (CASALTA NABAIS, Estudos de Direito Fiscal, Almedina, 2005, pp. 405-406), mas sem que isso obste à conclusão que outros princípios da Constituição fiscal intervêm na edificação do sistema jurídico-tributário, seja exemplo o princípio da praticabilidade fiscal que aqui sinalizamos, como também, noutros cruzamentos da legislação tributária, as necessidades de angariação de receita coevas ao Estado Social (cfr. artigo 103.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).
Neste domínio e levando em conta a complexidade de interesses jurídicos sinalizados, o legislador ordinário beneficia de larga margem na adoção de soluções de política legislativa e não cabe aos órgãos jurisdicionais de fiscalização constitucional sindicar opções ou impor alternativas que melhor promovessem o princípio da igualdade ou, bem assim, outros valores coevos à Constituição fiscal, mas antes localizar os espaços onde se romperam limites e se perdeu a conexão com esses princípios e valores, seja o caso da capacidade contributiva enquanto fundamento e critério de parametrização do sistema tributário (v., sobre o assunto, acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2013). Apenas aí será possível escorar juízo de inconstitucionalidade.
Importa reter estas considerações para o que mais diremos a propósito do caso sub iudicio.
3. O Juízo de Inconstitucionalidade do Tribunal recorrido
3.1. Repescando o que acima relatámos para organização de argumento, o Tribunal “a quo” entendeu os artigos 10.º, n.º 1, alínea b), n.ºs 3 e 4, alínea a) e 44.º, todos do CIRS (sujeição a incidência das mais-valias por alienação de participações sociais) por inconstitucional “por violação do princípio da capacidade contributiva consagrado no artigo 104.º da CRP”, quando interpretados no sentido de permitirem a “tributação (…) de rendimentos não-percebidos ou postos à disposição do contribuinte”.
Relativamente aos dispositivos legais a que se reporta a desaplicação, cabe fazer ver que o artigo 44.º do CIRS apenas pode considerar-se abarcado pelo juízo de reprovação constitucional no que respeita à alínea f) do respetivo n.º 1, conquanto os demais, que reportam à aferição do valor de realização noutra tipologia de negócios jurídicos (que não cessão de participações sociais), nem remotamente se podem entender afetados pela sentença, que não os menciona de todo. O mesmo sucede quanto ao artigo 10.º, n.ºs 1 e 3 do CIRS, que define as mais-valias tributáveis. Apenas a alínea b) do n.º 1, o corpo do texto do n.º 3 e a alínea a) do n.º 4 reportam ao facto tributário cuja liquidação conforma o objeto da impugnação judicial, sendo tudo o mais puramente irrelevante e absolutamente arredado do juízo formulado na sentença.
A redação dos preceitos do CIRS é a que, de seguida, se transcreve, reportando à redação que lhes estava atribuída à data do facto tributário (31.12.2011) que subjaz à liquidação de imposto. Marcamos a bold os preceitos que de facto importam ao presente processo de fiscalização:
“Artigo 10.º
Mais-Valias
1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:
a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e afectação de quaisquer bens do património particular a actividade empresarial e profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário;
b) Alienação onerosa de partes sociais, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, e de outros valores mobiliários e, bem assim, o valor atribuído aos associados em resultado da partilha que, nos termos do artigo 75.º do Código do IRC, seja considerado como mais-valia;
c) Alienação onerosa da propriedade intelectual ou industrial ou de experiência adquirida no sector comercial, industrial ou científico, quando o transmitente não seja o seu titular originário;
d) Cessão onerosa de posições contratuais ou outros direitos inerentes a contratos relativos a bens imóveis;
e) Operações relativas a instrumentos financeiros derivados, com excepção dos ganhos previstos na alínea q) do n.º 2 do artigo 5.º
f) Operações relativas a warrants autónomos, quer o warrant seja objecto de negócio de disposição anteriormente ao exercício ou quer seja exercido, neste último caso independentemente da forma de liquidação.
g) Operações relativas a certificados que atribuam ao titular o direito a receber um valor de determinado activo subjacente, com excepção das remunerações previstas na alínea r) do n.º 2 do artigo 5.º;
2 - (Revogado)
3 - Os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos actos previstos no n.º 1, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes:
a) Nos casos de promessa de compra e venda ou de troca, presume-se que o ganho é obtido logo que verificada a tradição ou posse dos bens ou direitos objecto do contrato;
b) Nos casos de afectação de Quaisquer bens do património particular a actividade empresarial e profissional exercida pelo seu proprietário, o ganho só se considera obtido no momento da ulterior alienação onerosa dos bens em causa ou da ocorrência de outro facto que determine o apuramento de resultados em condições análogas.
4 - O ganho sujeito a IRS é constituído:
a) Pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, sendo caso disso, nos casos previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1;
b) Pela importância recebida pelo cedente, deduzida do preço por que eventualmente tenha obtido os direitos e bens objecto de cessão, no caso previsto na alínea d) do n.º 1.
c) Pelos rendimentos líquidos, apurados em cada ano, provenientes das operações referidas nas alíneas e) e g) do n.º 1;
d) Pelos rendimentos líquidos, apurados em cada ano, provenientes das operações referidas na alínea f) do n.º 1, os quais correspondem, no momento do exercício, à diferença positiva entre o preço de mercado do activo subjacente e o preço de exercício acrescido do prémio do warrant autónomo ou à diferença positiva entre o preço de exercício deduzido do prémio do warrant autónomo e o preço de mercado do activo subjacente, consoante se trate de warrant de compra ou warrant de venda.
5 - São excluídos da tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, nas seguintes condições:
a) Se, no prazo de 36
meses contados da data de realização, o valor da realização, deduzido da
amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, for
reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel, de terreno para a
construção de imóvel, ou na construção, ampliação ou melhoramento de outro
imóvel exclusivamente com o mesmo destino situado em território português ou no
território de outro Estado membro da União Europeia ou do espaço económico
europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em
matéria fiscal;
b) Se
o valor da realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído
para a aquisição do imóvel, for utilizado no pagamento da aquisição a que se
refere a alínea anterior desde que efectuada nos 24 meses anteriores;
c)
Para os efeitos do disposto na alínea a), o sujeito passivo deverá manifestar a
intenção de proceder ao reinvestimento, ainda que parcial, mencionando, na
declaração de rendimentos respeitante ao ano da alienação, o valor que tenciona
reinvestir;
6 - Não haverá lugar ao benefício referido no número anterior quando:
a) Tratando-se de reinvestimento na aquisição de outro imóvel, o adquirente o não afecte à sua habitação ou do seu agregado familiar, até decorridos seis meses após o termo do prazo em que o reinvestimento deva ser efectuado;
b) Tratando-se de reinvestimento na aquisição de terreno para construção, o adquirente não inicie, excepto por motivo imputável a entidades públicas, a construção até decorridos seis meses após o Termo do prazo em que o reinvestimento deva ser efectuado ou não requeira a inscrição do imóvel na matriz até decorridos 24 meses sobre a data de inicio das obras, devendo, em qualquer caso, afectar o imóvel à sua habitação ou do seu agregado familiar até ao fim do Quinto ano Seguinte ao da realização;
c) Tratando-se de reinvestimento na construção, ampliação ou melhoramento de imóvel, não sejam iniciadas as obras até decorridos seis meses após o termo do prazo em que o reinvestimento deva ser efectuado ou não seja requerida a inscrição do imóvel ou das alterações na matriz até decorridos 24 meses sobre a data do início das obras, devendo, em qualquer caso, afectar o imóvel à sua habitação ou do seu agregado familiar até ao fim do quinto ano seguinte ao da realização.
7 - No caso do reinvestimento parcial do valor de realização e verificadas as condições estabelecidas no número anterior, o benefício a que se refere o n.º 5 respeitará apenas à parte proporcional dos ganhos correspondente ao valor reinvestido.
8 - No caso de se verificar uma permuta de partes sociais nas condições mencionadas no n.º 5 do artigo 67.º e n.º 2 do artigo 71.º do Código do IRC, a atribuição, em resultado dessa permuta, dos títulos representativos do capital social da sociedade adquirente aos sócios da sociedade adquirida não dá lugar a qualquer tributação destes últimos se os mesmos continuarem a valorizar, para efeitos fiscais, as novas partes sociais pelo valor das antigas, determinado de acordo com o estabelecido neste Código, sem prejuízo da tributação relativa às importâncias em dinheiro que lhes sejam eventualmente atribuídas.
9 - No caso referido no número anterior observa-se ainda o seguinte:
a) Perdendo o sócio a qualidade de residente em território português, há lugar à consideração na categoria das mais-valias, para efeitos da tributação respeitante ao ano em que se verificar aquela perda da qualidade de residente, do valor que, por virtude do disposto no n.º 8, não foi tributado aquando da permuta de acções, o qual corresponde à diferença entre o valor real das acções recebidas e o valor de aquisição das antigas, determinado de acordo com o estabelecido neste Código;
b) É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 10 do artigo 67.º do Código do IRC.
10 - O estabelecido nos n.ºs 8 e 9 é também aplicável, com as necessárias adaptações, relativamente à atribuição de partes, quotas ou acções, nos casos de fusão ou cisão a que seja aplicável o artigo 68.º do Código do IRC.
11 - Os sujeitos passivos devem declarar a alienação onerosa das acções, bem como a data das respectivas aquisições.”
(redação conferida pela Lei n.º 15/2010 de 26.07, em vigor em 31.12.2011)
“Artigo 44.º
Valor de realização
1 - Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera-se valor de realização:
a) No caso de troca, o valor atribuído no contrato aos bens ou direitos recebidos, ou o valor de mercado, quando aquele não exista ou este for superior, acrescidos ou diminuídos, um ou outro, da importância em dinheiro a receber ou a pagar;
b) No caso de expropriação, o valor da indemnização;
c) No caso de afectação de quaisquer bens do património particular do titular de rendimentos da categoria B a actividade empresarial e profissional, o valor de mercado à data da afectação;
d) No caso de valores mobiliários alienados pelo
titular do direito de exercício de warrants autónomos de venda, e para efeitos
da alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, o preço de mercado no momento do
exercício;
e) Tratando-se de bens ou direitos referidos na alínea d) do n.º 4 do
artigo 24.º, quando não exista um preço ou valor previamente fixado, o valor de
mercado na data referida;
f) Nos demais casos, o valor da respectiva contraprestação.
2 - Nos casos das alíneas a), b) e f) do número
anterior, tratando-se de direitos reais sobre bens imóveis, prevalecerão,
quando superiores, os valores por que os bens houverem sido considerados para
efeitos de liquidação de sisa ou, não havendo lugar a esta liquidação, os que
devessem ser, caso fosse devida.
3 - No caso de troca por bens futuros, os valores referidos na alínea a)
do n.º 1 reportam-se à data da celebração do contrato. 4 - No caso previsto na
alínea c) prevalecerá, se o houver, o valor resultante da correcção a que se
refere o n.º 4 do artigo 29.º.”
(redação conferida pela Lei n.º 109-B/2001 de 27.12, em vigor em 31.12.2011)
Posto isto, uma primeira nota que cabe deixar respeita ao parâmetro de fundamentação do juízo de inconstitucionalidade, já que o princípio da capacidade contributiva não está consagrado no artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa. Não embatemos aqui, porém, em qualquer obstáculo determinante, já que é percetível o princípio jurídico-constitucional convocado pelo Tribunal “a quo”, a que acima nos dedicámos e que sem nenhuma dúvida beneficia de importante respaldo na Lei Fundamental.
Depois, a redação relativa à interpretação normativa sob fiscalização utiliza uma terminologia conhecida da legislação tributária, o que nos permite melhor compreender o sistema normativo censurado pelo Tribunal “a quo”. Ao aludir a proveitos “percebidos ou postos à disposição do contribuinte”, remete-se para o regime de tributação em IRS dos rendimentos de categoria A (trabalho), que apenas sujeita a tributação as remunerações “pagas ou postas à disposição do seu titular” (cfr. artigo 2.º, n.º 1 do CIRS). A sentença, sendo assim, conclui que a conformidade constitucional da tributação de mais-valias dependerá de tratamento idêntico, obedecendo a uma ótica de tesouraria: apenas quando for paga a contrapartida devida pela negociação (realização) do ativo valorizado (mais-valia) se admitirá carga fiscal e a sentença é perentória em afirmar que qualquer outra solução será havida por inconstitucional: “por não ter recebido a totalidade do valor referente à alienação da sua participação social na sociedade B., [o contribuinte] não pode ser tributado em sede de IRS sob pena de violação do princípio da capacidade contributiva, uma vez que a tributação se deve adequar ao esforço económico do contribuinte, devendo incidir sobre manifestações de riqueza efetivas e não meramente potenciais, latentes ou rendimentos que não foram efetivamente recebidos” (cfr. fls. 199).
O Ministério Público, por sua vez, acedeu ao juízo de desconformidade para com a Constituição da República Portuguesa apontado pela sentença. É entendimento do alegante que a norma fiscalizada consagra uma presunção inilidível de rendimento sem adesão à real capacidade contributiva do sujeito passivo (cfr. conclusões 30.º a 35.º), citando em abono desse entendimento o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 211/2017, a que também realizou apelo a sentença recorrida.
3.2. Começando por esta última questão, é de adiantar desde já que a tributação da valorização de uma participação social, considerando como ganho o preço por que foi vendida abatido do gasto de investimento com a sua aquisição, tal como se impõe pelos artigos 10.º, n.º 1, alínea b), n.ºs 3 e 4, alínea a) e 44.º, n.º 1, alínea f), todos do CIRS, nada tem de presuntivo e a sujeição a incidência não está, de modo nenhum, desligada de um indicador de aumento efetivo do poder aquisitivo do contribuinte ou, na terminologia constitucional, de ampliação da capacidade contributiva operada no período tributário, entendida como fundamento e critério de tributação do rendimento.
Entende-se por presunção legal (artigo 349.º do CC) a disposição que permite ter por demonstrado um facto (desconhecido) tendo por base um outro (conhecido): a utilização de indicadores indiretos como forma de apurar incrementos patrimoniais de acordo com esta técnica legislativa sinaliza, de si, tensão com o princípio da capacidade contributiva, por representar um potencial afastamento da realidade económica do sujeito passivo. Por inerência, uma norma que estabeleça a impossibilidade legal de o contribuinte ilidir uma presunção de rendimento (ou do quantitativo de um rendimento) em seu desfavor através de prova direta em contrário (artigos 342.º, n.º 1 e 344.º, n.º 1, ambos do CC), nos casos em que não exista uma conexão suficientemente segura entre o facto-base e o facto presumido, sem nenhuma dúvida incorre em problemas de constitucionalidade, precisamente por arvorar em critério de incidência o que conforma, em último termo, uma ficção jurídica que pode não ter adesão à realidade (v. XAVIER DE BASTO, O princípio da tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária, ISG, pp. 17-27).
Foi esse o problema com que se debateu o acórdão citado pelo Ministério Público (n.º 211/2017), tendo daí resultado o juízo de inconstitucionalidade sobre o artigo 44.º, n.º 2 do CIRS.
O preceito determina que o valor de realização da mais-valia por transmissão de um imóvel será o valor patrimonial tributário (VPT) da propriedade transmitida, se superior ao estipulado como contrapartida no negócio (cfr. artigo 12.º, n.º 1 do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões onerosas de Imóveis [CIMT]). O VPT é apurado nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), diploma que adota critérios de mensuração que, tendencialmente, produzem um efeito de normalização do imposto (cfr. artigos 17.º-19.º e 38.º-46.º, todos do CIMI), por se abstraírem da situação subjetiva do contribuinte, antes adotando parâmetros objetivos de avaliação da propriedade com base em indicadores de mercado.
Este critério de quantificação da mais-valia dissipa as vantagens que se obtêm do princípio da realização no que respeita a valorimetria, por afastar o preço por que o ativo foi negociado, elegendo aquele que poderia ter sido o preço obtido pelo processo negocial no contexto económico que circunda a transação. Esta forma de parametrização do imposto pode, com toda a facilidade e à força de abstração, desligar o apuramento da carga fiscal da realidade económica concreta do contribuinte, deflagrando o apontado risco potencial de desnível entre a tributação e a real situação contributiva do sujeito passivo do imposto.
É bem verdade que o VPT que resulta do quadro legal do IMI pretende constituir uma aproximação razoável ao valor objetivo dos imóveis, mas também não merece dúvida que dificilmente seria possível que pudesse ter em conta todas as variáveis aptas a participar ou a influir no processo de reconhecimento de valor a um prédio em contexto de mercado, em geral, ou por comprador e vendedor, em particular. É tanto mais irrealista pensar que uma matriz legal (por isso tendencialmente estática) pudesse acompanhar e integrar no estatuto normativo todos os deltas que em diferentes períodos, sazonais ou históricos, participam na valorização de um ativo imobiliário.
Bastante mais grave que os inconvenientes assinalados, a nosso ver, acresce ainda que a consideração do valor objetivo do prédio na quantificação da mais-valia, mesmo nos casos em que o VPT pudesse constituir a melhor forma de determinar a valorização real do ativo imobiliário em mercado, desconsidera a perda inerente à venda abaixo desse quantitativo para efeitos de apuramento da mais-valia no momento da realização. Também aqui, a norma incorre num desvio potencial à realidade económica no processo de quantificação do rendimento líquido sujeito a imposto, por se abstrair das peculiaridades do sujeito passivo e da operação realizada.
Assim, não surpreende que este Tribunal Constitucional tenha entendido ferido de inconstitucionalidade o disposto no artigo 44.º, n.º 2 do CIRS (em conjugação com o disposto no artigo 12.º, n.º 1 do CIMT e nos artigos 17.º-19.º e 38.º-46.º, todos do CIMI), na interpretação que não admita que a presunção de valor de realização da mais-valia por aplicação do VPT seja ilidida por prova direta realizada pelo sujeito passivo, também de acordo com a regra geral patenteada no artigo 73.º da Lei Geral Tributária. De resto, ainda que o resultado obtido através de processos objetivos de mensuração do valor do ativo seja fidedigno (e a menos que solidamente justificado por outros valores constitucionais), por princípio tem de ser possível ao sujeito passivo demonstrar que o ganho efetivo incorporado no seu património foi inferior ao que a Lei presuma, sob pena de rutura com o princípio da capacidade contributiva, que necessariamente reclama por uma ligação consistente entre os parâmetros de tributação e a situação subjetiva-concreta do contribuinte (sobre os problemas da tributação pelo rendimento normal e a tributação por factos presumidos, v. XAVIER DE BASTO, O princípio da tributação…, pp. 23-25 e FILIPE NOGUEIRA DA SILVA, A Análise do Princípio da Tributação pelo Rendimento Real das Empresas perante os Métodos Indiretos, o Pagamento Especial por Conta e as Tributações Autónomas, ISCTE, pp. 29-35).
O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de reiterar o juízo de inconstitucionalidade sobre o artigo 44.º, n.º 2 do CIRS com este fundamento (v. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 488/2021) e mesmo antes da censura jurisprudencial à solução positivada, o próprio Legislador ordinário veio a introduzir pela Lei n.º 82-E/2014 de 31.12 a possibilidade de o sujeito passivo realizar a sobredita contraprova em sede administrativa (cfr., hoje, artigo 44.º, n.º 6 do CIRS), suprimindo a lacuna de regulamentação que conduzia à lesão no princípio da Lei Fundamental.
Este debate, porém, em nada se relaciona com o quadro normativo ora fiscalizado.
O valor da realização da mais-valia aferido nos termos do artigo 44.º, n.º 1, alínea f) do CIRS identifica-se com o preço de venda do ativo, estabelecendo um critério valorimétrico com nexo direto (e inteiramente identificado) com a forma como o capital gain se gerou e se consolidou no património do sujeito passivo na realização. Como dissemos, por rendimento entende-se a aquisição de qualquer incremento patrimonial no período tributário relevante e, recorrendo a um exemplo quantificado para propósito ilustrativo, não há dúvidas de que se subsume a este conceito a incorporação no património de um sujeito jurídico de um direito de crédito no valor de “10” tendo por contrapartida a transmissão de uma participação social cujo gasto de investimento foi de “1”, face ao ganho líquido (“9”), real e não ficcionado, integrado na esfera do contribuinte.
Se o exposto permite arredar o fundamento do juízo de inconstitucionalidade invocado pelo Ministério Público, vejamos agora que o vício de inconstitucionalidade material apontado pela sentença recorrida confunde rendimento com liquidez: a variação que caracteriza a mais-valia ocorre com o processo de valorização do ativo, ou seja, com a aquisição de maior valor de acordo com a lógica económica inerente, não com o pagamento desse valor em moeda ao alienante. Não se alcança como seria defensável que apenas influxos de capitais pudessem ser considerados rendimentos tributáveis a contra-luz do princípio da capacidade contributiva, nem como, conduzindo esse entendimento a consequências de princípio, não seria de uma desigualdade gritante que a riqueza acumulada por dado sujeito estivesse inteiramente aliviada de tributação apenas por ser gerida por forma a não envolver fluxos de caixa diretamente relacionados com esse enriquecimento.
Como acima dissemos, a realização da mais-valia ocorre, na sua vez, com a conversão do ativo em receita, que é dizer, com a transação do ativo em operações financeiras e a Lei estabelece – pela modulação da norma de incidência que tipifica o facto gerador de imposto – que a tributação aguardará por esse momento. Relembre-se que esta solução legal visa atender a outros interesses que não a equidade fiscal, entre os quais o propósito de emprestar maior segurança ao critério valorimétrico de quantificação do ganho sujeito a imposto. Esta opção legal é adotada com sacrifício do princípio da capacidade contributiva, não como forma de maximizar o seu alcance operativo. Exigir, como se pretende na sentença recorrida, que a compaginação constitucional da tributação por mais-valia dependesse, ainda e também, do recebimento do preço pela alienação do ativo valorizado, significaria gerar maior desigualdade relativa entre contribuintes e entre classes de rendimentos e, nos casos em que fosse acordado o diferimento do pagamento do preço, a dilação na tributação equivaleria a uma forma de financiamento público do sujeito passivo.
Mais se diga, reportando à legislação em vigor à data do facto tributário aqui em causa, é de notar também que a tributação dos windfall gains conhecia várias formas de tratamento privilegiado face a outras classes de rendimentos (que ainda hoje se mantêm em boa parte), seja exemplo os libertados por trabalho, a que se refere implicitamente a sentença recorrida para sancionar a inconstitucionalidade. O ganho por mais-valias em participações sociais era apurado conjuntamente com as menos-valias do período, admitindo a repercussão de prejuízos de investimento e a absorção dos ganhos (cfr. artigo 43.º, n.º 1 do CIRS), era considerado apenas em 50% do valor líquido quando respeitante a sociedades não-cotadas (cfr. artigo 43.º, n.º e 3 do CIRS) e, finalmente mas talvez com maior importância, os rendimentos por mais-valias não estavam sujeitos a englobamento (cfr. artigo 22.º, n.º 3, alínea b) do CIRS; salvo opção do sujeito passivo, que sucederia, pois claro, nos casos em que lhe fosse mais-vantajosa – cfr. artigo 72.º, n.º 4 do CIRS) e eram tributados à taxa de 20% (cfr. artigo 72.º, n.º 3 do CIRS), assim escapando à progressividade do imposto sobre o rendimento recenseada na Constituição da República Portuguesa (cfr. artigo 104.º, n.º 1, 2.ª parte) e beneficiando de uma taxa (tendencial, mas quase inevitavelmente) muito mais baixa que os rendimentos do trabalho (cfr. artigo 68.º, n.º 1 do CIRS).
Esta disciplina legal traduz uma solução comparativa francamente favorável para esta classe de incrementos patrimoniais, pelo que impor o pagamento como condicionante à incidência com fundamento na impreteribilidade de tratamento paritário face a rendimentos laborais (apenas tributáveis quando pagos ou disponibilizados ao sujeito passivo) constitui uma forma enviesada de observar o regime do imposto sobre o rendimento no seu conjunto.
É certo, porém, que se poderia dizer ainda compatível com os princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva (artigos 13.º e 103.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa) que o Legislador oferecesse maior importância aos problemas relacionados com a liquidez do sujeito passivo e optasse pelo modelo de tributação das mais-valias pretendido pelo Tribunal “a quo”, assente em cash flow. Parece que não existiria impedimento absoluto a que esta categoria de ganhos fosse periodizada em função do influxo de capitais inerente ao pagamento do valor de realização da mais-valia, assim oferecendo adicional alívio à pressão sobre a tesouraria do contribuinte que a carga fiscal (em qualquer caso de tributação) representa. O imposto, a ser assim, concentrar-se-ia no ano da transação caso o preço pela alienação fosse satisfeito integralmente nesse ano, ou seria imputado a outro, ou outros, períodos tributários, caso fosse estipulado benefício de prazo, aqui se incluindo planos de pagamento em prestações. Esta solução legislativa seria talvez criticável e sem dúvida permeável a engenharias destinadas a evitar ou a mitigar carga fiscal, mas, a priori, não seria impossível a adoção, nesse contexto legislativo, de normas especiais destinadas a prevenir algumas das formas de erosão da receita fiscal. Por tudo e no plano dos princípios, a solução não parece totalmente inviável do ponto de vista Constitucional.
No entanto – e esta é a questão que de facto nos importa – se um modelo de tributação das mais-valias pelo cash-flow, e não pela realização, não seria inconstitucional, isso não significa que seja constitucionalmente obrigatório. Já vimos que este paradigma não é reclamado, nem sequer aconselhado, pelos princípios da igualdade tributária ou da capacidade contributiva, muito pelo contrário, e não se divisa qualquer outro valor constitucional que depusesse nesse sentido.
Concluímos, portanto, que, perante o atual quadro de Direito Constitucional, qualquer um dos dois modelos seria passível de ser adotado pelo legislador ordinário, resultando injustificada, por conseguinte, a censura dirigida à norma sindicada pelo Tribunal recorrido.
3.3. O Tribunal “a quo” faz ainda apelo a um segundo argumento para reprovar a conformidade constitucional do disposto nos artigos 10.º, n.º 1, alínea b), n.ºs 3 e 4, alínea a) e 44.º, n.º 1, alínea f), todos do CIRS, quando interpretados no sentido de sujeitarem a tributação a mais-valia sem que a contrapartida tenha sido paga ou, ao menos, posta à disposição do contribuinte. Estoutro respeita à potencial incobrabilidade do crédito devido pela alienação da participação, facto que se entende desligar o quadro de incidência da efetiva capacidade contributiva do sujeito passivo.
Sobre esta matéria, é de ver que a perda económica gerada pela incobrabilidade (total ou parcial) do crédito constituído pela transação do ativo valorizado tem de se entender um evento posterior ao incremento patrimonial a que respeita a tributação por mais-valia e não deve ser com ela confundida. Do ponto de vista económico, o que aí fica em causa é uma perda respeitante ao crédito financeiro, sem conexão com o processo de valorização do ativo ou com a receita financeira inerente à operação de realização. A perda sobrevém como variação negativa do poder aquisitivo do contribuinte no interior de outra lógica de composição do seu património, tem por base circunstâncias relativas ao devedor, como tal externas ao facto gerador de imposto, e opera por força de incidências alheias ao ganho tributado. Assim, não existe identidade entre a mais-valia e a posterior incobrabilidade, total ou parcial, do crédito financeiro, nem sequer uma conexão que devesse orientar as condições e parâmetros de tributabilidade do rendimento, designadamente para efeitos de controlo de constitucionalidade de uma qualquer solução legislativa a respeito desta matéria.
Dito de forma talvez mais clara, a perda económica associada à incobrabilidade constitui uma variação negativa do valor de um direito de crédito e tem por fonte a degradação da garantia patrimonial do respetivo devedor, não uma variação do valor do ativo que antes fora transacionado. Nesse pressuposto, a diminuição de poder aquisitivo é qualificada como perda por imparidade (de ativo não-corrente), constituindo um indicador da situação patrimonial do sujeito passivo autónomo face ao ganho tributável por mais-valia que o haja precedido.
Poderá entender-se que o princípio da capacidade contributiva impõe que essa variação negativa da riqueza seja levada em conta pelo quadro legal de apuramento de IRS no ano fiscal em que a perda se verifique, tanto mais assim quando ascender a valores potencialmente importantes no contexto genérico do património das pessoas singulares, mas disso não depende o modelo de tributação por mais-valia, cujo ganho económico que determina a tributação reporta, como já tantas vezes repetimos, ao momento de valorização do ativo.
Serve por dizer, um juízo de inconstitucionalidade que se pretenda alicerçar na não-consideração, para efeitos de imposto sobre o rendimento, da incobrabilidade, total ou parcial, de um crédito financeiro, não permitirá dirigir censura à disciplina legal sobre a tributatibilidade de ganhos, mas antes ao quadro normativo sobre a relevância fiscal das perdas em sede de IRS.
Em face do exposto, já sabemos que a interpretação normativa sujeita a fiscalização não incorre no vício de inconstitucionalidade material apontado pela sentença recorrida por força deste argumento. A interpretação normativa dos artigos 10.º, n.º 1, alínea b), n.ºs 3 e 4, alínea a) e 44.º, n.º 1, alínea f), todos do CIRS, segundo a qual se admite no âmbito da categoria G a tributação de rendimentos (mais-valias) não percebidos (ainda não-pagos) ou postos à disposição do contribuinte, não gera qualquer óbice à atribuição de relevância fiscal a perdas por imparidade em ativos (não-correntes) desvalorizados, seja exemplo o caso de créditos total ou parcialmente incobráveis que hajam sido gerados por operações de realização de mais-valias. Por esse motivo, a norma de incidência não tem por efeito a desconsideração das reais e efetivas variações negativas do poder aquisitivo do sujeito passivo neste âmbito e, por necessária deriva, não se pode entender atingindo o princípio da capacidade contributiva (artigos 13.º e 103.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) pelo programa normativo sujeito a fiscalização concreta.
Sem obstar ao que vai exposto, poder-se-ia dizer que o que fica dito não esgota o debate sobre a controvérsia, já que caberia ainda saber se, de facto, a Lei tributária aplicável oferece relevância fiscal à perda por incobrabilidade do crédito financeiro decorrente da operação de realização da mais-valia e, não apenas isso, se lhe concede um tratamento com simetria bastante face à prévia tributação do ganho. Atendendo a que o sujeito passivo é pessoa singular sem atividade empresarial, caberia ainda saber se lhe estaria assegurado um tratamento fiscal equiparável àquele de que beneficiam entidades empresariais em iguais condições económicas (artigo 41.º do CIRC, ex vi artigo 32.º do CIRS), situação paritária que se poderia dizer imposta pelo princípio da igualdade tributária (horizontal) que dimana do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
Sucede, porém, que o Tribunal Constitucional não pode proceder à fiscalização de normas ou interpretações normativas que não as desaplicadas pela jurisdição comum (cfr. artigo 79.º-C da LTC): cingido o objeto do recurso ao âmbito normativo acima relatado, estoutras matérias, respeitando a outros espaços da disciplina jurídico-tributária, não podem ser sujeitas a controlo de constitucionalidade, sob pena de rutura com a natureza e estrutura da instância de recurso de fiscalização concreta (cfr. artigo 280.º, n.º 1, alíneas a) e b) da Constituição da República Portuguesa).
Resta-nos, portanto, concluir pela procedência do recurso, associando-lhe as suas consequências próprias (artigo 80.º da LTC).
III. Decisão
1. Nestes termos e com estes fundamentos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma dos artigos 10.º, n.º 1 e 3 e alínea a) do n.º 4 e 44.º do CIRS (na redação do diploma em vigor à data do facto gerador de imposto), quando interpretadas no sentido de permitirem a tributação, no âmbito da categoria G do IRS, de rendimentos não percebidos ou postos à disposição do contribuinte;
b) Julgar procedente o recurso, determinando a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (Unidade Orgânica 1), a fim de que reforme a decisão em conformidade com o presente juízo sobre a questão de inconstitucionalidade;
2. Sem custas, por não existir incidência aplicável (artigo 84.º, n.º 1 e n.º 2, a contrario, da Lei n.º 28/82 de 18.01).
Lisboa, 3 de fevereiro de 2022 - António José da Ascensão Ramos - José Eduardo Figueiredo Dias - Mariana Canotilho - Pedro Machete