ACÓRDÃO N.º 867/2021
Processo n.º 867/19
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o primeiro interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), tendo por objeto a norma incriminatória prevista nos artigos 387.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, relativa a «maus tratos de animal de companhia».
O arguido foi condenado, em 1.ª instância, numa pena de 16 (dezasseis) meses de prisão efetiva pela prática de quatro crimes de maus tratos a animais de companhia agravados, e na pena acessória de privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período máximo de 5 anos.
Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, que lhe concedeu provimento parcial, suspendendo a execução da pena de prisão aplicada e mantendo, na parte restante, a decisão da 1.ª instância.
2. A decisão do Tribunal da Relação de Évora apresenta o seguinte teor:
«(...)
(a) Da (in)constitucionalidade do tipo de crime da condenação
O recorrente começou por suscitar o problema da constitucionalidade do tipo de crime de maus tratos a animais, a qual resultaria da circunstância de “não ser possível identificar na norma incriminadora dos maus tratos a animais, um bem jurídico”. E assentando “a punição do maltrato aos animais em valorações de clara inconstitucionalidade por violação dos artigos 18º, 27º e 62º da CRP”, “ao condenar o arguido HP, nos termos dos artigos 387º e 388º-A, do Código Penal, o Tribunal a quo violou deliberadamente e de forma grosseira o quadro jurídico Constitucional vigente”.
Como se vê, o recorrente fundamenta a sua asserção (de inconstitucionalidade) na alegada constatação de uma ausência de bem jurídico. E quanto a esta primeira questão, contrapôs, com interesse, o Ministério Público, na resposta ao recurso:
“Nos termos do disposto no art.º 40.º n.º 1 do Código Penal “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Por seu lado, o art.º 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa refere que “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
De acordo com estas normas, a tutela de bens jurídicos pelo direito penal tem de assentar na ordem constitucional dos direitos e deveres ali consagrados. Não desconhecemos que no caso do crime de maus tratos a animais de companhia o bem jurídico protegido não é evidente.
Alguma doutrina assinala que a proteção dos animais pode ser encontrada a partir do direito fundamental ao ambiente ou dos deveres objetivos de proteção ambiental plasmados no artigo 66.º da Constituição da República Portuguesa. Outros enquadram a proteção nos chamados bens jurídicos meio ou bens jurídicos instrumentais.
Como refere ANTÓNIO JORGE MARTINS TORRES (In “A (in)dignidade jurídica do animal no ordenamento português”, Dissertação de Mestrado Profissionalizante na Área de Ciências Jurídico-Forenses apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2016, p. 69, disponível em http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/32575/1/ulfd134671_tese.pdf) “Esta nova categoria de bens jurídicos, levando em consideração “o seu valor instrumental na proteção das condições essenciais necessárias à existência humana”, assume relevância penal, “constituindo como que uma técnica de tutela antecipada dos «valores-fins» essenciais”, isto é, o bem jurídico instrumental surge como um bem jurídico de proteção ou apoio mediato a toda uma série de valores implicados nas relações que se visam precaver. No caso do crime de maus tratos a animais de companhia, a tutela do bem-estar do animal representa não um fim, mas um meio ou instrumento de proteção mediata de outros bens jurídicos fundamentais, como por exemplo, o da própria dignidade humana, o da justiça e da solidariedade, todos eles previstos no artigo 1.º da nossa Constituição.”
MARIA DA CONCEIÇÃO VALDÁGUA (In Algumas Questões Controversas em Torno da Interpretação do Tipo Legal de Crime de Maus Tratos a Animal de Companhia, texto de uma palestra realizada na Faculdade de Direito de Lisboa, 29 de junho de 2017, p. 194, disponível em https://blook.pt/publications/publication/cddb197a4b61/) defende que os bens jurídicos protegidos pelo art.º 387.º do Código Penal são a integridade física (n.ºs 1 e 2) e a vida de animais de companhia (n.º 2).
ANA PAULA GUIMARÃES e MARIA EMÍLIA TEIXEIRA (In A proteção civil e criminal dos animais de companhia, artigo, com revisão por pares, publicado in O Direito Constitucional e o seu Papel na Construção do Cenário Jurídico Global, (Coord. Fábio da Silva Veiga e Rúben Miranda Gonçalves), Instituto Politécnico do Cávado e do Ave: Barcelos, abril 2016, pp. 513-524, disponível em: http://repositorio.uportu.pt:8080/bitstream) referem “o animal de companhia, em sede do direito penal, não constitui o bem jurídico tutelado, é sim, o objeto da ação criminosa. (…) Para além de já existirem incriminações sem sujeito de direito, a específica noção de bem jurídico aponta, citando Dias, J. Figueiredo, 2007, p. 114, para a “expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso.” Os animais de companhia não são sujeitos de direitos mas são seres vivos dotados de sensibilidade, com estatuto jurídico próprio, a quem os seus donos devem assegurar o bem-estar e são merecedores de tutela jurídica mais concreta daquela que é reconhecida à fauna em geral (cfr. art.º 278.º Código Penal e art.º 66.º da CRP) e, como tal, a punição do maltrato a animais encontra respaldo em direitos e interesses constitucionalmente protegidos.
Nestes termos, inexiste qualquer inconstitucionalidade material do art.º 387.º do Código Penal.”
Como se constata do excerto transcrito, não é pacífica a identificação do bem jurídico protegido pelo crime da condenação pela doutrina, bem jurídico que não será assim tão “evidente” (como refere o Ministério Público).
E se o art.º 18.º n.º 2 da CRP consagra os princípios da necessidade e da proporcionalidade do direito penal, positivando a regra de que o direito penal - direito fragmentário e de ultima ratio – deve ter uma função e proteção de bens jurídicos (“a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”), há que procurar concretizar esse bem jurídico no que respeita ao tipo em causa.
E aqui acompanhamos a posição expressa por Teresa Quintela de Brito (em Crimes Contra Animais: os novos Projetos-Lei de Alteração do Código Penal, Anatomia do Crime, nº 4, Jul-Dez 2016, p. 104), no sentido de que o bem jurídico é, ainda assim, descortinável.
E acompanhamo-la também no que respeita à identificação desse bem jurídico.
Após desenvolvida exposição sobre os variados diálogos doutrinários em confronto, a autora afirma que o bem jurídico protegido pelo tipo aplicado não reside na integridade física e na vida do animal de companhia.
É sim um “bem coletivo e complexo que tem na sua base o reconhecimento pelo homem de interesses morais diretos aos animais individualmente considerados e, consequentemente, a afirmação do interesse de todos e cada uma das pessoas na preservação da integridade física, do bem estar e da vida dos animais, tendo em conta uma inequívoca responsabilidade do agente do crime pela preservação desses interesses dos animais por força de uma certa relação atual (passada e/ou potencial) que com eles mantém.
Em causa está uma responsabilidade do humano, como indivíduo em relação com um concreto animal, e também como Homem, i.e., enquanto membro de uma espécie, cujas superiores capacidades cognitivas e de adaptação estratégica o investem numa especial responsabilidade para com os seres vivos que podem ser (e são) afetados pelas suas decisões e ações”.
Assim sendo, e identificado o bem jurídico cuja ausência, segundo o recorrente, seria o fundamento de inconstitucionalidade, conclui-se pela conformidade constitucional do tipo de crime da condenação.»
3. Convidado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 79.º da LCT, veio o recorrente alegar, concluindo nos seguintes termos:
«1º O presente Recurso tem como objeto a fiscalização concreta da constitucionalidade dos artigos 387º e seguintes do Código Penal, porquanto os mesmos não é possível identificar a norma incriminadora dos maus tratos a animais, um bem jurídico.
2º O artigo 1576ª do Código Civil, determina que “São fontes das relações jurídicas familiares o casamento, o parentesco, a afinidade e a adoção.”
3º Assim, e como é obvio, no atual ordenamento jurídico português, não está estabelecida nenhuma destas relações jurídicas com animais.
4º Neste sentido vem Rogério Osório, Procurador Adjunto do Diap Porto, “Dos crimes contra os animais de companhia-Da problemática em torno da Lei69/2014, de 29 de agosto - (o Direito da Carraça sobre o Cão), afirmar que “não ser possível identificar na norma incriminadora dos maus tratos a animais, um bem jurídico.”
5º Isso mesmo já tinha percebido Roxin-defensor da teoria do bem jurídico ao afirmar que, no caso da proteção de embriões humanos, do meio ambiente, de animais e de gerações futuras, o princípio da proteção dos bens jurídicos não seria nenhuma ajuda, razão pela qual propôs a criação da extensão do direito penal, fora daquele conceito.
6º Assim, a punição do maltrato aos animais, assenta em valorações de clara inconstitucionalidade por violação dos artigos 18º, 27º e 62º da CRP.
7º É nosso entendimento que, só os valores constitucionalmente protegidos poderem ser punidos com privação de liberdade,
8º É portanto, a partir da identificação do bem jurídico-penal ou dos bens jurídico-penais, em função dos quais ou de cuja proteção se pretende ver realizada a intervenção do direito penal, que esta poderá ou não considerar-se consentânea com o principio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18º, nº 2, da CRP, (…..)
9º Ora, sendo a legitimidade da intervenção penal do estado aferida pela necessidade de tutela de um determinado bem jurídico, um bem jurídico que só existirá “onde se encontre refletido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido” e que por isso mesmo “preexiste” á estatuição penal(…)
10º E em termos de se poder afirmar também que “toda a norma incriminatória na base da qual não seja suscetível de se divisar um bem jurídico-penal claramente definido é nula, por materialmente inconstitucional (sublinhado nosso), e como tal deve ser declarada pelos tribunais competentes” Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, 2ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p.120 e 126. (…)
11º Ora, todas as teorias a volta desta matéria, umas mais outras menos antropocêntricas, de justificação da intervenção penal, todas elas porém, a margem das que veem o fundamento de uma tal intervenção arredado de qualquer ideia de necessidade de proteção de um bem jurídico, mas antes alicerçando a numa ilicitude da mera conduta, em si mesma considerada, apenas no facto de a crueldade sobre os animais ser contraria ao “sentimento da moralidade pública”, descurada, portanto, da intenção de saber qual o bem jurídico que a mesma visaria tutelar, e que a luz do nosso sistema jurídico, como vimos, não teria por si só qualquer viabilidade material do ponto de vista da nossa lei fundamental.
12º A Constituição, tem de servir de base referencial à determinação dos bens jurídicos, que podem ter consagração penal, através da criminalização das condutas que atentem contra eles.
13º Alias, esta previsto no artigo 40º do CP, que a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança é, além do mais, a proteção dos bens jurídicos.
14º Bem jurídico, que não foi previamente determinado, ao serem introduzidos os artigos relativos aos maus tratos a animais, nomeadamente artigo 387º e seguintes do CP.
15º Vindo estes artigos, na conveniência em punir os maus tratos sobre os animais por se considerar que tal conduta é contaria ao sentimento moral público, sem a previa identificação e determinação do bem jurídico constante do normativo punitivo.
16º O que á luz do nosso sistema jurídico constitucional, é inviável e inadmissível.
17º Mais, as varias teses, nomeadamente relativas aos maus tratos a animais e os bens jurídicos ambientais, ao animais como titulares de direitos subjacentes, a penalização dos maus tratos a animais como meio de proteges as pessoas e o seu património, os sentimentos humanas de amor ou compaixão, o bem estar do animal como o bem jurídico protegido ou ainda a do bem jurídico composto, todas elas merecem criticas e na verdade nenhuma delas é demonstrativa da existência do bem jurídico subjacente, e da sua essencialidade, pelo que qualquer incriminação esta ferida de nulidade, por chocar, de frente, com a matriz que emana do artigo 18º da nossa Constituição.
18º O artigo 389º do CP, abrange apenas os animais de companhia, ou seja aqueles que se encontrem detidos ou destinados a ser detidos pelo homem, designadamente no seu lar, para seu entretinimento e companhia.
19º Quanto ao bem jurídico tutelado, afigura se nos problemático, do ponto de vista constitucional, a norma do artigo 388º do CP, na medida que criminaliza o mero abandono de animais de companhia, pois traduzindo se num crime formal ou de mera atividade, e sobretudo, quanto ao bem jurídico, parecendo assumir-se como um crime de mero perigo abstrato, sendo um tal perigo, pela indefinição resultante do conjunto das normas no que toca ao bem jurídico, nos surge de certo modo ambíguo, então a necessidade de antecipação da proteção, não se mostra minimamente fundamentada, devendo prevalecer incólumes os direitos fundamentais que com ela se pretendem restringir, em obediência ao disposto no artigo 18º, nº2 da CRP.
20º Mas ainda, que se defendesse estar em causa um perigo para a vida, integridade física ou saúde do animal, um perigo abstrato diga se, seria sempre de referir a dificuldade de legitimar constitucionalmente uma tal criminalização, porquanto a mesma se encontra dependente do escopo da proteção de bens jurídicos de grande importância, Figueiredo Dias, XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p.38, o que duvidamos seriamente ser esse o caso.
21º Afigurando se nos como mais correta a punição de tal conduta, a título de mera contraordenação
22º A criminalização dos maus tratos ou da violência injustificada sobre animais, considerada que esteja a previa clarificação e determinação do bem jurídico a proteger, enquanto fundamento material e jurídico constitucional da intervenção penal que se pretende realizar, deveria ser contida na sua devida necessidade e proporção, nomeadamente com o cotejo a proporção dada, em termos de previsão típica, a outros bens jurídicos fundamentais, nomeadamente aqueles diretamente relacionados com os direitos, liberdades e garantias fundamentais da pessoa humana.
23º Mas como já tivemos oportunidade de concluir, e assumindo o inequívoco desvalor moral associado às condutas que se materializam em maus-tratos a animais, a tutela de sentimentos não cabe ao Direito Penal.
24º Uma incriminação tem, no essencial, de respeitar três princípios: o princípio da necessidade, sendo indispensável para garantir a proteção de bens jurídicos; o princípio da culpa, tendo um reflexo ético negativo; e o princípio da legalidade, reunindo o consenso da comunidade expresso através do poder legislativo. Como refere Maria Fernanda Palma, “o direito penal tem uma legitimidade aferida pela proteção dos bens jurídicos essenciais, constitutivos da razão de ser do próprio Estado - as condições essenciais de liberdade -, na medida em que as suas sanções são, em si mesmas, graves restrições da liberdade ou de outros direitos fundamentais.
25º O Direito Penal só pode tirar liberdade (aos agentes dos crimes), precisamente para criar liberdade (para todas as potenciais vítimas)”. (Palma, 2014, p. 15) É exatamente isto que a nossa lei fundamental prescreve e consagra.
26º O n.º 2 do artigo 18.º da CRP ao afirmar que, as restrições a direitos, liberdades e garantias devem estar limitadas ao mínimo necessário a assegurar outros direitos ou interesses com proteção constitucional traduz-se numa regra essencial da conceção do Estado de Direito Democrático - “… a regra do Estado de Direito Democrático segundo a qual o Estado só deve intervir nos direitos e liberdades fundamentais, na medida em que isso se torne imprescindível ao asseguramento dos direitos e liberdades fundamentais dos outros ou da comunidade enquanto tal” (Dias, 2011, p. 123) e que encontra o seu reflexo penal no n.º 1 artigo 40.º do Código Penal, que prescreve que a função das penas é a proteção de bens jurídicos.
27º Atento o caráter de última ratio do direito penal, que tem a função de assegurar as condições indispensáveis da vida comunitária, caber-lhe-á “selecionar, dentre os comportamentos em geral ilícitos, aqueles que de uma perspetiva teleológica, representam um ilícito em geral digno de uma sanção de natureza criminal”. (Dias, 2011, p. 16)
28º De tudo o que se disse até aqui não cremos estarem reunidas as condições de afirmar, para além de qualquer dúvida razoável, a estrita necessidade da punição penal de tais comportamentos. Tal como Pedro Albergaria e Pedro Lima (e fazemos nossas as suas palavras) “concluímos que as incriminações são de legitimidade duvidosa (para dizer o menos) logo ao nível da respetiva fundamentação, em particular em razão precisamente da dificuldade de isolar um bem jurídico com valia constitucional.” (Albergaria & Lima, 2016, p. 169)
29º De facto, não podemos deixar de vislumbrar aqui a ocorrência de um fenómeno sobretudo político, em que a consideração da técnica jurídica e dos princípios gerais de direito foram relegados para segundo plano. Finalmente, não podemos esquecer que não existe apenas o direito penal.
30º O direito civil, o direito público e o direito de mera ordenação social também desempenham um papel no sancionamento de comportamentos indesejáveis, pelo que é preciso responder à questão de saber se sua tutela de determinado comportamento tem de ser necessariamente realizada através da punição penal ou se outras formas jurídicas são adequadas.
31º Para haver criminalização tem de haver um bem jurídico-penal, mas o inverso não é verdade, o que quer dizer que a proteção dos bens jurídico-penais não pressupõe necessariamente a existência de uma incriminação.
32º A punição do maltrato ao animal, para além do regime contraordenatório-que já existia no nosso ordenamento jurídico – assenta em valorações de clara inconstitucionalidade, por violação doa artigos 18º, 27º e 62º da Constituição da República Portuguesa e, por isso mesmo devem ser expurgadas do nosso regime penal.
33º Na verdade, só há um caminho, o da reposição da legalidade e da justiça, devendo ser retirados do Código Penal, os artigos 387º e seguintes do CP.
34º Esta solução, é a única, compaginável e consentânea com o quadro jurídico-constitucional vigente.
35º A condenação do arguido A., nos termos dos artigos 387º e 388º A, do Código Penal, viola o quadro jurídico Constitucional vigente.
36º Viola o artigo 27º da CRP, porquanto in casu, as normas aplicadas sob a epigrafe “crime de maus tratos a animais de companhia”, previstos e punidos pelos artigos 387º e seguintes do CP, não salvaguardam direitos ou interesses que detenham manifestação e proteção constitucional.
37º Viola o artigo 1576º do Código Civil.
38º Viola os artigos 2º, 18º, 27º, e 62º da CRP.
39º De referir por importante que, neste contexto não basta ao Tribunal, a alusão, ainda que exaustiva, à Declaração Universal dos Direitos dos Animais, à Convenção Europeia Para a Proteção dos Animais de Companhia, no sentido do dever moral que recai sobre o ser humano, de respeitar todas as criaturas vivas, bem como todos os princípios quanto aos animais de companhia.
40º Em conformidade com a Convenção Europeia, foram estabelecidas as normais legais a pôr em prática em Portugal, originando os vários decretos e leis quanto a esta matéria.
41º Sem, no entanto, o legislador conformar o vigente quadro jurídico constitucional.
42º Está assim, vedado ao legislador qualquer tentativa de punição de maltrato ao animal, ao abrigo do Código Penal.
43º É pertinente reafirmar, que a mesma está eivada de inconstitucionalidades por violação expressa e grosseira dos artigos, 2º nº 2, 18º, 27º e 62º da Constituição da República Portuguesa.
44º Devendo ser proferida decisão por este Tribunal Constitucional, que declare a inconstitucionalidade dos artigos 387º e seguintes do Código Penal, sendo os mesmos removidos de Código Penal, por violação dos artigos 18º, 27º e 62º da CRP, e nessa decorrência revogue o acórdão recorrido com as demais consequências legais.»
4. O Ministério Público contra-alegou, pronunciando-se pela negação de provimento ao recurso, o que fez fundamentalmente nos seguintes termos:
«(...)
a) Bem jurídico
5. A doutrina do ‘bem jurídico’, nomeadamente no que respeita à específica questão dos limites legislativos do poder de “definir crimes” (rectius, à incriminação ou criminalização pelo legislador de certos comportamentos, ações ou omissões), não goza de consenso doutrinal.
6. Quanto a este aspeto, mesmo um dos seus mais ilustres cultores vem a concluir que “a única limitação ao legislador penal tem sede nos princípios constitucionais” e, acrescenta, “portanto, um conceito de bem jurídico político-criminalmente vinculante somente pode proceder das incumbências estabelecidas na Lei Fundamental do nosso Estado de Direito, fundado na liberdade das pessoas, através das quais são estabelecidos os limites do poder penal estadual”.
Este A., com interesse para o caso em apreço, salienta mesmo que um dos “pontos nevrálgicos” desta orientação reside precisamente na incriminação do tratamento cruel infligido a animais, que segundo alguns comprova poder existir incriminação ou criminalização sem lesão de bens jurídicos, pois não se vislumbra como tal incriminação possa proteger a liberdade individual ou o ‘sistema social’. A isto, todavia, contrapõe o mesmo A. que tal não significa que nesse crime esteja protegida uma ‘pura conceção moral’, antes o legislador, numa ‘espécie de solidariedade entre criaturas, também os animais superiores, como nossos semelhantes, como ‘irmãos diferentes’ vem a considerar e a proteger, enquanto tais” (ROXIN, Strafrecht / Allgemeiner Teil: Band I – Grundlage. Der Aufbau der Verbrechenslehre, 3.ª ed., 15 (n. º de margem 9) e 18 (n.º de margem 21) (C. H. Beck: Munique, 1997).
7. No mesmo sentido, neste aspeto da exclusiva vinculação do legislador aos ditames constitucionais, outro A. advoga que “a controvérsia do ‘bem jurídico’ se dissolve ou na vinculação aos direitos fundamentais, incluindo as [três] máximas do princípio da proporcionalidade, ou tem apenas sentido no quadro da função de impulso [proteção] dos direitos fundamentais” (LAGODNY, Strafrecht vor der Schranken der Grundrechte, 163 (Mohr (Siebeck): Tubingen, 1996).
8. Finalmente, dois eminentes penalistas afirmam “Apesar de tudo, nada pode ser inferido do conceito de bem jurídico para estas questões político-criminais. O que é determinante é a decisão político-jurídica para a qual, desde logo, a Constituição contém algumas vantagens (dever de proteção do Estado, subsidiariedade do Direito penal)” (JESCHECK/WEIGEND, Tratado de Derecho Penal / Parte General, trad. castelhana, 5.ª ed., 276 (Comares, 2002).
9. Por outras palavras: o discurso penal (jurisprudencial e doutrinário) sobre a estrutura, objeto e função de certo tipo criminal relevará para os presentes efeitos na medida em que identifique e consubstancie direitos fundamentais e interesses constitucionalmente protegidos que justifiquem e limitem tal lei restritiva, de modo que em última instância decisivo é sempre o sistema dos valores e dos bens constitucionalmente protegidos – relevando neste contexto especificamente os direitos e interesses fundamentais – num raciocínio balizado pelas proibições do excesso e da insuficiência. Portanto, a questão dos limites do poder de criminalização ou de incriminação deve ser considerada do ponto de vista constitucional, e para tanto importará nomeadamente ponderar os tópicos da competência penal do legislador e sua liberdade de conformação, do impulso decorrente dever de proteção do Estado e dos limites decorrentes do princípio da proporcionalidade (sobretudo no aspeto da necessidade ou da máxima restrição da pena e das medidas de segurança (JOSÉ DE SOUSA E BRITO, “A lei penal na Constituição”, Estudos sobre a Constituição, vol. 2.º, 200, 281 e 220 (Petrony: Lisboa, 1978) e da subsidiariedade da tutela penal, enquanto manifestações da proibição do excesso) (Em geral, como referência básica, NUNO BRANDÃO, “Bem jurídico e direitos fundamentais: entre a obrigação estadual de proteção e a proibição do excesso”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, 239 a 266 (240 a 243, 256 e 259) (Coimbra: Instituto Jurídico, 2017).
Aliás, foi esse, substancialmente, quanto a nós de modo judicioso, o ponto de vista invocado no douto acórdão recorrido (fls. 457, § 2.º).
b) Competência legislativa
10. É da exclusiva competência da Assembleia da República, legislar, salvo autorização ao Governo, sobre a “definição dos crimes (art. 165.º, n.º 1, alínea c).
É, pois, um poder normativo para qualificar como “crime” determinados comportamentos (proibindo para tanto certas ações ou omissões) e ainda para cominar à infração dessas proibições determinadas penas (nomeadamente privativas da liberdade).
Sendo certo que competência legislativa penal redunda, ex definitione, no decretamento de disposições legais restritivas dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, de caráter pessoal, nomeadamente do direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à liberdade (idem, arts. 26.º, n.º 1, e 27.º, n.ºs 1 e 2).
11. Sendo assim, a questão a dirimir consiste em determinar como poderá ser constitucionalmente justificado, e quais são os respetivos limites, no quadro da sua liberdade de conformação, o exercício da competência do legislador para decretar a norma jurídica penal expressa pelas disposições conjugadas dos citados n.ºs 1 e 2 do artigo 387.º (Maus tratos a animais de companhia), do Código Penal.
c) Direitos fundamentais ou interesses constitucionais
12. O texto da Constituição não contém qualquer princípio ou preceito atinente ao bem-estar, nomeadamente à vida ou à incolumidade física dos animais, nomeadamente dos “animais de companhia’.
13. Por uma parte, o texto da Constituição não consagra um direito constitucional dos animais (de companhia), que possa servir de impulso e referente para o decretamento do aludido preceito penal.
Aliás, mesmo no âmbito do discurso ético sobre o “estatuto moral” dos animais, será minoritária a tese dos “direitos dos animais”. Antes recolhe muito mais sufrágios uma visão segundo a qual “a perspetiva do bem-estar animal é a correta: embora os animais não tenham direitos, temos a obrigação de levar a sério os seus interesses” e “os animais não t[êm] direitos” (PEDRO GALVÃO, Ética com Razões, 64 a 83 (72, 75 e 78) (FFMS, Lisboa, 2015).
14. Por outra parte, o artigo 66.º, n.º 2 da lei fundamental, pelas suas diversas alíneas, estabelece na verdade plúrimas incumbências do Estado em matéria de “ambiente”, mas de nenhuma delas resultará um fundamento constitucional, ao menos que seja suficientemente preciso e inequívoco, para legitimar constitucionalmente a incriminação em causa.
15. Portanto, não descortinamos expresso fundamento constitucional, a título de “direito fundamental” ou de “incumbência do Estado”, como impulso para decretar a disposição do artigo 387.º, n.º 1 e 2, do Código Penal (diverso é o caso alemão, cuja Lei Fundamental, no seu artigo 20a, disposição aditada em 1994, prevê como objeto da proteção do Estado, no quadro da responsabilidade para com as futuras gerações, os elementos naturais da vida e os animais).
d) Dever de proteção estadual
16. Convém encetar referindo que da pura consagração de um direito, liberdade ou garantia fundamental de liberdade, e dos “efeitos objetivos” que deles se desprendem, não decorre necessariamente uma imposição de incriminação ou criminalização dos comportamentos que lesem ou, eventualmente, que façam seriamente periclitar os mesmos, essa é uma escolha cometida a uma ampla margem apreciação do legislador.
17. Não está excluído, com efeito, que um sistema de proteção do bem-estar (lato sensu, incluindo a vida e a incolumidade) dos animais (de companhia) que contemple licenças, autorizações e registos administrativos, vigilância policial e administrativa e, a título sancionatório, um regime apropriado de ilícito de mera ordenação social, seja idóneo à eficaz consecução das finalidades preventivas e repressivas do bem-estar animal (lato sensu) que no caso importa proteger, no quadro de uma lata prerrogativa de escolha e conformação pelo legislador de meios jurídicos e materiais, no “intervalo de apreciação” delimitado positivamente pela proibição da insuficiência e negativamente pela proibição do excesso.
18. Como quer que seja, no caso em apreço, à míngua da consagração de um direito fundamental de liberdade (ou, no limite, de incumbências do Estado, protegendo interesses que podem ser subjetivizados), que a reclame e justifique, não estão por tal motivo verificados os pressupostos do dever de proteção estadual, nomeadamente através da incriminação ou criminalização de certos comportamentos (ações ou omissões) passíveis de os lesarem ou, eventualmente, de os fazerem seriamente periclitar.
e) Princípio da proporcionalidade
19. Finalmente, uma “lei restritiva”, como é o caso da disposição legal em apreço, pela sua ingerência assaz incisiva no âmbito material dos aludidos direitos fundamentais pessoais (dignidade da pessoa humana, livre desenvolvimento da personalidade, liberdade), os de mais alto escalão constitucional, deve observância ao regime constitucional respetivo.
Ou seja, deve “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, nisso consistindo o aspeto de necessidade do princípio da proporcionalidade, além de não poder diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais em causa (Constituição, art. 18.º, n.ºs 2 e 3).
20. No caso, como vimos, não está constitucionalmente consagrado um direito dos animais (um “outro direito” na linguagem deste preceito constitucional) que justifique a restrição legislativa penal aos direitos fundamentais pessoais que estão em jogo no caso em apreço.
21. Por conseguinte, resta considerar se está consagrado um “interesse constitucionalmente protegido” passível de justificar este preceito do artigo 387.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
22. A este propósito convém referir que são variadas e multiformes as teses, do discurso penal, quanto à definição dogmática do “bem jurídico” protegido pela incriminação em apreço, como consta do acórdão recorrido:
- No caso do crime de maus tratos a animais de companhia, a tutela do bem-estar do animal representa não um fim, mas um meio ou instrumento de proteção mediata de outros bens jurídicos fundamentais, como por exemplo, o da própria dignidade humana, o da justiça e da solidariedade, todos eles previstos no artigo 1. ° da nossa Constituição." (ANTÓNIO JORGE MARTINS TORRES, apud acórdão recorrido, fls. 456);
- a integridade física (n.°s 1 e 2) e a vida de animais de companhia (n.° 2) (MARIA DA CONCEIÇÃO VALDÁGUA (idem, ibidem);
- bem coletivo e complexo que tem na sua base o reconhecimento pelo homem de interesses morais diretos aos animais individualmente considerados e, consequentemente, a afirmação do interesse de todos e cada uma das pessoas na preservação da integridade física, do bem estar e da vida dos animais, tendo em conta uma inequívoca responsabilidade do agente do crime pela preservação desses interesses dos animais por força de uma certa relação atual (passada e/ou potencial) que com eles mantém. Em causa está uma responsabilidade do humano, como indivíduo em relação com um concreto animal, e também como Homem, i.e., enquanto membro de uma espécie, cujas superiores capacidades cognitivas e de adaptação estratégica o investem numa especial responsabilidade para com os seres vivos que podem ser (e são) afetados pelas suas decisões e ações” (TERESA QUINTELA DE BRITO, idem, fls. 457) sendo este último o ali perfilhado.
23. Noutro quadrante, a essência da proteção é descrita como “uma espécie de solidariedade entre criaturas, também os animais superiores, como nossos semelhantes, como ‘irmãos diferentes’” (ROXIN, ob. cit., 18), a “proteção dos animais como ‘interesse da comunidade’, o animal como tal, portanto sem referência aos homens” (LAGODNY, ob. cit., 157).
24. De modo que, atenta esta panorâmica e como consta do douto acórdão recorrido, “não é pacífica a identificação do bem jurídico protegido pelo crime da condenação pela doutrina, bem jurídico que não será assim tão "evidente" (como refere o Ministério Público)” (fls. 457).
25. Como quer que seja, e sem embargo da sua valia no âmbito do discurso penal, na interpretação e aplicação do tipo legal do artigo 387.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, não é evidente que as aludidas caraterizações do objeto e da teleologia subjacentes ao artigo 387.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, consubstanciem um interesse constitucionalmente protegido que haja necessidade de salvaguardar através dessa incriminação, ressalvado, eventualmente, o valor da “solidariedade” a que alude o primeiro dos AA. antes citados..
26. Com efeito, em primeira e imediata análise, literal e valorativa, o preceito em causa tem como referente a pessoa humana, concreta e situada, com a sua eminente dignidade (art. 1.º)
Eventualmente, porém, o valor a “solidariedade” ali consagrado poderá fundamentar positivamente deveres objetivos (não relacionais) do Estado, tendo beneficiários outros que as pessoas humanas, no caso os animais (de companhia), em ordem à salvaguarda do respetivo bem-estar contra maus tratos físicos, o que consubstanciaria um “interesse constitucionalmente protegido” passível de legitimar positiva e constitucionalmente a incriminação do artigo 387.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal , no sentido e para os efeitos do regime da lei restritiva (art. 18.º, n.º 2).
III
(Conclusões)
1.ª) Objeto idóneo do presente recurso é norma jurídica expressa pelas disposições conjugadas dos n.ºs 1 e 2, do artigo 387.º (Maus tratos a animais de companhia) do Código Penal.
2.ª) A questão dos limites do poder de criminalização ou de incriminação deve ser considerada do ponto de vista constitucional, nomeadamente quanto aos os aspetos da competência penal do legislador e sua liberdade de conformação, no “intervalo de apreciação” delimitado positivamente pela proibição da insuficiência e negativamente pela proibição do excesso (sobretudo no aspeto da necessidade ou máxima restrição da pena e das medidas de segurança, da subsidiariedade da tutela penal, enquanto manifestações dessa proibição do excesso).
3.ª) A Assembleia da República está constitucionalmente credenciada para legislar sobre a “definição dos crimes (art. 165.º, n.º 1, alínea c), ou seja, para qualificar como “crime” determinados comportamentos, proibindo para tanto certas ações ou omissões, e ainda para cominar à infração dessas proibições determinadas penas, nomeadamente privativas da liberdade.
4.ª) Esta competência legislativa penal redunda, ex definitione, no decretamento de disposições legais restritivas dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, de caráter pessoal, nomeadamente do direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à liberdade (idem, arts. 26.º, n.º 1, e 27.º, n.ºs 1 e 2).
5.ª) A questão a dirimir consiste, assim, em apurar como poderá ser constitucionalmente justificado, e quais são os respetivos limites, no quadro da respetiva liberdade de conformação, tal como balizada pelas proibições da insuficiência e do excesso, o exercício da competência do legislador para decretar a norma jurídica penal expressa pelas disposições conjugadas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 387.º (Maus tratos a animais de companhia), do Código Penal.
6.ª) O texto da Constituição não contém qualquer princípio ou preceito atinente ao bem-estar, nomeadamente à vida ou à incolumidade física dos “animais de companhia’, não consagrando um direito constitucional dos animais (de companhia) ou uma “incumbência do Estado” quanto a esta matéria, dos quais proceda um fundamento constitucional, ao menos que seja expresso, para legitimar positivamente a incriminação em causa.
7.ª) À falta da consagração de um direito, liberdade ou garantia fundamental (ou, no limite, de incumbência precisa do Estado, protegendo interesses que podem ser subjetivizados) que a reclame e justifique, não estão por tal motivo verificados os pressupostos do dever de proteção estadual, nomeadamente através da incriminação ou criminalização de certos comportamentos (ações ou omissões) passíveis de os lesarem ou, eventualmente, de os fazerem seriamente periclitar.
8.ª) Uma “lei restritiva”, como é o caso da disposição legal em apreço, pela sua ingerência assaz incisiva no âmbito material dos aludidos direitos fundamentais pessoais (dignidade da pessoa humana, livre desenvolvimento da personalidade, liberdade), os de mais alto escalão constitucional, deve observância ao regime constitucional respetivo, ou seja, deve “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, nisso consistindo o aspeto de necessidade do princípio da proporcionalidade, além de não poder diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais em causa (Constituição, art. 18.º, n.º 2).
9.ª) No caso, como vimos, não está constitucionalmente consagrado um direito dos animais (um “outro direito” na linguagem deste preceito constitucional) que justifique a restrição legislativa penal aos direitos fundamentais pessoais que estão em jogo no caso em apreço.
10.ª) Porém, o valor a “solidariedade” ali consagrado poderá fundamentar positivamente deveres objetivos (não relacionais) do Estado, tendo beneficiários outros que as pessoas humanas, no caso os animais (de companhia), em ordem à salvaguarda do respetivo bem-estar contra maus tratos físicos, o que consubstanciaria um “interesse constitucionalmente protegido” passível de legitimar positiva e constitucionalmente a incriminação do artigo 387.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal , no sentido e para os efeitos do regime da lei restritiva (art. 18.º, n.º 2).»
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A – Delimitação do objeto do recurso
5. Como resulta do requerimento de interposição de recurso e das conclusões das respetivas alegações, o recorrente solicita a fiscalização da constitucionalidade dos «artigos 387.º e seguintes do Código Penal». Porém, nem todos esses preceitos tiveram efetiva aplicação na decisão recorrida como ratio decidendi da mesma. O próprio recorrente o reconhece quando, ao especificar o que entende constituir o objeto do seu recurso, afirma que «não é possível identificar [n]a norma incriminadora dos maus tratos a animais um bem jurídico».
Daí que o objeto do recurso seja constituído pela norma incriminatória prevista nos artigos 387.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto. cujo conteúdo originário era o seguinte:
«Artigo 387.º
(Maus tratos a animais de companhia)
1 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.»
Este preceito foi subsequentemente modificado pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto. Porém, a norma aplicada no contexto dos presentes autos – e, portanto, aquela que aqui releva – é a que decorria da versão originária do preceito. De todo o modo, as alterações introduzidas pela Lei n.º 39/2020, no que diz respeito às condutas de maus tratos a animais de companhia, apresentam limitada relevância para os efeitos da questão de constitucionalidade que aqui se impõe apreciar, a qual se traduz em determinar se tais condutas se mostram ofensivas para algum bem jurídico dotado de dignidade constitucional.
Para além de ter vindo incriminar a conduta de «matar animal de companhia» e de ter vindo elevar as penas aplicáveis às já criminalizadas condutas de «infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia», a Lei n.º 39/2020 veio ampliar o âmbito da norma que agrava esta constelação de condutas. Há agora lugar a agravação, não apenas quando dos maus tratos «resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção», mas ainda quando «o crime for praticado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade», segmento este que é então densificado no n.º 5 do mesmo preceito, onde se prevê um conjunto de circunstâncias suscetíveis de revelar aquela «especial censurabilidade ou perversidade».
O recorte de um ilícito-típico é crucial para se identificar qual é o bem jurídico protegido ou se é, de facto, protegido algum bem jurídico. Naturalmente que é em primeira linha a partir da norma incriminatória que podem retirar-se conclusões a esse respeito. É a norma incriminatória a referência mais tangível desse exercício interpretativo. Porém, no caso em apreço, acontece que a modificação legislativa realizada deixou intocado o tipo legal de crime de base, sendo que a eventual inconstitucionalidade desse tipo legal se estenderá por força à norma que estabelece a agravação. Por isso, para os presentes efeitos, a norma que estabelece a agravação não se perfila como determinante, o que desde logo permite afastar de consideração certas questões dogmáticas a ela atinentes e que de outro modo seriam provavelmente relevantes, como a de saber se aí se encontram previstas circunstâncias modificativas ou se ela constitui, antes, uma verdadeira forma qualificada do crime de base.
Significa isto também que, apesar de a decisão recorrida ter aplicado conjugadamente o n.º 1 e o n.º 2 do artigo 387.º – i.e., tanto o tipo legal de base como a norma que procede à agravação – e apesar de deverem ambos considerar-se integrantes do objeto do presente recurso, a análise a empreender deve incidir fundamentalmente sobre o primeiro. Uma análise do segundo justificar-se-á apenas no caso de se formular em relação ao primeiro um juízo de não inconstitucionalidade – e apenas se, firmada a não inconstitucionalidade do primeiro, o segundo se mostrar de algum modo relevante da perspetiva da específica questão aqui em causa, que é a de saber se a punição aí empreendida se justifica pela necessidade de proteger um bem jurídico com consagração constitucional.
6. Igualmente central para os efeitos dos presentes autos é a norma constante do artigo 389.º do Código Penal, por ser ela que define o conceito de «animal de companhia» relevante para os efeitos de todo o Título VI da Parte Especial do Código Penal, relativo aos «crimes contra os animais de companhia»». Esse preceito concorre, portanto, necessariamente para a delineação do âmbito de incidência do artigo 387.º.
Também esse artigo 389.º foi objeto de modificação pela Lei n.º 39/2020, mas a redação relevante para os efeitos dos presentes autos é, de novo, a redação originária, na qual o preceito apresentava o seguinte conteúdo:
«Artigo 389.º
(Conceito de animal de companhia)
1 - Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia.
2 - O disposto no número anterior não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, assim como não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos.»
Neste ponto, a alteração legislativa efetuada pela Lei n.º 39/2020 deixou intocados aqueles dois números, acrescentando-lhes, porém, um n.º 3 nos termos do qual se consideram também animais de companhia, para estes efeitos, «aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância». O preceito, que não se encontrava em vigor ao tempo da prática dos factos em causa nos presentes autos e que, portanto, não releva diretamente para os efeitos do presente exercício de fiscalização concreta da constitucionalidade, não deixa, todavia, de apresentar alguma relevância indireta, na medida em que contribua para identificar o propósito legislativo subjacente à criminalização de determinadas condutas dirigidas contra animais.
O SIAC foi estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 82/2019 de 27 de junho, que no seu preâmbulo assume a regulação da detenção dos animais de companhia como uma «medida destinada a contrariar o abandono e as suas consequências para a saúde e segurança das pessoas e bem-estar dos animais» e que estabelece, entre outras, a obrigação de «identificação e registo dos animais de companhia», a qual, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, desse diploma, é obrigatória para cães, gatos e furões, «nos termos da parte A do anexo I do Regulamento (UE) n.º 576/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de junho de 2013, e a parte A do anexo I do Regulamento (UE) n.º 2016/429, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016».
Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, pode ser determinada, por despacho do Diretor-Geral de Alimentação e Veterinária, a obrigatoriedade de identificação de «qualquer das espécies referidas na parte B do anexo I dos Regulamentos mencionados no número anterior ou de outras espécies de animais detidos para fins de companhia». No entanto, a determinação, por parte do Diretor-Geral de Alimentação e Veterinária, da obrigatoriedade de identificação de qualquer das espécies referidas nestes Regulamentos deverá ter «fundamento na necessidade de implementar medidas de natureza sanitária para combate a surtos de doenças epizoóticas ou zoonoses».
B - Do mérito do recurso
7. A problemática da constitucionalidade da criminalização de condutas foi apreciada recentemente pelo Plenário do Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 72/2021, que, apesar de se ter pronunciado no sentido da não inconstitucionalidade da norma ali em causa, não infirmou a premissa fundamental de que, em face do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, a criminalização de condutas pressupõe a proteção de bens jurídicos com dignidade constitucional.
Nesse Acórdão, o Tribunal concluiu pela existência de um «risco» de lesão de um bem jurídico-constitucional «suficientemente forte» para conter a norma incriminatória «dentro dos limites da proporcionalidade», considerando assim que a alteração legislativa que deu a essa norma a sua feição atual não conduziu a uma «perda de conexão com um bem jurídico suficientemente definido». Não se afastou, pois, da noção de que a constitucionalidade de uma norma incriminatória depende da existência de uma tal «conexão», noção essa que foi igualmente acolhida na decisão que nos presentes autos constitui a decisão recorrida, onde claramente se afirma que «o art.º 18.º n.º 2 da CRP consagra os princípios da necessidade e da proporcionalidade do direito penal, positivando a regra de que o direito penal – direito fragmentário e de ultima ratio – deve ter uma função de proteção de bens jurídicos».
É, portanto, dessa premissa que deve novamente partir-se para a apreciação da norma em causa nos presentes autos, o que pode fazer-se acompanhando, nessa parte, a exposição feita no Acórdão n.º 134/2020:
«6. Num Estado de direito democrático, o legislador ordinário dispõe inerentemente de uma grande liberdade para a definição das normas jurídicas que disciplinam a vida social. Em razão da legitimidade que para esse efeito lhe é atribuída pela comunidade, é inequivocamente a si que compete definir, entre tantas outras matérias, as condutas cuja prática atrai uma sanção penal e o exato recorte dessas condutas. No entanto, esta intervenção criminalizante está sujeita a certas limitações constitucionais, encontrando no princípio do direito penal do bem jurídico (à semelhança do que, embora com variações, se verifica em vários outros ordenamentos jurídicos) um primeiro e fundamental constrangimento. Manifestação específica do imperativo de proporcionalidade a que transversalmente se subordina a restrição de direitos fundamentais, este princípio perfila-se como uma barreira ao excesso – seja ele arbitrário ou apenas inadvertido – na restrição do direito à liberdade pela via penal, proibindo toda a criminalização que não possa ser justificada em nome de outros direitos ou interesses constitucionalmente consagrados.
Ainda que, considerada a representatividade de que a atuação do legislador ordinário se reveste – em especial quando ela se exprima, como aqui necessariamente acontece, através de lei formal (lex stricta) –, a criminalização de uma conduta possa sempre supor-se exprimir o que em determinado momento constitua um sentimento de censura ético-jurídica dominante na sua comunidade, é indispensável que essa conduta se mostre ofensiva – e suficientemente ofensiva – para um bem jurídico com dignidade constitucional. De facto, se à criminalização de uma conduta é inerente a restrição de um direito consagrado na Constituição (o direito à liberdade, consagrado no seu artigo 27.º) e se, consequentemente, a lei só pode restringir esse direito na medida necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses consagrados na Constituição (nos termos do seu artigo 18.º, n.º 2), a conclusão que se impõe é a de que a lei só pode criminalizar uma conduta na medida necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses consagrados na Constituição.
Por outro lado, constituindo a restrição do direito à liberdade a consequência jurídica mais drástica de entre as que o ordenamento jurídico português admite, justifica-se que os limites da atuação legislativa que se traduza em sancionar uma dada conduta com essa consequência sejam entendidos como manifestações especialmente intensas do princípio da proporcionalidade. Não porque envolvam qualquer variação estrutural desse princípio: trata-se, ainda aqui, essencialmente de procurar as linhas a partir das quais o parâmetro constitucional se opõe e impõe à vontade da maioria democraticamente organizada. Antes porque permitem que logo à partida se assuma que os juízos de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito em que o mesmo se desdobra só serão positivos quando a favor dessa restrição militem nítidas exigências de proteção de outros direitos fundamentais, podendo neste sentido considerar-se que a margem de liberdade do legislador ordinário na criminalização de condutas é menos ampla do que o é na generalidade da sua atuação.
Daí que se justifique uma designação própria – “princípio do direito penal do bem jurídico” (vd. sobretudo Jorge de Figueiredo Dias, “O «direito penal do bem jurídico» como princípio jurídico-constitucional – Da doutrina penal, da jurisprudência constitucional portuguesa e das suas relações”, XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, 2009, p. 31 ss.) –, designação essa cujo alcance, portanto, não será apenas o de operar uma especificação temática do princípio da proporcionalidade para as matérias penais (e, mais particularmente, para a criminalização de condutas), mas o de denotar desde logo que essa especificação se funda no reconhecimento de uma suficiente autonomia taxonómica ao princípio do direito penal do bem jurídico, que o individualiza dentro do reino da proporcionalidade a que pertence. É essa autonomia que explica a utilização de conceitos também próprios no contexto do juízo de proporcionalidade que este princípio requer: fala-se aí de “dignidade de tutela penal” para significar a exigência de que exista um bem jurídico-constitucional que a norma incriminatória seja adequada a tutelar; de “carência de tutela penal”, ou de “subsidiariedade da intervenção penal”, para exprimir a exigência de que essa norma seja necessária para realizar essa tutela. Continua em qualquer caso geralmente a falar-se aí de “proporcionalidade em sentido estrito” para significar o exercício de ponderação dos direitos ou conjuntos de direitos que, vencidos os dois testes anteriores, se vejam em conflito. Mas também aqui, ou talvez até sobretudo aqui, avultam as especificidades desta matéria, porque, conforme referido, um daqueles conjuntos integra necessariamente o direito à liberdade.
Por fim, importa notar que, se a prática de certas condutas, de que é exemplo paradigmático a conduta de homicídio, não corresponde ao exercício de qualquer direito fundamental – caso em que a restrição do direito à liberdade, além de inerente à criminalização, tende a constituir o seu único efeito –, muitos (ou mesmo uma grande parte dos) tipos legais de crime previstos no nosso ordenamento jurídico-penal coenvolvem, pelo menos prima facie, uma restrição de outros direitos fundamentais. É disso exemplo o crime de difamação previsto no artigo 180.º do Código Penal, de que decorrem limites ao exercício das liberdades de expressão e de imprensa. Nestes casos, um juízo positivo de proporcionalidade tenderá a ser mais difícil do que em geral, na medida em que aí estejam de facto em causa, ao lado do direito à liberdade e no mesmo prato da balança que ele, outros direitos fundamentais ainda. No outro prato de balança terá de estar, não apenas um direito ou interesse constitucionalmente protegido, mas, nas palavras do Acórdão n.º 99/2002, «um direito ou bem constitucional de primeira importância».
O princípio do direito penal do bem jurídico constitui – pode dizer-se com segurança – um elemento sólido da jurisprudência deste Tribunal Constitucional (cf., por exemplo, e embora nem todos prolatados no sentido da inconstitucionalidade, os Acórdãos n.os 25/84, 85/88, 426/91, 527/95, 288/98, 604/99, 312/2000, 516/2000, 99/2002, 337/2002, 617/2006, 75/2010, 377/2015) [...].»
8. No presente contexto, importa firmar um ponto que, no contexto de outros arestos em que se apreciou a conformidade de normas incriminatórias com o princípio do direito penal do bem jurídico, não carecia de explicitação. O sentido estavelmente atribuído a este princípio pelo Tribunal Constitucional é dificilmente conciliável com uma visão segundo a qual (cf. Jorge Reis Novais, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2.ª ed., Wolters Kluwer | Coimbra Editora, 2010, pp. 569 ss., passim) as restrições de direitos, liberdades e garantias, dentro de determinados pressupostos, podem ter lugar com vista a proteger direitos ou interesses sem assento constitucional. Não está em causa o mérito intrínseco dessa visão – embora se lhe possa colocar a objeção de que prescindir da reserva constitucional poderia conduzir a uma relativização «potencialmente dissolvente da força normativa da Constituição e do regime “reforçado” dos direitos, liberdades e garantias» (J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada – Vol. I, 4.ª ed. rev., Coimbra Editora, 2007, p. 392) –, nem a sua viabilidade de lege ferenda. Simplesmente, essa visão parece esbarrar inevitavelmente na letra do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição e no seu declarado desígnio de subjugar à Constituição a atuação legislativa que se traduza numa restrição de direitos fundamentais aí consagrados.
Por outro lado, se aquela objeção e estes elementos interpretativos se aplicam de maneira transversal a restrições a qualquer direito fundamental, eles assumirão força acrescida quando em causa esteja uma restrição do direito à liberdade consagrado no artigo 27.º da Constituição, por ser a consequência jurídica mais drástica admitida pelo ordenamento jurídico português. É este o ponto que particulariza o princípio do bem jurídico dentro do princípio da proporcionalidade. O facto de ser essa a consequência jurídica de uma norma incriminatória permite assumir como premissa que a constitucionalidade dessa norma depende da existência de nítidas necessidades de proteção de outros direitos ou interesses constitucionalmente consagrados, o que autoriza a ideia de que a margem de liberdade do legislador ordinário na criminalização de condutas é menos ampla do que o é na generalidade da sua atuação.
A existência de consenso em torno do princípio do direito penal do bem jurídico e do seu papel central na avaliação da legitimidade da intervenção criminalizante do legislador não impede que haja discordância quanto à questão de saber se uma dada conduta se mostra ou não ofensiva (e suficientemente ofensiva) para algum bem jurídico com dignidade constitucional. Era o que se verificava quanto à conduta de lenocínio simples, criminalizada no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, apreciada de modo discordante nos Acórdãos n.º 134/2020 e n.º 72/2021, e é o que se verifica também quanto à conduta de maus tratos a animais de companhia, cuja fiscalização é, nos presentes autos, pela primeira vez solicitada ao Tribunal Constitucional.
9. Avançando para a questão de saber se existe um bem jurídico capaz de suportar o tipo legal de crime de maus tratos a animais de companhia previsto no artigo 387.º do Código Penal, o primeiro ponto que se impõe firmar é o de que uma resposta afirmativa não pressupõe o reconhecimento desses animais como titulares de direitos em sentido subjetivo. O artigo 18.º, n.º 2, da Constituição permite que a lei restrinja direitos, liberdades e garantias de natureza constitucional com vista à salvaguarda, não apenas de outros direitos dessa natureza, mas também de «interesses constitucionalmente protegidos».
Na verdade, são inúmeros, mesmo no âmbito do direito penal clássico ou de justiça, os tipos legais de crime cuja sustentação constitucional não se louva em direitos subjetivos, mas antes em interesses objetivos. Bastará pensar em vários crimes contra a vida em sociedade previstos no Título IV do Código Penal, como o crime de ultraje por motivo de crença religiosa, previsto no artigo 251.º do Código Penal, que não constitui uma «garantia da liberdade religiosa qua tale, mas da proteção da paz pública que pode ser perturbada por ofensas de caráter religioso» e, portanto, de um «bem jurídico supraindividual» (J. M. Damião da Cunha, “Artigo 251.º”, in Jorge de Figueiredo Dias (dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal – Tomo II, Coimbra Editora, 1999 [CCCP-II], p. 638), assim como os crimes de falsificação de moeda, título de crédito e valor selado, previstos nos artigos 262.º ss. do Código Penal, em relação aos quais é entendimento dominante, embora com algumas variações, cuidarem de interesses como a «confiança ou fé pública na moeda» e a «segurança e a funcionalidade (...) do tráfego monetário» (A. M. Almeida Costa, “Nótula antes do Artigo 262.º”, CCCP-II, p. 748), dificilmente suscetíveis de serem reconduzidos a qualquer direito em sentido subjetivo. Considerações semelhantes aplicar-se-ão também a vários dos crimes contra o Estado previstos no Título V (artigos 308.º) do Código Penal.
Para que certas condutas ofensivas para animais sejam legitimamente proibidas pela via penal não se mostra sequer imprescindível que se lhes reconheça «estatuto moral», isto é, um valor intrínseco que seja «independente de quaisquer relações que mantenham com outros seres», particularmente com seres humanos, e que faça impender sobre estes um conjunto de deveres e obrigações em relação àqueles (cf. Pedro Galvão, “Introdução”, in Id. (org. e trad.), Os Animais têm Direitos? Perspetivas e Argumentos, Lisboa: Dinalivro, 2011, p. 9). A proibição poderá louvar-se em interesses apenas indiretamente relacionados com os animais e de que eles beneficiem de modo somente colateral. Isso é, aliás, muito evidente na nossa legislação penal, que por exemplo criminaliza as condutas que se traduzam em destruir, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável animal alheio, punindo-as com pena de prisão até três anos ou com pena de multa (cf. o artigo 212.º do Código Penal). Como é evidente, tais proibições encontram o seu fundamento no direito de propriedade titulado por seres humanos, que não na proteção dos animais enquanto tais. Em casos destes, o animal constitui objeto do crime, mas não seu sujeito passivo (sobre a distinção, em geral, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I, 3.ª ed., 2019, Gestlegal, p. 359), o que nos conduz a uma ideia importante: aquilo que de um prisma puramente objetivo ou fáctico pode aparentar constituir uma mesma conduta, como matar um animal, poderá assumir um significado jurídico muito distinto em função da existência de outros elementos, normativos ou de outra índole, que concorram para a delineação do recorte típico da proibição, como precisamente o de esse animal constituir propriedade alheia.
Exemplos idênticos – no sentido de que criminalizam condutas que têm como objeto os animais mas que não visam diretamente protegê-los – são oferecidos pelo crime de danos contra a natureza, previsto no artigo 278.º do Código Penal; pelo crime de perigo relativo a animais, previsto no artigo 281.º do mesmo diploma; pelo crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, previsto de modo conjugado nos artigos 30.º e 6.º da Lei de Bases Gerais da Caça (Lei n.º 173/99, de 21 de setembro); também pelo crime de lutas entre animais, previsto no artigo 31.º do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de outubro, embora neste último não seja tão evidente o caráter secundário ou subordinado da proteção dos animais relativamente à de direitos e interesses titulados por seres humanos – cf. Pedro Soares de Albergaria/Pedro Mendes Lima, “Sete Vidas: A Difícil Determinação do Bem Jurídico Protegido nos Crimes de Maus-Tratos e Abandono de Animais”, Julgar n.º 28 (2016), p. 128 s.
10. Por outro lado, pode reconhecer-se estatuto moral aos animais e, todavia, considerar-se ilegítima, perante uma dada Constituição, a proibição penal de certas condutas que os tenham como objeto, se o propósito da proibição, conforme expresso na letra da norma e lido à luz de outros elementos interpretativos relevantes, não puder ser associado a um direito ou interesse ali consagrado. Neste caso, a reflexão a empreender passará a ser de natureza constituinte, i.e., dirigida a apurar se a comunidade democraticamente organizada (uma sua maioria qualificada) reconhece de facto aos animais aquele estatuto moral e pretende que lhe seja dada expressão na sua Constituição. Para os presentes efeitos, essa reflexão deve ser afastada sem hesitações, uma vez que a competência deste Tribunal se cinge à apreciação da conformidade de normas de direito infraconstitucional com um parâmetro dado, que é a Constituição da República Portuguesa de 1976, com as alterações a que foi sujeita em sede de revisão constitucional.
Isso significa, desde logo, que a evolução verificada no direito ordinário (cf., v.g., Jorge Bacelar Gouveia, “A prática de tiro aos pombos, a nova lei de proteção dos animais e a Constituição Portuguesa”, Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente n.º 13 (2000), p. 231 ss.; André Dias Pereira, “«Tiro aos Pombos» – A Jurisprudência Criadora de Direito”, in Jorge de Figueiredo Dias / J. J. Gomes Canotilho / José de Faria Costa (org.), Ars Ivdicandi: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves – Vol. II, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 543 ss.; Maria Luísa Duarte / Carla Amado Gomes (eds.), Direito (do) Animal, Almedina, 2016; Filipe Albuquerque de Matos/Mafalda Miranda Barbosa, O Novo Estatuto Jurídico dos Animais, Gestlegal, 2017) no sentido de reconhecer aos animais um estatuto superior (ou, pelo menos mas por certo, distinto) do de meras coisas – numa palavra, no sentido da sua desreificação –, ainda que traduza uma evolução da sensibilidade dominante em relação aos animais, é insuficiente para legitimar a criminalização de condutas que os tenham como sujeitos passivos.
Ainda que ampla, contínua e expectavelmente irreversível, essa evolução não substitui o processo constituinte. É esse processo, com a sua capacidade fundante somente explicável pela singular legitimidade democrática de que se reveste, que garante a todos os cidadãos que os seus direitos, liberdades e garantias não possam ser restringidos senão em nome de um direito ou interesse a que aquela dignidade tenha, ainda que só implicitamente, sido concedida ou outorgada através de um processo idêntico. Ou seja, a dignidade constitucional não pode ser alcançada por via indutiva, a partir do conteúdo de normas infraconstitucionais, ainda que sejam, elas próprias, já democraticamente representativas. Essa dignidade tem antes, por força, pelo menos no nosso sistema jurídico, de ser deduzida do poder constituinte. Não apenas, mas também (e, para o que aqui mais importa, sobretudo) porque a proteção que aquela outorga faz emergir vem acompanhada (aliás, é mesmo em grande medida realizada através) da possibilidade de restrição de outros direitos e interesses a que aquela dignidade fora já outorgada. O que, uma vez mais, raramente será tão evidente como quando esteja em causa a criminalização de uma conduta, com o consequente efeito de privação da liberdade.
11. Note-se que o direito internacional e o direito da União Europeia (UE), conforme recebidos pela Constituição nos termos do seu artigo 8.º, não oferecem elementos suplementares relativamente aos decorrentes da própria Constituição. De facto, mesmo deixando de parte as questões de hierarquia normativa convocadas por aquele preceito constitucional, não é possível identificar ali um ponto de suporte alternativo por referência ao qual pudesse realizar-se aquele exercício.
A principal possibilidade seria o artigo 13.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que atualmente reconhece os animais enquanto «seres sensíveis» e impõe o respeito pelo seu «bem-estar». Contudo, essa norma, conquanto constitua mais um relevante sinal de aprofundamento da tutela do bem-estar dos animais, tem um âmbito de aplicação claramente circunscrito às políticas da UE «nos domínios da agricultura, da pesca, dos transportes, do mercado interno, da investigação e desenvolvimento tecnológico e do espaço». Como afirmam Denis Simonin / Andrea Gavinelli: «like similar articles under this section of the Treaty, it does not constitute a legal base for the EU to act on animal welfare. It is an obligation to consider this aspect within the framework of a list of specific EU policies. Therefore, all pieces of EU legislation on animal welfare are based on one of these EU policies such as agriculture for farmed animals or the internal market for laboratory animals where the EU has a legal base to act. This explains why the scope of EU action on animal welfare is limited and some areas are not within EU competence (like stray animals for example)» (“The European Union legislation on animal welfare: state of play, enforcement and future activities”, in Sophie Hild / Louis Schweitzer (eds.), Animal Welfare: from Science to Law, Paris: Fondation Droit Animal, Éthique et Sciences, 2019, p. 60, em www.fondation-droit-animal.org) Isto mesmo fora já sustentado pelo Tribunal de Justiça da UE em Jippes e Outros. c. Minister van Landbouw, Natuurbeheer em Visserij (C-189/01) (cf. sobretudo os parágrafos 71 ss.), onde o Tribunal «concluiu, de modo restritivo, que estas exigências não constituem um objetivo geral nem um princípio geral de Direito Comunitário» (Maria Luísa Duarte, “Direito da União Europeia e estatuto jurídico dos animais: uma grande ilusão?”, in Maria Luísa Duarte / Carla Amado Gomes (coord.), Animais: Direitos e Deveres, Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2015, p. 40).
Por fim, como observam Pedro Soares de Albergaria/Pedro Mendes Lima, op. cit., p. 145, se o artigo 13.º TFUE de facto oferecesse base jurídica para os Estados Membros criminalizarem condutas relacionadas com o bem-estar animal, seria incompreensível que entre os domínios a que esse preceito se aplica (agricultura, pesca, transportes, mercado interno, investigação e desenvolvimento tecnológico e espaço) se incluam precisamente aqueles que o nosso legislador excluiu do conceito penalmente relevante de animal de companhia. Recorde-se que o n.º 2 do artigo 389.º excluiu do regime contido nesse Título do Código Penal os «factos relacionados com a utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial», bem como os «factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos».
Serve isto, em suma, para firmar a ideia de que é na Constituição que cumpre indagar a existência de direitos ou interesses capazes de fundamentar a privação da liberdade de seres humanos pela prática de maus tratos conduta contra animais em causa nestes autos.
12. Na ausência de uma previsão mais diretamente atinente aos animais, como as que se encontram nas Constituições de Estados como a Alemanha (cf. infra, o ponto 13) ou o Brasil (cf. João Narciso, “Sobre a Legitimidade Jurídico-Constitucional dos Crimes Contra Animais: Uma Leitura do Problema de Acordo com o Direito Português e com o Direito Espanhol”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal 31, n.º 2 (2021), no prelo), em Portugal, o ponto de suporte constitucional mais forte para o tipo legal de crime será o artigo 66.º da Constituição, que prevê um direito fundamental ao ambiente, cuja proteção ativa é, por outro lado, imposta ao Estado como sua tarefa fundamental pelo artigo 9.º, alínea e), do texto fundamental.
Na perspetiva de alguns autores, estes preceitos oferecem base constitucional suficiente para a criminalização de condutas que se traduzam em infligir maus tratos a animais (cf., v.g., Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed., Universidade Católica Editora, 2021, p. 1321 ss. e 1327; ou Jorge Bacelar Gouveia, op. cit., p. 239).
É o seguinte o conteúdo dos referidos preceitos:
«Artigo 9.º
(Tarefas fundamentais do Estado)
São tarefas fundamentais do Estado:
(...)
e) Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correto ordenamento do território;
(...).»
«Artigo 66.º
(Ambiente e qualidade de vida)
1. Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.
2. Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos:
a) Prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão;
b) Ordenar e promover o ordenamento do território, tendo em vista uma correta localização das atividades, um equilibrado desenvolvimento socioeconómico e a valorização da paisagem;
c) Criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico;
d) Promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações;
e) Promover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitetónico e da proteção das zonas históricas;
f) Promover a integração de objetivos ambientais nas várias políticas de âmbito sectorial;
g) Promover a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente;
h) Assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com proteção do ambiente e qualidade de vida.»
Certamente que a defesa e a conservação da natureza e do ambiente, a preservação dos recursos naturais e a salvaguarda da estabilidade ecológica, impostas naqueles preceitos, de algum modo contemplam a proteção dos animais. No entanto, a proteção aí proporcionada aos animais não pode deixar de ser compreendida como incidental. Não no exato sentido em que o é no caso de um crime como o de dano, acima referido, em que o animal constitui objeto de uma conduta criminalizada com o propósito de proteger um interesse que lhe é absolutamente estranho (a propriedade titulada por um ser humano). A proteção do animal é, portanto, nessa circunstância duplamente incidental. Em contraste, no âmbito do artigo 66.º, os animais são protegidos por serem parte integrante da realidade que se visa proteger: o ambiente. Um mesmo animal beneficiará ou não da proteção decorrente de um crime como o de dano consoante seja ou não propriedade de alguém. Já se houver lugar a proteção por razões de ordem ambiental, o animal será protegido independentemente de qualquer outro laço de natureza jurídica que o ligue diretamente a um ser humano. No entanto, em última análise, esta espécie de proteção também visa (porventura mesmo exclusivamente) o interesse humano na preservação do ambiente.
Portanto, os dois casos têm inexoravelmente como denominador comum a circunstância de – embora de forma mais mediata num caso e mais imediata noutro – a proteção oferecida pelo ordenamento jurídico ter como beneficiários os seres humanos, a quem o ordenamento deve a sua existência e que tem neles a sua primordial razão de ser. Quer isso dizer que o artigo 66.º da Constituição não protege os animais enquanto tais, de um modo que permita entendê-los como “indivíduos”, mas protege-os somente na medida da sua relevância para o ambiente como um todo, entendido de forma holística. Assim como não protege uma árvore enquanto tal, por ser árvore, mas pode proteger florestas e até, porventura, árvores singulares, caso pertençam a uma espécie protegida (o que corresponde ao tipo de tutela já proporcionado pelo artigo 278.º do Código Penal, relativo aos danos contra a natureza). E assim como não protege os seres humanos enquanto indivíduos (a sua vida, a sua integridade física e moral, a sua autonomia, etc.), apesar de também eles serem parte integrante do ambiente e de a preservação do ambiente ser condição indispensável para a sua existência enquanto indivíduos.
Mesmo a tutela proporcionada pelo vigente artigo 278.º do Código Penal, relativo aos danos contra a natureza, foi introduzida apenas pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março. Não tinha equivalente na versão original de 1982 e constituiu, à data, como expressamente indicado pelo legislador no Preâmbulo do referido Decreto-Lei, uma proposta de «neocriminalização, resultante [inter alia] da revelação de novos bens jurídico-penais». Uma proposta que, portanto, não contemplou apenas condutas que lesam de um modo minimamente direto e imediato direitos como a vida e a integridade física (de indivíduos humanos) – caso em que aqueles constituiriam os bens jurídicos protegidos e em que a inovação legislativa teria residido simplesmente na antecipação da respetiva tutela através de técnicas de perigo, também elas de certo modo neocriminalizatórias mas que, nessa circunstância, estariam menos preocupadas com a proteção de bens jurídicos novos do que com a adequação da tutela de bens jurídicos clássicos às dificuldades trazidas pela sociedade do risco. Uma proposta que, ao invés, veio incidir sobre um conjunto de condutas objetivamente danosas para a natureza em si mesma considerada, como a destruição de exemplares de fauna e de flora, independentemente do seu impacto sobre interesses humanos diretos e imediatos. Independentemente, desde logo, de as espécies de fauna ou de flora em questão serem «em concreto nocivas ou úteis sob o ponto de vista da sobrevivência humana» (Paula Ribeiro de Faria, “Artigo 278.º”, CCCP-II, p. 933). Uma proposta que, porém, precisamente em respeito ao imperativo de proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais (humanos) a que o legislador está adstrito, não foi ao ponto de impor uma «promoção da qualidade do ambiente», mas se limitou a zelar pela «manutenção do status quo presente» (ibid.).
Em suma, a tutela oferecida pelo artigo 278.º do Código Penal (danos contra a natureza) pode abstrair de direitos e interesses diretos e imediatos dos seres humanos porque visa proteger o ambiente enquanto tal, decorrendo daí uma certa proteção dos animais; esta proteção é independente da relevância dos animais para os seres humanos, mas não é independente da sua relevância para o ambiente. Nesse âmbito, os animais são protegidos por serem parte integrante do ambiente, mas, consequentemente, são-no apenas na medida da sua relevância para o ambiente. Aliás, a proteção do ambiente, enquanto conjunto de elementos naturais em equilíbrio, não só não visa a proteção dos animais enquanto indivíduos, nem das relações estabelecidas entre eles e os seres humanos, como pode até ser invocada para justificar o sacrifício de animais quando isso se revele necessário àquele equilíbrio: é uma das críticas que alguns dos principais pensadores dos direitos dos animais apontam, ao ponto de lhes associarem termos como “ecofascismo”, às linhas de pensamento que preconizam um holismo ético segundo o qual «o todo em que a comunidade biótica consiste tem prioridade sobre as partes que o compõem» (Pedro Galvão, op. cit., p. 21).
Já o crime de maus tratos a animais previsto no artigo 387.º do Código Penal não protege os animais em função da sua relevância para o ambiente, mas enquanto indivíduos e em função de uma dada relação com os seres humanos, por referência à qual o conceito relevante de animal («de companhia») é recortado. Essa relação pode ser meramente abstrata, no sentido de que não é necessário o animal ser efetivamente detido por um ser humano, bastando que se destine a sê-lo, mas a suscetibilidade de ser detido por um ser humano, «para seu entretenimento e companhia» (artigo 389.º, n.º 1, do Código Penal, sic), é indispensável para fazer emergir a proteção.
As precedentes considerações obrigam a afastar as posições doutrinais acima referidas. Em definitivo, uma proteção dos animais como a prevista no artigo 387.º do Código Penal é de caráter individualístico, enquanto uma proteção do ambiente como a prevista no artigo 66.º da Constituição é de caráter holístico. Neste sentido se pronuncia assertivamente, embora não por referência a estes concretos elementos normativos, Luís Greco, “Proteção de Bens Jurídicos e Crueldade com Animais”, Revista Liberdades, n.º 3 (2010), p. 52 s., afirmando mesmo que de outra forma se «falseia o conteúdo da crueldade com animais». O impulso legislativo no sentido de punir essa crueldade não parte do desígnio de proteger o ambiente (embora este desígnio seja absolutamente premente), mas antes do de proteger os animais enquanto seres intrinsecamente merecedores de consideração (cf. infra, o ponto 13). O crime de maus tratos a animais de companhia, em causa nestes autos, protege efetivamente a vida e a integridade física destes animais, como se sugere na decisão recorrida, mas estes interesses não se reconduzem ao artigo 66.º da Constituição.
13. Posições como as referidas enfrentam ainda sérias dificuldades em explicar porque é que a tutela conferida pelo artigo 387.º do Código Penal abrange apenas os animais de companhia (a sua vida, a sua integridade física), mas não já outros animais que, à luz de algumas das mais essenciais premissas de que parte o movimento de proteção dos animais – e mesmo, o que para este efeito é mais importante, à luz da tutela constitucional do ambiente como um todo, prevista no artigo 66.º da Constituição –, mereceriam claramente tutela idêntica, por apresentarem tão ou mais elevados níveis de senciência que os tradicionais animais de companhia e tão ou mais complexos «substratos neurológicos» (cf. a Declaração de Cambridge sobre a Consciência, de 2012, em https://fcmconference.org). Ou – se a abordagem mais correta não passar pela graduação de níveis de consciência distintos dentro de uma escala única, mas por uma análise multidimensional que leve em consideração distintas categorias de consciência (no sentido de que deve ser assim, cf. Jonathan Birch / Alexandra K. Schnell / Nicola S. Clayton, “Dimensions of Animal Consciousness”, Trends in Cognitive Sciences, n.º 24 (2020), pp. 789 ss.) –, por apresentarem «perfis de consciência» suficientemente evoluídos em várias de tais categorias para justificarem uma equiparação nos planos ético e jurídico.
A mesma dificuldade é enfrentada pela ideia segundo a qual a responsabilidade penal em apreciação nestes autos poderia ser justificada a partir de uma especial responsabilidade dos seres humanos em relação a animais cujos mais básicos instintos de sobrevivência ou «referências naturais» – na expressão usada, embora não exatamente com o propósito aqui em exposição, por Carla Amado Gomes, “Direito dos Animais: um Ramo Emergente?”, Revista Jurídica Luso-Brasileira, n.º 1 (2015), p. 371 – foram neutralizados ou mitigados em virtude de ação humana. Por um lado, trata-se de um processo evolutivo de longuíssima duração cujo resultado dificilmente poderia ser assacado a seres humanos presentes de um modo tão direto como o que decorre daquela posição. Por outro lado, se o argumento for entendido, não tanto no sentido de uma responsabilidade histórica, mas num outro que aponte para a responsabilidade de concretos indivíduos humanos pela domesticação de concretos animais, isso apenas poderia justificar a punição desses concretos indivíduos. Não já a daqueles que, não tendo qualquer responsabilidade no referido processo de domesticação, maltratassem animais domesticados por outrem. Em relação ao crime de abandono (artigo 388.º do Código Penal), que pressupõe a assunção de um «dever de guardar, vigiar ou assistir» o animal, a questão poderá revestir contornos algo diferentes, mas apenas neste aspeto específico, já que a legitimidade da criminalização, mesmo aí, não deixa de exigir uma tutela constitucional dos animais enquanto tais, nos termos já vistos.
Independentemente de tudo isso, a capacidade tecnológica e de outras naturezas atingida pelos seres humanos permite-lhes subjugar grande parte dos restantes animais, mesmo os mais selvagens, ou de algum modo colocá-los em situação de incapacidade de defesa e resistência, sem que isso pressuponha expô-los a algum processo que se aproxime do de domesticação. Por exemplo, através da captura, por armadilha, de um exemplar pertencente à família Corvidae, onde se incluem géneros com perfis de consciência tidos como mais evoluídos em certas categorias (cf. novamente Jonathan Birch / Alexandra K. Schnell / Nicola S. Clayton, op. cit., p. 791 ss.). Tratando-se de animais com essas características, por que razão deveriam ser excluídos da proteção conferida pela lei penal?
Essa mesma parece ter sido a posição assumida na Alemanha, que em 2002 empreendeu um processo constituinte que veio incumbir o Estado, no artigo 20.º da sua Lei Fundamental, de proteger os elementos naturais da vida e os animais – «und die Tiere», foram as três decisivas palavras então introduzidas – e que oferece tutela penal, no plano do direito ordinário, à generalidade dos animais vertebrados, no § 17 da Tierschutzgesetz, a Lei de Proteção dos Animais (ambas em www.gesetze-im-internet.de). Pouco importam, para a perspetiva que aqui se expõe, os méritos da concreta delimitação realizada pelo legislador penal alemão: se é desajustada, por excesso ou por defeito, ou se é, antes, perfeitamente acertada em face de considerações como as precedentes, baseadas nas características biológicas dos diversos animais. Importam os factos, em si mesmos considerados, de essa tutela encontrar base expressa na Constituição e de a sua concretização no plano ordinário não ter sido recortada por referência a uma estrita relação entre os animais e os seres humanos, com o que isso significa.
Naturalmente, a opção por uma tutela parcial como a que é proporcionada pelo artigo 387.º do Código Penal (cingida a animais de companhia), pressupondo que assente numa norma constitucional de que decorresse a tutela dos animais enquanto indivíduos, poderia justificar-se a partir da liberdade de conformação de que o legislador dispõe: a especial ligação que se estabelece entre certos animais e os seres humanos poderia considerar-se, da perspetiva do “sistema social”, como elemento suficientemente relevante para legitimar uma diferenciação relativamente a outros animais. O ponto que agora se evidencia é o de que uma tutela como a realizada pelo artigo 387.º do Código Penal acaba por ser paradoxal em relação a algumas das mais sólidas razões suscetíveis de justificar a proteção jurídica dos animais enquanto indivíduos. Nos dois sentidos apontados: por ser definida por referência aos seres humanos; e por, consequentemente, excluir animais dotados de características que os deixariam pelo menos tão bem colocados como os tradicionais animais de companhia para o recebimento de tutela enquanto indivíduos. Este paradoxo é, aliás, logo visível nos projetos de lei que resultaram na introdução do tipo legal de crime aqui em causa (ambos em www.parlamento.pt). O Projeto de Lei n.º 474/XII invoca a «natureza própria dos animais enquanto seres vivos sensíveis» e o Projeto de Lei n.º 475/XII o «bem-estar» e a «dignidade» dos animais, o que denota uma aceitação do seu intrínseco merecimento de tutela, mas depois limitam a tutela aos animais de companhia, sem indicarem motivos que ajudem a racionalizar a limitação nem pistas que ajudem a compreender o respetivo fundamento constitucional. Como não deixa de observar Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., p. 1327, «[n]em a motivação do projeto de lei nem a discussão parlamentar revelam qual foi esse fundamento».
14. Acidentalmente ou não, o facto de o artigo 387.º do Código Penal ter como elemento proeminente uma dada relação entre os seres humanos e certos animais acaba por oferecer a via mais plausível para a sua legitimação constitucional. Se a Constituição apenas tutela os animais em função e na medida da sua relevância para outros interesses (seja ambientais, seja humanos num sentido mais direto e imediato), e dando como assente que a tutela atualmente conferida pela Constituição ao ambiente não suporta uma tutela como a realizada por aquele tipo legal de crime, então poderá ser a relevância dos animais – de certos tipos de animais em particular – para os seres humanos a razão constitucionalmente relevante para a criminalização. Da perspetiva de quem defenda a imediata tutela penal dos animais, o facto de ela ser limitada aos de companhia surgiria então, porventura, como uma «inevitável hipocrisia» (para usar de novo uma expressão de Carla Amado Gomes, “Direito dos Animais: um Ramo Emergente?”, op. cit., p. 379, embora de novo num sentido adaptado aos propósitos da presente análise).
Surgem nesta linha posições que convocam assumidamente o ser humano – a relevância dos animais para ele e a responsabilidade dele para com os animais – como referente legitimante da criminalização. Será o caso da posição, referida na decisão recorrida, de Teresa Quintela de Brito, para quem estes tipos legais de crime «tutelam um bem jurídico coletivo e complexo que tem na sua base o reconhecimento pelo homem de interesses morais diretos aos animais individualmente considerados e, consequentemente, a afirmação do interesse de todas e cada uma das pessoas na preservação da integridade física, do bem-estar e da vida dos animais, tendo em conta uma inequívoca responsabilidade do agente do crime pela preservação desses interesses dos animais por força de uma certa relação atual (passada e/ou potencial) que com eles mantém. Em causa está uma responsabilidade do humano, como indivíduo em relação com um concreto animal, e também como Homem, i.e., enquanto membro de uma espécie, cujas superiores capacidades cognitivas e de adaptação estratégica o investem numa especial responsabilidade para com os seres vivos que podem ser (e são) afetados pelas suas decisões e ações» (“Crimes Contra Animais: os novos Projetos-Lei de Alteração do Código Penal”, Anatomia do Crime, n.º 4 (2016), p. 102).
Como se verifica, esta posição «tem na sua base o reconhecimento pelo homem de interesses morais diretos aos animais individualmente considerados». No entanto, na ausência de outra base constitucional, também ela assenta, em medida significativa, na tutela do ambiente consagrada no artigo 66.º, já analisada. Mais especificamente, e de acordo com a mesma autora (agora em “Os crimes de maus tratos e de abandono de animais de companhia: Direito Penal Simbólico?”, Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, n.º 19 (2016), p. 16 ss.), nas alíneas c) e g) do seu n.º 2, porquanto promovem a conservação da natureza e a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente. Importa recordar a letra daqueles preceitos:
«Artigo 66.º
(Ambiente e qualidade de vida)
2. Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos:
(...)
c) Criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico;
(...)
g) Promover a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente».
Como vimos, a proteção decorrente desses preceitos a título de incumbência do Estado considera o ambiente globalmente considerado, sendo impossível detetar qualquer nuance que os afaste dos demais preceitos que integram o artigo 66.º em termos que permitam lê-los no sentido de apontarem para uma tutela dos animais em sentido individual. Note-se, por outro lado, que, como sustentam J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, op. cit., p. 392, «nem todos os interesses constitucionalmente garantidos são adequados para justificar a restrição [de direitos, liberdades e garantias]; sobretudo quando se tratar de cláusulas demasiado vagas para suportarem qualquer confronto consistente com os direitos, liberdades e garantias». Afigura-se ser precisamente esse o caso do artigo 66.º quando nele se procura fundar uma restrição que só muito vaga e remotamente poderia louvar-se na proteção do ambiente como um todo.
Como afirma a própria autora Teresa Quintela de Brito, o artigo 387.º do Código Penal não protege «a função ecológica do animal em dado ecossistema» (“Os crimes de maus tratos...”, op. cit., p. 12). Não pode, pois, ser filiado num quadro normativo de proteção do ambiente enquanto ecossistema ou conjunto de ecossistemas. Daí que a autora prossiga no sentido de acompanhar (cf. ibid.) o Parecer do Conselho Superior da Magistratura sobre os Projetos de Lei n.º 474/XII/3 e n.º 475/XII/3 (em www.parlamento.pt, ponto 3, alínea v)), quando aí se sustenta que, mesmo que possa considerar-se que aquele preceito do Código Penal tutela um bem jurídico baseado na proteção dos animais enquanto indivíduos (a sua «integridade física, saúde e vida»), fá-lo «pela específica relação que o mesmo natural ou culturalmente tem ou está destinado a ter com o ser humano»; e, assim, «esse bem jurídico-penal, para o ser, sempre “se deverá traduzir num ‘bem essencial ao desenvolvimento da personalidade ética do homem’ e, portanto, minimamente ligado à dignidade da pessoa humana» (sublinhado nosso). Acrescenta a autora (acompanhando Helena Telino Neves, “A controversa definição da natureza jurídica dos animais”, in Maria Luísa Duarte/Carla Amado Gomes (coord.), op. cit., p. 89) que maltratar animais «“degrada também a nossa humanidade”», «revela a “índole moral e cívica – da humanidade – do agente humano”» e «pode indiciar a “desumanidade do agente”, porque, justamente, estão em causa deveres do homem para com os outros homens, e não, porventura, deveres diretos do homem para com os animais» (ibid.). Não sendo o tipo de proteção dos animais realizado pelo artigo 387.º do Código Penal albergado pela proteção do ambiente preconizada pelo artigo 66.º da Constituição, preceito este que figura assim, nesta visão das coisas, essencialmente como ponto de partida para um argumento afinal antropocêntrico, temos então que a base constitucional em que esta construção poderia assentar seria o princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1.º da Constituição.
A utilização da dignidade da pessoa humana como fundamento para a criminalização de condutas – abordagem que é mobilizada de modo claro na decisão recorrida, quando aí se afirma, acompanhando um texto doutrinário, que, «[n]o caso do crime de maus tratos a animais de companhia, a tutela do bem-estar do animal representa não um fim, mas um meio ou instrumento de proteção mediata de outros bens jurídicos fundamentais, como por exemplo, o da própria dignidade humana, o da justiça e da solidariedade, todos eles previstos no artigo 1.º da nossa Constituição» – deve, contudo, ser rejeitada. A razão para esta rejeição passa pela extrema maleabilidade a que ficaria então votado o conceito de bem jurídico-constitucional e, é dizer, de uma maneira mais geral, o próprio artigo 18.º, n.º 2, da Constituição: de outro modo, como se afirmou no Acórdão n.º 134/2020, «qualquer norma incriminatória poderia justificar-se, praticamente sem ulterior especificação normativa, em nome da proteção da dignidade da pessoa humana ínsita no artigo 1.º da Constituição». As demais considerações ali feitas a esse respeito poderão ser aqui úteis também:
«(...) A ideia de que pode ver-se no princípio da dignidade da pessoa humana um bem jurídico capaz de assegurar a proporcionalidade da restrição da liberdade inerente à criminalização de uma conduta, ou de que esse princípio pode de algum outro modo autónomo suster a criminalização de uma conduta, é (...) uma ideia que suscita sérias reservas. Desde logo, de um ponto de vista sistemático, porque ele surge consagrado na nossa Constituição enquanto princípio fundamental, e não – como noutras Constituições – enquanto direito fundamental. Depois, nos planos literal e teleológico, porque o elevado grau de abstração que o caracteriza tende a impedi-lo de desempenhar adequadamente funções prescritivas concretas. Na síntese constante do Relatório da Delegação Portuguesa à 9.ª Conferência Trilateral (Itália, Espanha e Portugal), “O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Jurisprudência Constitucional”, 2007, in www.tribunalconstitucional.pt, p. 2 –, «com o alcance que lhe é dado pela Constituição – de critério último de legitimidade do poder político estadual – o princípio da dignidade da pessoa humana acaba por ter um conteúdo de tal modo amplo (idêntico afinal de contas a um dos elementos constantes da tradição do Estado de direito) que não chega a ter densidade suficiente para ser fundamento direto de posições jurídicas subjetivas». Conclui-se aí: «O que nele se contém é por isso, e ao mesmo tempo, algo mais e algo menos do que um direito. Quando muito o princípio confere ao sistema constitucional de direitos fundamentais unidade e coerência de sentido, ajudando as tarefas práticas da sua interpretação e integração. O que se lhe não pode pedir é que ele seja tomado, em si mesmo, como fonte de um outro e autónomo direito (fundamental).» Esta perspetiva – como ali igualmente se expõe – reúne consenso doutrinário e tem recebido acolhimento reiterado na nossa jurisprudência constitucional desde os seus primórdios (vd. logo o Acórdão n.º 6/84), ainda que com alguns desvios, em todo o caso bem circunscritos.
Se o princípio da dignidade da pessoa humana não pode geralmente fundamentar direitos subjetivos de modo direto e autónomo, mais dificilmente ainda poderá fundamentar, desse modo direto e autónomo, restrições a esses mesmos direitos. O seu elevado grau de abstração prejudica a sua utilização tanto para um efeito como para o outro, mas a segunda apresenta-se ainda como uma utilização contra libertate, o que por si só suscita fundadas dúvidas teleológicas e axiológicas. Pode então dizer-se que a abstração do princípio da dignidade da pessoa humana o impede, em via de regra, de ser visto como fonte de prescrições precisas – de «soluções jurídicas concretas», nas palavras do Acórdão n.º 105/90 –, sejam elas favoráveis ou desfavoráveis de um prisma individual, mas especialmente as segundas. Decerto que a criminalização de uma conduta almeja ela própria a produzir efeitos benignos, mas a beneficiária destes efeitos, mesmo quando se trate da proteção de direitos e interesses de natureza eminentemente pessoal, é a comunidade como um todo. Não tem o princípio da dignidade da pessoa humana como desígnio fundamental, justamente, impedir a instrumentalização do indivíduo para a consecução de finalidades comunitárias, ainda que presumivelmente louváveis? (...)
Mesmo deixando de parte esse e outros relevantes problemas (por exemplo, de legalidade criminal) suscitados por uma criminalização autonomamente filiada num princípio tão abstrato como o da dignidade da pessoa humana – paradigmático, na verdade, da categoria dos “conceitos essencialmente contestados” –, e mantendo-nos antes num estrito horizonte de proporcionalidade, como poderá, pois, fazer-se decorrer diretamente de um tal princípio, que não de alguma sua concretização tangível, uma concreta e garantida restrição de direitos fundamentais? Como afirma Manuel da Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, p. 13, se «a dignidade humana é a verdadeira realidade numenal protegida pelo direito penal», ela é-o forçosamente «sob a forma e sub nomine dos bens jurídico-penais de índole pessoal», as únicas «mostrações ou cintilações fenomenológicas acessíveis à racionalidade jurídica». Sem a referência de um direito ou interesse específico, é a própria avaliação da proporcionalidade que fica inviabilizada, por nada haver num dos pratos da balança que seja minimamente mensurável.»
Se a tutela holística do ambiente consagrada no artigo 66.º da Constituição é inidónea a suportar o tipo legal de crime aqui em causa, e se menos ainda o princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1.º da Constituição poderia, por si só, proporcioná-lo, a associação daquela tutela a este princípio não pode produzir um resultado qualitativamente diferente.
15. À mesma linha fundamental das posições ponderadas nos pontos anteriores podem reconduzir-se posições de acordo com as quais os «sentimentos legítimos» dos seres humanos são penalmente tuteláveis, ideia que tem alguma ressonância, por exemplo, na doutrina espanhola (cf., em análise crítica, Susana Aires de Sousa, “Argos e o Direito Penal (uma leitura dos ‘crimes contra os animais de companhia’ à luz dos princípios da dignidade e da necessidade)”, Julgar n.º 32 (2017), p. 156. Em sistemas jurídicos onde a intervenção criminalizante do legislador ordinário não se encontra tão claramente subordinada à respetiva Constituição em termos idênticos aos que se verificam no nosso ordenamento jurídico – como é justamente o caso de Espanha (cf. João Narciso, op. cit.) –, tais posições poderão ter alguma viabilidade.
No nosso ordenamento jurídico, a única base possível seria novamente o princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1.º da Constituição, o que já ficou afastado. Não poderia constituir base para tais posições o direito ao desenvolvimento da personalidade consagrado no artigo 26.º, logo pela razão de que, nesse caso, só seria criminalizada a conduta de maus tratos a animais que fosse praticada em circunstâncias suscetíveis de ofenderem os sentimentos de outros seres humanos, o que não acontece com o artigo 387.º do Código Penal. Isso seria, de resto, incoerente com o próprio fundamento de tais posições, pois os sentimentos humanos de ofensa, indignação e perturbação perante atos de crueldade sobre animais, para serem “legítimos” e, desse passo, penalmente tuteláveis, sempre terão de trazer pressuposta a ideia de que os animais possuem um estatuto moral que é independente de circunstâncias como a de os atos terem sido praticados à vista de outras pessoas ou não (cf. Luís Greco, op. cit., p. 51).
Em qualquer caso, ainda que a nossa Constituição não impusesse tão poderosa inibição ao legislador ordinário como a que impõe no artigo 18.º, n.º 2, sempre essas posições mereceriam resistência, porque escancaram as portas do direito penal – que o princípio da proporcionalidade, consagrado naquele mesmo preceito, numa sua outra dimensão mais transversal à generalidade dos sistemas jurídicos, exige que seja de ultima ratio – ao moralismo. Ou seja, à transformação do direito penal num direito “simbólico”, que se traduz numa «edição descontrolada de leis penais (...) em resposta ao clamor público gerado por casos mediáticos», sem que, frequentemente, isso seja acompanho de quaisquer medidas destinadas a pôr cobro ao problema social de base (Teresa Quintela de Brito, “Os crimes de maus tratos...”, op. cit., p. 9). Isto quando a trajetória histórica do direito penal é a oposta: a de «banir do seu âmbito todas as excrescências moralistas», negando a punição das condutas que, «embora moralmente censuráveis, ou não põem em causa os restantes membros da comunidade, ou cuja punição acarretaria para esta maior prejuízo do que vantagem, ou encerram questões moralmente muito discutíveis e cuja valoração não é feita no mesmo sentido pela generalidade dos membros da comunidade» (Jorge de Figueiredo Dias, “Lei Criminal e Controlo da Criminalidade: O Processo Legal-Social de Criminalização e Descriminalização”, Revista da Ordem dos Advogados n.º 77 (1976), p. 78 s.).
Ao invés do que frequentemente acontece quando se discute criminalização e moralidade, na questão em análise nestes autos a discussão não gira propriamente em torno da problemática da punição de condutas “sem vítima”, mas antes reside, justamente, em determinar se os animais devem ser reconhecidos, para tais efeitos, como “vítimas”. Uma resposta afirmativa a esta questão não desfigura necessariamente a matriz não moralista do direito penal democrático, mas só pode ser dada através de um processo constituinte. Fundada num já constitucionalmente reconhecido estatuto moral dos animais, uma criminalização como a de ofensas aos sentimentos humanos causadas por maus tratos a animais seria de mais plausível legitimidade. Seria também desnecessária, porque esses atos já poderiam então ser criminalizados pela verdadeira e principal razão que teria determinado essa positivação: o respeito pelos animais enquanto tais.
16. Há uma outra posição que se funda na dignidade da pessoa humana, mas num sentido distinto e até algo oposto ao das posições analisadas nos dois pontos precedentes. Uma posição que passa por justificar os crimes contra os animais mediante uma equiparação destes aos seres humanos do ponto de vista da sua dignidade. É em torno desta questão fundamental, de saber até que ponto os animais devem ser reconhecidos como sujeitos dotados de uma dignidade de algum modo equiparável à dos seres humanos, que se trava o debate nuclear sobre o estatuto moral dos animais. É aí que se situam, para mencionar apenas algumas linhas de pensamento, a crítica ao especismo e a defesa de uma aplicação utilitarista do princípio da igual consideração de interesses a todos os animais sencientes, de Peter Singer, ou a perspetiva deontológica, de raiz kantiana, de Tom Regan; mas também posições de raiz contratualista, tendencialmente resistentes à atribuição de direitos aos animais. Linhas de pensamento explanadas e compendiadas em Pedro Galvão (org. e trad.), op. cit., p. 17 ss.; vd. também, em perspetiva jurídica, a detida recensão de Pedro Soares de Albergaria / Pedro Mendes Lima, op. cit., p. 136 ss.
Esse debate é, porém, uma e outra vez, estranho ao presente exercício de fiscalização da constitucionalidade, nos termos já indicados: esse é precisamente o debate exigido pelo processo constituinte ainda não realizado em Portugal. No único plano que aqui importa, o do confronto de normas de direito ordinário com o parâmetro dado pela Constituição, é clara a improcedência de uma posição daquela natureza. Em primeiro lugar, pelo incontornável elemento literal do 1.º artigo da Constituição, que consagra o princípio da dignidade da pessoa «humana». Em segundo lugar, pela história e a teleologia daquele princípio, nascido, com o sentido essencial com que ali foi consagrado, no pós-2.ª Guerra Mundial em reação às atrocidades cometidas contra seres humanos no período que o precedeu (cf. ibid., p. 140 s.). Em último lugar, pelas razões apontadas no ponto 14 para justificar por que não pode este princípio, mesmo quando mobilizado para uma proteção dos próprios seres humanos, constituir fundamento autónomo de normas incriminatórias. Se tais razões são já suficientemente cogentes no que respeita à dignidade de indivíduos humanos, que são os únicos diretamente contemplados por aquele princípio, por manifesta maioria de razão elas valerão para a ideia de estabelecer uma analogia entre os indivíduos humanos e os animais. Se o próprio conceito de dignidade da pessoa humana, pese embora a sua longa história, permanece extremamente difícil de definir, em virtude do elevadíssimo grau de abstração que o caracteriza, quando estendido aos animais tornar-se-ia verdadeiramente intangível e mais dificilmente ainda poderia, portanto, constituir fonte de soluções normativas concretas para tais efeitos. Em especial de normas de conduta sancionadas com privação de liberdade.
17. Das linhas de pensamento que procuram sustentar os crimes contra os animais em interesses titulados, não pelos animais, mas pelos próprios seres humanos, desponta uma outra de que se justifica também curar. Ao conceber-se a prática de atos de crueldade sobre animais como um possível sintoma da desumanidade do agente, abre-se uma fresta por onde pode irromper uma conceção que veja nesses atos, dirigidos a animais, um perigo abstrato de ofensa à vida ou à integridade de seres humanos. Se a criminologia aponta no sentido de a inclinação de indivíduos com determinados perfis psicológicos para a prática de condutas daquela natureza contra outros indivíduos começar, por vezes, a exprimir-se na prática de tais atos contra animais, é por demais evidente que o crime de maus tratos a animais aqui em análise, se entendido nesses termos, não resistiria ao menos exigente dos testes de constitucionalidade.
A criminalização de condutas através da técnica do perigo abstrato não é vedada pela Constituição, mas a sua admissibilidade depende de condições mais exigentes do que as condições equivalentes aplicáveis a normas incriminatórias que pressupõem a lesão do bem jurídico (cf. por exemplo os Acórdãos n.os 426/91, 246/96, 7/99 e 95/2001). Desde logo, a particulares exigências de tipicidade (i.e. de determinabilidade da conduta proibida): é crucial que o bem jurídico tutelado possa ser claramente identificado – o que, manifestamente, não aqui é o caso – e que a conduta típica seja descrita de modo especialmente preciso (cf. v.g. os Acórdãos n.os 20/91 e 426/91). Estarão ainda sujeitas a exigências que, por definição, não encontram paralelo naquelas outras espécies de normas incriminatórias, como, para o que aqui mais importa, a de que exista um nexo causal de perigosidade entre a conduta que é proibida e a lesão do bem jurídico que sustenta a proibição (cf. v.g. o Acórdão n.º 134/2020). A existência de um nexo de mera associação entre a conduta e a lesão (i.e. a tendencial correspondência entre esta e aquela), ainda que estatisticamente significativo, não constitui alicerce empírico suficiente para justificar uma sanção como a privação da liberdade. O tipo legal conformar-se-ia com a eventualidade de abranger condutas inócuas e emergiria, assim, como pura ferramenta de ordenação social. No caso em apreço, nem sequer um nexo de mera associação surge como minimamente plausível.
Incidentalmente – e mesmo que não existisse o verificado desfasamento entre a proteção holística do ambiente e o caráter necessariamente individualista da proteção dos animais (cf. supra, o ponto 12) –, essas mesmas considerações sempre obrigariam a recusar também uma leitura nos termos da qual se visse nos atos de maltratar ou matar animais um perigo abstrato para o ambiente. Neste caso, é igualmente evidente que não existe qualquer nexo de associação entre a conduta e a lesão. Maltratar um animal, por hediondo que seja, não coloca em perigo o ecossistema.
18. A abordagem sistemática adotada pelo legislador apresenta uma ambiguidade que é simultaneamente causa e efeito de vários dos problemas que aqui foram analisados. O legislador enquadrou estes crimes num Título do Código Penal que designou, não por referência a um bem jurídico, mas ao objeto (ou, admita-se para este efeito, ao sujeito passivo) das condutas proibidas, e que não se desdobra em nenhum Capítulo que ajudasse a apontar para o bem jurídico que visou tutelar. Não enquadrou estes crimes no seu Título I, relativo aos crimes contra as pessoas (o que concorre no sentido de afastar várias das posições acima referidas), nem no seu Título IV, relativo aos crimes contra a vida em sociedade (o que concorre para afastar várias outras). Criou um autónomo Título VI que aponta para uma tutela dos animais enquanto indivíduos, mas que encerra na sua própria designação («crimes contra animais de companhia») o paradoxo de cingir essa tutela a alguns animais, em função da sua relação com os seres humanos.
Por fim, note-se que o próprio Ministério Público, aqui recorrido, nas contra-alegações apresentadas (supra, ponto 4) reconhece, depois da detida análise realizada, que não existe «expresso fundamento constitucional», seja um direito fundamental seja uma incumbência do Estado, capaz de se oferecer como «impulso» para a norma incriminatória prevista no artigo 387.º do Código Penal. Apenas – defende o Ministério Público, com fundamento na construção de Roxin – um «valor» de «solidariedade» que poderia, «eventualmente», fazer recair sobre o Estado certos «deveres objetivos» tendo como beneficiários os animais. No entanto, a posição de Roxin afigura-se incindível da realidade constitucional alemã, por referência à qual foi desenvolvida (cf. Susana Aires de Sousa, op. cit., p. 157, em análise a um texto posterior do mesmo autor) – realidade constitucional essa que as palavras «und die Tiere» vieram transformar e separar de outras realidades constitucionais.
19. Tudo considerado, mostra-se inevitável concluir pela inexistência de fundamento constitucional para a criminalização dos maus tratos a animais de companhia, previstos e punidos no artigo 387.º do Código Penal. Não exprime este juízo de inconstitucionalidade uma visão segundo a qual a Constituição da República Portuguesa sempre se oporá, por incontornáveis razões estruturais, à criminalização de uma conduta como essa. Exprime simplesmente uma visão segundo a qual essa criminalização não encontra suporte bastante na vigente redação da Constituição da República Portuguesa, que é aquela que se impõe ao Tribunal Constitucional como parâmetro de avaliação das normas aprovadas pelo legislador. Juízo diverso implicaria que este Tribunal se substituísse ao poder constituinte, exorbitando da esfera de competências que por esse mesmo poder lhe foram outorgadas.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma incriminatória contida no artigo 387.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação, conjugadamente, dos artigos 27.º e 18.º, n.º 2, da Constituição; e, em consequência,
b) Conceder provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 10 de novembro de 2021 – Lino Rodrigues Ribeiro
Atesto o voto em conformidade do Senhor Conselheiro Presidente João Caupers, do Senhor Conselheiro Afonso Patrão, com votos de vencido quanto à fundamentação, da Senhora Conselheira Joana Fernandes Costa e do Senhor Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro.
Lino Rodrigues Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencida.
1. Tal como a construção sufragada no Acórdão, a premissa de que parto é também a de que o legislador, apesar de dispor de uma considerável margem de conformação na definição do universo das ações e omissões criminalmente relevantes - é ao legislador parlamentar que a Constituição confia a «definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos» (artigo 165.º, n.º 1, alínea c)) -, se encontra nessa tarefa limitado, desde logo por força do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, pelo princípio do direito penal do bem jurídico, que fixa o primeiro dos critérios legitimadores da decisão político-criminal de submeter determinado comportamento à aplicação de sanções penais.
Uma vez mais com a maioria, também não tenho dúvidas sobre o alcance de tal princípio: dele resulta que, num Estado de direito democrático, os bens jurídicos elegíveis pelo legislador penal não podem ser criados por ele; na medida em que constituem um prius e não um posterius da política criminal, tais bens hão de encontrar-se refletidos num «valor jurídico-constitucionalmente reconhecido» (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte geral, Tomo I, Coimbra, Gestlegal, , 2019 p.136) ou, como se afirma do Acórdão, possuir «dignidade constitucional».
O que entendo - e talvez se inicie aqui o meu afastamento da maioria - é que a afirmação da dignidade constitucional dos bens jurídico-penais não se encontra fatalmente confinada àqueles que, à semelhança do que ocorre com a vida, a integridade física e a propriedade (artigos 24.º, 25.º e 62.º, respetivamente), ou com o ambiente e a qualidade de vida (artigo 66.º), são diretamente dedutíveis do texto da Constituição, através dos preceitos que integram o catálogo dos direitos e deveres fundamentais dos cidadãos. Bens jurídicos merecedores de tutela penal são ainda aqueles que, apesar de não se encontrarem positivados na Constituição, são, ainda assim, hermenêuticamente discerníveis e isoláveis a partir das suas normas (v., a este propósito, Augusto Silva Dias, «Delicta in Se» e «Delicta Mere Prohibita», Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 650 e ss.), encaradas estas como partes do todo em que se exprime a ordenação unitária da vida política e social de uma determinada comunidade estadual. O que se exige - e se exige absolutamente - é que nessa tarefa interpretativa se não obscureça, mas antes se evidencie - e se evidencie com total rigor e clareza -, a indispensável relação de congruência entre o bem jurídico selecionado pelo legislador penal e a ordem axiológica jurídico-constitucional.
Esta exigência carece, no entanto, de dois esclarecimentos adicionais: em primeiro lugar, a relação de congruência entre as duas ordens jurídicas não é uma relação «identidade», nem mesmo de «recíproca cobertura», mas antes de «analogia material», fundada numa correspondência de sentido e de fins, de um modo tal que possa afirmar-se que os bens jurídicos protegidos em cada momento pelo direito penal constituem concretizações de um «valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total» (Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 136); em segundo lugar, a ordem axiológica jurídico-constitucional, se não é uma ordem normativa totalmente aberta à experiência comunitária de valores - o que a converteria em instrumento legitimador de incriminações baseadas em meras proposições maioritárias -, também não é uma ordem normativa fixista, totalmente fechada à ressonância, nas múltiplas dimensões em que se verifica, da evolução da própria comunidade - o que postularia a exigência de revisões constitucionais sucessivas em ordem a preservar a «relação de (quase) concomitância ou co-existência indivisa» que o direito penal mantém com a «realidade social» (v. Susana Aires de Sousa, “Argos e o Direito Penal (uma leitura “dos crimes contra animais de companhia” à luz dos princípios da dignidade e da necessidade)”, Julgar, n.º 32, 2017, p. 153).
Partindo destas premissas, o meu afastamento da maioria torna-se neste momento mais fácil de explicar: alinhando com aqueles que defendem que a incriminação dos maus tratos a animais de companhia tem em vista a tutela direta destes, individual ou singularmente considerados - é o caso, entre outros, de Claus Roxin, para quem «[t]odas as regulamentações jurídicas sobre a proteção de animais têm em vista a tutela dos animais e não uma finalidade de preservar a inquietação humana» (“O conceito de bem jurídico como padrão crítico da norma penal posto à prova”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2013, Ano 23, n.º 1, p. 31 e ss.) -, tendo a considerar que a circunstância dessa incriminação não ser recondutível, como bem esclarece o Acórdão, ao âmbito de incidência do direito fundamental ao ambiente (artigo 66.º), nem poder legitimar-se, como ali também se explica, a partir do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º) e/ou de qualquer direito não escrito identificável a partir dele, não conduz, de forma necessária e automática, à conclusão de que a decisão político-criminal subjacente à introdução no Código Penal no seu atual Título VI não encontra na Constituição a base legitimadora necessária a poder ter-se por observado o princípio do direito penal do bem jurídico.
Tentarei explicar porquê nas próximas linhas.
2. A discussão em torno das reais possibilidades de preservação do princípio penal do bem jurídico perante as novas inquietações que caracterizam as sociedades contemporâneas não é nova, como se sabe. Na doutrina penal, ela vem sendo sobretudo travada a propósito do papel do direito penal na proteção das gerações futuras, domínio em que o discurso legitimador do processo de criminalização das ações e omissões que atentam contra a sobrevivência do planeta vem abrindo caminho à defesa do deflacionamento da categoria do bem jurídico em benefício da tutela das «relações da vida como tais» ou, na medida em que daquela se não prescinda, ao menos ao reconhecimento de que, ao lado dos bens jurídicos individuais ou dotados de referente individual, existem «autênticos bens jurídicos sociais, comunitários, universais [ou] coletivos», menos dependentes do axioma onto-antropocêntrico característico do direito penal liberal, mas dotados do «mesmo nível de exigência tutelar autónoma» (Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 170 e ss.). A conexão de uns e de outros com a ordem axiológica jurídico-constitucional vem sendo estabelecida por diferentes vias: enquanto os primeiros veem assegurada a sua dignidade jurídico-penal através do catálogo dos direitos, liberdades e garantias, os segundos encontrarão refração legitimadora na ordem relativa aos direitos sociais, económicos, culturais e ecológicos.
Assumindo, como fizemos, que a criminalização dos maus-tratos a animais de companhia tem em vista a proteção direta desta categoria de animais, a abertura do direito penal à tutela de bens jurídicos coletivos não fornece um referencial legitimador suficiente. Ao contrário destes, que se caracterizam pela possibilidade de serem «gozados por todos e por cada um» e, através dessa recondução aos «interesses legítimos da pessoa» (idem), veem assegurada a sua elegibilidade pelo direito penal, o bem-estar dos animais de companhia, enquanto objeto de tutela direta, não constitui, como é bom de ver, um bem jurídico fruível pela pessoa, individual ou coletivamente. À face do princípio do direito penal do bem jurídico, a legitimidade da sua integração na ordem jurídico-penal pressupõe, pois, que se vá mais além; isto é, pressupõe a aceitação de que, ao permitir que a lei restrinja direitos, liberdades e garantias de natureza constitucional com vista à salvaguarda, não apenas de outros direitos dessa natureza, mas também de «interesses constitucionalmente protegidos» (artigo 18.º, n.º 2), a Constituição abre a porta a uma compreensão do princípio do direito penal do bem jurídico numa base não exclusivamente antropocêntrica, autorizando a atribuição de relevância penal a bens jurídicos que, apesar de não gravitarem em torno das dimensões existenciais individuais e coletivas da pessoa, integram ainda assim, expressa ou implicitamente, a ordem axiológica jurídico-constitucional.
3. Se o bem-estar dos animais de companhia é encarado pelo direito penal, não enquanto expressão de um interesse intersubjetivo, mas como um valor a se, a sua conexão com a ordem axiológica jurídico-constitucional, a existir, há de procurar-se, não no catálogo dos direitos fundamentais dos cidadãos, mas antes no conjunto das tarefas fundamentais do Estado e, em particular, nos compromissos a que o vincula a Constituição. Não será, aliás, por acaso que, na sequência do processo constituinte empreendido na Alemanha, a que o Acórdão se refere no ponto 13., a Lei Fundamental de Bona optou por resolver o problema da proteção constitucional dos animais através da atribuição ao Estado, «tendo em conta também a sua responsabilidade frente às gerações futuras», do dever de «proteger os recursos naturais vitais e os animais» (artigo 20a).
De acordo com a posição que fez vencimento, a inclusão destas «três decisivas palavras» finais no texto do artigo 20a da Lei Fundamental de Bona - sem qualquer correspondência ou paralelo na Constituição da República Portuguesa - «oferece[u] tutela penal, no plano do direito ordinário, à generalidade dos animais vertebrados, no § 17 da Tierschutzgesetz, a Lei de Proteção dos Animais», atribuindo ao legislador ordinário o título necessário à criminalização dos comportamentos maltratantes empreendidos pelo homem. Não há qualquer razão para divergir desta afirmação: se em vista se tinha a incriminação de condutas que, sem motivo razoável, causam a morte ou infligem dor e sofrimento consideráveis a todo e qualquer animal, desde que vertebrado, independentemente da relação em que o mesmo se encontre com o homem, só um processo de revisão constitucional que viesse a culminar, como efetivamente sucedeu, na atribuição ao Estado do dever de proteger «os animais» poderia legitimar o processo de criminalização expresso no § 17 da Tierschutzgesetz, tendo em conta a coesão que carece de verificar-se entre as duas ordens normativas.
Assim não sucede, contudo, se, como ocorre na ordem jurídica portuguesa, em causa (apenas) estiver a proteção penal do bem-estar dos animais de companhia.
4. Abstraindo, por ora, do nível de (in)determinação evidenciado pelo tipo legal constante do n.º 1 do artigo 387.º do Código Penal, na versão decorrente da Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto - a única em causa nos presentes autos -, pode afirmar-se com relativa segurança que, do ponto de vista político-criminal, a opção pela incriminação dos maus tratos a animais de companhia releva sobretudo do propósito de limitar o âmbito dos poderes de disposição do respetivo proprietário, possuidor ou detentor, desse âmbito excluindo a faculdade de inflição a animal de companhia próprio, possuído ou detido de dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos, sem motivo legítimo. É por isso que, apesar de não se tratar verdadeiramente aqui de um crime específico - isto é, um crime cuja comissão se encontre reservada a uma certa categoria de agentes, em função da sua posição ou estatuto -, a doutrina não deixe ainda assim de o associar ao interesse na preservação da integridade física, da saúde e da vida dos animais «em função de uma certa relação atual ou potencial com o agente do crime» (cf., ainda que subscrevendo a tese da tutela indireta, Teresa Quintela de Brito, “Os crimes de maus tratos e abandono de animais de companhia: direito penal simbólico?”, Revista CEDOUA, n.º 2, p. 17).
Deste ponto de vista, que tenho por correto, a proteção penal do bem-estar dos animais companhia encontrará a sua justificação, não tanto (ou não apenas) na circunstância de estes pertencerem, em regra, à categoria dos animais sencientes - isto é, animais com «capacidade de sentir, perceber ou de ter consciência, ou de experimentar a subjetividade» (Alexandra Reis Moreira, “Perspetivas quanto à aplicação da nova legislação”, Animais: deveres e direitos, p. 154, nota 1, disponível em https://www.icjp.pt/sites/default/files/publicacoes/files/ebook_animais_deveres_direitos_2015.pdf), como são todos os mamíferos, as aves e os polvos cefalópodes (Declaração de Cambridge sobre a Consciência, de 7 de julho de 2012) -, mas sim, e decisivamente, no tipo de relação que com eles estabeleceu o homem: ao retirá-los do seu circuito natural de vida, «trazendo-os ao convívio da sociedade [e] tornando-os dela dependentes» (Natália de Campos Grey, 2010, Dever fundamental de proteção aos animais, disponível em http://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/4106/1/425135.pdf), o homem sujeitou os animais em que procurou companhia (e com os quais estabeleceu uma interação tendencialmente recíproca) a um processo de contínua vulnerabilização, diminuindo radicalmente a possibilidade de os mesmos proverem ao respetivo bem-estar com independência e autonomia.
É justamente nesta relação de dependência existencial, caracterizada por uma espécie de posição de garante perante o bem-estar dos animais que o homem converteu em sua companhia, que há de revelar-se a conexão do crime tipificado no n.º 1 do artigo 387.º do Código Penal, na versão ora considerada, com a ordem axiológica jurídico-constitucional.
5. No segmento final do seu artigo 1.º - sem correspondência, aliás, na Lei Fundamental de Bona -, a Constituição vincula a República - e, consequentemente, o próprio Estado - a empenhar-se na «construção de uma sociedade [...] solidária». Isto é, na edificação de «uma ordem referenciada através de momentos de solidariedade e de co-responsabilidade de todos os membros da comunidade uns com os outros» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra, 2007, p. 200-201), mas também - não há hoje razões para o não afirmar - dos membros da comunidade para com aqueles animais que aqueles colocaram na sua direta dependência, para «seu entretenimento e companhia» (artigo 389.º, n.º 1, do Código Penal). É por isso que a «relação de cuidado-de-perigo» em que se funda a ordem penal, apesar de continuar a ser fundamentalmente uma relação «entre homens e mulheres em comunidade», há de poder compreender também a especial forma de relatio que o homem estabeleceu com aquela categoria de animais (no sentido oposto, cf. José de Faria Costa, “Sobre o objeto da proteção do direito penal: o lugar do bem jurídico na doutrina de um direito penal não iliberal”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 142.º, janeiro-fevereiro de 2013, p. 171), sem com isso incorrer - e é o que aqui importa - no risco de se desvincular da ordem axiológica subjacente à ordenação unitária da vida política e social expressa na Constituição.
Perante o princípio do direito penal do bem jurídico, a legitimidade da criminalização dos maus tratos a animais de companhia reside precisamente aqui. Na circunstância de os momentos de solidariedade pressupostos pelo tipo de sociedade que a Constituição encarrega o Estado de promover não excluírem, antes acomodarem, a valorização pela ordem jurídico-penal da relação de cuidado-de-perigo em que o homem ficou investido perante os animais que colocou na sua dependência, legitimando assim a limitação por via penal do chamado «anything goes» - expressão usada por R. G. Frey para designar a posição que defende a possibilidade de “fazermos o que quisermos” com os animais (“Animals”, The Oxford Handbook of Practical Ethics, ed. Hugh LaFollette, 2003, reedição de 2009, p. 167 e ss.); ou, numa formulação mais próxima, a limitação dos poderes absolutos de disposição sobre animais de companhia, por via da imposição a quem com eles interage de um dever de abstenção da prática de atos causadores de dor ou sofrimento graves e desnecessários e/ou de forma impiedosa ou cruel.
Se assim for, o processo de criminalização dos maus tratos a animais de companhia não apenas se achará positivamente legitimado à face do princípio do direito penal do bem jurídico - na medida em que tutela penal terá por objeto um bem jurídico dedutível (e dedutível com suficiente tangibilidade), do dever (pré-existente) do Estado promover a construção de uma sociedade solidária -, como não enfrentará o risco de se debater, nem com os limites traçados pela função negativa que aquele princípio igualmente desempenha - ao proscrever a incriminação de puras violações morais, proposições meramente ideológicas e/ou valores de mera ordenação (v. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 141 e ss.) -, nem com os limites que decorrem da natureza fragmentária e subsidiária que a Constituição, ainda por força do n.º 2 do seu artigo 18.º, fixa ao direito penal.
Resta apenas verificar se o nível de determinação evidenciado pelo tipo legal que resulta da conjugação dos artigos 387.º, n.º 1, e 389.º, n.º 1, do Código Penal, na versão ora considerada, permite que se alcance uma conclusão segura a este respeito.
6. No seu artigo 29.º, a Constituição acolhe expressamente o princípio da legalidade penal, enquanto garantia pessoal de não punição fora do âmbito de uma lei escrita, prévia, certa e estrita. Com a exigência de lei certa - aquela que agora releva - quer-se significar que a lei que cria ou agrava responsabilidade criminal deve especificar suficientemente os factos que integram o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos da aplicação de uma pena ou medida de segurança). Nesta aceção, o princípio da legalidade penal tem como corolário o princípio da tipicidade, vinculando o legislador a levar a caracterização do ilícito típico a um ponto tal que torne possível aos destinatários da norma incriminadora conhecer os elementos, objetivos e subjetivos, que integram da infração, e, através da apreensão por essa forma tanto do valor protegido como do comportamento proibido, exercerem, de forma consciente e esclarecida, a respetiva liberdade de autodeterminação (cf. Acórdão n.º 606/2018).
Tendo em conta o acentuado nível de indeterminação dos conceitos utilizados na descrição quer do objeto da conduta incriminada - «qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos […], para seu entretenimento e companhia» (artigo 389.º, n.º 1) -, quer do conteúdo da ação proibida - «infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos» a animal que se encontre naquelas condições, «sem motivo legítimo» (artigo 387.º, n.º 1) -, o tipo legal em que se concretizou o processo de criminalização dos maus tratos a animal de companhia não dispõe de precisão e densidade suficientes para permitir ao conjunto, mais ou menos vasto, dos potenciais autores do ilícito-típico a antecipação do comportamento vedado (sobre os vários problemas hermenêuticos suscitados pelo tipo, v. Pedro Mendes Lima e Pedro Soares de Albergaria, “Sete vidas: a difícil determinação do bem jurídico protegido nos crimes de maus‑tratos e abandono de animais”, Julgar, n.º 28, p. 156 e ss.), tornando-se por isso incompatível com a exigência de lei certa, decorrente do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição. Incompatibilidade tanto mais severa quanto certo é que, justamente por se tratar da proteção de um bem jurídico não recondutível às dimensões existenciais individuais e coletivas da pessoa, a observância dos parâmetros de determinabilidade do tipo assume um papel decisivo tanto na referência da conduta proibida ao bem jurídico com assento constitucional, como no acatamento da contenção postulada pela natureza subsidiária e pelo carácter fragmentário de toda a lei penal.
É aqui, e não na violação dos artigos 27.º e 18.º, n.º 2, da Constituição, que reside, a meu ver, a razão que torna materialmente inconstitucional a norma que integra o objeto do presente recurso.
Joana Fernandes Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido quanto ao fundamento da decisão.
1. A posição que fez vencimento, de que a incriminação dos maus tratos a animais de companhia constante do n.º 1 do artigo 387.º do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, é inconstitucional por violação do direito à liberdade consagrado no n.º 1 do artigo 27.º da Constituição, repousa em algumas premissas de ordem geral que merecem o meu assentimento. Tem interesse enunciá-las de forma clara e sintética.
A primeira premissa é a de que toda a incriminação de um comportamento constitui uma restrição de direitos fundamentais, que em rigor abrange não apenas a privação da liberdade ambulatória que pode resultar da aplicação de uma pena (n.º 2 do artigo 27.º), como ainda o condicionamento da liberdade geral de ação compreendida no direito ao livre desenvolvimento da personalidade (n.º 1 do artigo 26.º) que decorre da proibição e da sanção de certo tipo de conduta. A segunda premissa é a de que toda a restrição de direitos fundamentais carece de um fundamento constitucional, nos termos do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, consubstanciado num dever estatal que pode ser correlativo de outro direito fundamental ou fundar-se num interesse constitucionalmente protegido. A terceira premissa é a de que, tratando-se de lei penal, com o seu efeito singular e gravoso de potencial privação da liberdade, o fundamento constitucional deve ser particularmente preciso e valioso, o que se traduz geralmente nas noções de carência e necessidade da pena para salvaguarda de um bem jurídico determinado. A quarta premissa é a de que, numa ordem constitucional amiga da liberdade individual, o mero sentimento punitivo de uma parte mais ou menos alargada da comunidade ou o bem físico, emocional ou moral do agente, segundo o juízo das autoridades públicas, não constitui em si mesmo um bem jurídico, ou seja, um valor constitucional carente de tutela penal.
Assentes estas premissas, a decisão demonstra, em termos que considero plenamente satisfatórios, que o crime de maus tratos a animais de companhia não pode fundar-se no dever de tutela de dois bens jurídicos cuja ressonância constitucional é isenta de dúvida – a propriedade e o ambiente. Não pode fundar-se na propriedade porque a recente categoria dos «crimes contra animais de companhia», que compreende os crimes de maus tratos e de abandono, não respeita manifestamente ao direito de propriedade do dono de um animal, quer seja porque os maus tratos têm relevância criminal ainda que o animal não tenha dono, quer seja porque estes e o abandono constituem crime mesmo quando − e porventura o mais das vezes – sejam praticados pelo próprio dono do animal. E não pode fundar-se no ambiente porque, como bem se explica na fundamentação, se é certo que «a defesa e a conservação da natureza e do ambiente, a preservação dos recursos naturais e a salvaguarda da estabilidade ecológica (…) de algum modo contemplam a proteção dos animais», estes relevam nesse contexto unicamente por «serem parte integrante da realidade que se visa proteger», de modo que «a proteção do ambiente, enquanto conjunto de elementos naturais em equilíbrio, não só não visa a proteção dos animais enquanto indivíduos nem das relações estabelecidas entre eles e os seres humanos como pode até ser invocada para justificar o sacrifício de animais quando isso se revele necessário àquele equilíbrio.» De resto, a tutela penal dos animais como objeto do direito de propriedade ou parte integrante do ambiente é já assegurada pelos tipos incriminadores que constam – respetivamente − dos artigos 212.º (dano) e 278.º (danos contra a natureza) do Código Penal.
Chegados a este ponto, a questão que se coloca é a de saber se existe fundamento para a tutela penal direta e individual que a norma sindicada dispensa aos animais de companhia. A maioria concluiu que não, baseando-se o seu juízo – se bem vejo as coisas − em dois argumentos alternativos. Em primeiro lugar – entendeu-se −, o bem-estar dos animais é um interesse destituído de fundamento constitucional, uma vez que a nossa Constituição, ao contrário da Lei Fundamental de Bona, em cujo artigo 20.º foram introduzidas o que se diz serem «três decisivas palavras» − «und die Tiere» −, não contém nenhuma referência ao estatuto moral dos animais ou aos interesses destes individualmente considerados. Na verdade, considera-se que a omissão de tal referência deve ser tomada como uma decisão constituinte, «com a sua capacidade fundante somente explicável pela singular legitimidade democrática de que se reveste, que garante a todos os cidadãos que os seus direitos, liberdades e garantias não possam ser restringidos senão em nome de um direito ou interesse a que aquela dignidade tenha, ainda que só implicitamente, sido concedida ou outorgada através de um processo idêntico».
Em segundo lugar – acrescenta-se −, ainda que se pudesse encontrar apoio no texto constitucional para a proteção e promoção do bem-estar dos animais, o tipo incriminador aqui em causa não estaria de acordo com tal fundamento, uma vez que a categoria dos «animais de companhia» é arbitrária do ponto de vista do bem-estar dos próprios animais, nomeadamente o interesse destes em evitar ou sentir certo tipo de sensações ou participar de outros bens conforme o grau de complexidade do seu organismo. Com efeito, ao passo que na Alemanha o § 17 da Lei de Proteção dos Animais (Tierschutzgesetz) pune os maus tratos a quaisquer animais vertebrados (Wirbeltier), o n.º 1 do artigo 387.º do Código Penal incrimina unicamente os maus tratos a animais de companhia, o que se entende ser «paradoxal em relação a algumas das mais sólidas razões suscetíveis de justificar a proteção jurídica dos animais enquanto indivíduos», uma vez que os define «por referência aos seres humanos», excluindo «animais dotados de características que os deixariam pelo menos tão bem colocados como os tradicionais animais de companhia para o recebimento da tutela enquanto indivíduos.»
- Nenhum destes argumentos se me afigura persuasivo.
Há que começar por dizer, a respeito do primeiro, que pressupõe uma teoria constitucional que creio dever ser repudiada. A ideia segundo a qual a superioridade normativa da Constituição, enunciada de forma lapidar no n.º 3 do artigo 3.º, se reconduz a uma putativa superioridade democrática do processo constituinte em relação aos processos legislativos constituídos é inconciliável, quer com o carácter muitas vezes atribulado dos momentos constituintes originários, de que o caso português é exemplo eloquente, quer com os factos singelos de algumas constituições democráticas não serem geradas democraticamente – como é, em larga medida, o caso das constituições norte-americana e alemã – e de mesmo as que o são terem sido tipicamente aprovadas em conformidade com uma regra de maioria absoluta numa assembleia constituinte eleita por sufrágio universal e livre, uma exigência procedimental por norma menor do que a necessária para a revisão constitucional e equiparável a vários tipos de decisão legislativa ordinária. Na verdade, quem procurar em razões de ordem procedimental, quer se trate das condições epistémicas da deliberação no momento constituinte, quer se trate das grandezas aritméticas exigidas para a aprovação de leis constitucionais, os fundamentos do princípio da constitucionalidade, está condenado a ter de se avir com os paradoxos vários, como o intergeracional e o contramaioritário, que há muito atormentam tal conceção da democracia constitucional.
A alternativa a uma conceção procedimental da força normativa da Constituição é uma conceção material, em que a legitimidade das normas constitucionais se reconduz a uma certa ideia sobre o seu conteúdo e função, ideia essa que constitui a condição transcendental do princípio da constitucionalidade e que se reflete necessariamente num método próprio de interpretação constitucional. Como se lê na declaração de voto que subscrevi no Acórdão n.º 464/2019:
«A lei democrática exprime a vontade da maioria conjuntural legitimada nas urnas. Os atos legislativos não traduzem a unidade política dos cidadãos; ao invés, refletem o pluralismo das suas conceções sobre a sociedade justa e o bem comum, e o imperativo de que a controvérsia política que daí resulta seja arbitrada periodicamente através dos processos eleitorais da democracia representativa. A Constituição, pelo contrário, consubstancia um pacto de vida comum entre cidadãos divididos por compromissos mundividenciais concorrentes, a forma através da qual a pluralidade irredutível que é a matéria da comunidade política se estrutura numa unidade estável.
Assim, pode dizer-se que, ao passo que a lei democrática é na sua essência formal, no sentido de que o seu conteúdo varia de acordo com o juízo político que através dela se procura em cada momento expressar, a ordem constitucional é fundamentalmente material, porque radicada nas normas constitutivas de uma comunidade política de pessoas livres e iguais. Não admira, por isso mesmo, que o artigo 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, porventura o mais emblemático dos documentos do constitucionalismo, tenha dado do conceito de constituição uma definição material: “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem constituição.”
Se é assim, se a vontade constituinte não é uma vontade arbitrária, mas vinculada pela sua natureza de vontade de constituir uma unidade política entre iguais, a compreensão do texto constitucional pressupõe o conceito material de constituição do Estado de direito democrático e os princípios de interpretação por ele postulados. Por outras palavras, aquele conceito e estes princípios são condição da possibilidade de compreender o texto constitucional, não como uma lei de valor mais ou menos reforçado, mas como fundamento da ordem jurídica da comunidade – o mesmo é dizer, como verdadeira e própria constituição.»
De acordo com esta conceção, é um equívoco reduzir os «direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» aos enunciados no texto constitucional, como se os valores constitucionais exprimissem um catálogo fechado de decisões provindas de uma autoridade suprema num estado de hibernação política de que acorda esporadicamente, em vez de se tomarem os casos de consagração expressa de direitos ou interesses como manifestações, concretizações ou refrações da dignidade da pessoa humana em que radica a legitimidade de toda a ordem constitucional e que outorga natureza propriamente fundamental a determinados direitos e interesses. O próprio texto constitucional indica claramente que o catálogo de direitos constitui um sistema com respiração axiológica e aberto ao devir histórico, quer através do disposto no n.º 1 do artigo 16.º («os direitos consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de Direito Internacional»), quer em virtude da aplicação do regime dos direitos, liberdades e garantias, imposta pelo artigo 17.º, aos direitos fundamentais de «natureza análoga».
Se isto vale para os direitos fundamentais, não há razão alguma para que não valha igualmente para os «interesses constitucionalmente protegidos», nomeadamente o bem-estar dos animais individualmente considerados, animais esses que, segundo a elegante definição hoje consagrada no artigo 201.º-B do Código Civil, são «seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza». Não se trata aqui de nenhuma inversão da relação de prioridade entre normas constitucionais e legais, mas de explorar plenamente a abertura do sistema de direitos fundamentais e as virtualidades heurísticas da evolução da ordem jurídica, assim como de interpretar o texto constitucional de acordo os princípios próprios dessa forma de interpretação.
Daí que se possa dizer, sem reservas de maior, que os direitos e interesses constitucionalmente protegidos não se resumem àqueles que sejam objeto de referência num preceito constitucional, antes incluindo também aqueloutros que, recolhidos nas demais fontes jurídicas ou deduzidos de princípios fundamentais, se reconduzem ao radical axiológico da dignidade da pessoa humana que o artigo 1.º da Constituição proclama solenemente como base da República Portuguesa. É esse o sentido da seguinte passagem do Acórdão n.º 101/2009: «o princípio da dignidade da pessoa humana surge, não como um específico direito fundamental que poderia servir de base à invocação de posições jurídicas subjetivas, mas antes como um princípio jurídico que poderá ser utilizado na concretização e na delimitação do conteúdo de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados ou na revelação de direitos fundamentais não escritos».
Trata-se, pois, de saber se é possível retirar da dignidade da pessoa humana, como princípio jurisgenético, o reconhecimento do estatuto dos animais enquanto «seres vivos dotados de sensibilidade» e a consequente relevância constitucional dos interesses que estes tenham «em virtude da sua natureza».
3. Neste aresto rejeitam-se – e bem – duas vias simples de recondução do bem-estar dos animais ao valor da dignidade da pessoa humana.
A primeira consiste na ideia de que a preocupação do legislador com o bem-estar dos animais, nomeadamente a tutela penal contra os maus tratos de que possam ser vítimas, constitui uma forma indireta de salvaguardar a dignidade dos próprios agentes. Esta via deve ser rejeitada, desde logo, porque é incompatível com a quarta premissa de ordem geral que eu partilho com a maioria, a de que o bem físico, emocional ou moral do agente, segundo o juízo das autoridades públicas, não constitui em si mesmo um bem jurídico, ou seja, um valor constitucional carente de tutela penal.
A segunda via que deve ser rejeitada é a de estender aos animais a dignidade que o artigo 1.º da Constituição reconhece aos seres humanos, o mesmo é dizer, de partir de uma putativa igualdade moral entre pessoas e animais para atualizar o sentido daquela expressão constitucional. Esta via deve ser rejeitada porque, ao trivializar o termo «dignidade», tornando-o sinónimo de mera relevância moral, adultera o seu lastro histórico e vocação axiológica como expressão da especificidade das pessoas − daqueles entes que têm, em condições normais, a capacidade de predicarem valores, se orientarem por valores e responderem pela ofensa a valores.
Ora, é precisamente em virtude da sua singular capacidade de habitarem um universo de valores, de participarem de uma ordem em que, ao contrário do mundo natural, as coisas podem ser, inter alia, úteis ou inúteis, boas ou más, que as pessoas têm a possibilidade de reconhecer a sensibilidade e vulnerabilidade dos animais e predicar-lhes funções e interesses. A dignidade da pessoa humana opera, pois, não apenas como um princípio de ordem na relação do indivíduo com as outras pessoas – do respeito que os indivíduos se devem mutuamente como entes livres, iguais e infungíveis −, mas também como um princípio de ordem na relação da pessoa humana com os demais seres sencientes – uma assunção da responsabilidade do ser humano pelos animais cujos interesses só ele tem a capacidade de reconhecer e por atenção aos quais tem a possibilidade de se orientar.
Por isso, uma república baseada na dignidade da pessoa humana − no estatuto superior desta como criatura de valores − não pode deixar de se preocupar com o bem-estar dos animais e de outorgar a estes a proteção jurídica correspondente. Se o legislador de revisão constitucional, emulando o homólogo germânico, viesse um dia a introduzir a expressão «e os animais» algures no artigo 9.º da Constituição – que enuncia as tarefas fundamentais do Estado –, não estaria de modo algum a consagrar «três decisivas palavras» para a interpretação constitucional, mas a exprimir algo que esta, ainda que com as dificuldades acrescidas inerentes ao ónus de argumentação a partir de primeiros princípios, tinha já todas as possibilidades de alcançar. Em suma, não se trataria de nenhuma rutura com a ordem constitucional vigente, antes de uma explicitação oportuna de um dos seus compromissos axiológicos.
4. A dedução constitucional do bem-estar dos animais constitui uma refutação do primeiro argumento invocado no aresto. Resta o segundo argumento: mesmo que a ordem constitucional protegesse tal interesse, nunca o mesmo poderia justificar a incriminação dos maus tratos a «animais de companhia» − apenas estes −, uma vez que tal categoria é arbitrária do ponto de vista do bem-estar animal. A questão pode ser porventura colocada de forma mais acessível através de exemplos: como pode o bem-estar dos animais justificar que seja crime maltratar um cão e não uma raposa, um papagaio e não uma lebre ou um hamster e não uma ratazana? Se não for possível responder de modo convincente a estas questões, impõe-se a conclusão de que o bem-estar dos animais não é, no fim de contas, o interesse protegido pelo tipo incriminador, antes o sendo o sentimento punitivo de indivíduos que constituem um segmento mais ou menos alargado da comunidade em relação a atos de crueldade sobre animais que lhes causam a maior comoção. Ora, tal interesse não constitui, como se encontra estabelecido nas premissas, um bem jurídico carente de tutela penal numa ordem constitucional amiga da liberdade individual.
O bem jurídico subjacente a um tipo incriminador, num diploma com as características do Código Penal, infere-se geralmente da categoria de crimes em que se insere. O artigo 387.º do Código Penal – que, na redação aplicável nos autos, punia autonomamente apenas os maus tratos a animais de companhia – integra a categoria dos «crimes contra animais de companhia» que passou a constar do Título VI do diploma. É evidente que a expressão «crimes contra animais de companhia» não dá a menor indicação sobre qual seja o bem jurídico protegido, uma vez que identifica a categoria de crimes, não a partir daquele, mas do objeto da ação punida. Tem mais interesse olhar para o outro tipo de crime que integra esta categoria, o «abandono de animais de companhia», previsto e punido pelo artigo 388.º, na redação aplicável nos autos, nos seguintes termos: «[q]uem, tendo o dever de guardar, vigiar ou assistir animal de companhia, o abandonar, pondo desse modo em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias.» Depreende-se que os animais visados pelo legislador serão aqueles cujo abandono põe em perigo a alimentação e outras necessidades, ou seja, aqueles cujo bem-estar depende de cuidados humanos. Esta conclusão pode ser posta de acordo, em termos gerais, com a definição de animal de companhia constante do artigo 388.º, sempre na redação aplicável nos autos, sobretudo na parte em que se diz ser aquele que está «destinado a ser detido por seres humanos». Assim, o artigo 388.º pune a violação de um dever positivo de cuidar e o artigo 387.º pune a violação de um dever negativo de não agredir aqueles animais que, em virtude da sua condição domesticada, são particularmente dependentes dos cuidados e vulneráveis aos maus tratos dos seres humanos.
É nesta dependência e vulnerabilidade particulares dos animais de companhia em relação aos seres humanos, as quais resultam de um processo de hominização das suas condições de vida, que se desenrola por vezes ao nível individual da domesticação de um concreto animal e noutras num arco histórico de tal forma longo que abrange a própria espécie e influenciou a sua evolução biológica, que se encontra a chave para decifrar o enigma do bem jurídico subjacente à sua tutela penal. Os animais de companhia são aqueles por cujo bem-estar os seres humanos, que em boa medida os desnaturaram e docilizaram, privando-os de capacidades indispensáveis para a sobrevivência na natureza e desarmando-os dos instintos de defesa contra a agressão, têm uma responsabilidade acrescida. É essa natureza qualificada do bem-estar dos animais de companhia que pode legitimar, de acordo com o princípio da intervenção mínima, que só nesse domínio circunscrito seja dispensada a tutela penal. Por outras palavras, embora a ordem constitucional, devidamente compreendida, salvaguarde pro tanto o bem-estar de todos os animais sencientes, sem prejuízo das graduações que se justifiquem pela complexidade variável das diferentes espécies, na interpretação mais caridosa do que tenham sido as finalidades do legislador só o bem-estar dos animais de companhia legitima a intervenção penal em virtude das especiais responsabilidades que nessa matéria têm os seres humanos. Trata-se de uma opção de política criminal perfeitamente defensável do ponto de vista constitucional.
5. Apesar da minha posição de princípio no sentido da legitimidade da punição dos maus tratos a animais de companhia, que me leva a demarcar-me da posição que fez vencimento, nomeadamente quanto ao juízo de inconstitucionalidade fundado no n.º 1 do artigo 27.º da Constituição, creio que a norma que consta do n.º 1 do artigo 387.º do Código Penal, na redação aplicável nos autos, é inconstitucional por uma outra razão: por violar a exigência de lei certa ou o princípio da tipicidade em matéria penal que se extrai do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição.
A lei é indeterminada em três aspetos importantes, cujo efeito cumulativo é uma incerteza demasiado grande quanto ao que venha a ser o facto punível. Os dois primeiros são relativamente simples. Trata-se, por um lado, da indefinição quanto ao conteúdo da ação. A lei diz que é «infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos», sem que se compreenda bem, dada a confusão manifesta entre a conduta causal (maus tratos) e os seus efeitos (dor ou sofrimento), e abstraindo agora do problema delicado da relação entre dor e sofrimento e da possibilidade de um animal de companhia (e qualquer um) sofrer no sentido próprio do termo, a que é que se refere o adjetivo «físicos» e qual o seu exato alcance neste contexto. Não é de todo claro, por exemplo, se confinar um animal de companhia num espaço demasiado exíguo, sujeitá-lo a privação de alimentos ou mantê-lo em condições insalubres constituem maus tratos para efeitos da prática deste crime. É igualmente duvidoso – esta a segunda indeterminação – o que se tenha pretendido denotar com a expressão «motivo legítimo», que o legislador concebeu como uma cláusula de delimitação negativa do facto punível, sobretudo tendo em conta que as sensibilidades sociais neste domínio – pense-se, por exemplo, na legitimidade da aplicação de castigos corporais mais ou menos severos a animais de companhia − são provavelmente variáveis entre grupos, comunidades e regiões.
O terceiro fator de indeterminação é mais complexo, prendendo-se com o objeto do crime. O n.º 1 do artigo 389.º define «animal de companhia» como aquele que esteja «detido» ou seja «destinado a ser detido por seres humanos», acrescentando depois «designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia». O n.º 2 exclui certos casos «do disposto no número anterior»; dada a impossibilidade lógica de se excluir casos de um conceito da extensão desse mesmo conceito, o que o legislador quis dizer – presume-se – é que os casos referidos se encontram subtraídos ao âmbito de aplicação das normas incriminadoras. Mas mesmo com esta correção, o conceito de «animal de companhia» é excessivamente indeterminado, porque há diferenças importantes entre a classe dos animais efetivamente detidos e a classe dos animais destinados a ser detidos. Estes são os que, tendo ou não quem deles cuide, se encontram por natureza, em virtude de um longo processo histórico, numa posição de particular vulnerabilidade e dependência em relação aos seres humanos; as qualidades que legitimam a intervenção penal são, no que a estes animais diz respeito, predicadas na espécie a que pertencem. Pelo contrário, aqueles − os animais efetivamente detidos para entretenimento e companhia – podem ser indivíduos que não sofreram, nem têm mesmo a capacidade de sofrer, nenhum processo de hominização que os tenha tornado particularmente dependentes da ação humana; uma tarântula, uma osga ou uma pitão podem ser detidos por seres humanos para entretenimento, mas se forem devolvidos à natureza têm as suas capacidades de sobrevivência intactas. São animais – em suma – insuscetíveis de serem abandonados no sentido do artigo 388.º do Código Penal, uma vez que não dependem verdadeiramente de cuidados humanos. Seria absurdo a lei proteger estes animais, pelo facto contingente e insignificante de serem detidos no lar e para o entretenimento de seres humanos, e não outros animais sencientes de complexidade muito superior, como são os membros de várias espécies de mamíferos e cefalópodes. Para que o tipo de crime esteja de acordo com o bem jurídico que lhe confere legitimidade, e para o alinhar com o crime de abandono que integra a mesma categoria, é necessário interpretar a expressão «animais detidos» restritivamente, como referindo-se apenas a animais que, tendo sido domesticados, se tornaram dependentes de cuidados humanos.
Claro está que num Estado de Direito seria impensável que o destinatário da lei penal tivesse o ónus de corrigir todas estas deficiências de expressão e suprir todas estas obscuridades imputáveis ao legislador. Daí a inevitabilidade da conclusão de que a norma que consta do n.º 1 do artigo 387.º do Código Penal, na redação aplicável nos autos, é inconstitucional por violação do princípio da tipicidade penal que se extrai do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição.
Gonçalo Almeida Ribeiro