ACÓRDÃO Nº 34/2022
Processo n.º 950/2021
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José António Teles Pereira
Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – A Causa
1. A. (o ora recorrente) foi condenado, em primeira instância (processo n.º 12/19.0T9PTG, do Juízo Central Cível e Criminal de Portalegre), por acórdão de 04/12/2020, na pena de 4 anos de prisão efetiva, pela prática de um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 1, do Código Penal (n.º 2 do mesmo artigo, à data da prática dos factos).
1.1. Inconformado com esta decisão condenatória, dela interpôs recurso o arguido para o Tribunal da Relação de Évora, invocando, designadamente, a inconstitucionalidade dos “[…] artigos 1.º, n.os 1 e 3, 2.º, n.º 2, 164.º, n.º 1, alínea a), todos do CP, no sentido de a norma incriminadora prevista no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do CP, na redação atual, abranger as situações que a vítima sofre e não pratica a cópula, coito anal ou oral (por violação) do princípio da legalidade e da tipicidade, nos temos do disposto nos artigos 2.º e 29.º, n.os 1, 3 e 4, da CRP”.
1.1.1. Por acórdão de 22/06/2021, o Tribunal da Relação de Évora decidiu conceder provimento parcial ao recurso, reduzindo a pena aplicada a três anos de prisão efetiva e mantendo, no mais, a decisão recorrida. Para tanto – e no que releva para o presente recurso – considerou que os factos provados consubstanciam a prática, pelo arguido, do crime de violação previsto no artigo 164.º do Código Penal (CP), seja na redação vigente à data da prática dos factos (introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto), seja na redação vigente à data da condenação (introduzida pela Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro).
1.1.2. O recorrente suscitou a nulidade desta última decisão, pretensão que não foi acolhida, por acórdão de 13/07/2021, do mesmo tribunal.
1.2. O arguido recorreu então do acórdão de 22/06/2021 para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – recurso que deu origem aos presentes autos – nos termos seguintes:
“[…]
I Fundamento do recurso
O presente recurso é impetrado do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em 22 de junho de 2021 […].
II. Breve sinopse do processado
[…]
É consabido que o tipo legal de crime em causa sofreu avultadas alterações, ao longo dos anos, desde a redação originária do CP de 1982.
À data dos factos, vigorava a redação conferida pela Lei nº 83/2015, de 05-08, nos termos da qual:
‘Artigo 164.º
Violação
1 – Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 – Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos.’
Fruto da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011, denominada Convenção de Istambul, aprovada e ratificada através da Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, e do teor do Relatório GREVIO, publicado em 21-01-2019, procedeu o legislador a nova alteração do tipo, desta feita através da Lei nº 101/2019, de 06-09, passando a ter a seguinte redação:
‘Artigo 164.º
Violação
1 – Quem constranger outra pessoa a:
a) Praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de um a seis anos.
2 – Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 – Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima.’
Das normas transcritas, conclui-se que o legislador deixou cair a modalidade típica objetiva passiva já que aboliu da norma incriminadora o verbo sofrer.
Dito de outra forma, o crime de violação por cópula própria – ou seja, com penetração –, na sua modalidade simples, apenas pune a prática de cópula, coito anal ou oral, o que significa que a vítima tem necessariamente de ter uma conduta ativa. Já não se incrimina, assim, a cópula sofrida pela vítima, em que esta não adota qualquer comportamento ativo no ato sexual não consentido. Não se diga que sendo a vítima constrangida, o vocábulo praticar consigo ou com outrem cópula abrange as situações em que assume uma postura passiva.
Destarte, o legislador continua a distinguir os atos sexuais praticados daqueles sofridos na modalidade qualificada – vide artigo 164.º, n.º 2, alínea a), do CP, na redação atual, pelo que forçoso será de concluir que o legislador de 2019 retirou do elemento típico objetivo a cópula, coito anal e oral sofridos pela vítima.
Assim, as modalidades de ação praticar e sofrer abarcam situações fácticas distintas.
Tal tem particular relevo considerando que se trata de um crime de execução vinculada. Ora, atendendo ao princípio da legalidade e da tipicidade, consagrado no artigo 1.º, n.os 1 e 3, do CP, respaldo infra legem do postulado no artigo 29.º, n.os 1, 3 e 4, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), associado ao princípio da segurança jurídica consagrado no artigo 2.º, da Lei Fundamental, ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, recusando-se o recurso à interpretação analógica para definição das condutas típicas.
Consagram tais normativos o princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, decorrência, de resto, do Estado de Direito Democrático.
Corolário de tal princípio, entre outros, emerge a proibição da retroatividade e o princípio da retroatividade in mitius, como deflui do disposto no artigo 29.º, n.º 4, da CRP.
[…]
A lacuna de punibilidade que a norma incriminadora hoje apresenta fere o sentido de Justiça que brota em todos nós.
Sem embargo, os princípios acima elencados, na sua vertente dissuasora do agente do crime em potência, manifestação de um Estado de Direito Democrático em que a tutela dos bens jurídicos fundamentais deve ser expressamente elencada, levam a que a questão deva ser suscitada.
Posto isto,
Dos factos dados como provados – com os quais o recorrente não se conforma, como adiante melhor explanará –, ressumbra que a ofendida […] não praticou, mas sim sofreu o ato sexual de cópula por parte do recorrente.
Leia-se o ponto 12 dos factos provados: De seguida, o arguido despiu as calças e as cuecas que trazia vestidas, e deitou-se sobre a ofendida, que se encontrava deitada no banco da frente do passageiro e, introduziu o pénis ereto na vagina da ofendida, com força, ao mesmo tempo que a ofendida lhe pedia para parar.
Do exposto, ressumbra que o Tribunal a quo deveria ter lançado mão do disposto no artigo 2.º, n.º 2, do CP, o que não fez, violando, desta forma, o disposto nos artigos 1.º, n.os 1 e 3, 2.º, n.º 2, 164.º, n.º 1, alínea a), todos do CP e nos artigos 2.º e 29.º, n.os 1, 3 e 4, ambos da CRP.
Por conseguinte, deverá o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que faça correta aplicação do disposto nos preceitos contidos nos artigos 1.º, n.os 1 e 3, 2.º, n.º 2, 164.º, n.º 1, alínea a), todos do CP e nos artigos 2.º e 29.º, n.os 1, 3 e 4, ambos da CRP.
A interpretação e aplicação do disposto normativos ínsitos nos artigos 1.º, n.os 1 e 3, 2.º, n.º 2, 164.º, n.º 1, alínea a), todos do CP, no sentido de a norma incriminadora prevista no 164.º, n.º 1, alínea a), do CP, na redação atual, abranger as situações que a vítima sofre e não pratica a cópula, coito anal ou oral é ilegal e inconstitucional porque violadora do princípio da legalidade e da tipicidade, nos temos do disposto nos artigos 2.º e 29.º, n.os 1, 3 e 4, ambos da CRP, normas estas outrossim violadas;
[…];
Não obstante,
C. O recorrente viu o seu recurso parcialmente proceder, quanto à medida concreta da pena aplicada, sendo que, no que diz respeito às inconstitucionalidades invocadas, consignou o Tribunal ora recorrido, o seguinte:
‘(…)
Atendendo às explanações retro e analisados os factos provados, dúvidas não restam em como o arguido praticou o crime pelo qual se mostra acusado, porquanto, contra a vontade da ofendida, constrangendo-a, teve com a mesma relação de cópula. Isto é, contrariamente ao afirmado pelo mesmo, manteve relações sexuais com a […], não consentidas, mas constrangidas e dolorosas.
Pois que, como é, assertivamente, referido no acórdão recorrido, “tendo em consideração o supra explanado, e a matéria de facto provada, nomeadamente a constante nos n.os 7 a 13, não existem dúvidas que o arguido A. praticou um crime de violação, p. e p. pelo art. 164.º, n.º 1, do Código Penal, na redação atual, n.º 2, à data da prática dos factos, sendo autor dos factos típicos traduzidos na prática de cópula, introdução do pénis ereto na vagina, com a menor […] contra a vontade desta.
Os atos praticados contra a vítima surgem atentatórios do próprio sujeito, na medida em que as componentes humanas são incindíveis. Sempre a ofensa sexual atinge a própria dignidade das vítimas, invadindo não apenas o seu corpo, mas também, aí deixando marcas indeléveis, o seu íntimo.
Agiu com dolo, na sua forma mais grave de dolo direto, sabendo que era contra a sua vontade que praticava tais atos, que estava a forçá-la para atingir os seus objetivos e ainda assim querendo prosseguir os seus intentos e concretizando-os.
Portanto, mostram-se preenchidos todos os elementos constitutivos do crime em causa, sem a verificação de causas de exclusão da culpa ou da ilicitude, em qualquer das mencionadas redações conferidas ao aludido preceito.
Porém, deve atender-se à previsão dos art. 2.º, n.º 4, do CP (cfr. art. 29.º, n.º 4, da CRP), que preceitua:
‘4 – Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.’
Desde logo, a pena abstrata é igual um a seis anos de prisão.
Ir-se-á, de seguida, analisar a pena que, em concreto, se aplicará, em cada uma dessas redações para se efetuar a escolha do regime mais favorável. Não o havendo aplicar-se-á o regime em vigor à data dos factos – art.º 164º, nº 2, alínea a), do CP, na redação conferida pela Lei n.º 83/2015, de 05-08.
Em face do exposto, dir-se-á que não se vislumbram violações legais dos direitos de defesa do arguido, nem de preceitos ou princípio legais e, ou, constitucionais, nomeadamente os alegados pelo arguido, ora recorrente.
D. Nesta confluência, de acordo com a natureza do processo e com o douto acórdão proferido, encontram-se já esgotados todos os recursos ordinários que a lei permite.’
O Recorrente não se acha convencido pelo decidido quanto às questões de (in)constitucionalidade por si suscitadas em sede de Questão Prévia, na motivação de recurso por si apresentada e sumariada nas conclusões A. a H.
Assim,
Tal como o recorrente suscitou e peticionou no seu recurso, são várias as normas interpretadas e aplicadas pelo Tribunal recorrido em sentido materialmente inconstitucional. Senão, vejamos:
III. Inconstitucionalidades que se pretende ver apreciadas:
B. A interpretação e aplicação da dimensão normativa extraída da conjugação dos artigos, no sentido de a conduta de constrangimento de uma pessoa a sofrer cópula, praticada em data anterior à redação conferida à norma incriminadora prevista no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do CP na redação vigente, mas julgada e sentenciada após a alteração decorrente da Lei n.º 101/2019, de 06-09, é ilegal e inconstitucional porque violadora do princípio da retroatividade in mitius, nos temos do disposto nos artigos 2.º e 29.º, n.º 4, ambos da CRP, normas estas outrossim violadas;
[…]” (sublinhados acrescentados).
1.2.1. O recurso foi admitido no Tribunal da Relação de Évora, com efeito suspensivo.
1.2.2. No Tribunal Constitucional, o relator proferiu a Decisão Sumária n.º 680/2021, no sentido de: a) não conhecer do objeto do recurso relativamente à norma indicada no ponto III.-B. do requerimento de interposição do recurso; b) não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro, interpretado no sentido de abranger as situações em que a vítima sofre e não pratica ativamente cópula, coito anal ou oral; e, consequentemente, c) julgar improcedente o recurso, na parte em que dele se tomou conhecimento. Assentou tal decisão nos fundamentos seguintes:
“[…]
2.1. A primeira questão indicada como objeto do recurso pelo recorrente é a da ‘interpretação e aplicação da dimensão normativa extraída da conjugação dos artigos 1.º, n.os 1 e 3, 2.º, n.º 2, 164.º, n.º 1, alínea a), todos do CP vigente, no sentido de a norma incriminadora prevista no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do CP, na redação atual, abranger as situações que a vítima sofre e não pratica a cópula, coito anal ou oral’.
Dúvida não há de que a decisão recorrida considerou que os factos provados consubstanciam a prática, pelo arguido, do crime de violação previsto no artigo 164.º do Código Penal, seja na redação vigente à data da prática dos factos (introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto), seja na redação vigente à data da condenação (introduzida pela Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro).
A norma indicada operou, pois, como ratio decidendi da decisão recorrida.
Não obstante, impõem-se algumas precisões no seu recorte.
Desde logo, a interpretação normativa em causa resulta diretamente apenas do artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. Os artigos 1.º, n.os 1 e 3, e 2.º, n.º 2, não foram autonomamente mobilizados para alcançar o resultado interpretativo relevante, pelo que o objeto do recurso pode ser expurgado dos referidos preceitos, sem qualquer consequência na respetiva materialidade.
Por outro lado, e embora se trate de um elemento inequivocamente implícito, entende-se que o sentido da norma ficará mais claro tornando explícito que se trata de questionar a não inclusão, como único elemento do tipo, da cópula ativa.
Assim, o recurso terá, rigorosamente, por objeto, quanto à primeira questão, a norma contida no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro, interpretado no sentido de abranger as situações em que a vítima sofre e não pratica ativamente cópula, coito anal ou oral.
O recorrente indica, também, como segunda questão objeto do recurso, a ‘[…] interpretação e aplicação da dimensão normativa extraída da conjugação dos artigos, no sentido de a conduta de constrangimento de uma pessoa a sofrer cópula, praticada em data anterior à redação conferida à norma incriminadora prevista no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do CP na redação vigente, mas julgada e sentenciada após a alteração decorrente da Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro’.
Apesar de o enunciado em causa parecer incompleto, é compreensível o sentido geral da questão: punir o constrangimento a sofrer – e não praticar ativamente – a cópula, quando os factos são anteriores à Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro (tal como foi enunciada na conclusão H. do requerimento de interposição do recurso).
Não obstante, não deve conhecer-se do objeto do recurso, uma vez que a questão em causa não tem autonomia relativamente à primeira: trata-se, apenas, de uma consequência desta, que necessariamente a acompanhará. Porque a decisão recorrida considerou que os factos provados consubstanciam a prática, pelo arguido, do crime de violação previsto no artigo 164.º do Código Penal, seja na redação vigente à data da prática dos factos (introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto), seja na redação vigente à data da condenação (introduzida pela Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro), então puniu o arguido pela prática do crime correspondente.
Assim, se a norma indicada em primeiro lugar for julgada inconstitucional, desaparecem os pressupostos da segunda questão. Se não for julgada inconstitucional, a segunda questão perde a razão de ser. Em nenhum dos casos esta norma tem autonomia em relação àquela.
Pelo exposto, o recurso será apreciado unicamente por referência à primeira questão indicada no respetivo requerimento de interposição (ponto III.-A.).
2.2. A redação do artigo 164.º do Código Penal introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, vigente à data da prática dos factos pelos quais o recorrente foi condenado, é a seguinte:
Artigo 164.º
Violação
1 – Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 – Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos.
Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro, vigente à data da condenação (e à presente data), o referido artigo passou a ter a seguinte redação:
Artigo 164.º
Violação
1 – Quem constranger outra pessoa a:
a) Praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de um a seis anos.
2 – Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 – Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima.
O recorrente procurou sustentar, ao longo do processo – e assim construiu o recurso que dirigiu ao Tribunal Constitucional – que a redação introduzida em 2019 fez com que a norma extraída da alínea a) do n.º 1 deixasse de prever como elemento típico o constrangimento a sofrer a cópula, restando apenas como conduta típica o constrangimento a praticar ativamente a cópula.
Pretende, por esta via, que se conclua no sentido de o constrangimento a sofrer a cópula, enquanto circunstância típica, ter deixado de encontrar correspondência com a letra da lei.
Assim colocada a questão, é evidente que não está em causa o princípio da legalidade da pena (n.º 3 do artigo 29.º da Constituição), nem diretamente um problema de sucessão de leis no tempo (n.º 4 do artigo 29.º da Constituição).
O problema coloca-se, unicamente, no plano da conformidade da norma ao princípio da legalidade criminal, previsto no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição.
Considerando a jurisprudência constitucional há muito sedimentada quanto ao modo como a conformidade das normas àquele princípio deve ser aferida pelo Tribunal Constitucional, a questão a apreciar é simples, justificando amplamente a prolação de decisão sumária pelo relator, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
2.3. Na apreciação da questão, devemos ter presente em que termos o Tribunal Constitucional pode sindicar as normas no confronto com o princípio da legalidade criminal.
Fazendo uso das palavras do Acórdão n.º 590/2012:
‘[…]
O artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da CRP submete a intervenção penal ao princípio da legalidade, no sentido preciso de que não pode haver crime nem pena ou medida de segurança que não resultem de lei prévia, escrita, certa e estrita, estando, consequentemente, proibido o recurso à analogia.
[…]’.
O controlo da constitucionalidade, em matéria de violação do princípio da legalidade criminal, implica, pois, um equilíbrio delicado, designadamente em sede de fiscalização concreta, passando por não interferir com a tarefa de interpretação e aplicação do direito levada a cabo pelo tribunal recorrido – a ele não se substituindo o Tribunal Constitucional – verificando apenas se o dado imutável expresso no resultado alcançado ultrapassou os limites impostos pela Lei fundamental. Como se assinala no Acórdão n.º 587/14:
‘[…]
[M]uito embora a opção por um modelo de controlo normativo tenha visível respaldo na Constituição, não resultando exclusivamente de uma solução legal nem tampouco de uma interpretação jurisprudencial, certo é que há que conjugar esta impostação com as demais regras e princípios constitucionais. Na verdade, se a Constituição consagra, no seu artigo 29.º, n.º 1, o princípio da legalidade criminal, extraindo-se do âmbito de proteção de tal normativo a proibição de aplicação analógica de normas incriminadoras, uma interpretação sistemática do texto constitucional aconselha a que esse momento hermenêutico se converta num ‘pedaço’ de normatividade integrante do objeto de controlo. Daqui não resulta que o Tribunal Constitucional haja de escrutinar qualquer processo hermenêutico que, em matéria penal ou processual penal, venha a ser adotado a nível infraconstitucional. O iter metodológico seguido pelo tribunal recorrido no apuramento do sentido normativo da norma permanece insindicável, não cabendo ao Tribunal Constitucional repassá-lo, mas apenas verificar se foram ultrapassados os limites constitucionais a que esse iter está sujeito em matéria penal, concretamente, a proibição da analogia in malam partem.
[…]’.
Dito de outro modo, ao Tribunal Constitucional cabe apenas verificar, nesta sede – e como repetidamente tem afirmado a sua jurisprudência –, se a norma aplicada ultrapassa o sentido possível das palavras da lei que qualifica os factos como crime ou fixa as consequências jurídicas do crime, tornando incerto qual o comportamento objeto de perseguição criminal. Nas palavras do Acórdão n.º 729/2014:
‘[…]
[O] recurso de constitucionalidade é um instrumento de fiscalização da constitucionalidade das leis, ou das interpretações que os tribunais, fazendo operar os critérios que regem o processo hermenêutico (artigo 9.º do Código Civil), delas extraem, e não um acrescido meio de sindicância da bondade do julgado, ainda que por intermédio de parâmetros constitucionais de apreciação.
[…]’ (sublinhado acrescentado).
2.4. Perante os parâmetros convocáveis, por um lado, e a redação do preceito atrás referenciada (cfr. item 2.1., supra), é por demais evidente que não assiste razão ao recorrente.
Como referem José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, Crimes sexuais: análise substantiva e processual, 3.ª ed., Coimbra, 2021, pp. 86 e ss., em nota ao artigo 164.º do Código Penal:
‘[…]
Em 2019, através da Lei n.º 101/2019, foi introduzida nova alteração à norma, fruto de uma discussão parlamentar que teve origem num conjunto de propostas apresentadas por vários grupos parlamentares, concretamente os projetos de Lei n.º 1047/XIII (PAN), 1058/XII/4.ª (BE) e n.º 1155/XIII/4.ª (PS). Todas as propostas tinham subjacente a vontade de ampliar a tutela da vítima, clarificando e precisando a lei de molde a acatar cabalmente a Convenção de Istambul, evidenciando o não consentimento como elemento constitutivo “central” do crime e estabelecendo agravantes em modalidades de ação mais gravosas e/ou quando a vítima tem uma especial proximidade ou vulnerabilidade.
(…)
Para além da inserção do conceito de vontade cognoscível no n.º 3, o n.º 1, que correspondia ao anterior n.º 2, sofreu uma mudança na redação. Na alínea a) onde se escrevia ‘A sofrer ou a praticar’ passou a constar apenas ‘Praticar’ e na alínea b) onde se exarava ‘A sofrer’ passou a constar ‘Praticar atos’.
Tendo sido intenção da Lei n.º 101 /2019 a ampliação da tutela da vítima não se poderá interpretar a mudança de redação da alínea a) com um qualquer intuito de restringir a incriminação de comportamentos à luz da redação anterior. Assim, na alínea a) a alusão a ‘praticar’ abrange a participação nos atos sexuais de relevo, mantendo-se a mesma esfera de proteção.
[…]’ (sublinhado acrescentado).
Que, ao retirar a expressão ‘sofrer’, o legislador não pretendeu diminuir o âmbito dos factos puníveis é algo que se afigura claro. O propósito da alteração foi, precisamente, o de reforçar esse âmbito, para melhor alinhamento com a Convenção de Istambul, sendo esse propósito incompatível com a vontade legislativa no sentido do estreitamento das margens de punição.
Mas a intenção do legislador não basta para resolver o problema, visto que, atenta a exigência de um mínimo de correspondência entre a interpretação e a letra do preceito incriminador decorrente do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, pode dar-se o caso de o legislador, ao alterar a letra de um preceito legal, descriminalizar uma conduta (ainda que não tencionasse fazê-lo).
Mas não é esse, todavia, o caso.
É verdade que a expressão ‘a sofrer ou a praticar’, que se encontrava no artigo 164.º do Código Penal antes das alterações introduzidas pela Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro, vinha sendo aceite como significando ‘a distinção entre um comportamento, do ponto de vista sexual, puramente passivo ou antes ativo da vítima’ [Jorge de Figueiredo Dias, em comentário ao artigo 163.º do Código Penal, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, 2.ª ed., Coimbra, 2012, p. 716; no mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed., Lisboa, 2015, p. 641, José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, Crimes sexuais: análise substantiva e processual, Coimbra, 2015, p. 67 (trata-se da 1.ª edição da obra atrás referida), e Inês Ferreira Leite, A tutela penal da liberdade sexual, texto disponível em: https://www.academia.edu/40857540/A_TUTELA_PENAL_DA_LIBERDADE_SEXUAL, pp. 23/24].
Todavia, a partir dessa interpretação no plano infraconstitucional, não se pode concluir, sem mais – e muito menos no estrito plano, atrás assinalado, em que a questão jurídico-constitucional se situa –, que, ao retirar a expressão “sofrer”, o legislador tornou constitucionalmente insuportável a interpretação no sentido de que a expressão “praticar” abrange uma atitude passiva na cópula.
A censura jurídico-constitucional não se justificará se – apesar de a expressão “a sofrer ou a praticar” poder ser, porventura, mais clara ou perfeita na descrição típica – o uso da palavra “praticar” ser suficientemente compatível com práticas ativas e passivas para que qualquer pessoa, enquanto destinatário da norma penal, possa compreender o comportamento que lhe está vedado, sob pena de praticar um crime.
É, claramente, o que sucede com o preceito em análise.
A noção de praticar cópula não é aberta ao ponto de qualquer destinatário de normal compreensão deixar de apreender o que nela pode ir factualmente implicado.
Nessa compreensão do significado de ‘cópula’ forçada (porque decorrente de constrangimento), tanto se poderá incluir aquela em que a vítima é forçada a ser um elemento ativo como aquela em que a vítima é forçada a ser um elemento passivo.
Não cabendo ao Tribunal Constitucional determinar se essa é a melhor interpretação da letra da lei, nem (re)apreciar se os factos que dados como provados, mas apenas – como vimos – aferir se a letra da norma comporta o sentido da aplicação normativa, a resposta é inequivocamente positiva: a previsão “quem constranger outra pessoa a praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral” é suficientemente clara, discernível, objetiva, definida e certa para incluir, sem equívocos, qualquer um dos referidos sentidos.
A redação atual da lei – independentemente de poder não ser a mais precisa – mostra-se suficientemente determinada e certa para suportar a interpretação afirmada na decisão recorrida, substituindo ‘sofrer’ e ‘praticar’, por um sentido amplo de ‘praticar’ [cfr. Maria da Conceição Ferreira da Cunha, ‘A tutela da liberdade sexual e o problema da configuração dos crimes de coação sexual e de violação – reflexão à luz da convenção de Istambul’, in Crimes Sexuais (e-book), Centro de Estudos Judiciários, janeiro de 2021, disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/32834/1/eb_CrimesSexuais_1_.pdf, p. 26].
Não ocorre, pois, violação do princípio contido no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição.
[…]” (sublinhados conforme original).
1.2.3. Inconformado com esta decisão, dela reclamou o recorrente para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, invocando o seguinte:
“[…]
II. Da Decisão Sumária
A. O Reclamante conforma-se com as doutas considerações e questões prévias que a Decisão sob escrutínio dirimiu, considerando que a segunda questão de constitucionalidade suscitada é sucedânea da primeira, não gozando, assim e no caso de improcedência, de autonomia.
Outrossim,
B. As questões de constitucionalidade suscitadas centram-se na lacuna de punibilidade da conduta típica na modalidade passiva (e não ativa, conforme se exarou, julga-se, por lapso a fls. 6, 5º §, do ponto 2.1. da decisão apreciada), decorrente da alteração operada pela Lei nº 101/2019, de 06 de setembro, ao disposto no artigo 164º, nº 2, alínea a), do CP, na redação consagrada, à data dos factos, pela Lei nº 83/2015, de 05 de agosto, e nos termos hoje constantes do artigo 164º, n.º 1, alínea a), do CP.
Assim,
Como se resume a página 8 da decisão reclamada, ‘O recorrente procurou sustentar, ao longo do processo – e assim construiu o recurso que dirigiu ao Tribunal Constitucional – que a redação em 2019 fez com que a norma extraída da alínea a) do n.º 1 deixasse de prever como elemento típico o constrangimento a sofrer a cópula, enquanto circunstância típica, ter deixado de encontrar correspondência com a letra da lei.’;
Sem embargo,
Não se consente a asserção segunda a qual a questão colocada não atine a um problema de sucessão de leis no tempo, nos termos do disposto no artigo 29.º, n.º 4, da CRP, cingindo-se unicamente no plano da conformidade da norma ao princípio da legalidade criminal, previsto no artigo 29.º, n.º 1, da CRP, concluindo-se que a questão a apreciar é simples, justificando a prolação de decisão sumária.
C. Estriba o Relator tal afirmação no facto de a norma aplicada não ultrapassar o sentido possível das palavras da lei que qualifica os factos como crime, porquanto ao retirar a expressão ‘sofrer’, o legislador não pretendeu diminuir o âmbito dos factos puníveis;
Argumenta que:
– o propósito da alteração foi precisamente de reforçar o âmbito de punibilidade, para melhor alinhamento com a Convenção de Istambul;
– ainda que a expressão ‘a sofrer ou a praticar’ significasse a distinção entre um comportamento do ponto de vista sexual puramente passivo ou antes ativo da vítima, com o retirar da expressão ‘sofrer’, o legislador não tornou constitucionalmente insuportável a interpretação de que a expressão “praticar” abrange uma atitude passiva na cópula;
– na compreensão do significado de cópula forçada, tanto se poderá incluir na palavra praticar ‘aquela em que a vítima é forçada a ser um elemento ativo como aquela em que a vítima é forçada a ser um elemento passivo’.
A decisão assim proferida radicou na conclusão da constitucionalidade da norma contida no artigo 164º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na redação introduzida pela Lei nº 101/2019, “no sentido de abranger as situações em que a vítima sofre e não pratica ativamente cópula, coito anal ou oral”, “não cabendo ao Tribunal Constitucional determinar se essa é a melhor interpretação da letra da lei, nem (re)apreciar se os factos que dados como provados, mas apenas - como vimos - aferir se a letra da norma comporta o sentido da aplicação normativa, a resposta é inequivocamente positiva: a previsão «quem constranger outra pessoa a praticar consigo ou com outrem cópula, couto anal ou coito oral» é suficientemente clara, discernível, objetiva, definida e certa para incluir, sem equívocos, qualquer um dos referidos sentidos”.
Ora,
III. Dos motivos de dissídio:
Ainda que seja de louvar a clareza da decisão reclamada, afigura-se que esta, a coberto do manto da alegada, mas inexistente, facilidade de leitura da norma cuja sindicância se trouxe a este Tribunal, olvida questões prementes e que deverão conduzir a uma decisão de inconstitucionalidade, questões estas que o Reclamante planeava densificar em sede própria, isto é, sem sede de alegações de recurso;
Com efeito,
Sendo o argumento da decisão sumária alcandorado na desnecessidade de destrinçar a conduta ativa e/ou passiva da vítima, considerando-se ambas abrangida na modalidade típica praticar, por que razão é que o legislador manteve a destrinça comportamental da vítima no crime de violação qualificado, punido e previsto no artigo 164.º, n.º 2, do CP, na redação conferida pela Lei n.º 101/2019?
Mais:
O decaimento do vocábulo sofrer ocorreu não só para o crime de violação na modalidade simples, como para o crime de coação sexual simples, mas quer a violação qualificada, quer a coação sexual qualificada mantiveram a dicotomia sofrer ou praticar.
Ademais,
Vejamos as redações sucessivas da norma incriminadora em causa: […].
A Lei n.º 83/2015 visou já adequar a lei portuguesa à Convenção de Istambul, de 11-05-2011, ratificada através da Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 21 de janeiro, tendo mantido, neste particular, a redação conferida ao objeto da atuação típica, determinado pela Lei nº 59/2007, de 04 de setembro.
Relembre-se que questão fulcral da alteração de 2015 visava a problemática do conceito de consentimento, abrangendo o dissentimento, ainda que silencioso da vítima, e o abandono da exigência de atos violência para o preenchimento do elemento objetivo do tipo.
A Lei nº 101/2019 surge, por sua vez, para dar resposta às críticas decorrentes do Relatório GREVIO [Grupo de Peritos para o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (GREVIO)], o qual, após saudar os esforços empreendidos por Portugal, no combate à criminalidade sexual e à violência doméstica, sublinha, sumariamente, as seguintes deficiências:
– tomar medidas para que o crime de violência doméstica seja objeto de um processo efetivo, nomeadamente, se for caso disso, através da aplicação cumulativa das disposições penais relativas a vários crimes concomitantes, e para que a pena pronunciada reflita devidamente se a violência pode ser qualificada de violência doméstica;
– adotar uma definição da violência doméstica que englobe a violência económica, nos termos do parágrafo b) do artigo 3º da Convenção de Istambul e tomar medidas para que o crime de violência doméstica seja objeto de um processo efetivo;
– rever a definição de vítima na legislação portuguesa para que esta se aplique a todas as pessoas consideradas vítimas no sentido do parágrafo e) do artigo 3º da Convenção de Istambul; e examinar os efeitos da configuração atual do estatuto oficial de vítima sobre o acesso das vítimas aos seus direitos;
– aumentar o número e os tipos de programas de tratamento disponíveis para os autores da violência e elaborar normas mínimas comuns aplicáveis a estes programas;
– continuar a desenvolver e aumentar a ajuda aos serviços de apoio especializados e aos refúgios para dar resposta às necessidades das vítimas de todas as formas de violência contra as mulheres e dos seus filhos, em estreita cooperação com as ONG de mulheres;
– criar ou apoiar o funcionamento de uma linha telefónica de ajuda dedicada às mulheres vítimas de todas as formas de violência;
– assegurar que o tratamento dos casos de violência contra as mulheres pelos serviços responsáveis pela aplicação da lei e pelos tribunais seja solidamente ancorado numa compreensão da violência contra as mulheres baseada no género e seja centrado na segurança e nos direitos humanos das mulheres e dos seus filhos, assim como evitar a utilização, no âmbito dos processos judiciais, de elementos sem valor de prova relativos aos antecedentes e comportamento sexuais da vítima;
- alterar a legislação portuguesa de maneira a harmonizá-la com as disposições relativas aos processos ex parte e ex officio enunciadas no artigo 55.º da Convenção, nomeadamente no que diz respeito a todos os crimes de violência física e sexual.
Ora,
O artigo 55.º da Convenção visa a adoção de medidas que simplifiquem o acesso à justiça, na criminalidade sexual, por parte das vítimas, assim como o seu apoio e auxílio durante as investigações e processos judiciais;
Logo,
E em primeiro lugar, dir-se-á que a norma que nos ocupa, centrada na problemática da lacuna de punibilidade da violação na modalidade típica da cópula constrangida/forçada quando a vítima assume uma conduta passiva – sofrer –, não é consequência ou necessidade de adequação normativa à Convenção de Istambul ou ao Relatório do GREVIO.
Em segundo lugar, atentas as celeumas jurisprudências e doutrinais que os vocábulos sofrer e praticar suscitaram, não se pode concluir que a palavra praticar os abarque, mais a mais quando o crime de violação qualificado – tal como o de coação sexual qualificada – mantém a conduta típica desdobrada nos dois comportamentos assumidos pela vítima, perante o constrangimento na prática de cópula ou ato sexual de relevo; ao recorrente, deveria ter sido permitida a discussão de tal matéria, através da apresentação das competentes alegações, conquanto a exegese da norma, assim como as sucessivas alterações de que foi alvo, não sustentam a conclusão exarada na decisão sumária. É que a palavra sofrer significa suportar, sendo que ao abrangê-la na palavra praticar, poderão, de novo, levantar-se dúvidas quanto ao preenchimento do tipo no caso de conduta passiva da vítima, circunstância esta que precisamente se pretendeu evitar com o disposto no artigo 36.º da Convenção de Istambul.
Em terceiro lugar, o princípio nullum crimen, nulla poena, sine lege, não consente a interpretação extensiva efetuada pela decisão sumária sob escrutínio, em clara violação do preceito contido no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, ultrapassando manifestamente, a norma aplicada, o sentido possível da letra da Lei sem recurso à leitura interpretativa vedada por tal princípio.
Em quarto lugar, os projetos-leis apresentados e que levaram à Lei n.º 101/2019, de 06-09, não permitem concluir o que se consigna na decisão revidenda quanto a um mero descuido linguístico do legislador.
A redundância nela ínsita – praticar assume então uma dupla valência, no sentido pratica/sofrer e praticar/praticar, no caso de a vítima ser constrangida a assumir um comportamento ativo – de tal facto é reveladora: bastaria, se assim fosse, tipificar a conduta nos seguintes moldes: quem constranger outra pessoa a uma relação sexual de cópula, coito anal ou oral de partes do corpo ou objeto, consigo ou com outrem.
Finalmente, acolhendo a norma em causa os termos sufragados pelo Relator, deixa de fora condutas típicas que o legislador pretendeu efetivamente punir, questão sobre a qual a decisão sumária não dedica uma única palavra-
Seguimos aqui de perto os exemplos apresentados por Liliana Cristina Gomes Correia, em As alterações ao Código Penal em matéria de Crimes Sexuais: os crimes de Coação Sexual e Violação [In JULGAR Online, dezembro de 2020, pp. 20, publicado e publicitado in http://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/12/20201215-JULGAR-As-altera%C3%A7%C3%B5es-da-Lei101_2019-e-os-crimes-de-Coa%C3%A7%C3%A3o-Sexual-e-Viola%C3%A7%C3%A3o-Liliana-Correia.pdf]:
‘Não obstante, cremos que a atual redação da alínea antecipa resultados manifestamente perigosos, mormente, a descriminalização de determinadas condutas. Senão vejamos: i) A, indivíduo de sexo masculino, estando sozinho com B, do mesmo sexo, no quarto de uma casa onde decorre uma festa de estudantes, constrange aquele, por qualquer meio, a sofrer coito anal; ii) A, do sexo masculino, estando em iguais circunstâncias com B e C, do sexo masculino e feminino, respetivamente, constrange B por qualquer meio, a praticar cópula com C. À luz da anterior redação, no primeiro exemplo, verificar-se-ia um crime de Violação, dado que A havia constrangido B a sofrer coito anal. No segundo exemplo, teríamos dois crimes de Violação, cujo agente seria A: o primeiro, em relação a B, constrangido por si a praticar cópula com outrem; o segundo, em relação a C, por ter sido constrangido a sofrer cópula por parte de B. No entanto, o desfecho altera-se, drasticamente, com a reformulação desta alínea. O primeiro caso deixa de representar um crime de Violação, uma vez que B foi constrangido a sofrer coito anal, ou seja, a assumir uma postura passiva - e não ativa, como se exige agora - perante a prática do ato sexual. Este comportamento não é visto, pelo legislador, como um ato ilícito-típico, facto que merece a nossa absoluta reprovação. No segundo caso, existe a prática de apenas um crime de Violação, relativamente a B, por ter sido constrangido a praticar cópula com outrem. Já a situação de C, que fora constrangida a sofrer/suportar o ato sexual referenciado, não é suscetível de enquadramento legal, pois, uma vez mais, apenas se incrimina a conduta de quem constrange outra pessoa a assumir um papel ativo na relação sexual. A eliminação da modalidade de ação ‘sofrer’ e a sua substituição pelo ato de ‘praticar’ é uma alteração da qual podem advir, tal como ilustrado supra, significativas lacunas de punibilidade com consequências insustentáveis e injustas. Atendendo à intenção político-criminal subjacente, cremos não ter sido intencionado pelo legislador, mas resultado da falta de atenção [e reflexão] aquando da redação da alínea, um procedimento que requer rigor’.
Tal como o Reclamante o defende, a autora identifica claramente a lacuna de punibilidade que a norma enferma, não aceitando uma leitura abrangente, porque vedada, do vocábulo praticar.
Ao Reclamante, deveria ter sido permitida a discussão de tais argumentos, através da apresentação das competentes alegações, não sendo de consentir a decisão sumária proferida.
Termos em que, na procedência da presente Reclamação, requer a Vossas Excelências, Colendos Senhores Juízes Conselheiros, se dignem dar provimento à presente Reclamação, ordenando-se o prosseguimento dos autos e a notificação do Reclamante, nos termos do disposto no artigo 78.º-A, n.º 5. Da LTC, para apresentar alegações.
[…]” (sublinhados acrescentados).
1.2.4. O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação, conforme ora se transcreve:
“[…]
1.º
Pela douta Decisão Sumária n.º 680/2021, decidiu-se, para além do mais, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto para o Tribunal Constitucional por A., ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), no tocante “à norma indicada no ponto III.-B do requerimento de interposição do recurso”.
2.º
No requerimento de interposição de recurso o ora reclamante identificou o objeto de tal questão de constitucionalidade nos seguintes termos:
‘A interpretação e aplicação da dimensão normativa extraída da conjugação dos artigos, no sentido de a conduta de constrangimento de uma pessoa a sofrer cópula, praticada em data anterior à redação conferida à norma incriminadora prevista no artigo 164º, nº 1, alínea a), do CP na redação vigente, mas julgada e sentenciada após a alteração decorrente da Lei nº 101/2019, de 06-09, é ilegal e inconstitucional porque violadora do princípio da retroatividade en mitius, nos termos do disposto nos artigos 2º e 29º, nº 4, ambos da CRP, normas estas outrossim violadas’.
3.º
Na verdade, perante esta formulação da segunda questão de constitucionalidade a sujeitar ao Tribunal Constitucional, decidiu, igualmente, o Exm.º Sr. Conselheiro relator na douta Decisão Sumária n.º 680/2021 que ‘não deve conhecer-se do objeto do recurso, uma vez que a questão em causa não tem autonomia relativamente à primeira: trata-se, apenas, de uma consequência desta, que necessariamente a acompanhará’.
4.º
Com efeito, o ora reclamante identificara no seu requerimento de interposição de recurso uma primeira questão de constitucionalidade, a saber, a da “interpretação e aplicação da dimensão normativa extraída da conjugação dos artigos 1º, n.ºs 1 e 3, 2º, nº 2, 164.º, n.º 1, alínea a), todos do CP vigente, no sentido de a norma incriminadora prevista no artigo 164º, nº 1, alínea a), do CP, na redação atual, abranger as situações que a vítima sofre e não pratica a cópula, coito anal ou oral, é ilegal e inconstitucional, porque violadora do princípio da legalidade da tipicidade, nos termos do disposto nos artigos 2º e 29º, nºs 1, 3 e 4, ambos da CRP, normas estas outrossim violadas”, que, de acordo com o decidido na Decisão Sumária contestada, consumiu a segunda questão de constitucionalidade, por carência de autonomia desta.
5.º
A falta de autonomia da segunda questão de constitucionalidade é explicada na douta Decisão Sumária n.º 680/2021, nos seguintes termos:
‘Assim, se a norma indicada em primeiro lugar for julgada inconstitucional, desaparecem os pressupostos da segunda questão. Se não for julgada inconstitucional, a segunda questão perde a razão de ser’.
6.º
Perante o exposto, e face à inutilidade da discussão da mencionada segunda questão de constitucionalidade, cabe-nos apreciar o teor da reclamação incidente sobre a primeira questão suscitada, relativamente à qual decidiu o Tribunal Constitucional, na referida decisão sumária, julgar improcedente o recurso e ‘não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro, interpretado no sentido de abranger as situações em que a vítima sofre e não pratica ativamente cópula, coito anal ou oral’, decisão com a qual o reclamante se conformou, afirmando
7.º
O Tribunal alcançou tal conclusão por considerar que não lhe cabia determinar se a interpretação do disposto no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 101/2019, a que procedera o tribunal a quo, constituiria a melhor interpretação possível, nem reapreciar os factos dados como provados mas apenas ‘aferir se a letra da norma comporta o sentido da aplicação normativa’, resposta à qual respondeu afirmativamente, concluindo pela inexistência de violação do disposto no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
8.º
Ora, face ao dirimido quanto a esta dimensão da douta Decisão Sumária n.º 680/2021, tendo-se o reclamante limitado a divergir do entendimento nela expresso – aditando argumentos incidentes sobre o conteúdo do decidido, quer pelo tribunal “a quo”, quer pelo Tribunal Constitucional – e a discordar do resultado do concreto ato de julgamento a que procedeu o tribunal recorrido e cuja apreciação se encontra vedada ao Tribunal Constitucional, não logrou identificar, cabalmente, qual a desconformidade de natureza normativa entre a interpretação contestada e o princípio da legalidade criminal, consagrado no n.º 1, do artigo 29.º, da Constituição da República Portuguesa, que pudesse justificar o deferimento da sua pretensão.
9.º
Por força do acabado de expor, deve a presente reclamação, em nosso entender, ser indeferida.
[…]”.
Cumpre apreciar e decidir a reclamação.
II – Fundamentação
2. A decisão reclamada pronunciou-se no sentido de: a) não conhecer do objeto do recurso relativamente à norma indicada no ponto III.-B. do requerimento de interposição do recurso; b) não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro, interpretado no sentido de abranger as situações em que a vítima sofre e não pratica ativamente cópula, coito anal ou oral; e, consequentemente, c) julgar improcedente o recurso, na parte em que dele se tomou conhecimento.
2.1. O recorrente afirma conformar-se “[…] com as […] considerações e questões prévias que a Decisão sob escrutínio dirimiu, considerando que a segunda questão de constitucionalidade suscitada é sucedânea da primeira, não gozando, assim e no caso de improcedência, de autonomia”.
Assim, a reclamação terá por objeto unicamente o juízo constante das alínea b) e c) do dispositivo da decisão reclamada, considerando-se definitivamente decidida a questão do não conhecimento do objeto do recurso relativamente à norma indicada no ponto III.-B. do respetivo requerimento de interposição.
Não obstante, pode ler-se na reclamação que “[…] não se consente a asserção segunda a qual a questão colocada não atine a um problema de sucessão de leis no tempo, nos termos do disposto no artigo 29.º, n.º 4, da CRP, cingindo-se unicamente no plano da conformidade da norma ao princípio da legalidade criminal, previsto no artigo 29.º, n.º 1, da CRP […]”.
Esta segunda afirmação parece entrar em contradição com a anterior.
Na verdade, se o recorrente aceita que a segunda questão não tem autonomia relativamente à primeira e se a primeira diz respeito à interpretação segundo a qual a norma penal abrange as situações em que a vítima sofre e não pratica ativamente cópula, coito anal ou oral, então a questão jurídico-constitucional não é uma questão de aplicação de lei no tempo.
A questão surge, efetivamente, no contexto de uma sucessão de leis penais no tempo e uma eventual procedência do recurso obrigaria o tribunal recorrido – num segundo momento, quando houvesse de cumprir a decisão do Tribunal Constitucional – a equacionar problemas de aplicação da lei no tempo.
Mas tal não significa que a questão jurídico-constitucional colocada ao Tribunal, em si mesma, convoque a norma constitucional sobre sucessão de leis penais, muito menos que convoque a norma que rege o princípio da legalidade das penas (artigo 29.º, n.º 4, da Constituição).
O que está em causa é tão-só o princípio da legalidade criminal, quanto à tipificação do crime de violação, sendo o parâmetro respetivo o do artigo 29.º, n.º 1, da Lei Fundamental – a confirmá-lo está, aliás, toda a argumentação do recorrente, que se centra (corretamente, quanto ao tema da discussão) nas interpretações possíveis da norma contida no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro.
A reclamação deve, pois, enquadrar-se nos termos descritos.
2.2. Importa sublinhar que a reclamação se apresenta – quase integralmente – num plano deslocado das competências do Tribunal Constitucional.
Como se afirmou na decisão reclamada, “[…] ao Tribunal Constitucional cabe apenas verificar, nesta sede – e como repetidamente tem afirmado a sua jurisprudência –, se a norma aplicada ultrapassa o sentido possível das palavras da lei que qualifica os factos como crime ou fixa as consequências jurídicas do crime, tornando incerto qual o comportamento objeto de perseguição criminal”.
Assim, mostram-se irrelevantes os argumentos destinados a persuadir o Tribunal de qual a melhor interpretação do artigo 164.º do CP, seja à luz da Convenção de Istambul, seja à luz de maiores ou menores incoerências do legislador.
A própria decisão reclamada – que usou a referida Convenção apenas para dar uma nota de contexto das alterações – esclareceu, logo de seguida, que “[…] a intenção do legislador não basta para resolver o problema, visto que, atenta a exigência de um mínimo de correspondência entre a interpretação e a letra do preceito incriminador decorrente do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, pode dar-se o caso de o legislador, ao alterar a letra de um preceito legal, descriminalizar uma conduta (ainda que não tencionasse fazê-lo)”.
Ora, nesse plano de discussão, o recorrente nada adianta, limitando-se a afirmar, como conclusão autojustificada, que “[…] o princípio nullum crimen, nulla poena, sine lege, não consente a interpretação extensiva efetuada pela decisão sumária sob escrutínio, em clara violação do preceito contido no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, ultrapassando manifestamente, a norma aplicada, o sentido possível da letra da Lei sem recurso à leitura interpretativa vedada por tal princípio”. Para assim concluir não basta apontar interpretações divergentes na doutrina, a imperfeição da lei ou a comparação com redações alternativas do artigo 164.º do CP: o essencial é que se demonstre que o destinatário da norma não poderia, razoavelmente, contar com a proibição, face ao teor literal do preceito incriminador. Nada na reclamação permite alcançar essa conclusão.
Mantém-se válida, pois, a apreciação feita a este propósito na decisão reclamada:
“[…]
A noção de praticar cópula não é aberta ao ponto de qualquer destinatário de normal compreensão deixar de apreender o que nela pode ir factualmente implicado.
Nessa compreensão do significado de ‘cópula’ forçada (porque decorrente de constrangimento), tanto se poderá incluir aquela em que a vítima é forçada a ser um elemento ativo como aquela em que a vítima é forçada a ser um elemento passivo.
Não cabendo ao Tribunal Constitucional determinar se essa é a melhor interpretação da letra da lei, nem (re)apreciar se os factos que dados como provados, mas apenas – como vimos – aferir se a letra da norma comporta o sentido da aplicação normativa, a resposta é inequivocamente positiva: a previsão ‘quem constranger outra pessoa a praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral’ é suficientemente clara, discernível, objetiva, definida e certa para incluir, sem equívocos, qualquer um dos referidos sentidos.
A redação atual da lei – independentemente de poder não ser a mais precisa – mostra-se suficientemente determinada e certa para suportar a interpretação afirmada na decisão recorrida, substituindo ‘sofrer’ e ‘praticar’, por um sentido amplo de “praticar” [cfr. Maria da Conceição Ferreira da Cunha, “A tutela da liberdade sexual e o problema da configuração dos crimes de coação sexual e de violação – reflexão à luz da convenção de Istambul”, in Crimes Sexuais (e-book), Centro de Estudos Judiciários, janeiro de 2021, disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/32834/1/eb_CrimesSexuais_1_.pdf, p. 26].
Não ocorre, pois, violação do princípio contido no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição.
[…]”.
Não está, deste modo, o Tribunal a tomar posição sobre qual a melhor interpretação do preceito, mas simplesmente a afirmar que o sentido segundo o qual as situações em que a vítima sofre e não pratica ativamente cópula, coito anal ou oral estão cobertas pela norma penal é perfeitamente compatível com a sua letra e compreensível, enquanto proibição, por qualquer pessoa.
Tanto basta para confirmar o sentido da decisão sumária.
2.3. O recorrente sustenta, todavia, que a questão apreciada não é simples, para os efeitos previstos no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, devendo ser-lhe concedida oportunidade de apresentar alegações. O exposto no item anterior permite compreender, à luz da jurisprudência constitucional consolidada, que não lhe assiste razão.
A prolação de decisão sumária sobre certa questão em virtude da respetiva simplicidade não preclude “[…] ao recorrente, em reclamação para a conferência, a possibilidade de apresentar argumentos ou razões, de natureza inovatória, que não hajam sido integralmente valorados no precedente jurisprudencial invocado como base da decisão sumária” (Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra: Almedina, 2010, p. 245; v., ainda, a título de exemplo, Acórdão n.º 699/17). E também não dispensa o Tribunal de considerar novos argumentos que sejam efetivamente apresentados, verificando se continuará a justificar-se, mesmo em face deles, a confirmação do sentido da decisão reclamada.
A jurisprudência constitucional tem vindo a precisar os contornos do conceito de simplicidade à luz da “[…] função própria de simplificação e de descongestionamento que estão na base da previsão do instituto processual da decisão sumária” (cfr. o já citado Acórdão n.º 699/17). Começou o Tribunal por traçar uma distinção entre “simplicidade” e “insusceptibilidade de controvérsia a nível doutrinal”, considerando ser “de perspetivar como “simples” uma questão que, ainda que porventura de grande dificuldade de análise e resolução, haja sido já decidida pelo Tribunal Constitucional, permitindo a lei que, nestas condições, o Tribunal, «em lugar de repetir materialmente a apreciação, julgue incorporando a fundamentação já expendida em anterior decisão»” (cfr. Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização…, cit., p. 244; v., ainda, entre outros, os Acórdãos n.os 257/2000, 305/2000, 288/2001 e 346/2007). Assim, caso o Tribunal tenha tido já oportunidade de estabelecer uma certa orientação jurisprudencial sobre uma questão, o mecanismo da decisão sumária com base na simplicidade da questão dispensa a repetição material do ato de apreciação, incorporando a fundamentação já expendida em anterior ou anteriores decisões.
No caso, importa notar que a jurisprudência constitucional consolidada traçou já, com muita clareza, o âmbito da apreciação do princípio da legalidade criminal previsto no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição. É à luz desse âmbito – como vimos, muito restrito – que a questão se apresenta simples. Os argumentos do recorrente são deslocados da competência do Tribunal Constitucional, situando-se, no essencial, num plano de revisitação do percurso hermenêutico da decisão recorrida que não corresponde a um recurso incidental de natureza normativa, como é o previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Ou seja, a questão é efetivamente simples (para os efeitos previstos no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC), por ser de solução evidente, no plano jurídico-constitucional relevante. O que a poderia, eventualmente, tornar complexa era a sua deslocação para um outro plano – o da melhor interpretação do direito infraconstitucional, que, todavia, exorbita a atuação do Tribunal. A própria reclamação acaba por confirmá-lo, ao procurar apoiar-se, quase exclusivamente, em argumentos dessa ordem.
O uso, pelo relator, do mecanismo previsto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC mostrou-se, pois, adequado às circunstâncias do caso.
2.4. Resulta do exposto que a reclamação improcede.
É o que resta afirmar.
III – Decisão
3. Face ao exposto, decide-se:
a) indeferir a reclamação deduzida pelo recorrente A., mantendo-se a decisão reclamada no sentido de não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 101/2019, de 6 de setembro, interpretado no sentido de abranger as situações em que a vítima sofre e não pratica ativamente cópula, coito anal ou oral; e, consequentemente,
b) julgar improcedente o recurso, na parte em que dele se tomou conhecimento.
3.1. Custas pelo recorrente, ora reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, tendo em atenção os critérios definidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 18 de janeiro de 2022 - José Teles Pereira - José João Abrantes - Pedro Machete