ACÓRDÃO Nº 50/2022
Processo n.º 1037/20
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o B., S.A., este último instaurou, em 04/06/2015, contra C., E. e F., execução sumária para pagamento da quantia de €274.251,30, com base em escrituras de sucessivos contratos de mútuo, garantidos por hipotecas voluntárias incidentes sobre determinado prédio urbano, cuja aquisição, por doação, feita pelo executado C. e cônjuge, A., aos executados E. e F., se encontra inscrita a favor destes desde 17/03/2010.
Foi também inscrita sobre o mesmo prédio, na mesma data (17/03/2010), a doação do direito de uso e habitação feita pelos executados E. e F. a A., ora recorrente.
As referidas hipotecas foram inscritas a favor do Banco exequente, ora recorrido, sucessivamente, em 20/12/2002, 29/01/2003 e 23/12/2008.
No âmbito da referida execução, foi efetuada a penhora da nua propriedade daquele prédio, a qual foi registada em 11/10/2016, tendo sido, seguidamente, lavrado auto de penhora, datado de 21/10/2016, e, em 27/09/2018, o agente de execução decidiu proceder à venda do bem penhorado pelo valor base de €233.058,80.
O executado F. veio então requerer que fosse declarada nula a referida decisão de venda, alegando que se encontrava penhorado nos autos apenas a nua propriedade do prédio objeto da mesma.
Em primeira instância foi proferida a decisão de 27/06/2019, que deferiu parcialmente a arguição de nulidade invocada, determinando-se que a impugnada decisão de venda deveria ser substituída por outra em que seja anunciada a venda da nua propriedade do prédio e mencionado que sobre o mesmo se encontra registado o direito de uso e habitação, com data de 17/03/2010, que caducará com a realização da venda, nos termos do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil.
Inconformados com tal decisão, o executado F. e ainda a ora recorrente, A., interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 02/12/2019, julgou improcedente a apelação, confirmando integralmente a decisão recorrida.
Veio então a ora recorrente, A., na qualidade de titular do mencionado direito de uso de habitação, pedir revista daquele acórdão da Relação, cautelarmente a título de revista excecional, ao abrigo das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, mas, em sede de exame preliminar, foi proferida decisão singular do juiz conselheiro relator no sentido de não se tomar conhecimento do objeto da revista.
A ora recorrente reclamou então para a conferência e, por acórdão de 14 de julho de 2020, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu julgar improcedente a reclamação, mantendo a decisão reclamada.
2. Notificada deste acórdão, a recorrente interpôs o presente recurso de constitucionalidade, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, doravante “LTC”; cf. fls. 165-169/v.º) para apreciação da seguinte questão:
«[II. A] INCONSTITUCIONALIDADE do art.º 824.º n.º 2 do CPCivil, quando interpretado no sentido de que o direito ao uso e habitação de imóvel que corresponda a casa de morada de família, ainda que registado posteriormente ao registo de garantia real sobre o imóvel, caducará com a realização da venda, por violação do princípio constitucionalmente consagrado do direito à habitação, nos termos do art.º 65º da CRPortuguesa» (v. também o n.º XXV do requerimento de interposição de recurso).
Na sequência de dúvidas suscitadas quanto à decisão recorrida, a recorrente esclareceu que «indicou que pretende interpor recurso do douto acórdão […] datado de 14.07.2020, quando na verdade o douto acórdão que pretende recorrer é o proferido em 02.12.2019 pelo Tribunal da Relação do Porto dado que é esse acórdão que fala na inconstitucionalidade que a recorrente pretende ver discutida e apreciada.».
Nessa sequência, depois de remetidos os autos ao Tribunal da Relação do Porto – o tribunal ora recorrido – foi admitido o recurso (cf. fls. 177) e, subidos os autos a este Tribunal Constitucional, foram as partes notificadas para alegar.
3. A recorrente apresentou alegações, que concluiu nos seguintes termos (cf. fls. 190-192):
«I. Pretende a recorrente ver discutida e apreciada a INCONSTITUCIONALIDADE do art.º 824.º n.º 2 do CPCivil, quando interpretado no sentido de que o direito ao uso e habitação de imóvel que corresponda a casa de morado de família, ainda que registado posteriormente ao registo de garantia real sobre o imóvel, caducará com a realização da venda, por violação do princípio constitucionalmente consagrado do direito à habitação, nos termos do art.º 65º da CRPortuguesa.
II. Tal entendimento viola, em termos desproporcionados e constitucionalmente ilegítimos, o princípio constitucionalmente consagrado do direito à habitação, nos termos do art.º 65º da CRPortuguesa.
III. De facto, entendeu a decisão recorrida pela caducidade do direito de uso e habitação detido pela aqui recorrente, sem que sequer se tenha ainda realizado a venda, permitindo a publicidade da venda do imóvel na sua integralidade e não apenas da sua nua propriedade, atendendo à caducidade do direito de uso e habitação que ocorrerá com a venda executiva.
IV. Tal questão encontra-se controvertida em diversas decisões judiciais, que perpassam todos os graus jurisdicionais, desde a 1.ª Instância ao Supremo Tribunal de Justiça, não sendo minimamente pacífica ou jurisprudencialmente assente;
V. Sendo certo que, o entendimento mais recente vai no sentido de que não se verifica a caducidade dos mesmos, mormente através de decisão do:
a. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no Processo n.º 1357/17.0T8LSB-C.L1-1, datado de 30.04.2019 […] e [do]
b. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 27.11.2018, no Processo n.º l268/l6.6T8FAR.E1.S2 […].
VI. Destarte, em sede constitucional, releva a discussão da caducidade do uso e habitação no imóvel penhorado nos autos, detido pela aqui recorrente/executada sobre o aludido imóvel, que representa a sua casa de morada de família.
VII. In casu, o imóvel é a casa de morada de família da aqui executada/recorrente, tendo aí consagradas as suas necessidades asseguradas constitucionalmente pelo direito à habitação, nos termos do art.º 65º da CRPortuguesa.
VIII. Acresce que, na discussão mais ampla da caducidade dos direitos reais menores de gozo que incidam sobre bens vendidos em processo de execução com garantia real/ónus hipotecário registado anteriormente, considerando como tal, nomeadamente os direitos do locatário, do comodatário, do titular do direito de uso e habitação, etc .. temos que tal questão redunda, no caso de imóveis destinados a habitação, como é o presente caso e o será na maioria, ao direito fundamental à habitação.
IX. Não pode a recorrente concordar com o teor do referido acórdão, na medida em que não comunga, com o devido respeito, do entendimento vertido a propósito destas matérias, nomeadamente por desconforme com a jurisprudência mais recente a esse respeito. Desde logo;
X. Entende a recorrente que não se verifica a caducidade do seu direito real menor de gozo, in casu de uso e habitação, e mesmo que se verificasse, tal entendimento está eivado de inconstitucionalidade, o que, a ser doutamente apreciado, julgado e determinado, importará a reversão da decisão proferida. Isto porque;
XI. Assumindo a sua pertinência constitucional na apreciação da violação do princípio constitucionalmente consagrado do direito à habitação, nos termos previstos no art.º 65º da CRPortuguesa, mais do que na sua natureza meramente programática, mas antes na necessidade de tal direito à habitação ter uma correspondência na prática, aplicado à interpretação jurisprudencial levada a cabo pelos Tribunais de normativos que contendem especificamente com tal direito à habitação, única e exclusiva, casa de morada de família da aqui recorrente.
XII. Aliás, a jurisprudência mais recente, precisamente no sentido de salvaguardar a tutela do direito à habitação, mais a mais nas circunstâncias sanitárias, sociais e económicas atualmente vividas, vai precisamente no sentido de NÃO se verificar a caducidade de tal ónus, ainda que constituído POSTERIORMENTE ao registo da garantia.
XIII. Tanto mais, aplicável ao direito de uso e habitação, na medida em que o direito de uso e habitação é um direito destinado à fruição e à satisfação de necessidades pessoais e familiares (artigo 1484.º, n.º 1, do Código Civil) é intransmissível e inalienável não podendo ser onerado (artigo 1488.º), sendo, por isso, um direito pessoalíssimo - cfr. nesse sentido, Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, pág. 395.
XIV. No mesmo sentido, afirma Menezes Leitão que os direitos de uso e habitação não atribuem um direito de gozo pleno sobre a coisa, atentas as limitações estabelecidas ao uso e fruição, sendo o seu uso funcionalizado e limitado pelas necessidades do seu titular e da sua família - cfr. Direitos Reais, pág. 371.
XVI. Seguindo tal entendimento, pode ver-se, entre outros, o Ac. da R.P. de 27/2/2007, disponível in www.dgsi.pt […].
XVI. In casu e relevante para a invocação do direito à habitação e para a declaração de inconstitucionalidade é o facto de o imóvel ser a casa de morada de família da aqui recorrente, tendo aí consagradas as suas necessidades asseguradas constitucionalmente pelo direito à habitação, nos termos do art.º 65º da CRPortuguesa.
XVII. Aliás, a respeito da legitimidade da apreciação constitucional que não meramente programática do Governo, doutamente se pronuncia o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no Processo n.º 1357/l 7.0TSLSB-C.L1-1, datado de 30.04.2019.
XVIII. Assim se invoca a INCONSTITUCIONALIDADE do art.º 824.º n.º 2 do CPCivil, quando interpretado no sentido de que o direito ao uso e habitação de imóvel que corresponda a casa de morada de família, ainda que registado posteriormente ao registo de garantia real sobre o imóvel, caducará com a realização da venda,
XIX. Apresentando o presente recurso sustentação formal, na violação, pela decisão recorrida, do princípio constitucionalmente consagrado do direito à habitação, nos termos do art.º 65º da CRPortuguesa;
XX. Recorrendo, nesta medida, da decisão que julgou a improcedência/inverificação da referida inconstitucionalidade, a qual, pela procedência do presente recurso, deverá ser revogada, declarando manutenção/não caducidade do direito de uso e habitação a favor da aqui recorrente, assim se realizando JUSTIÇA!».
O recorrido B. apresentou contra-alegações, concluindo, em síntese, que deverão ser julgadas improcedentes todas as conclusões formuladas pela recorrente, mantendo-se integralmente a decisão recorrida (cf. fls. 196-200).
Cumpre apreciar e decidir
II. Fundamentação
A) Da delimitação do objeto do recurso
4. De acordo com o requerimento de interposição do recurso, a recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade «do art.º 824.º n.º 2 do CPCivil, quando interpretado no sentido de que o direito de uso e habitação de imóvel que corresponda a casa de morada de família, ainda que registado posteriormente ao registo de garantia real sobre o imóvel, caducará com a realização da venda».
Preliminarmente, cumpre esclarecer que embora a recorrente reporte a interpretação normativa que pretende ver apreciada ao artigo 824.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, é manifesto que o preceito em causa pertence ao Código Civil, como aliás resulta da decisão recorrida e do respetivo sumário, que se mostra transcrito no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (cf. o ponto VI. de tal requerimento). Deverá, pois, proceder-se à retificação de tal manifesto lapso.
Verifica-se, por outro lado, que a recorrente, na enunciação da questão de constitucionalidade, faz referência ao registo do direito de uso e habitação posteriormente ao registo de garantia real sobre o imóvel. Ora, tal dimensão normativa excede o âmbito da que foi efetivamente aplicada pelo tribunal a quo, uma vez que, no caso dos autos, os direitos sujeitos a registo que estão em causa são, por um lado, o direito de uso e habitação, registado a favor da ora recorrente, e, por outro, uma determinada garantia real sobre o imóvel – concretamente, uma hipoteca –, constituída e registada a favor do exequente em data anterior à da constituição e registo daquele direito.
Finalmente, importa ainda precisar – embora tal possa resultar implícito do preceito a que se reporta a questão de constitucionalidade – que a venda em questão é a venda judicial, efetuada no âmbito de processo de execução.
Tendo em atenção o exposto, deverá ser delimitado o objeto do recurso no sentido de o fazer corresponder, com maior rigor, à norma que foi efetivamente aplicada pelo tribunal recorrido.
Assim, o presente recurso tem por objeto a norma do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, interpretado no sentido de que o direito de uso e habitação de imóvel hipotecado, que corresponda a casa de morada de família, cujo registo seja posterior ao registo de hipoteca sobre o mesmo imóvel, caduca com a realização da venda executiva.
B) Do mérito do recurso
5. Delimitado o objeto do recurso, importa, antes de mais, para melhor apreciação da questão de constitucionalidade, ter presente o teor do preceito em que se aloja a norma questionada, bem como o enquadramento do problema no plano do direito infraconstitucional, tendo em atenção os fundamentos em que assentou a decisão recorrida.
O artigo 824.º do Código Civil, a cujo n.º 2 se reporta a dimensão normativa objeto do presente recurso, estabelece o seguinte:
«Artigo 824.º
(Venda em execução)
1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.
2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respetivos bens.».
A questão apreciada pela decisão recorrida – e que se encontra subjacente à questão objeto do presente recurso – foi a de saber se o direito de uso e habitação, registado posteriormente ao registo de uma hipoteca sobre o mesmo imóvel e anteriormente ao registo da penhora da nua propriedade do prédio, caduca com a venda executiva, por força do disposto no referido artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil.
O Tribunal da Relação do Porto respondeu afirmativamente a esta questão, com base na seguinte fundamentação:
«A venda executiva vem regulada no art. 824º, do Código Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência. A mesma, nos termos do nº 1, “transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida”, tendo, como toda a compra e venda o efeito real de transmissão e o efeito de constituição das obrigações de entrega da coisa e de pagamento do preço (art. 879º) e tem, como analisa José Lebre de Freitas, ainda, os seguintes efeitos, descritos nos nº 2 e 3 do art. 824º:
“a) Caducidade dos direitos reais de garantia que onerem o bem vendido, sejam eles de constituição anterior ou posterior à penhora e tenham ou não sido reclamados na execução os direitos de crédito que garantem;
b) Subsistência dos direitos reais de gozo de constituição (ou registo, se incidirem sobre bem sujeito a registo) anterior à constituição (ou registo) de todos os direitos de garantia invocados (pelo exequente e pelos credores reclamantes: “qualquer arresto, penhora ou garantia”) ou constituídos (a penhora) no processo de execução;
c) O mesmo quanto aos direitos reais de aquisição que não tenham satisfação nem caduquem no âmbito da ação executiva (“demais direitos: v. arts 819º, nº l, e 831 do CPC;
d) Caducidade dos direitos reais de gozo (ou de aquisição, não satisfeitos nem previamente caducados no âmbito da ação executiva) de constituição (ou registo) posterior à constituição (ou registo) de qualquer dos direitos reais de garantia invocados ou constituídos no processo de execução.
É controvertido se o direito ao arrendamento se inclui nos direitos de gozo sujeitos a caducar com a venda e executiva. Neste sentido: José Oliveira Ascensão, Locação de bens dados em garantia, ROA, 1985, II, pp. 345 a 384, e J. P. Remédio Marques, Curso de processo executivo comum à face do Código revisto, Coimbra, Almedina, 2000, pp. 408 a 412; acs. do STJ de 31-10-06 (06A3241; Urbano Dias), de 15-11-07 (0783456; Pereira da Silva), de 5-2-09 (0883994; Oliveira Rocha), de 27-5-10 (5245/03; Álvaro Rodrigues), de 19-5-11 (892/05; Álvaro Rodrigues), e de 22-10-15, 896/07, Pires da Rosa (com voto de vencido). Em sentido contrário: acs do STJ de 19-1-04 (03A4098; Afonso Melo), de 20-9-05 (Reis Figueira), CJ, 2005, III, p. 29, e de 27-3-07 (Moreira Alves), CJ, 2007, I, p. 146. (…)
A lei considera caducos os direitos que não acompanham a transmissão pela venda executiva, mas acrescenta que eles “se transferem para o produto da venda”. Não estamos, assim, perante uma verdadeira caducidade, mas perante uma sub-rogação objetiva” [ José Lebre de Freitas, anotação ao art. 824º, Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, 2017, Almedina pág. 1035 e seg ];negrito e sublinhado nosso).
Esclarece o referido autor que, no campo dos direitos reais de gozo, sujeitos a caducarem com a venda executiva, como é o caso do direito ao arrendamento, “há que distinguir entre os que sejam de constituição (ou registo, se se tratar de coisas imóveis ou de móveis a ele sujeitos) anterior à constituição (ou registo) de todos os direitos reais de garantia invocados ou constituídos no processo de execução e os que sejam de constituição (ou registo) posterior à constituição (ou registo) de qualquer deles.
(…) Vejamos o segundo caso e distingamos nele três momentos possíveis de constituição (ou registo) do direito real de gozo:
a) posterior à constituição (ou registo) da penhora;
b) anterior à constituição (ou registo) da penhora, mas depois da constituição (ou registo) dum direito real precedente (hipoteca ... arresto, etc) do exequente;
e) anterior à constituição (ou registo) de qualquer direito real do exequente, mas depois do constituição (ou registo) do direito real de garantia invocado por um dos credores reclamantes.
Em qualquer destas hipóteses, a lei determina que os bens se transmitam livres do direito real do terceiro, o que é o mesmo que dizer que se transmite a propriedade plena e não apenas o direito real menor de gozo do executado (…).
Nas hipóteses a) e b), tal não oferece dificuldade: o direito do exequente não pode ser limitado por um direito posterior, que na primeira hipótese até normalmente lhe é inoponível e na segunda deu certamente lugar a uma execução movida, nos termos do art. 54-4 contra a devedor e o terceiro. A penhora, consequentemente, abrangeu a propriedade plena e é essa que é transmitida [José Lebre ele Freitas, A ação executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª Edição Gestlegal, pág. 391; negrito e sublinhado nosso].
No que respeita aos “direitos reais de gozo, a lei impõe a caducidade dos direitos que tenham sido constituídos ou registados após o arresto, penhora ou garantia. (…) este regime está em perfeita consonância com o disposto no art. 819º do CC, segundo o qual são ineficazes em relação à execução os atos de disposição, oneração ou arrendamento de bens penhorados.
Diversamente, se um direito que incida sobre um bem não se extinguir com a venda executiva (ex. arrendamento de um bem imóvel, constituído ou registado antes do arresto, penhora ou garantia) esse direito acompanha o destino do bem após a venda executiva. O mesmo é dizer que o adjudicatário, comprador ou preferente do bem vendido em sede executiva sucede na titularidade do bem, conjuntamente com todos os direitos que o acompanhem” [Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 2016, Almedina, pág. 385].
Com relação ao arrendamento, sendo, como referido pelos apelantes e pelo Tribunal a quo, a analogia com o direito que aqui está em causa evidente, como nos dá conta Rui Pinto, a doutrina e a jurisprudência estão muito divididas, e merece uma atenção especial em razão da regra da emptio non tollit locatum, enunciada do art. 1057º e das dúvidas quanto à sua natureza real ou não, sendo que:
“Uma posição – Menezes Cordeiro, Romano Martinez, Amâncio Ferreira – vem pugnar pela manutenção do arrendamento “aplicando-se a regra do art. 1057º à locação quando registada ou constituída antes da penhora, já que “o nº 2 do (…) art. 824º não previu a caducidade do arrendamento porque o art. l 057° estabeleceu a regra da sua transmissão”, não havendo “assim, lacuna legal que permita a sua aplicação analógica ao arrendamento” (STJ 19-l-2004/03A4098 (Afonso de Melo). Seria, então, um direito pessoal de gozo, mas com um regime próprio, ao qual não seria aplicável o art. 824º, nº2 CC, pelo que não caducaria mesmo que existisse hipoteca anterior”.
Uma segunda posição defende a caducidade – Oliveira Ascensão, Teixeira de Sousa e Remédio Marques – da locação, por inclusão no artigo 824°, nº 2 segunda parte CC, eventualmente por analogia.
Assim, o Ac. STJ 31-10-2006/06A3241 (Urbano Dias) declarou que “à luz do art. 824º do CC, o contrato de arrendamento é considerado como um verdadeiro ónus em relação ao prédio”, daí que “vendido o prédio em sede executiva, o contrato de arrendamento celebrado depois da constituição da hipoteca e da penhora caduque automaticamente”. Na mesma linha foi ainda o ac. RL de 28-9-2006/6598/2006-6 (Ana Luísa Geraldes): “A venda judicial, em processo executivo, de fração hipotecada faz caducar o seu arrendamento, não registado, quando posteriormente celebrado à constituição e registo daquela hipoteca, nos termos preceituados no art. 824º, nº 2, do CC”.
Esta é a posição com maior apoio na jurisprudência: nomeadamente nos acs STJ 29-10-1998/98B862 (Nascimento Costa), STJ 3-12-1998/98B863 (Ferreira de Almeida) (…) e STJ 5-2-2009/08B4087 (João Bernardo)” [Rui Pinto, A ação executiva, 2018, AAFDL Editora, pág. 905 e seg.].
E, como bem sustenta Rui Pinto, essa é a “boa linha decisória, aliás na senda clássica de Vaz Serra.
Na verdade, o arrendamento que seja posterior à garantia prioritária não pode deixar de caducar, seja qual for a natureza jurídica que se lhe possa atribuir. É que se for um direito real menor de gozo não poderia deixar de ser assim, como já se viu; se for um direito pessoal de gozo, por maioria de razão, caducará, por extinção do objeto da prestação.
E efetivamente, como escreveu Vaz Serra, “não há razão para o submeter a regime diferente do aplicável aos direitos reais. N[a] verdade, não se pode deixar de considerar que a regra do artigo 1057º CC não é absoluta e conhece os mesmos limites, para tutela dos credores e adquirentes – terceiros à relação locatícia – que os próprios direitos reais sofreriam, in casu, a caducidade ex vi artigo 824º, nº 2 CC” (negrito nosso).
Bem considera Rui Pinto que “no plano processual o preceito substantivo” do art. 1057° CC não pode, senão, implicar que se dê à locação um tratamento semelhante ao do direito real de gozo menor em sede de relação com a venda executiva. Em termos simples: a locação não pode ter um regime mais favorável, nem mais desfavorável que um direito real de gozo menor”.
Bem conclui, o referido autor “se a locação for posterior à garantia prioritária, caducará ex vi artigo 824º nº 2 CC. Neste sentido, o ac. RL de 12-12-2013/88726/05.2YYLSB.Ll-2 (Ezaguy Martins) concluiu que “o arrendamento de imóvel, posterior à constituição de garantia como a hipoteca do mesmo, destarte prioritária, caduca com a venda, ex vi do art. 824º, nº2, Código Civil”.
Nestes termos, como defende a apelada, e bem, no seguimento da Doutrina e Jurisprudência dominante e mais adequada, por a situação em análise igual regime e tratamento reclamar, a venda judicial de imóvel hipotecado faz caducar os direitos reais que recaiam sobre o imóvel, desde que estes tenham registo posterior à data do registo de hipoteca, vindo, no âmbito do processo executivo, a entender-se que o direito de arrendamento, e por analogia, o direito de uso e habitação aqui em causa, que constituem verdadeiro ónus em relação ao prédio, caducam, nos termos do art.º 824,º, n.º 2, do Código Civil […].
Também no Ac. do STJ de 9/7/2015, Processo 430/11.2TBEVR-Q-El.Sl se decidiu “Com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, caduca o direito do respetivo locatário, nos termos do nº2, do art. 824°, do CC”.
Destarte, a venda do imóvel que venha a ser realizada no âmbito do presente processo é livre e desonerada de todos os ónus e encargos que incidem sobre o imóvel, nos termos do nº 2, do 824.º, pois que o direito de uso e habitação foi constituído e levado ao registo em data posterior à do registo de hipoteca.
Tal é perfeitamente legítimo, pois que, desde logo, a Recorrente, até, bem sabia da hipoteca sobre o bem locado.».
A recorrente, nas suas alegações, insurge-se contra este entendimento, sustentando, em síntese, que, na situação dos autos, com a venda executiva, não se verifica a caducidade do seu direito real menor de gozo – in casu, do direito de uso e habitação –, embora este tenha sido constituído e registado em momento posterior ao do registo da hipoteca sobre o mesmo imóvel a favor do credor exequente. Defende a recorrente que, sendo tal matéria controvertida em diversas decisões judiciais, o entendimento jurisprudencial mais recente vai no sentido da não caducidade daquele direito, ainda que constituído posteriormente ao registo da hipoteca (cf., em especial, as conclusões III. a VI. e VIII. a XVI.).
Como é sabido, não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre se a interpretação e aplicação do direito infraconstitucional ao caso foi ou não a mais correta. A este Tribunal cabe apenas apreciar se a interpretação normativa extraída do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, aplicada pela decisão recorrida, contende com algum parâmetro constitucional, designadamente com o direito à habitação consagrado no artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa.
6. No caso dos autos, conforme relatado (cf. o ponto 1, supra), no âmbito de ação executiva instaurada pela ora recorrida, foi determinada a venda da nua propriedade de um imóvel penhorado, o qual se encontrava hipotecado a favor do exequente, ora recorrido, para garantia do seu crédito. Tendo sido constituído e registado, em data posterior à da hipoteca, um direito de uso e habitação sobre esse mesmo imóvel, a favor da ora recorrente, o tribunal recorrido considerou que aquele direito caduca com a venda executiva, por força do disposto no referido artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil.
A este respeito, como se pode ler na decisão recorrida (cf. o ponto 5., supra), aquele tribunal considerou que, por força do disposto no mencionado artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, a venda executiva tem como efeito, entre outros, a caducidade dos direitos reais de gozo que tenham sido constituídos ou registados em data posterior à constituição ou registo de qualquer dos direitos reais de garantia invocados ou constituídos no processo de execução.
Abordou-se ainda na referida decisão a questão de saber se o direito ao arrendamento se inclui nos direitos de gozo sujeitos a caducar com a venda e executiva e, após a análise das diversas posições doutrinais e jurisprudenciais sobre a matéria, concluiu-se que o direito de arrendamento celebrado em momento posterior ao da constituição e registo da hipoteca caduca com a referida venda, por força do disposto no artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil.
Assim, considerando que a situação em análise nos autos reclama igual tratamento, entendeu o tribunal a quo que «a venda judicial de imóvel hipotecado faz caducar os direitos reais que recaiam sobre o imóvel, desde que estes tenham registo posterior à data do registo de hipoteca, vindo, no âmbito do processo executivo, a entender-se que o direito de arrendamento, e por analogia, o direito de uso e habitação aqui em causa, que constituem verdadeiro ónus em relação ao prédio, caducam, nos termos do art.º 824,º, n.º 2, do Código Civil». E concluiu, por isso, que «a venda do imóvel que venha a ser realizada no âmbito do presente processo é livre e desonerada de todos os ónus e encargos que incidem sobre o imóvel, nos termos do nº 2, do 824.º, pois que o direito de uso e habitação foi constituído e levado ao registo em data posterior à do registo de hipoteca».
É precisamente contra esta interpretação do direito infraconstitucional que a recorrente se insurge, por considerar que a caducidade, nestas circunstâncias, do direito de uso e habitação viola o direito à habitação, consagrado no artigo 65.º da Constituição.
7. Liminarmente, cumpre ter presentes alguns aspetos do regime dos direitos que, no plano infraconstitucional, são invocados pelas partes: por um lado, o direito de hipoteca, que se encontra registado a favor do exequente, ora recorrido; por outro, o direito de uso e habitação, registado a favor da ora recorrente.
7.1. Como é sabido, a hipoteca é um direito real de garantia que confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (cf. artigo 686.º, n.º 1, do Código Civil).
Tratando-se de um direito real, a hipoteca tem eficácia absoluta ou erga omnes, estando sujeita a registo, o qual é condição necessária para a produção de efeitos mesmo em relação às partes (cf. artigo 687.º do Código Civil). A exemplo do que se verifica com as restantes garantias reais especiais das obrigações, este direito tem em vista permitir ao credor acautelar eventuais situações de insuficiência patrimonial do devedor, recaindo sobre um bem determinado, cujo valor irá assegurar o pagamento do crédito.
Embora os bens hipotecados possam ser alienados ou onerados – o artigo 695.º do Código Civil estabelece, aliás, a nulidade da convenção que proíba o respetivo dono de alienar ou onerar os bens hipotecados –, a hipoteca acompanha os bens transmitidos ou, em caso de oneração, goza da prevalência decorrente da prioridade de registo, o que constitui uma decorrência da sua natureza real. Por isso, mesmo em caso de alienação posterior do imóvel sobre qual incide a hipoteca, o credor hipotecário mantém a possibilidade de se fazer pagar do montante do seu crédito através do produto da venda daquele bem, em sede executiva (sendo esta a forma como, neste caso, se manifesta o direito de sequela ou direito de seguimento característico dos direitos reais).
Assim, o regime do artigo 695.º do Código Civil não prejudicará o credor hipotecário, na medida em que se entenda que os eventuais atos posteriores de disposição ou de oneração do bem hipotecado sejam ineficazes ou inoponíveis àquela garantia real anteriormente constituída, por força das características da sequela e prioridade próprias dos direitos reais. Aliás, embora a lei reconheça ao adquirente dos bens hipotecados que não seja pessoalmente responsável pelo pagamento da dívida garantida o direito de expurgar a hipoteca, o exercício deste direito não coloca em causa o direito do credor hipotecário, uma vez lhe é assegurado o pagamento do crédito ou o valor equivalente ao do bem hipotecado (cf. o artigo 721.º do Código Civil).
7.2. Por sua vez, o “direito de uso e habitação”, invocado pela ora recorrente, integrando a categoria dos direitos reais de gozo, encontra-se regulado nos artigos 1484.º e seguintes do Código Civil. Aquele preceito estabelece, no seu n.º 1, que o direito de uso «consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respetivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família». O n.º 2, por sua vez, dispõe que «[q]uando este direito se refere a casas de morada, chama-se direito de habitação». Ou seja, estão aqui em causa dois direitos distintos que, no essencial, partilham do mesmo regime.
Nesse regime, e no que ora particularmente releva, avulta a circunstância de o titular de tais direitos ter poderes de uso e fruição sobre a coisa a que respeitam, apenas na medida das suas necessidades e da sua família. Ou seja, estão em causa direitos de natureza pessoalíssima ou intuitu personae. Por essa razão, o artigo 1488.º do Código Civil veda ao usuário e ao morador usuário a possibilidade de trespassar ou locar o seu direito ou de onerá-lo por qualquer modo.
Finalmente, tratando-se de um direito que está sujeito às mesmas causas de extinção do usufruto (cf. artigos 1485.º e 1476.º do Código Civil), o mesmo poderá ter uma duração vitalícia, caso não tenha sido conferido por determinado prazo (cf. artigo 1476.º, n.º 1, alínea a) do Código Civil) ou não se verifique alguma das outras causas que determinam a sua extinção (isto é, uma das causas previstas nas alíneas b) a e) do referido artigo 1476.º).
7.3. No caso dos autos, e ainda no plano do direito infraconstitucional, a pretensão da recorrente é no sentido de que o direito de uso e habitação – neste caso, mais rigorosamente, trata-se de um direito de habitação – sobre determinado imóvel, registado a seu favor, deverá subsistir após a realização da venda judicial do referido imóvel, efetuada no âmbito de uma ação executiva instaurada com vista à satisfação de um crédito garantido por uma hipoteca, não obstante esta hipoteca ter sido anteriormente constituída e registada.
Ou seja, a pretensão da recorrente implicará, atento o tipo de oneração a que corresponde a subsistência do referido direito de habitação, uma degradação ou diminuição do valor do imóvel sobre que incide a garantia hipotecária, com reflexos em sede de venda executiva, uma vez que será necessariamente menor o produto obtido através da mesma para satisfação do crédito.
Com efeito, a subsistência do referido direito de habitação, depois de realizada a venda executiva, irá limitar o adquirente no que respeita ao gozo dos poderes inerentes ao direito de propriedade plena, uma vez que aquele não beneficiará, enquanto se mantiver o direito de habitação, dos poderes de uso e fruição do bem em questão. Tal circunstância terá, por isso, reflexos no valor comercial do bem, uma vez que os potenciais adquirentes não estarão dispostos a pagar por esse bem o mesmo valor que pagariam, caso o mesmo estivesse totalmente desonerado. Aliás, subjacente ao regime do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, está também o propósito de conseguir que a venda do bem se faça pelo melhor preço, aumentando assim o produto dessa venda e, consequentemente, a probabilidade de o exequente (bem como outros eventuais credores) verem dessa forma satisfeito o seu crédito.
8. Tecidas estas considerações, importa agora apreciar se a interpretação normativa objeto do presente recurso viola o direito à habitação, consagrado no artigo 65.º da Constituição, importando, para tal analisar o conteúdo e âmbito de proteção deste direito.
9. O referido artigo 65.º da Constituição, sob a epígrafe «Habitação e Urbanismo», estabelece o seguinte nos seus n.ºs 1 a 4:
«1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;
b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais;
c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada;
d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respetivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.
3. O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
4. O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística.».
O direito à habitação consagrado neste artigo – cujo conteúdo se traduz no «direito a uma morada digna, onde cada um possa viver com a sua família» (Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Volume I, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2017, p. 958 e ss.) – assume, a exemplo do que se verifica com outros direitos sociais, uma dupla natureza ou dimensão, conforme tem vindo a ser reconhecido pelo Tribunal Constitucional na sua jurisprudência (cf., neste sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 101/92, 612/2019 e 393/2020).
Por um lado, tem uma dimensão negativa ou defensiva, que se traduz no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham de atos que prejudiquem tal direito; por outro lado, tem uma dimensão positiva, que correspondente ao direito dos cidadãos a medidas e prestações estaduais, visando a sua promoção e proteção, isto é, a medidas e prestações estaduais tendentes a assegurar «uma habitação adequada e condigna à realização da condição humana, em termos de preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiar».
É este também o entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira (cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pág. 834), que afirma o seguinte a respeito de tal direito:
«Consiste, por um lado, no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma; neste sentido, o direito à habitação reveste a forma de “direito negativo”, ou seja, de direito de defesa, determinando um dever de abstenção do Estado e de terceiros, apresentando-se, nessa medida, como um direito análogo aos “direitos, liberdades e garantias” (cfr. art. 17º). Por outro lado, o direito à habitação consiste no direito a obtê-la por via de propriedade ou arrendamento, traduzindo-se na exigência das medidas e prestações estaduais adequadas a realizar tal objetivo. Neste sentido, o direito à habitação apresenta-se como verdadeiro e próprio “direito social”.»
É esta segunda vertente ou dimensão positiva do direito à habitação, enquanto direito fundamental de natureza social, que se encontra acentuada no artigo 65.º da Constituição, particularmente nos seus n.ºs 2 a 4. Nesta vertente, conforme tem salientado o Tribunal Constitucional na sua jurisprudência (cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 130/92, 131/92, 151/92, 633/95, 32/97, 374/2002, 212/2003, 590/2004 e 168/2010), o direito à habitação é configurado um direito a prestações, cujo principal destinatário é o Estado, a quem são impostas um conjunto de incumbências no sentido criar as condições necessárias tendentes a assegurar tal direito (cf. o n.º 2 do referido artigo 65.º), bem como a adoção de políticas no sentido de estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria (cf. o n.º 3, idem) e ainda, em conjunto com as regiões autónomas e as autarquias locais, a adoção de outras medidas adequadas à prossecução daquele direito (cf. o n.º 4, ibidem). Significa isto que as pretensões fundadas no direito à habitação não têm como destinatários diretos os particulares nas relações entre si, mas antes o Estado e igualmente as Regiões Autónomas e autarquias locais.
É que o resulta, designadamente, do referido Acórdão n.º 130/92:
«10. O “direito à habitação”, ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social, situado no Capítulo II (direitos e deveres sociais) do Título III (direitos e deveres económicos, sociais e culturais) da Constituição, é um direito a prestações. Ele implica determinadas ações ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado, são indicadas nos nºs 2 a 4 do artigo 65º da Constituição (cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 680 - 682). Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efetividade está dependente da chamada “reserva do possível” (Vorbehalt des Möglichen),em termos políticos, económicos e sociais [cfr. J.J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 365, e Tomemos a Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, Separata do Número Especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia” - 1984, Coimbra, 1989, p. 26; J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (Reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, p. 199 ss., 343 ss.]
O direito à habitação, como um direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica (cfr. J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 205, 209) ou, antes, como um autêntico direito subjetivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p.680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efetiva, já que não é diretamente aplicável, nem exequível por si mesmo.
O direito à habitação tem, assim, o Estado - e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios - como único sujeito passivo - e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios. Além disso, ele só surge depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos definidos pela lei.»
Por outro lado, embora a garantia do direito à habitação envolva, nos termos referidos, a adoção de medidas no sentido de possibilitar aos cidadãos o acesso a habitação própria (cf. o citado n.º 3 do artigo 65.º da Constituição), tal direito não se esgota nem se identifica com o direito a ser proprietário de um imóvel onde se tenha a habitação, sendo realizável igualmente por outras vias, designadamente através do arrendamento. Tal entendimento foi expressamente assumido no Acórdão n.º 649/99, no qual se salientou, por um lado, que «o direito à habitação não se esgota ou, ao menos, não aponta, ainda que de modo primordial ou a título principal, para o “direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão”» e, por outro, «que o “mínimo de garantia” desse direito (ou seja, o de obter habitação própria ou de obter habitação por arrendamento “em condições compatíveis com os rendimentos das famílias”) é algo que se impõe como obrigação, não aos particulares, mas sim ao Estado». Por essa razão, conforme referem ainda Gomes Canotilho e Vital Moreira (cf. Constituição…, cit., pág. 836), incumbe ao Estado «garantir os meios que facilitem o acesso à habitação própria (fornecimento de terrenos urbanizados, crédito acessível à generalidade das pessoas, direito de preferência na aquisição da casa arrendada, etc.) e que fomentem a oferta de casas para arrendar, acompanhada de meios de controlo e limitação das rendas (subsídios públicos às famílias mais carenciadas, criação de um parque imobiliário público com rendas limitadas, etc.).».
Não obstante, mesmo quando olhou para o direito à habitação nesta perspetiva, o Tribunal Constitucional não deixou de admitir a possibilidade de serem impostas restrições aos proprietários privados. A esse respeito, escreveu-se o seguinte no Acórdão n.º 151/92:
«A concretização do direito à habitação – o facultar a cada pessoa uma morada condigna – é, pois, uma tarefa cuja realização – gradual, como se disse – a Constituição comete ao Estado.
Mas, fundando-se o direito à habitação na dignidade da pessoa humana (ou seja, naquilo que a pessoa realmente é – um ser livre com direito a viver dignamente), existe, aí, um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer. E para isso pode, até, se tal for necessário, impor restrições aos direitos do proprietário privado. Nesta medida, também o direito à habitação vincula os particulares, chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio de solidariedade social); vincula, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a cumprir.».
Esta ideia foi posteriormente retomada em diversa jurisprudência do Tribunal, de que é exemplo o recente Acórdão n.º 299/2020, no qual se reafirmou a admissibilidade de restrições ao direito de propriedade baseadas na “cláusula legal de conformação social da propriedade”:
«A colocação sistemática do direito constitucional de propriedade no âmbito dos direitos económicos, sociais e culturais e a proteção “nos termos da Constituição” acentuam considerações objetivas que contribuem para a definição do seu conteúdo e limites. Com efeito, o âmbito de proteção daqueles direitos fundamentais acolhe valores e interesses sociais que devem ser ponderados quando em confronto com o direito de propriedade privada, como acontece como o direito à habitação (artigo 65.º) e o direito ao ambiente e qualidade de vida (artigo 66.º), assim como com os diversos regimes específicos de propriedade que a Constituição recorta em função da individualidade e destinação do respetivo objeto (artigos 65.º. n.º 4, 88.º, 94.º, 95.º, 96.º), que preveem restrições que encontram justificação na aptidão da propriedade para a prossecução de interesses sociais.
De modo que, tal como os demais direitos fundamentais, o direito de propriedade pode ser restringido por «razões sociais», nos termos que relevam do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, ou seja, por razões de importância constitucional. O que está vedado são intervenções legislativas restritivas do direito de propriedade, tendo em vista a prossecução de valores e interesses que não gozem, também eles, de proteção da Constituição.».
Contudo, o Tribunal não deixou também de salientar que «a dimensão objetiva da garantia constitucional da propriedade privada não deve, porém, ser sobrevalorizada à custa da dimensão individual ou subjetiva» concluindo que «o direito constitucional de propriedade integra poderes e faculdades subjetivas intangíveis, através da abstenção do legislador» (cf. o ponto 13 do referido Acórdão n.º 299/2020).
Por outro lado, mesmo quando se olha para o direito à habitação na sua dimensão negativa – traduzido num mero dever de abstenção do Estado e de terceiros, no sentido de não praticarem atos que possam prejudicar a efetiva realização daquele direito ou enquanto direito de não ser arbitrariamente privado da habitação –, não é de aceitar como constitucionalmente exigível que a realização do mesmo direito esteja dependente de limitações intoleráveis e desproporcionadas de direitos de terceiros, porventura também constitucionalmente consagrados, como sucede com o direito de propriedade privada (cf. o referido Acórdão n.º 101/92). Ou seja, embora o direito à habitação possa justificar limitações à propriedade, tais limitações terão de obedecer sempre a um princípio de equidade e de proporcionalidade, sem que se perca de vista que o direito à habitação constitucionalmente garantido, na sua vertente positiva, tem como titulares passivos, em primeira linha, o Estado e os demais entes públicos territoriais, e não os particulares (cf. o Acórdão n.º 612/2019) e que a consagração do direito fundamental à habitação «pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respetivo conteúdo, a efetivar-se segundo a “reserva do possível”, não conferindo, por si mesmo, habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e de conforto, com preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar, na medida em que isso sempre dependerá da concretização da tarefa constitucionalmente atribuída ao Estado» (cf. Acórdão n.º 829/96 e, neste mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 508/99 e 29/2000).
Finalmente, não é também irrelevante, no plano constitucional, para aferir do âmbito de proteção do direito à habitação, analisar a que título e em que circunstâncias quem pretende beneficiar da tutela desse direito acedeu ao espaço habitacional em questão e quais os fundamentos que poderão motivar a cessação do direito com base no qual se legitimava a utilização do espaço em causa, tendo em atenção o confronto com outros eventuais interesses conflituantes de terceiros sobre esse mesmo imóvel, que sejam igualmente merecedores de tutela (cf., a este respeito, os Acórdãos n.ºs 101/92 e 168/2010).
É, pois, tendo em atenção estas concretizações sobre o conteúdo e âmbito de proteção do direito à habitação que deverá ser analisado o caso dos autos.
10. Na ponderação a efetuar a respeito da conformidade constitucional da dimensão normativa questionada, importa, assim, ter em consideração a posição jurídica do credor hipotecário, que aparece, no caso, contraposta à pretensão da recorrente no sentido da subsistência do seu direito de habitação sobre imóvel dado em garantia.
Com efeito, o direito ao crédito (onde se incluem as respetivas garantias), tal como o direito à habitação, é merecedor de tutela constitucional, beneficiando da proteção conferida à propriedade privada (artigo 62º, nº 1, da Constituição). Tem sido este, aliás, o entendimento reiterado da jurisprudência do Tribunal Constitucional, conforme se dá nota no Acórdão n.º 612/2019:
«13. Conforme referido, o credor goza de um direito à satisfação do seu crédito, podendo, em caso de incumprimento, exigir a realização executiva do seu direito de crédito, à custa do património do devedor [...]. Este direito do credor, enquanto direito de conteúdo patrimonial, é também tutelado pelo artigo 62.º, n.º 1, da Constituição, que encerra a garantia (institucional e individual) da propriedade privada.
Com efeito, o conceito constitucional de propriedade é mais amplo que o conceito civilístico tradicional, baseado no paradigma oitocentista, abrangendo, para além da proprietas rerum, também a propriedade científica, literária ou artística e outros direitos de valor patrimonial, como sejam os direitos de crédito (cf., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pág. 800, e Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, pp. 1246-1247). Neste mesmo sentido se tem também pronunciado o Tribunal Constitucional (cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 68/97, 491/2002 e 273/2004 e, especificamente no que respeita ao direito do credor à satisfação do seu crédito, os Acórdãos n.ºs 349/91, 494/94, 51/99, 318/99 e 374/2003, todos acessíveis, assim como os demais adiante citados, a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). De acordo com a mesma jurisprudência, o direito do credor à satisfação do seu crédito decorre da garantia constitucional do direito de propriedade e aquele direito congloba, naturalmente, a possibilidade da sua realização coativa, à custa do património do devedor.».
Por outro lado, estando em causa nos autos direitos sujeitos a registo, merecem também consideração as expectativas do credor hipotecário quanto à abrangência e segurança da garantia de que beneficia, por força da prioridade do registo do seu direito em relação a outros direitos reais constituídos (e registados) posteriormente sobre o mesmo imóvel. Não se poderá, pois, deixar de ter presentes as finalidades do registo predial, bem como a proteção por ele conferida, assim sintetizadas no Acórdão n.º 160/2000:
«[...O] registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e proteção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respetivas relações jurídicas – que, em certa perspetiva, possam afetar a segurança do comércio jurídico imobiliário (cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, Coimbra, 1993, pág. 333; Isabel Pereira Mendes, “Repercussão no Registo das Ações dos Princípios do Direito Registral e da Função Qualificadora dos Conservadores do Registo Predial” in – O Direito, ano 123, 1991, págs. 599 e segs., maxime, pág. 604; Paula Costa e Silva, “Efeitos do Registo e Valores Mobiliários. A Proteção Conferida ao Terceiro Adquirente”, in – Revista da Ordem dos Advogados, ano 58, 1998, II, págs. 859 e ss., maxime pág. 862).
Ora, conforme decorre do Acórdão n.º 215/2000 – em que se concluiu pela não inconstitucionalidade da interpretação do artigo 5º do Código de Registo Predial, enquanto considera que terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente –, as aludidas finalidades do registo predial constituem uma concretização do princípio da segurança jurídica ou da proteção da confiança, que emana do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Escreveu-se em tal aresto:
«O registo predial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (artigo 1º do CRP), ou seja dar publicidade aos direitos inerentes àqueles prédios (ou objetos sujeitos a registo).
O perfeito conhecimento da situação jurídica dos objetos sujeitos a registo é absolutamente essencial à certeza e segurança do comércio jurídico de imóveis, segurança jurídica que atualmente subjaz a todo o ordenamento jurídico em que assenta um Estado de Direito.
De facto, a segurança de que o homem necessita para planear e reger toda a sua vida de forma responsável e com respeito pelos fins comunitários é um dos elementos constitutivos do Estado de Direito e que se deduz do artigo 2º da Constituição.
No caso, esta segurança jurídica tem a ver com o interesse de ordem geral: o registo, na medida em que confere publicidade e segurança ao ato registado, está a realizar a certeza e a segurança do direito ou do facto sujeito a registo e, do mesmo passo, torna seguro o comércio jurídico que possa ter por objeto os factos ou direitos registados, assim se fomentando também o princípio constitucional da liberdade de iniciativa económica, reconhecida na Lei Fundamental após a Revisão de 1997 [artigo 80º, alínea c) da Constituição].
O princípio geral da segurança jurídica ínsito no princípio do Estado de Direito prevê que qualquer cidadão possa, de antemão, saber que aos atos que praticar ou negócios que realizar se ligam determinados efeitos, incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas decorrentes de normas jurídicas em vigor, por forma que cada um tenha plena consciência das consequências da sua atividade (ou da sua omissão) na comunidade.
Este princípio está intimamente relacionado com o princípio da confiança na medida em que o registo, enquanto constitui publicidade do seu conteúdo, torna este digno de crédito, isto é, as pessoas, em geral, têm de poder confiar nos factos constantes do registo.
Por um lado, a segurança registral, quando o registo é definitivo, faz presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito (admitindo prova em contrário).
Por outro lado, a segurança jurídica registral visa a proteção de terceiros que fizeram aquisições confiando na presunção registral resultante do registo anterior em favor do transmitente.
Assim, o princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança que decorrem do princípio do Estado de Direito democrático constante no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa credenciam a prevalência registral que pode favorecer um adquirente «a non domino», na medida em que o princípio da publicidade que atribui essa prevalência determina a extinção do direito incompatível.».
Em suma, na análise da pretensão da recorrente no sentido da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil objeto do presente recurso – e que implicará a subsistência do direito de uso e habitação registado posteriormente à hipoteca –, não se poderá desconsiderar a posição jurídica do credor hipotecário, tendo presentes, por um lado, o regime do registo predial e das finalidades que o mesmo prossegue e, por outro, a tutela constitucional de que beneficia o direito de crédito, para mais reforçado com um direito real de garantia como a hipoteca. É que a subsistência do direito de uso e habitação, nas aludidas circunstâncias, poderá colocar em causa a segurança jurídica do credor hipotecário, por força da neutralização, ao menos parcialmente, da garantia real (hipoteca) por si registada, face a um outro direito real de gozo menor, incidente sobre o mesmo bem, constituído e registado em data posterior.
Dizendo de outra forma, a eventual prevalência do direito de uso e habitação posteriormente registado, enquanto medida de proteção do direito à habitação do seu titular, poderá representar um sacrifício desproporcionado de direitos de terceiro, neste caso, do direito do credor hipotecário.
11. Tecidas estas considerações, e tendo em atenção o conteúdo e alcance do direito à habitação constitucionalmente garantido (cf. o ponto 9, supra), importa realçar que aquele não abrange algumas das pretensões que por diversas vezes são formuladas ao abrigo do mesmo.
No presente caso, não estado em causa qualquer pretensão que tenha como destinatários diretos o Estado ou as autarquias locais, é sobretudo a dimensão negativa do direito à habitação que importa considerar.
Por outro lado, tendo havido, por parte dos devedores hipotecários o incumprimento das obrigações garantidas pela hipoteca em causa nos autos (cf. o ponto 1, supra) e tendo, em consequência, o credor hipotecário o direito de exigir judicialmente esse cumprimento, executando o património daqueles (cf. os artigos 817.º e 601.º do Código Civil), não poderá, de todo, afirmar-se, atentas ainda as finalidades do registo predial, que a caducidade do direito de uso e habitação da recorrente constitua, em si mesma, uma arbitrária privação da referida habitação.
Acresce ainda, por outro lado, e conforme já referido, que o direito à habitação constitucionalmente garantido não se identifica nem se confunde com o direito a ser proprietário (ou titular de um direito real de gozo) sobre o imóvel onde se tenha a habitação. Daí que não se possa configurar como constitucionalmente imposto, enquanto exigência decorrente da proteção do direito à habitação, uma solução no sentido de, nas relações entre particulares, consagrar um regime impeditivo da caducidade do direito real de habitação, quando o mesmo incida sobre uma casa de morada de família e esteja em conflito com uma hipoteca com registo anterior, incidente sobre o mesmo imóvel. Por outro lado, conforme também já mencionado, o “mínimo de garantia” do direito à habitação – enquanto direito de obter habitação própria ou de obter habitação por arrendamento “em condições compatíveis com os rendimentos das famílias” – é algo que se impõe como obrigação, não aos particulares, mas sim ao Estado.
De resto, é certo que tem havido por parte do legislador um reforço da tutela da habitação própria permanente no âmbito dos processos de natureza executiva, designadamente através de iniciativas legislativas tendentes a restringir ou, mesmo, a impedir a possibilidade de penhora daqueles imóveis (cf., por exemplo, a Lei n.º 13/2016, de 23 de maio, que prevê medidas de proteção da casa de morada de família no âmbito dos processos de execução fiscal, e, mais recentemente, a Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, que alterou os n.ºs 3 e 4 do artigo 751.º do Código de Processo Civil no que respeita aos requisitos de penhorabilidade dos referidos imóveis). No entanto, apesar dessas iniciativas, o legislador tem optado também por lidar com o problema do sobreendividamento das famílias e da insuficiência de rendimentos disponíveis para a subsistência do devedor por outras vias (por exemplo, a exoneração do passivo restante no quadro da insolvência ou medidas específicas no âmbito do crédito à habitação).
Acresce ainda que, no âmbito do processo executivo, o legislador não desconsiderou em absoluto o direito à habitação. Por um lado, a circunstância de o imóvel constituir habitação própria permanente do executado assume relevo no tocante aos pressupostos de admissibilidade da penhora (cf. artigo 751.º, n.º 3, alíneas a) e b) do CPC). Por outro lado, estando em causa a casa de habitação do executado, uma vez efetuada a venda executiva, e requerendo o adquirente, na própria execução, a entrega dos bens, poderá ter lugar, em determinadas circunstâncias, a suspensão da entrega do imóvel e, no caso de se suscitarem sérias dificuldades quanto ao realojamento do executado, o agente de execução deverá comunicar antecipadamente tal facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes (cf. artigos 828.º, 861.º, n.º 6, e 863.º, n.ºs 3 a 5, todos do Código de Processo Civil).
Para além destas medidas, este Código prevê ainda, relativamente à casa de habitação efetiva do executado, a possibilidade de suspensão da venda no caso de execução de sentença pendente de recurso (cf. artigo 704.º, n.º 4) e nos casos de dedução de oposição à execução mediante embargos de executado e de oposição à penhora (cf. artigo 733.º n.º 5, 785.º, n.º 4, e 856.º, n.º 4).
No entanto, não obstante o reconhecimento, por este Tribunal, da função social da propriedade, sobretudo em sede de arrendamento, que poderá justificar a imposição de restrições aos direitos do proprietário privado (cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 311/93, 263/2000, 309/2001 e 543/2001), daí não decorre, repete-se, que seja exigível impor aos particulares que se substituam ao Estado nas obrigações que sobre este impendem em matéria de proteção do direito à habitação (cf. os Acórdãos n.ºs 101/92, 130/92, 633/95 e 570/2001).
Por isso, havendo a possibilidade de a recorrente, titular de um direito de uso e habitação sobre um imóvel hipotecado, ser privada do imóvel onde tem a sua habitação, por força da caducidade do seu direito, nos termos expostos, caberá ao Estado, caso tal se mostre necessário, assegurar a proteção do direito constitucional à habitação (cf., a este respeito, em matéria de arrendamento, os Acórdãos n.ºs 151/92 e 465/2001).
Assim, na relação existente, neste caso, entre a garantia constitucional do direito de propriedade privada, em que assenta o direito do credor à satisfação do seu crédito, e o direito fundamental à habitação, há que entender que, gozando o legislador ordinário de um largo espaço de conformação no que respeita à compatibilização destes direitos, não se afigura que mereça censura, à luz da tutela constitucional do direito à habitação, a solução normativa objeto do presente recurso.
12. Sempre se dirá, aliás, que o que poderia afigurar-se como desproporcionado ou arbitrário seria, na ponderação entre o direito do credor hipotecário a ver satisfeito o seu crédito (que, relembre-se, encontra tutela no artigo no nº 1 do artigo 62º da Constituição) e o direito de uso e habitação da recorrente, posteriormente constituído e registado, reconhecer um eventual “direito” desta à subsistência do seu direito após a venda executiva e, dessa forma, continuar a habitar no imóvel, com a consequente degradação ou diminuição do valor daquela garantia hipotecária.
Diferentemente, efetuada a ponderação entre o interesse do credor hipotecário em não ver diminuída a garantia do seu crédito hipotecário e em ver tutelada a confiança inerente ao regime do registo predial (cf. o ponto 10, supra), por um lado, e o interesse da recorrente, titular de um direito de uso e habitação posteriormente registado, em manter esse direito mesmo após a venda executiva do imóvel, não se vislumbra que a dimensão normativa sindicada, ao determinar a caducidade do direito da ora recorrente, encontre qualquer obstáculo constitucional, designadamente, por violação do artigo 65.º da Constituição.
Por outro lado, nem se poderá dizer que a solução da caducidade do direito de uso e habitação se apresente como não sendo expectável para o seu titular. Com efeito, tendo adquirido um direito que incidia sobre um imóvel já previamente hipotecado, e estando os dois direitos sujeitos a registo, o titular do direito de uso e habitação, confrontado com aquele registo anterior, não poderia deixar de contar com a possibilidade de, no caso de incumprimento do crédito garantido por aquela hipoteca, o respetivo credor se fazer pagar pelo valor do imóvel hipotecado.
Dir-se-á que o conhecimento (ou pelo menos a cognoscibilidade) da existência desse direito real de garantia anterior não impedia que a recorrente confiasse na subsistência do seu direito, uma vez efetuada a venda executiva. Contudo, tal confiança não poderá ser merecedora de tutela, ainda que, no quadro da proteção do direito à habitação, face ao sacrifício desproporcionado que implica para um direito de terceiro (neste caso, o credor titular de hipoteca anterior).
Importa, por fim, referir que a titularidade do direito de uso e habitação por parte da recorrente não deixa de ser considerada no âmbito da venda executiva. Com efeito, conforme se refere na decisão recorrida, ocorrendo a caducidade de tal direito, nos termos do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, na interpretação ora questionada, o mesmo transfere-se para o produto da venda, que desempenhará uma função indemnizatória (cf. o n.º 3 do mencionado artigo 824.º).
13. Em face do exposto, conclui-se que a interpretação normativa objeto do presente recurso não viola qualquer parâmetro constitucional, designadamente os referidos pela recorrente.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, interpretado no sentido de que o direito de uso e habitação de imóvel hipotecado, que corresponda a casa de morada de família, cujo registo seja posterior ao registo de hipoteca sobre o mesmo imóvel, caduca com a realização da venda executiva; e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UC, ponderados os critérios estabelecidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cf. o artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Lisboa, 18 de janeiro de 2022 - Pedro Machete - José João Abrantes - José Teles Pereira - Maria Benedita Urbano - João Pedro Caupers